Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
60/13.4JAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: PRISÃO SUPERIOR A CINCO ANOS
HOMICÍDIO
PROCESSO SUMÁRIO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/30/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO FUNDÃO (2.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 381.º, N.º 1, DO CPP; ARTIGOS 131.º, 132.º, 14.º, N.º 2, ALÍNEA A), DO CP; ARTIGOS20.º, N.º 4, E 32.º, N.º 1, DA CRP
Sumário: I - O artigo 381.º do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, dirigido a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável é superior a cinco anos de prisão e, fundamentalmente, a crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa, viola os artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

II- Efectivamente, restringe intoleravelmente os direitos de defesa do arguido e, quiçá de forma mais intensa, o direito a um processo justo, no sentido da nossa matriz cultural e jurídica, assente na dignidade de procedimento como meio de prosseguir a justiça material e efectiva.

III - No caso versado nos autos, traduzida no julgamento do arguido em processo sumário, sob acusação da prática de um crime de homicídio qualificado, desaplicado o artigo 381.º, n.º 1, do CPP (alterado pela Lei 20/2013), por motivo de inconstitucionalidade, o tribunal deve aplicar as normas julgadas constitucionais, ou seja, os preceitos legais que antes submetiam o referido caso ao processo comum com intervenção do tribunal colectivo, retroagindo o processo à data da acusação, tudo se devendo harmonizar, a partir daí, com o disposto no artigo 283.º e ss. do CPP.

Decisão Texto Integral:           Acordam em conferência, na secção criminal do tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO
No processo supra identificado, o Ministério Público requereu o julgamento em Processo Sumário, com intervenção do tribunal singular, ao abrigo do disposto no artº 16º nº2, alínea c), do Código de Processo Penal, de A... , completamente identificado nos autos, imputando-lhe a prática dos factos constantes da acusação inserta a fls. 137, integradores de um crime de homicídio qualificado, p.p. nos termos do disposto nos artigos 131º e 132º nºs 1 e 2, alíneas b) e e) do Código Penal.
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Os assistentes, B... e C... , na qualidade de filhos da vítima, D..., deduziram pedido de indemnização cível pelos danos decorrentes da morte de sua mãe no montante total de €135.000,00 (cento e trinta e cinco mil euros) e juros desde a data da sentença até pagamento, fls. 309 e seg.
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Procedeu-se a julgamento nos termos requeridos, vindo o arguido a ser condenado pela prática do crime de homicídio qualificado, mas apenas com referência à alínea b) do artº 132º nº2 alínea b) do Código Penal, na pena de vinte anos de prisão, e ainda a pagar aos demandantes civis, em partes iguais, a quantia de € 105.000,00 (cento e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais.
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Inconformado com o assim decidido, veio o arguido interpor recurso, que endereçou ao Supremo Tribunal de Justiça, que restringiu a matéria de direito, mais especificamente, à medida concreta da pena defendendo que o tribunal não valorou a favor do arguido todas circunstâncias constantes da sentença designadamente as decorrentes das patologias constantes do relatórios médicos, bem como o seu arrependimento e o pedido de desculpas aos seus filhos pela morte da mãe.
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O recurso foi admitido para esta Relação, e pensamos que bem, já que não se verifica o condicionalismo a que se reporta o artº 432º nº1 al. c) do CPP, ou seja, apesar de o recurso visar apenas matéria de direito, não foi julgado pelo tribunal colectivo, mercê das alterações operadas na lei processual penal, pela Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro, que permitiu que fosse julgado pelo tribunal singular.
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Tanto o Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância, como os assistentes, responderam ao recurso pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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Já nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, louvando-se na resposta do Ministério Público em primeira instância, emitiu Parecer, no sentido do improvimento.
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A relatora, no despacho a que se reporta o artº 417º nº1 do CPP, defendeu não ser possível conhecer do mérito do recurso, por a tal obstar a inconstitucionalidade da norma do artº 381º nº1 do Cód. Proc. Penal, na redacção da lei 20/2013, de 21 de Fevereiro, que permitiu o julgamento do caso dos autos fosse efectuado pelo tribunal singular, contudo, decidiu submeter os autos à conferência por entender que a declaração de inconstitucionalidade se traduz numa questão excepcional ou anómala face às questões ordinárias a que se reporta a alínea a) do nº 6 do artº 417º do Cód. Proc. Penal. É que, sendo esse juízo necessariamente recorrível pelo Ministério Público, artº 280º nº1al.a) da CRP, a decisão sumária a que se reporta esta norma processual penal, apenas protelaria o andamento do processo, circunstância a evitar, tanto quanto possível sendo certo que nestes autos o arguido se encontra preventivamente preso.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O crime de homicídio voluntário a que se reportam o presentes autos, ocorreu em 15 de Abril de 2013, tendo sido o arguido detido nesse mesmo dia quando ainda se encontrava no local do crime, portanto em situação de flagrante delito, artº 256º do CPP, o que permitiu o julgamento em processo sumário e portanto por um juiz singular, como é apanágio desta forma de processo, por via da redacção que a Lei nº20/2013 de 21 de Fevereiro de 2013, que entrou em vigor em 21 de Março seguinte, artº 4º da mencionada lei.
Esta alteração do Código de Processo Penal, logo levantou algumas reservas na comunidade jurídica, apodando a lei de dar preferência à celeridade em detrimento do direitos de defesa do arguido e de um processo equitativo, no que respeita a crimes puníveis com pena superior a cinco anos de prisão máximo da pena abstracta que até aí podia ser aplicada por um juiz singular – artº 16º do CPP, na redacção anterior à mencionada Lei.
Na sequência deste entendimento, o Tribunal Judicial do Entroncamento, veio a ser proferir dois despachos onde se recusou a julgar em processo sumário crimes que a lei 20/2013 veio permitir que fossem julgados nesta forma de processo, com fundamento na inconstitucionalidade da nova redacção da norma constante do artº 381º nº1 do Cód. Proc. Penal.
Ambas as decisões foram objecto de recurso do Magistrado do Ministério Público para o Tribunal Constitucional e vieram a ser apreciados, respectivamente, nos processos nºs 403/2013, e 532/13, da 3ª secção, tiveram como relatores, respectivamente, os Srs. Conselheiros Carlos Cadilha e Maria José Mesquita, correspondendo aos Acórdãos nº 428/2013 de 15 de Julho de 2013, publicado no DR de 16 de Outubro de 2013, e nº 469/2013 de 13 de Agosto, ainda não publicado mas acessível através do site do Tribunal Constitucional na Internet.
Em ambos os arestos veio aquele Tribunal a negar provimento aos recursos e a pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma referida na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artº 32º nºs 1 e 2 da Constituição.
Os argumentos utilizados em ambos os Acórdãos, sendo que o segundo reproduziu o primeiro, foram os que com “data vénia” se transcrevem:
“ll - Fundamentação
2. Pela sentença recorrida, o tribunal judicial de primeira instância, intervindo em juiz singular, julgou inconstitucional a norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação de que podem ser julgados em processo sumário os detidos em flagrante delito por crime cuja pena máxima abstratamente aplicável seja superior a cinco anos de prisão, por violação dos princípios das garantias de defesa e de um processo equitativo previstos nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição.
A norma em causa, que se encontra inserida no Título I do Livro VIII do CPP, referente aos processos especiais na modalidade de processo sumário, na redação resultante da Lei n.º 20/2013, é do seguinte teor:
1 - São julgados em processo sumário os detidos em flagrante delito, nos termos dos artigos 255.º e 256.º:
a) Quando à detenção tiver procedido qualquer autoridade judiciária ou entidade policial; ou
b) Quando a detenção tiver sido efetuada por outra pessoa e, num prazo que não exceda duas horas, o detido tenha sido entregue a uma autoridade judiciária ou entidade policial, tendo esta redigido auto sumário da entrega.
2 - O disposto no número anterior não se aplica aos detidos em flagrante delito por crime a que corresponda a alínea m) do artigo 1.º ou por crime previsto no título III e no capítulo I do título v do livro II do Código Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário.
Deve começar por notar-se que na versão inicial do CPP o processo sumário era aplicável aos detidos em flagrante delito por crime punível com pena até três anos de prisão, se fossem maiores de 18 anos à data do facto e a detenção fosse realizada por autoridade judiciária ou entidade policial. O julgamento devia ter lugar dentro de 48 horas após a detenção ou, sendo adiado, até cinco depois da data da detenção.
A Lei n.° 59/98, de 25 de agosto, suprimiu o requisito da idade mínima e permitiu o julgamento em processo sumário mesmo em relação a detidos em flagrante delito por crime punível com pena de prisão superior a três anos, quando o Ministério Público entendesse que não deveria ser aplicada, em concreto, pena superior a esse limite. Por outro lado, o julgamento podia ser adiado até ao trigésimo dia posterior ao dia da detenção.
A Lei n.° 48/2007, de 29 de agosto, alargou, de novo, o âmbito de aplicação do processo sumário, que passou a ter lugar em relação a detidos em flagrante delito por crime punível com pena até cinco anos de prisão, mesmo em caso de concurso de crimes, e ainda com pena superior a cinco anos de prisão quando o Ministério Público, na acusação, entendesse que não devia ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos, estendendo-se além disso às situações de detenção pela autoridade judiciária ou entidade policial e de detenção por qualquer pessoa se o detido for entregue no prazo de 2 horas àquela autoridade ou entidade.
A Lei n.º 20/2013 veio proceder a um novo alargamento do âmbito de aplicação do processo sumário, por força da nova redação dada ao artigo 381º, remetendo para essa forma de processo o julgamento de detidos em flagrante delito, sem qualquer especificação quanto ao limite da pena aplicável (n.º 1), excecionando apenas os crimes que constituem criminalidade altamente organizada, os crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, os crimes contra a segurança do Estado e os relativos à violação do Direito Internacional Humanitário (n.º 2). A ampliação, nesses termos, do âmbito do julgamento em processo sumário determinou igualmente modificações na repartição de competências entre os tribunais penais. A competência do tribunal coletivo, que estava circunscrita (para além dos casos já ressalvados no n.º 2 do artigo 381º) a crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa ou cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja superior a cinco anos de prisão, passou a ser preterida pela intervenção do juiz singular, quando o crime deva ser julgado em processo sumário nos termos do n.º 1 desse artigo, mesmo quando a pena abstratamente aplicável seja superior a cinco anos de prisão (artigos 14º, n.º 2, e 16º, n.º 2, alínea c), do CPP). Manteve-se, no entanto, a possibilidade de o julgamento de detidos em flagrante delito poder ser efetuado pelo tribunal de júri relativamente a crimes cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja superior a oito anos de prisão, quando essa intervenção tenha sido requerida pelo Ministério Público, pelo arguido ou pelo assistente (artigos 13.º, n.º 2, e 390.º, n.º 1, alínea b)).
3. Tradicionalmente, a utilização do processo sumário em matéria penal surge associada à pequena e média criminalidade e mostra-se justificada pela verificação imediata dos factos através da detenção do agente em flagrante delito, o que permite dispensar outras formalidades e mais largas investigações que normalmente teriam lugar através das fases de inquérito e de instrução, no âmbito do processo comum (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, Os processos sumário e sumaríssimo ou a celeridade e o consenso, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6º, Outubro-Dezembro de 1996, pág. 527).
O progressivo alargamento do âmbito de aplicação do processo sumário, mediante a elevação do limite da pena aplicável ao crime cometido em flagrante delito que pode ficar abrangido por essa forma de processo, é, por outro lado, explicável por uma lógica de produtividade e de eficácia, mas também de justiça, que têm como fundamento a exigência de celeridade processual. Tratar-se-á de um mecanismo norteado pela maximização da eficácia, otimização da reação político-criminal e descongestionamento dos tribunais (HENRIQUES GASPAR, Processos especiais, in «Jornadas de Direito Processual Penal. O novo Código de Processo Penal», Centro de Estudos Judiciários, Coimbra, 1993).
É nessa mesma linha de política legislativa que se enquadra a nova alteração introduzida pela Lei n.º 20/2013, que na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 77/XII – que originou a aprovação desse diploma – é justificada simplesmente nestes termos:
A possibilidade de submeter os arguidos a julgamento imediato em caso de flagrante delito possibilita uma justiça célere que contribui para o sentimento de justiça e o apaziguamento social. Atualmente, a lei apenas possibilita que possam ser julgados em processo sumário, ou os arguidos a quem são imputados crime ou crimes cuja punição corresponda a pena de prisão não superior a cinco anos ou quando, ultrapassando a medida abstrata da pena esse limite, o Ministério Público entenda que não lhes deve ser aplicada pena superior a cinco anos de prisão. Contudo, não existem razões válidas para que o processo não possa seguir a forma sumária relativamente a quase todos os arguidos detidos em flagrante delito, já que a medida da pena aplicável não é, só por si, excludente desta forma de processo.
Impunha-se, assim, uma alteração legislativa que contemplasse esta possibilidade
4. A primeira questão de constitucionalidade que o novo critério legal definido para o âmbito do julgamento em processo sumário coloca é o das garantias de defesa do arguido.
Nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, o «processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao arguido», o que engloba indubitavelmente «todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação» (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª edição, Coimbra, pág. 516). O n.º 2 do mesmo artigo, que associa o princípio da presunção da inocência do arguido à obrigatoriedade do julgamento «no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa» (n.º 2, in fine), tem subjacente o direito a um processo célere, partindo da perspetiva de que a demora do processo penal, além de prolongar o estado de suspeição e as medidas de coação sobre o arguido, acabará por esvaziar de sentido e retirar conteúdo útil ao princípio da presunção de inocência (idem, pág. 519).
No entanto, o princípio da aceleração de processo – como decorre com evidência do segmento final desse n.º 2 – tem de ser compatível com as garantias de defesa, o que implica a proibição do sacrifício dos direitos inerentes ao estatuto processual do arguido a pretexto da necessidade de uma justiça célere e eficaz (ibidem).
As exigências de celeridade processual não podem, por conseguinte, deixar de ser articuladas com as garantias de defesa, sendo que a Constituição, por força do mencionado n.º 2 do artigo 32º, valora especialmente a proteção das garantias de defesa em detrimento da rapidez processual. O que permite definir a forma ideal de processo como o resultado de uma tensão dialética entre esses dois fins constitucionalmente garantidos (ALEXANDRE DE SOUSA PINHEIRO/PAULO SARAGOÇA DA MATTA, Algumas notas sobre o processo penal na forma sumária, Revista do Ministério Público, ano 16º, Julho-setembro de 1995, n.º 63. pág. 160).
5. A forma de processo sumário corresponde a um processo acelerado quanto aos prazos aplicáveis e simplificado quanto às formalidades exigíveis.
Como princípio geral, vigora a redução dos atos e termos do julgamento ao mínimo indispensável ao conhecimento e boa decisão da causa (artigo 386.º, n.º 2).
Como decorrência desse critério geral, as especificidades do regime processual consignadas nos artigos 382º e seguintes do CPP refletem algumas limitações quanto à possibilidade de adiamento da audiência de julgamento, ao uso dos meios de prova e aos prazos em que a prova poderá ser realizada, e ainda em matéria de recursos, além de que preconizam o abandono do ritualismo de certos atos processuais em benefício de uma maior acentuação do caráter de oralidade.
O início da audiência de julgamento tem lugar no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, podendo ser protelado até ao limite do 5.º dia posterior à detenção, quando houver interposição de um ou mais dias não úteis, até ao limite do 15.º dia posterior à detenção, nos casos previstos no n.º 3 do artigo 384.º ou até ao limite de 20 dias após a detenção, sempre que o arguido tiver requerido prazo para preparação da sua defesa ou o Ministério Público julgar necessária a realização de diligências essenciais à descoberta da verdade (artigo 387.º, n.ºs 1 e 2).
As testemunhas são sempre a apresentar, salvo quando haja lugar a novas diligências de prova e tenham sido notificadas pelo MP, sendo que a falta de testemunhas não dá lugar a adiamento da audiência, exceto se o juiz considerar o depoimento imprescindível para a descoberta da verdade e boa decisão da causa (artigo 387.º, n.ºs 3, 4 e 7).
A produção de prova está sujeita a limites temporais (artigo 387.º, n.ºs 9 e 10).
O Ministério Público pode substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção, exceto em caso de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 5 anos, ou em caso de concurso de infrações cujo limite máximo seja superior a 5 anos de prisão, situação em que deverá apresentar acusação (artigo 389.º, n.º 1).
A sentença é proferida oralmente, salvo se for aplicada pena privativa da liberdade ou, excecionalmente, se as circunstâncias do caso o tornarem necessário, caso em que o juiz, logo após a discussão, elabora a sentença por escrito e procede à sua leitura (artigo 398º, n.ºs 1 e 5).
Só é admissível recurso da sentença ou de despacho que puser termo ao processo (artigo 391.º, n.º 1), sendo que, por contraposição com os acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo, não há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões condenatórias do juiz singular ainda que apliquem pena de prisão superior a 5 anos (artigo 432.º, alínea c)).
6. Como o Tribunal Constitucional tem reconhecido, o julgamento através do tribunal singular oferece ao arguido menores garantias de defesa do que um julgamento em tribunal coletivo, desde logo porque aumenta a margem de erro na apreciação dos factos e a possibilidade de uma decisão menos justa (entre outros, os acórdãos n.ºs 393/89 e 326/90). E por razões inerentes à própria orgânica judiciária, o tribunal singular será normalmente constituído por um juiz em início de carreira com menor experiência profissional, o que poderá potenciar uma menor qualidade de decisão por confronto com aquelas outras situações em que haja lugar à intervenção de um órgão colegial presidido por um juiz de círculo.
Daí que a opção legislativa pelo julgamento sumário deva ficar sempre limitada pelo poder condenatório do juiz definido em função de um critério quantitativo da pena aplicar, só assim se aceitando – como a jurisprudência constitucional tem também sublinhado – que não possa falar-se, nesse caso, numa restrição intolerável às garantias de defesa do arguido.
Acresce que a prova direta do crime em consequência da ocorrência de flagrante delito, ainda que facilite a demonstração dos factos juridicamente relevantes para a existência do crime e a punibilidade do arguido, poderá não afastar a complexidade factual relativamente a aspetos que relevam para a determinação e medida da pena ou a sua atenuação especial, mormente quando respeitem à personalidade do agente, à motivação do crime e a circunstâncias anteriores ou posteriores ao facto que possam diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
E estando em causa uma forma de criminalidade grave a que possa corresponder a mais elevada moldura penal, nada justifica que a situação de flagrante delito possa implicar, por si, um agravamento do estatuto processual do arguido com a consequente limitação dos direitos de defesa e a sujeição a uma forma de processo que envolva menores garantias de uma decisão justa.
Como se deixou entrever, o princípio da celeridade processual não é um valor absoluto e carece de ser compatibilizado com as garantias de defesa do arguido. À luz do princípio consignado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, não tem qualquer cabimento afirmar que o processo sumário, menos solene e garantístico, possa ser aplicado a todos os arguidos detidos em flagrante delito independentemente da medida da pena aplicável. Tato mais que mesmo o processo comum, quando aplicável a crimes a que corresponda pena de prisão superior a cinco anos, dispõe já de mecanismos de aceleração processual por efeito dos limites impostos à duração de medidas de coação que, no caso, sejam aplicáveis (artigos 215.º e 218.º do CPP).
A solução legal mostra-se, por isso, violadora das garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.».”
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Não se vislumbram razões para não aplicar estes ensinamentos e a inconstitucionalidade deles decorrente ao caso sub judice.
Com efeito, a norma aplicada é exactamente a mesma implicando que sejam rigorosamente os mesmos efeitos a tirar dela.
Mas, mesmo sem aquela visão ampla da inconstitucionalidade da norma do artº 381º nº1 do CPP, que submete ao juízo de inconstitucionalidade o julgamento em processo sumário para crimes cuja pena abstracta seja superior a cinco anos de prisão, pensamos que em casos como os dos autos, onde além de a pena abstracta ser superior a cinco anos, está em causa a morte, a celeridade se compagina mal com a ideia de justiça e do apaziguamento social, fins propalados na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 77/XII, que veio a originar a Lei 20/2013.
É que permitir o julgamento em processo sumário em casos como os dos presentes autos, é ignorar que a dificuldade dos julgamentos de homicídio reside, na maior parte das vezes, não em saber a quem imputar o resultado, mas mais ao circunstancialismo que o rodeou, (móbil e motivos que levaram à prática do crime e de toda a percepção das condições pessoais do agente e, não raro, da própria vítima), susceptíveis de influírem na ilicitude e na culpa.
É na percepção destes cambiantes e matizes onde porventura o julgador põe mais de si, de toda a sua experiência e das idiossincrasias que lhe são imanentes, que se impõem especiais cuidados na prossecução da justiça.
 Certamente, porque foi sensível a esta realidade que até á vigência da falada Lei 20/2013, estavam sempre fora do paradigma do processo sumário os crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando fosse elemento do tipo a morte de uma pessoa, artº 14º nº2 al. a) do C.P.P., ou seja, este tipo de crimes, por via desta norma nunca podiam ser submetidos ao julgamento pelo tribunal singular, ou seja, relativamente a eles, não podia o MºPº requerer o julgamento nos termos do artº 16º nº3 do mesmo diploma (decorria daqui a impossibilidade de serem julgados por um único juiz os crimes de homicídio privilegiado, infanticídio, auxilio ao suicídio).
Neste sentido, o legislador de 2013, ultrapassou uma dupla fronteira, não só não limitou a intervenção do processo sumário e do juiz singular a um limite certo da pena, como até aí tinha sido apanágio dos processos submetidos à forma sumária, como ainda ultrapassou a fronteira dos tipos de crime que nunca podiam ser submetidos a esta forma de procedimento mais simplificada, crimes dolosos ou agravados pelo resultado quando a morte for elemento do tipo.
Vistas as coisas deste prisma, a alteração levada a cabo violou duplamente a constituição não só porque restringiu intoleravelmente os direitos de defesa, mas também e quiçá principalmente, o direito a um processo justo, no sentido da nossa matriz cultural e jurídica que assenta na dignidade de procedimento como meio de prosseguir a justiça material e efectiva, por contraposição à pacificação social mais cara à filosofia inspiradora dos países anglo-saxónicos.
De harmonia com o disposto no artº 204º da Constituição, que tem por epígrafe (Apreciação da inconstitucionalidade), “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.
Esta norma é um dos preceitos nucleares do ordenamento jurídico português e do Estado de direito democrático, e decorre do primado da Lei Constitucional e da separação de poderes, seguindo os ensinamentos de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada (Coimbra Editora, 4ª edição, vol. II, pág. 519): “ Em síntese, este preceito significa que a função jurisdicional integra também a fiscalização da constitucionalidade e que os tribunais – todos e cada um deles – têm o poder e o dever de confrontar com a constituição as normas infraconstitucionais que sejam chamados a aplicar, tendo de recusar-se a aplicar essas normas se não forem compatíveis com ela. É esta, aliás, uma das características essenciais do sistema de controlo difuso ou desconcentrado da constitucionalidade, característica que vem desde a Constituição de 1911”.
No caso que nos ocupa, a declaração de inconstitucionalidade da norma do artº 381 nº1 do CPP, e a sua desaplicação importa a invalidade dos actos que lhe sucederam.
Mais uma vez segundo os ensinamentos dos Constitucionalistas referidos, (ibidem) “Desaplicada a norma por motivo de inconstitucionalidade, o tribunal deve aplicar a norma que teria de aplicar na ausência da norma julgada inconstitucional – que tanto pode ser a norma que anteriormente regulava a matéria, uma norma subsidiariamente aplicável ao caso ou directamente uma norma constitucional –, podendo, porém, dar-se o caso de não subsistir qualquer norma uma vez afastada a norma julgada inconstitucional, devendo então a causa ser julgada em conformidade com os princípios hermenêuticos de integração-interpretação de normas jurídicas”, e, no caso específico do processo penal, com as restrições ditadas pelo artº 29º nº1 e 4 da Constituição.
No caso vertente, a nossa tarefa está facilitada porque subsiste a norma que anteriormente se aplicava ao caso, ou seja as regras anteriores que submetiam o caso que nos ocupa ao processo comum e à intervenção do tribunal colectivo – artº 381º nº1, 14º e 16º todos do CPP, que tem de retrotrair à data em que foi aplicada a norma declarada inconstitucional, ou seja, à data da prolação da acusação, tudo se devendo harmonizar, a partir daí, com o disposto no artº 283 e seg. do CPP, de modo a harmonizar-se o processo com as garantias que são apanágio deste tipo mais solene de procedimento.
A nível do processado, tudo se passa, como relativamente às invalidades ordinárias, quando há que destruir procedimentos, certo sendo que mercê do juízo de inconstitucionalidade, foram efectivamente cometidas duas nulidades insanáveis, a utilização indevida do processo sumário e preterição do tribunal colectivo, previstas, respectivamente, nas al. f) e a) do artº 119º do CPP, com os efeitos do artº 122º do mesmo diploma.
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III – DECISÃO:
Nos termos e com os termos expostos, acorda-se em julgar inconstitucional o artigo 381º nº1do CPP, na redacção introduzida pela Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro, na interpretação em que esta norma é aplicável a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação dos princípios das garantias de defesa e de um processo equitativo previsto nos artº 20º nº4 e 32º nº1 da Constituição, e consequentemente, remeter os autos ao tribunal “a quo” para que o processo a seguir à acusação siga a forma comum com intervenção do tribunal colectivo, seguindo-se os demais termos desta forma de processo.
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Sem tributação.
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Coimbra, 30 de Outubro de 2013


(Cacilda Sena - Relatora)
(Elisa Sales)