Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1210/10.8TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
CHEQUE
REVOGAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 04/09/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 457 CPC, 342, 483 CC, DEC. Nº 13004
Sumário: 1. Considerando alguma relatividade da verdade judicial, uma prudente liberdade do juiz a quo na apreciação e valoração dos meios probatórios, e alguma margem de álea de tais realidades decorrente, é ainda admissível a posição do julgador que, perante uma plêiade de meios probatórios produzidos e uma certa complexidade do factualismo apreciado, opta, sem que se alcance tal opção meridianamente afetante/intoleravelmente constrangedora ou claramente violadora de qualquer meio de prova ou das regras da lógica e da experiencia comum, por uma das teses em confronto.

2. Considerando que a condenação por má fé implica não apenas uma afectação económico-financeira, como um desmerecimento a nível pessoal, marcante e inquinador, o convencimento sobre a verificação da mesma implica uma prova mais acutilante e inequívoca – por reporte à prova da generalidade dos factos - a qual, assim, alcandore a uma convicção de certeza ou quase certeza.

3. Para a condenação como litigante de má fé não basta a simples impugnação per positionem da versão de uma das partes sempre que a versão oposta à alegada seja provada, nem pode confundir-se com a manifesta improcedência da pretensão ou oposição deduzida.

4. O portador de um cheque, cuja revogação tenha sido ilícita, tem o ónus de alegar e provar os pressupostos da responsabilidade aquiliana, designadamente o dano.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

V (…) UNIPESSOAL, LDA., propôs contra BANCO (…) ação declarativa de condenação sob a forma de processo sumário.

Pediu:

A condenação do Réu no pagamento da importância de € 15.478,52 acrescida de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.

Alegou:

É dona e legítima portadora de dois cheques no valor global de € 12.600,00 e sacados a seu favor sobre a conta n.º x...001 titulada por P (…) sobre o BANCO (…), os quais, não obstante terem sido apresentados a pagamento nos 8 dias subsequentes à data da emissão, tiveram o pagamento recusado com a justificação, respetivamente, de “CHQ Ver. Just. CAUSA FVFV” e “Cheque Ver.

O Réu não podia ter-se negado à liquidação de tais títulos cambiários com base nos fundamentos apostos.

Contestou o réu.

Disse:

A falta de alegação da relação causal por parte da Autora veda o seu direito de defesa. Atuou em conformidade com as boas práticas bancárias ao não proceder ao pagamento dos cheques atentas as instruções expressas nesse sentido emitidas por P (…).

 Deduziu incidente de intervenção provocada de P (…) para atuar como sua associada ou auxiliar em virtude de considerar que, a obter a ação provimento, poderia vir a acionar a mesma Chamada em sede de direito de regresso.

Respondeu a Autora.

Alegou que os títulos cambiários dos autos foram entregues por P (…) com vista a reembolsar um empréstimo de emergência no valor de € 6.300,00 que a Autora lhe havia concretizado.

A falta de pronto pagamento do primeiro cheque causou-lhe gravosos prejuízos, pelo que, após a correspondente devolução, a sobredita P (…) lhe entregou um segundo título em idêntico valor e quedando o primeiro título na posse da própria Autora a título de garantia do pagamento de todos os prejuízos causados pelo não reembolso atempado do mútuo.

Respondeu  o BANCO (…)

Peticionando a condenação da Autora como litigante de má fé em virtude de considerar que a mesma almeja ao pagamento nos autos de quantias indevidas e que se traduzem na duplicação do capital supostamente em débito na relação causal.

Foi admitida a intervenção acessória de P (…)

Invocou que os títulos cambiários em relevo foram emitidos com vista a servir como mera garantia.

Isto na medida em que advertiu a Autora que os trabalhos que se achava a desenvolver numa obra por esta titulada iriam ser paralisados na decorrência de débitos pendentes do empreiteiro, tendo aquela assumido o pagamento parcial dos montantes em falta com simultânea menção que iria acertar contas com a sua contraparte negocial.

Com o que os cheques dos autos se destinariam apenas a possibilitar à Autora reaver tais importâncias caso o empreiteiro acabasse por processar pagamentos à Chamada em momento prévio ao sobredito acerto.

 E remata que o subsequente desconto concretizado pela Autora se mostrou indevido

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

a) Julgar a ação como totalmente improcedente e, em consequência, absolver o Réu do pedido concretizado pela Autora, o que envolve igual absolvição da Chamada;

b) Condenar a Autora como litigante de má-fé em multa de 30 UCs e em indemnização a favor do Reú a arbitrar após pronúncia das partes no prazo de dez dias em conformidade com o n.º 2 do artigo 457.º do mesmo diploma.

Tendo, posteriormente sido fixada esta indemnização em 2.030,00 euros.

3.

Inconformada recorreu a autora.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

Contra alegaram o réu e a interveniente pugnando pela manutenção do decidido, aquele com o seguinte discurso final:

 (…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685º-A  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª  - (Im)procedência dos pedidos das partes vg. no atinente à má fé.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

Há que considerar que no nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº655º do CPC.

Perante o estatuído neste artigo pode concluir-se, por um lado, que a lei não considera o juiz como um autómato que se limita a aplicar critérios legais apriorísticos de valoração.

Mas, por outro lado, também não lhe permite julgar apenas pela impressão que as provas produzidas pelos litigantes produziram no seu espírito.

 Antes lhe exigindo que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

Na verdade prova livre não quer dizer prova arbitrária, caprichosa  ou irracional.

Antes querendo dizer prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, posto que em perfeita conformidade com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

5.1.2.

Não obstante há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, dgsi.pt, p.03B3893.

 Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Efetivamente, com a produção da prova apenas se deve pretender criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente num grau de probabilidade o mais elevado possível, mas em todo o caso assente numa certeza relativa, porque subjetiva, do facto – cfr. Acórdão desta Relação de 14.09.2006, dgsi.pt, citando Antunes Varela.

Uma tal convicção existirá quando e só quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável - Cfr. Figueiredo Dias, in Dto. Processual Penal I Pág. 205.

Nesta conformidade  - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade, e, até, falibilidade, vg. no que concerne á decisão sobre a matéria de facto.

Mas tal é inelutável e está ínsito nos próprios riscos decorrentes do simples facto de se viver em sociedade onde os conflitos de interesses e as contradições estão sempre, e por vezes exacerbadamente, presentes, havendo que conviver - se necessário até com laivos de algum estoicismo e abnegação - com esta inexorável álea de erro ou engano.

O que importa, é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, tendencialmente, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

É que, como se referiu, a verdade que se procura, não é, nem pode ser, uma verdade absoluta -porque assente em premissas de cariz matemático-, mas antes uma verdade político-jurídica, a qual é consecutida se a sentença  convencer os interessados diretos: as partes – e, principalmente, a sociedade em geral, do seu bem fundado: isto é, a sentença valerá acima de tudo se for validada e aceite socialmente.

5.1.3.

Nesta perspetiva importa atentar, na sequencia de basta jurisprudência, que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas, nem pode significar a desvalorização da sentença de 1ª instância, que passaria a ser uma espécie de "ensaio" do verdadeiro julgamento a efectuar pelo Tribunal da Relação.

 É da decisão recorrida que tem sempre de se partir, porque um tribunal de recurso não julga, nesta matéria, ex novo.

Assim, a função do Tribunal da 2ª Instância deverá circunscrever-se a "apurar a razoabilidade da convicção probatória do 1º grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos - Ac. do Trib. Constitucional de  3.10.2001, in Acórdãos do T. C. vol. 51º, pág. 206 e sgs e Ac. da Rel. de Lisboa de 16.02.05,  dgsi.pt. com realce e sublinhados nossos tal como nas citações infra

«Assentando a decisão recorrida na atribuição de credibilidade a uma fonte de prova em detrimento de outra, com base na imediação, tendo por base um juízo objectivável e racional, só haverá fundamento válido para proceder à sua alteração caso se demonstre que tal juízo contraria as regras da experiência comum» -Ac. da Relação de Coimbra de  18.08.04, dgsi.pt.

5.1.4.

(…)

5.1.4.3.

Já quanto aos quesito 11º e 12º  atinente à má fé da autora e da chamada as coisas são algo diferentes.

Perguntava-se no artº 11º «a autora sabe ou não pode ignorar que correspondem à verdade os factos constantes nos quesitos 3º a 10º da base instrutória».

E no artº 12º « a chamada sabe e não pode ignorar que não correspondem à verdade os factos constantes nos quesitos 3º a 10º da base instrutória».

Certo é que importa, na sequência do atual desígnio legislativo, ínsito na redação do artº 456º do CPC, impor uma cultura de rigor nesta matéria, com os inerentes benefícios, a todos os títulos e níveis, dai advenientes.

Não obstante há que apreciar e decidir com as cautelas e precauções necessárias.

Pois que, não obstante se concordar que cada vez mais as partes usam e abusam dos seus (por vezes pretensos) direitos, litigando temerariamente e agindo de má fé, substantiva e processualmente, o certo é que os tribunais devem ser prudentes na condenação a este título, porque tal implica não apenas uma censura e afetação económico-financeira a nível processual, como um desmerecimento a nível pessoal marcante e inquinador da honestidade e probidade presumivelmente insertas na esfera jurídica pessoal do normal cidadão - cfr. Ac. do STJ de 15.10.2002, dgsi.pt,p.02A2185.

Tal prudência e cautela é ainda necessária para evitar condenações injustas, designadamente quando assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico. 

Assim, para a condenação como litigante de má fé não basta a simples impugnação per positionem da versão de uma das partes sempre que a versão oposta à alegada seja provada. Nem pode confundir-se com a manifesta improcedência da pretensão ou oposição deduzida.

O fundamento ético do instituto a dignidade da pessoa humana  e o carácter gravoso e estigmatizante de uma condenação como litigante de má-fé exigem que se conclua por um desrespeito pelo tribunal, pelo processo e pela justiça, imputável subjetivamente ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes se exigindo a negligência grave, grosseira (a faute lourde do direito francês ou a Leichtfertigkeit do direito alemão) -  Ac. da Relação do Porto de 20.10.2009, p. 30010-A/1995.P1 e do STJ de 28.05.2009, p.09B0681.

Tendo-se, outrossim, em consideração que, dada a relatividade da verdade judicial decorrente, designadamente, das várias interpretações e correlativas soluções jurídicas que podem incidir sobre um determinado complexo factual «a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual…» - Ac. do STJ de 11.12.2003, dgsi.pt, p.03B3893.

5.1.4.3.1.

No caso vertente o sr. Juiz deu como provado o teor do artº 11º certamente com base no acervo probatório que fundamentou as respostas aos quesitos 1º a 10º.

Ora já se viu, e o próprio julgador o admitiu, que a prova não foi inequívoca e deixou dúvidas sobre qual das versões seria de sufragar.

Inclinando-se para a versão da chamada porque, certamente, considerou que tais dúvidas eram razoavelmente admissíveis e suportáveis e, assim, ainda ínsitas dentro da margem de alea em direito permitida.

Entendimento este que se aceitou - posto que, como se viu, in extremis - considerando as considerações supra plasmadas, quer em tese geral quer atendendo aos contornos e especificidades do caso.

Porém já não se concede que a prova produzida possa levar, sem que tal margem de alea não seja ultrapassada, ao convencimento do perguntado neste quesito 11º.

Na verdade e por virtude da índole do instituto e das  consequências da condenação como litigante de má fé, a prova desta tem de efetivar-se de um modo mais consistente, substancial e claro.

Ónus que entendemos não ter sido cumprido.

Efetivamente encontramo-nos perante uma situação com contornos algo complexos, intrincados e, até, meandrosos, no âmbito da qual se indicia suficientemente que todas as partes deixaram algo a desejar na sua atuação, dando azo a que a sua postura, quiçá dúbia,  levasse a contraparte a interiorizar uma vontade ou consequência que, ou não era desejada, ou não foi depois assumida.

Por exemplo e tal como o Sr. Juiz admite, é congeminável a possibilidade – ainda que com ele se concorde que de uma possibilidade ténue  que não teve nem tem força bastante para infirmar a convicção que levou à prova da versão da chamada – de o (…) ser induzido, quase forçado – “chantageado” como incisivamente expende o julgador -, a entregar os 6.300,00 euros ao A...para evitar a paragem dos trabalhos e numa ótica de poder vir a receber o dinheiro de volta, quer mediante o desconto no preço perante a empreiteira F..., quer mediante a sua restituição pela chamada, logo que esta tivesse tal possibilidade.

Ora esta simples dúvida e possibilidade é o bastante para não se poder concluir pela má fé, pois que pelas suas consequências pessoais e materiais, a formação da convicção sobre a atuação a tal título exige uma prova  que alcandore a mesma à certeza ou quase certeza do facto, ou, no mínimo, a um grau de suficiência superior ao exigido para a generalidade dos factos alicerçantes de outras atuações e pretensões.

Em função do que, e pelos mesmos motivos, não, pode proceder a pretensão da autora em ver provado o teor do quesito 12º  com a consequente condenação da chamada como litigante de má fé.

5.1.5.

Consequentemente, os factos a considerar são os seguintes:

a) A Autora V (…) é portadora de dois cheques sacados por P (…) sobre a conta n.º x...001 do BANCO (..) S.A., por si titulada, a saber:

i) cheque n.º 6243660578, datado de 16 de Fevereiro de 2008, titulando o montante de € 6.300,00, apresentado a pagamento em 18 de Fevereiro de 2008;

ii) cheque n.º 8853567918, datado de 25 de Abril de 2008, titulando o montante de € 6.300,00, apresentado a pagamento em 28 de Abril de 2008;

b) A Autora V (..) depositou os cheques referidos na alínea a) dos factos provados na sua conta bancária n.º 28297600190 aberta na Agência de Torres Novas do Banco Popular Portugal, S.A.;

c) Os cheques referidos na alínea a) dos factos provados foram apresentados no serviço de compensação e posteriormente devolvidos à Autora V (…), tendo o Réu BANCO (…), S.A., recusado o seu pagamento em 20 de Fevereiro de 2008 e em 29 de Abril de 2008, respectivamente, com a aposição no verso dos mesmos de cheque revogado com justa causa por falta ou vício na formação da vontade;

d) A sacadora (…) emitiu ordem dirigida ao Réu BANCO (…) S.A., para revogação dos mencionados cheques, em 19 de Fevereiro de 2008, quanto ao cheque n.º 6243660578 e em 29 de Abril de 2009, quanto ao cheque n.º 88535679198;

e) O Réu BANCO (…), S.A., aceitou tais ordens de revogação e cumpriu-as;

f) Por sentença proferida em 16 de Junho de 2010, no âmbito do processo que correu seus termos com o n.º 458/08.7 TATNV, no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas, P (…) e (…) foram absolvidos da prática de dois crimes de emissão de cheque sem provisão, bem como do pedido cível contra eles formulado pela Autora V (…);

g) P (…) efectuou obras de construção e restauro em estabelecimentos comerciais da Autora V (…);

h) Por conta da empresa N..., Lda.;

i) Como a referida N... não pagava os serviços prestados a (…), esta comunicou à Autora V (…) que iria suspender os trabalhos em curso;

j) De imediato a Autora V (…), para evitar a paragem dos trabalhos, pagou directamente a P (…) parte dos trabalhos e entregou-lhe o montante de € 6.300,00;

k) Tendo a Autora V (…) referido a P (…) que, a final, acertaria contas com a N...

l) E solicitou a P (…) que lhe passasse cheque no montante do dinheiro referido na alínea j) dos factos provados dizendo que assim “seria mais fácil acertar contas com a N...”;

m) Ao contrário do acordado, a Autora V (…) decidiu depositar o cheque n.º 6243660578 mencionado na alínea a) dos factos provados;

n) Prometendo não voltar a fazê-lo novamente, a Autora V (…) pediu novo cheque a P (…) para tentar recuperar o dinheiro que pagou junto da N...

o) No entanto, deposita o cheque n.º 8853567918 referido na alínea a) dos factos provados;

p) Os cheques referidos na alínea a) dos factos provados foram emitidos e entregues à Autora V (…) em momento incerto reportado aos trinta dias anteriores às datas de emissão neles apostas.

5.2.

Segunda questão.

A recorrente impetra a revogação da absolvição com base na alteração da factualidade dada como provada e que ela pretendia que fosse declarada como não provada.

Soçobrando tal pretensão e não atacando ela a decisão, neste particular, mesmo na consideração dos factos atendidos pelo julgador, a sentença seria de manter neste conspeto, exceto se nela se evidenciasse palmar erro na subsunção e interpretação jurídicas ou vício de conhecimento oficioso.

O que não se verifica.

Na verdade o Sr. Juiz a quo absolveu o réu (…) e, consequentemente, a chamada, porque entendeu que, não obstante a conduta daquele ser ilícita - pois que recusou o desconto dos cheques  sem que lhe tenha sido comunicada e provada pela sacadora/chamada  justa causa para o efeito, ou seja furto, roubo, extravio, coação moral, incapacidade acidental ou qualquer outra situação de falta ou vício da vontade, assim violando a jurisprudência obrigatória fixada pelo Ac. Uniformizador  4/2008, publicado no DR 67, série i, de 04-04-2008, no qual se deliberou que: Uma instituição de credito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artª 29 da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do artº 32 do mesmo diploma respondendo por perdas e danos perante o legitimo portador do cheque nos termos previstos nos arts 14 2ª parte do decreto nº 13004 e 483 nº 1 do C Civil -, ela não sofreu um dano.

E não ficou prejudicada porque não tinha direito às quantias tituladas pelos cheques e, ainda, e em todo o caso, porque  atuou em abuso de direito, já que, sendo os cheques de mera garantia, acionou os mesmos, com base na sua literalidade e abstração, para obter, e em duplicado, quantia que sabia não ter direito.

Corrobora-se, na sua essencialidade relevante, esta subsunção jurídica e discurso argumentativo.

Efetivamente e como se expende na sentença, e constitui jurisprudência pacífica «O portador de um cheque, cuja revogação tenha sido ilícita, tem o ónus de alegar e provar – tal como sucede com qualquer lesado que pretenda prevalecer-se da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos – o dano que quer ver reparado, bem como o nexo de causalidade entre o facto ilícito e esse mesmo dano» - Ac. do STJ de 18.12.2012, dgsi.pt, p. 5445/09.8TBLRA.C1.S1; cfr. ainda o Ac. de 02.02.2010, p. 1614/05.8TJNF.S2.

Devendo entender-se que inexiste dano  p. ex. se, como  in casu, se provou que o portador não tinha jus às quantias nele tituladas ou se mesmo que o cheque fosse descontado, ele não fosse pago por inexistência de fundos – cfr. Aresto cit. de 18.12.2012.

Já quanto à condenação da autora como litigante de má fé, considerando os factos ora dados como provados e os princípios supra  plasmados em 5.1.4.3., a mesma não pode subsistir.

Procede, mas apenas  em parte, o recurso.

6.

Sumariando.

I – Considerando alguma relatividade da verdade judicial, uma prudente liberdade do juiz a quo na apreciação e valoração dos meios probatórios, e alguma margem de álea de tais realidades decorrente, é ainda admissível a posição do julgador que, perante uma plêiade de meios probatórios produzidos e uma certa complexidade do factualismo apreciado, opta, sem que se alcance tal opção meridianamente afetante/intoleravelmente constrangedora ou claramente violadora de qualquer meio de prova ou das regras da lógica e da experiencia comum, por uma das teses em confronto.

II – Considerando que a condenação por má fé implica não apenas uma afetação económico-financeira, como um desmerecimento a nível pessoal, marcante e inquinador, o convencimento sobre a verificação da mesma implica uma prova mais acutilante e inequívoca – por reporte à prova da generalidade dos factos -  a qual, assim, alcandore a uma convicção de certeza ou quase certeza.

II - O portador de um cheque, cuja revogação tenha sido ilícita, tem o ónus de alegar e provar os pressupostos da responsabilidade aquiliana, vg. o dano.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a sentença na parte em que condenou a autora como litigante de má fé. No mais se mantendo a mesma.

Custas do pedido formulado pela autora a suportar por esta e do pedido de litigância de má fé, atento o valor da multa e indemnização fixadas na 1ª instancia, pelo réu B (…)

Carlos Moreira (Relator)

João Moreira do Carmo

Alberto Ruço