Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
152/09.4GDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: INQUÉRITO
INSUFICIÊNCIA
FURTO DE USO
ENTREGA PARA REPARAÇÃO
Data do Acordão: 01/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – TIC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 208º DO CP ,120.º, N.º 2, AL. D), DO CPP
Sumário: 1. Só pode haver insuficiência de inquérito naquelas situações em que, após a respectiva abertura, o mesmo prossegue para investigação e não naquelas, em que o Ministério Público, pura e simplesmente, decide pelo arquivamento da denúncia, por entender que os factos participados, feito o confronto dos mesmos com a lei, não preenchem os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito
2. A utilização em proveito próprio e sem autorização de um veículo entregue para reparação na oficina do arguido não configura o crime de furto de uso.
Decisão Texto Integral: A - Relatório:
1. Nos Autos de Instrução n.º 152/09.4GDCBR, do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra, Secção Única, foi proferida, em 21/6/2010, decisão instrutória de não pronúncia quanto ao arguido J..., pelo crime de furto de uso de veículo, p. e p. pelo artigo 208.º, do Código Penal.
2. Inconformado com essa decisão, em 13/7/2010, recorreu o Assistente F..., defendendo a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra no sentido da pronúncia do arguido, pela prática do crime p. e p. pelo artigo 208.º, do C. Penal, com o consequente envio do processo para julgamento, sem prejuízo de, previamente, poder vir a ser considerado que existe nulidade do inquérito, ao abrigo do disposto no artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.
Apresentou as seguintes conclusões:
1. O ora Recorrente vem interpor recurso da decisão proferida sobre a matéria de direito pelo tribunal a quo, por discordar quanto ao teor do douto despacho de não pronúncia proferido.
2. Resulta da decisão de não pronúncia do tribunal a quo que o furto de uso ocorre quando alguém arbitrariamente retira coisa alheia móvel infungível para dela se servir momentaneamente, restituindo-a na íntegra.
3. Aponta o tribunal a quo como ponto de coincidência entre o furto simples e o furto de uso um acto material de subtracção da coisa.
4. Foi, assim, entendimento do tribunal a quo que um dos elementos típicos do furto de uso de veículo é o acto material de subtracção de uma coisa. Subtracção esta idêntica à subtracção do furto simples.
5. No caso em apreço, o tribunal a quo, no seu despacho de não pronúncia, entendeu que não houve subtracção, ou seja, o veículo foi entregue voluntariamente pelo ofendido ao arguido para reparação, considerando ser bastante para se concluir que não se verifica o crime em causa de furto de uso de veículo.
6. Não exigem, porém, os elementos do tipo do crime previsto e punido pelo artigo 208.º, do C. Penal, tal elemento (subtracção).
7. Discorda o ora Recorrente quanto à qualificação jurídica imputada aos factos participados e indiciados.
8. Há indícios da prática do crime de furto de uso de veículo no caso em apreço, uma vez que para que o crime se verifique é apenas necessário que o arguido, estando apenas autorizado a deter o veículo, o utilize sem consentimento do proprietário, nomeadamente enquanto meio de transporte, passe da disponibilidade do proprietário para a do agente do crime.
9. Ora, o Recorrente entregou o seu veículo ao Arguido para que este reparasse, não lhe conferindo qualquer autorização para que circulasse com o veículo na via pública, advertindo-o, inclusive, que não tinha seguro válido.
10. O Arguido apenas se encontrava autorizado a deter o veículo para um determinado fim, neste caso, para o reparar.
11. Com tal comportamento, o Arguido utilizou o veículo em proveito próprio, sem para tal estar autorizado pelo seu legítimo proprietário, ou seja, o aqui Recorrente.
12. Incorre, assim, no crime de furto de uso o agente que esteja apenas autorizado a deter o veículo, mas que o utiliza sem consentimento do proprietário.
13. Para que estejamos perante o crime p. e p. pelo artigo 208.º, do C. Penal, basta que se verifiquem os seguintes elementos: utilização de um meio de transporte alheio, sem autorização de quem de direito – que se verificam no caso em análise.
14. Basta que a utilidade do veículo passe da disponibilidade do proprietário para o agente do crime, desde que sem autorização de quem de direito, não sendo necessário o elemento de subtracção, diferentemente daquele que foi o entendimento do tribunal a quo.
15. Assim, face ao exposto, tendo em consideração as circunstâncias do caso, nomeadamente os testemunhos aduzidos em sede de instrução e transpostos em parte para a decisão recorrida, dúvidas não restam de que resultam indícios suficientes de que o Arguido se constituiu como autor material de um crime de furto de uso de veículo, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 208.º, do C. Penal.
16. Pelo que o Ministério Público não poderia ter proferido despacho de arquivamento nos presentes autos, imediatamente após a apresentação da queixa, sem que tenham sido realizadas quaisquer diligências probatórias, violando, deste modo, os artigos 276.º, 277.º, n.º 1, 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.
17. Efectivamente, o Ministério Público arquivou o Inquérito após o mesmo ter sido aberto, não realizando as diligências requeridas pelo Recorrente.
18. Deveria o Ministério Público averiguar o mérito da causa, o que não sucedeu, uma vez que existiam factos que poderiam, em abstracto, integrar um ilícito criminal, como é o caso.
19. Verifica-se, deste modo, insuficiência do inquérito que constitui causa de nulidade, conforme sufraga o disposto no artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.
20. Pelo que, também no que toca a este ponto, o tribunal a quo não andou bem, considerando não existir qualquer nulidade, uma vez que as diligências de prova efectuadas pelo Ministério Público ocorreram após o arquivamento dos autos e impunha-se-lhe que procedesse primeiro à investigação dos factos, uma vez que o procedimento não era legalmente inadmissível, como impõem os artigos 267.º e 277.º, n.º 1, ambos do CPP.
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3. O arguido, em 10/8/2010, apresentou resposta ao recurso, defendendo a sua total improcedência.
Apresentou as seguintes conclusões:
1. O recorrente interpôs recurso da decisão proferida pelo tribunal a quo quanto à matéria de direito.
2. Recorre da parte da decisão em que aquele tribunal não considerou haver qualquer nulidade respeitante à decisão de arquivamento dos autos tomada pelo M.P. em sede de Inquérito, sem ter procedido a diligências que o recorrente considerava essenciais.
3. O M.P. pratica os autos e assegura os meios de prova necessários à investigação da existência de um crime, de quais os seus agentes, de qual a responsabilidade destes e à descoberta e recolha das provas em ordem à decisão final (de acusação ou arquivamento), cfr. artigos 262.º, n.º 1, 267.º a 271.º, do CPP,
4. Sendo livre de promover as diligências que entender necessárias ou convenientes à realização das finalidades do inquérito.
5. Dispõe o artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP: “Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.”
6. No caso em apreço, o M.P. não omitiu qualquer acto obrigatório, não podendo nós, aqui, cair no âmbito de aplicação do artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.
7. O M.P., do simples confronto entre os factos participados e a lei praticou os actos a que estava obrigado, concluindo que não haveria qualquer hipótese de subsumi-los num determinado crime, pelo que arquivou (e, no nosso entender, bem) o inquérito, sem mais, não sendo preciso ordenar quaisquer outras diligências para a descoberta da verdade material.
8. Pois os factos não se enquadravam no tipo legal de crime, previsto no artigo 208.º, do C. Penal.
9. Tal é o entendimento doutrinal e jurisprudencialmente aceite.
10. Assim sendo, não havia qualquer necessidade de proceder/obter outros meios de prova, pois, in casu, não havia qualquer crime a apreciar.
11. Tendo andado bem o M.P. ao promover o arquivamento dos autos, sem mais, não cometendo qualquer nulidade,
12. E o TIC, ao considerar que não houve qualquer nulidade na fase de inquérito, referente ao artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.
13. No que concerne à decisão de não pronúncia e à qualificação jurídica do crime, começamos pelo ponto comum, entre os casos de furtum rei e furtum usus: a subtracção do bem, neste caso, de um veículo,
14. O que não aconteceu.
15. O recorrente entregou livremente o veículo ao arguido que o veio a restituir.
16. O arguido não o subtraiu da esfera jurídica do recorrente ilegalmente, não se apropriou do veículo fraudulentamente.
17. Ao contrário do que vem alegado pelo recorrente, é necessária a subtracção do veículo, para se considerar que existe crime de furto de uso.
18. Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, estriamos, no máximo, segundo os factos alegados pelo recorrente, perante uma situação que configuraria abuso de uso, o que não é punido pela nossa legislação.
19. Consideramos que o que aqui está em causa é uma mera questão contratual cível, nunca uma questão penal.
20. Tendo em atenção tudo o que foi alegado, nunca poderá o arguido ser pronunciado pelo crime p. e p. pelo artigo 208.º, do C. Penal.
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4. O Digno Magistrado do Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, em 14/9/2010, defendendo a sua improcedência total e, sem apresentar conclusões, defendeu, em resumo, o seguinte:
1. A insuficiência do inquérito (ou da instrução) a que se refere a al. d), do n.º 2, do artigo 120.º, do CPP, é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreve como obrigatório (caso do interrogatório do arguido). A omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público.
2. No caso em apreço, tendo o Ministério Público considerado que os factos denunciados pelo assistente não constituíam crime, não lhe competia realizar diligências de investigação nem constituir o denunciado como arguido.
3. Os factos apurados nos autos não integram a prática do crime de furto de uso de veículo, por falta do elemento típico da infracção, “a prévia subtracção do veículo”.
4. A factualidade denunciada pelo assistente configura antes um caso de abuso de uso que não é punível criminalmente.
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5. O recurso foi, em 17/9/2010, admitido. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, em 6/10/2010, emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, salientando que, a propósito da “subtracção”, “a factualidade eventualmente subsumível ao preceito incriminador apontado fica vazia e sem qualquer relevância perante a circunstância de um elemento objectivo do tipo incriminador imputado não se mostrar preenchido
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
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B – DECISÃO RECORRIDA:
Vem o assistente F... requerer a abertura de instrução em virtude de não concordar com o despacho de arquivamento proferido nos autos, pugnando pela pronúncia do arguido por um crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 208º do Código Penal.
Em síntese, alega que o M.P. arquivou o inquérito sem aguardar pelas diligências probatórias, omitiu diligências probatórias importantes para a descoberta da verdade e por isso há insuficiência de inquérito, o que constitui a nulidade do artigo 120º, nº 2, alínea d) do Código de Processo Penal; o ofendido entregou o veículo para reparação na oficina do arguido, em Outubro de 2008; advertiu o arguido de que tinha cancelado o seguro e não podia circular com ele; o arguido circulou com o veículo sem autorização e foi interceptado pela GNR de ...o que deu lugar a um auto de contra-ordenação; o ofendido veio a ter conhecimento pelas suas vizinhas desse facto e a esposa do ofendido foi solicitar ao arguido a entrega do veículo o que ele fez nesse mesmo dia do mês de Maio de 2009. Realizaram-se as diligências instrutórias requeridas e que se consideraram relevantes para a descoberta da verdade.
Realizou-se o debate instrutório com observância do legal formalismo.
O Tribunal é competente.
Não há nulidades, ilegitimidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
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Cumpre apreciar e decidir.
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Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Por sua vez, determina o artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal que, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, devendo, em caso contrário, proferir despacho de não pronúncia.
Assim, a função da presente instrução é a de apreciar se nos autos existem indícios da prática pelo arguido do crime de furto de uso de veículo que sejam suficientes para o submeter a julgamento.
Face ao disposto nos artigos 283º, nº 2 e 308º, nº 2 do Código de Processo Penal, consideram-se indícios suficientes “sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.”
Haverá indícios suficientes quando está em causa um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados, isto é, vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele.
Consequentemente, fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem os mesmos, para efeitos de prolação do despacho de pronúncia quando:
- os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si fizerem pressentir a culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior;
- se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou
- quando se pressinta que da ampla discussão em audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido de condenação futura. Para a pronúncia não é necessário uma certeza da existência da infracção, bastando uma grande probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Deve assim o Juiz de Instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida, fazendo um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.
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Pugna o assistente pela pronúncia do arguido por um crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 208º do Código Penal.
Estipula o artigo 208º, nº 1 do Código Penal que “quem utilizar automóvel ou outro veículo motorizado, aeronave, barco ou bicicleta, sem autorização de quem de direito, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
O furto de uso ocorre quando alguém arbitrariamente retira (este elemento aproxima-se do elemento subtracção do furto), coisa alheia móvel infungível, tais como a bicicleta e o automóvel, para dela se servir momentaneamente, restituindo-as na íntegra.
Entre ambos os furtos (o simples e o furto de uso) há um ponto de coincidência: um acto material de subtracção de uma coisa.
No entanto, não é qualquer coisa móvel que pode ser objecto deste tipo de furto, mas tão somente os veículos motorizados, automóveis, aeronaves, barcos ou bicicletas. O furto de uso de outras coisas não ultrapassa a órbita do ilícito civil.
Por outro lado, o fim ou uso momentâneo ou passageiro integra o dolo específico. O agente visa usar a coisa sem dela se apropriar definitivamente e deve servir-se dela de imediato. Não pode subtrair hoje para usar passados dias; então, será “furtum rei”.
A restituição da coisa caracteriza este crime. Na verdade, se o agente quis tão somente usar a coisa tirada, a restituição é um imperativo, e deve ser breve, incluindo todos os seus acessórios. A coisa deve ser devolvida a local em que o imediato poder de disposição do dono possa ser exercido; se diversamente é deixada algures, sem qualquer aviso ao proprietário, o agente assume o risco de que não se opere a restituição (risco a que se mostra indiferente), equiparando-se á hipótese do ladrão que, depois de assenhorear-se da coisa, resolve abandoná-la, o que não exime de responder a título de furto.
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Cumpre agora apreciar os indícios recolhidos tanto em sede de inquérito como em sede de instrução. O ofendido queixou-se que mandou arranjar o veículo ao arguido e explicou-lhe que ele não podia circular em virtude de não ter seguro; porém, o arguido circulou com o veículo e foi interceptado pela GNR. Entretanto a sua esposa foi a casa do arguido pedir a devolução do veículo e ainda nesse dia o arguido devolveu o veículo. Por despacho de fls. 9 foi proferido despacho de arquivamento. Entendeu-se que os factos denunciados não se subsumiam em nenhum crime. Não havia furto de uso porque o ofendido entregou livremente o veículo ao arguido e também não havia abuso de confiança de uso uma vez que este actualmente não é punido.
Ora, o M.P. pode, de facto, proferir despacho de arquivamento quando entende que os factos participados não constituem qualquer ilícito criminal, sem proceder a diligências de inquérito.
Nos termos do artigo 119º, alínea d), do CPP constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
No processo comum, havendo a notícia de um crime a abertura de inquérito é sempre obrigatória. Assim o determina o nº 2 do artigo 262º do CPP dispondo que "ressalvadas as excepções previstas neste código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito".
Assim, o Ministério Público abrirá inquérito sempre que tiver a notícia de um crime e só o não fará "ressalvadas as excepções previstas neste código", como sejam os casos em que o MºPº optar pela submissão do indiciado a julgamento em processo sumário, ou nos casos em que o procedimento depender de queixa ou participação e estas se não tiverem verificado (arts. 49º e 50º, do CPP).
Importa esclarecer que a expressão "notícia de um crime" tem o significado de notícia de factos que objectivamente preenchem os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito criminal. Como é bom de ver, a "notícia de um crime" para o ser tem de conter factos que podem integrar em abstracto um ilícito criminal.
Para aferir se os factos participados objectivamente preenchem os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito, basta o simples confronto dos mesmos com a lei.
Se, feito este confronto, os factos manifestamente não configuram qualquer crime, o MºPº procede pura e simplesmente ao arquivamento da denúncia – cfr. Ac. da RL de 14.5.2008, in www.colectaneadejurisprudencia.pt.
No mesmo sentido o Ac. da RP, CJ nº 199, in tomo III/2007, que afirma que “como o inquérito tem por finalidade apurar se existe crime e quem o seu autor, não deve desenvolver-se actividade investigatória se os factos denunciados não puderem, notoriamente, constituir crime …” No caso dos autos, o M.P. entendeu que os factos participados não integravam qualquer crime e proferiu despacho de arquivamento, não tendo cometido qualquer nulidade. Posteriormente foram juntos aos autos elementos de prova indiciária, a corroborarem os factos participados, como os que constam a fls. 33 (depoimento de M...), a fls. 35 (depoimento de C...), a fls. 37 (depoimento de A...), bem como as declarações do arguido de fls. 40. Acresce que também não existe a nulidade do artigo 120º, nº 2, alínea d) do Código de Processo Penal. Ou se entende que não foram efectuadas diligências nenhumas e cai-se no artigo 119º, alínea d), do Código de Processo Penal, supra referido, ou então entende-se que foram feitas algumas diligências, omitindo-se outras importantes e cai-se na previsão do referido artigo 120º. Se se atender às diligências juntas aos autos depois do arquivamento, não existe nenhuma nulidade uma vez que as diligências obrigatórias foram feitas, tais como o interrogatório do arguido. No entanto, reafirma-se que no presente caso não se vislumbra necessidade de proceder a diligências porque os factos participados não integram qualquer crime, como disse o M.P. Por sua vez, em sede de instrução a testemunha M..., referiu que viu o arguido a circular com o veículo em questão quando o tinha para reparar; o arguido não podia andar com ele porque o mesmo não tinha seguro. Também as testemunhas C... e D... prestaram depoimento no mesmo sentido, isto é, o arguido levou o veículo para arranjar e quando o tinha para esse efeito circulou com ele. No entanto, todas as pessoas afirmaram que foi o ofendido quem lho entregou para reparação. Ora, todos os indícios dos autos confirmam a participação efectuada. A questão é mesmo a de saber se esses factos participados e que se encontram indiciados integram o crime de furto de uso de veículo, crime este objecto do RAI. Como se disse supra, um dos elementos típicos do furto de uso de veículo é o acto material de subtracção de uma coisa. Subtracção esta em tudo idêntica á subtracção do furto simples. Porém, no presente caso, desde logo cai por terra tal qualificação jurídica. No caso dos autos não houve subtracção. O veículo foi entregue voluntariamente pelo ofendido ao arguido para reparação. O que é bastante para se concluir que não se verifica o crime em causa de furto de uso de veículo. Por isso bem andou o M.P. ao proferir despacho de arquivamento, sem cometer qualquer nulidade, e também deve ser proferido despacho de não pronúncia, uma vez não existir uma probabilidade de futura condenação do arguido. Pelo que fica dito e sem necessidade de tecer mais considerações, entende-se, assim, que deve ser proferido despacho de não pronúncia. De facto, o Tribunal não pode formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma reacção criminal. Nestes termos, decide-se proferir despacho de não pronúncia do arguido J..., pelo crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 208º do Código Penal. Condena-se o assistente em taxa de justiça que se fixa em 2 UC. Notifique.”
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C - Cumpre apreciar e decidir:
De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
As questões a apreciar são as seguintes:
1) saber se há insuficiência de inquérito, nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP;
2) saber se há elementos nos autos para proferir despacho de pronúncia, pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 208.º, do C. Penal.
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1)Da insuficiência de inquérito:
Dispõe o artigo 120.º, do CPP, no que para agora interessa: “1 – Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte: 2 – Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: a)… b)… c)… d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. “
Como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, a insuficiência do inquérito ou da instruçãoé uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreve. Assim, só se verifica esta nulidade quando se omita um acto que a lei prescreve como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa” – Curso de Processo Penal, ed. 1999, pág. 80. ****
Não há muito que dizer sobre esta questão, não devendo ser nunca esquecido que a lei processual vigente não impõe a prática de quaisquer actos típicos de investigação.
Vejamos.
Em 5/6/2009, a fls. 9 e 10, logo após a Redistribuição ordenada nos autos, em 28/5/2009, e sem mais, foi proferido nos autos o seguinte despacho:
Queixou-se F... contra J... por ter entregue o seu quadriciclo para reparação na oficina do denunciado, o ter avisado para não andar com a viatura na rua porque não tinha documentos e por este o ter feito contra as suas instruções.
Após, o denunciado entregou o veículo ao queixoso.
Coloca-se a questão da qualificação jurídica dos factos.
Entendeu-se para efeitos de distribuição que se trata de um crime de furto de uso de veículo.
Porém, a meu ver, tal crime não subsiste já que não existiu qualquer furto, pois que foi o queixoso que livremente entregou a viatura ao denunciado.
A existir algum crime, seria o crime de abuso de confiança de uso que, actualmente, não é punido, pois que a viatura apenas foi usada pelo denunciado – não tendo existido a inversão do título da posse.
Inexistindo crime, determina-se o arquivamento dos autos, conforme artigo 277.º, n.º 1, do CPP.
Comunique-se: artigo 277.º, n.º 3, do CPP.
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Sublinhe-se, para já, que, do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, se retira que o exercício da acção penal pelo Ministério Público comporta a direcção e a realização do inquérito por esta magistratura. O Ministério Público é livre, salvaguardados os actos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de diligências de investigação não impostas por lei (Acórdão do Tribunal Constitucional 395/04, de 2.6.2004, DR, II série, de 9.10. 04, p. 14975).
Como todos sabem, a titularidade do inquérito, bem como a sua direcção, pertencem ao Ministério Público, de acordo com os artigos 262.° e 263.°, ambos do Código de Processo Penal, sendo este livre — dentro do quadro legal e estatutário em que se move e a que deve estrita obediência, de promover as diligências que entender necessárias, ou convenientes com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar, com excepção dos actos de prática obrigatória no decurso do inquérito, como sejam os actos de interrogatório do arguido, salvo se não for possível notificá-lo, de notificação ao arguido, ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e às partes civis do despacho de encerramento do inquérito e no que respeita a certos crimes, actos investigatórios imprescindíveis para se aferir dos elementos de certos tipos de crimes, nomeadamente os exames periciais nos termos do art.° 151° do CPP.
Pois bem, o Ministério Público ordenou, liminarmente, o arquivamento do inquérito, por entender que não existira a prática de qualquer crime, ou seja, arquivou o inquérito logo após o mesmo ter sido aberto, baseando-se apenas nas declarações do próprio queixoso constantes do respectivo auto de denúncia.
Perante isso, o recorrente entende que o despacho de arquivamento omitiu diligências probatórias importantes para apurar os factos, na medida em que não chegaram a ser ouvidas as testemunhas por si indicadas no auto de denúncia, pelo que estamos na presença de insuficiência do inquérito.
Todavia, tal não acontece.
Só pode haver insuficiência de inquérito naquelas situações em que, após a respectiva abertura, o mesmo prossegue para investigação e não naquelas, como a configurada no caso em apreço, em que o Ministério Público, pura e simplesmente, decide pelo arquivamento da denúncia, por entender que os factos participados, feito o confronto dos mesmos com a lei, não preenchem os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito.
E nada obsta a que o Ministério Público assim proceda – ver, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14/5/2008, Processo n.º 1544/2007-3, relatado pela Exma. Desembargadora Conceição Gonçalves, in www.dgsi.pt, no qual pode ser lido o seguinte:
“(…)Para aferir se os factos participados objectivamente preenchem os elementos constitutivos de algum tipo de ilícito, basta o simples confronto dos mesmos com a lei. Se, feito este confronto, os factos manifestamente não configuram qualquer crime, o MºPº procede pura e simplesmente ao arquivamento da denúncia.
Na verdade, a partir do momento em que o Ministério Público ordena, logo numa primeira fase, o arquivamento do inquérito, como é evidente, não faz sentido falar numa insuficiência do mesmo, pois esta pressupõe que algo tenha sido omitido num processo de investigação em curso (não é possível encontrar falhas em algo que não chega a existir…).
É de compreender facilmente que o Magistrado do Ministério Público não deve desenvolver actividade investigatória, logo que considere que os factos denunciados não podem constituir, na sua perspectiva, sem margem para dúvidas, crime, sob pena de estar a efectuar uma actividade inútil.
E não se diga que um tal arquivamento coloca entraves à boa administração da justiça, pois sempre essa decisão pode ser colocada em causa, fazendo apelo ao disposto nos artigos 278.º e 287.º, ambos do CPP.
Por conseguinte, não há que declarar a nulidade aludida no artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.
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2) Da existência de factos que integram a prática do crime de furto de uso de veículo:
Enquanto fase jurisdicional, como refere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, p. 128, citando Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, p. 16: «A actividade processual desenvolvida na instrução é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”. Por isso, é comum afirmar-se que a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito, antes contempla a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.
Em boa verdade, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, sempre tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo 287.º, do C.P.P. (ver artigo 288.º, n.º 4, do mesmo código).
O artigo 286.º, n.º1, do C.P.P., indica expressamente como objectivo da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A instrução culmina com o debate instrutório o qual visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento. De acordo com o artigo 298.º, do C.P.P.
Após o debate instrutório será proferido despacho de pronúncia ou de não pronúncia consoante existam ou não indícios suficientes que justifiquem a submissão ou não do arguido a julgamento.
Um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e do despacho de não pronúncia pelo juiz de instrução é a insuficiência dos indícios da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes (artigos 277.º, n.º 2 e 308.º, n.º 1, ambos do C.P.P.).
Em resumo, a instrução visa a comprovação judicial de acusar ou não acusar, isto é, pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada ao arguido uma pena, pelos factos e ilícito que lhe são imputados, in casu, pela assistente no requerimento de abertura de instrução.
Dispõe o artigo 308.º, n.º 1, do C.P.P., que, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respectivos factos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.
Resulta, por sua vez, do artigo 283.º, n.º 2, do C.P.P., para onde remete o artigo 308.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança.
O despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento.
Por indiciação suficiente, entende-se “a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança”. Trata-se da “…probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal…” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª edição, Verbo 1999, páginas 99 e 100).
Como ensina Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º volume, 1974, pág. 133, “…os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.”, acrescentando que “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.”
Podemos, então, concluir que constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, devidamente relacionados e conjugados entre si, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado. - Sobre este conceito, ver, ainda, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 388/99 (DR, II, 8-11-1999, páginas 16.764 e ss.) e n.º 583/99 (DR, II, 22-2-2000, páginas 3.599 e ss.); e o Acórdão do TRE, de 1-3-2005, in www.dgsi.pt.
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Só da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de uma futura condenação ou não, não bastando um mero juízo de carácter subjectivo, antes se exigindo um juízo objectivo fundamentado nas provas recolhidas.
Revertendo ao nosso caso, o recorrente enfatiza que entregou o quadriciclo para reparação, na oficina do arguido e que este, por isso mesmo, não tinha autorização para circular com o veículo na via pública ou sequer utilizá-lo em proveito próprio. Porém, acabou por fazê-lo.
Na sequência disso, considera que o arguido cometeu um crime de furto de uso de veículo, p. e p. pelo artigo 208.º, do Código Penal, porque, segundo a posição que perfilha, “a utilização não implica a prévia subtracção do veículo pelo agente”.
Para tanto, apoia-se no seguinte, a nível da doutrina e da jurisprudência:
a) Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade católica Editora, Unipessoal, Lda., Lisboa, 2008, pág. 573, relativamente ao artigo 208.º, do C. Penal, “o tipo objectivo consiste na utilização de um meio de transporte alheio sem autorização de quem de direito”, “a utilização implica a colocação em movimento do veículo como meio de transporte, não sendo suficiente a mera ligação do motor do veículo, nem a deslocação manual do veículo, que constituem meros actos de execução da tentativa do crime”, “a utilização supõe uma actividade limitada no tempo, na medida em que a utilização por período ilimitado é indício forte de uma intenção de apropriação (…). Por isso a restituição voluntária do meio de transporte, ou seja, a colocação do meio de transporte ao dispor do seu legítimo possuidor ou detentor é um elemento implícito do tipo (…). Mas a utilização não tem de ser momentânea, nem ocupar um espaço temporal curtíssimo” – na esteira deste autor, o agente que, estando apenas autorizado a deter o veículo, o utiliza sem consentimento do proprietário incorre no crime de furto de uso (cfr. pág. 574);
b) António Barreiros, “Crimes Contra o Património”, Lisboa, Universidade Lusíada, 1996, páginas 127 e 128;
c) Ac. do STJ, de 26/11/2003: “O tipo de crime previsto no artigo 208.º, do Código Penal contém, como elementos essenciais e caracterizadores da descrição, a utilização de um automóvel ou outro veículo motorizado, sem autorização de quem de direito. (…) no furto de uso de veículo (…) a intenção é apenas a utilização abusiva, com mera tomada da disponibilidade do veículo para benefício de uso.”;
d) Ac. do TRP, de 5/11/2003: “O crime de furto de uso de veículo está inserido no capítulo dos crimes contra a propriedade. O que nele se tutela é o direito do proprietário poder gozar de modo pleno e exclusivo do uso, fruição e disposição de um meio de transporte que lhe pertence (cfr. artigo 1305.º, do C.C.). Embora o agente do crime actue sem intenção de apropriação, ele viola o direito de propriedade do ofendido, porque passando a utilizar o veículo impede aquele gozo indissociável do conteúdo do direito de propriedade. Ou seja, para que o crime exista é necessário que a utilidade do veículo, nomeadamente enquanto meio de transporte, passe da disponibilidade do proprietário para o agente do crime.”
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Comecemos por abordar o Acórdão do TRP citado.
Embora o recorrente não o cite de forma correcta (indica só a data), trata-se do Acórdão proferido em 5/11/2003, relatado pelo Exmo. Desembargador Fernando Monterroso, P 0313773, Nº Convencional JTRP00036243, in www.dgsi.pt, no qual, a propósito do crime de furto de uso de veículo, consta apenas o seguinte:
“4 - O crime de furto de uso de veículo. Ficou provado que o arguido “ao ver-se impedido de sair do local, já que o viaduto só tem um sentido e o carro do ofendido se encontrava a obstruir a passagem, dirigiu-se para a viatura do ofendido e conduziu-a até uns metros mais à frente, ao mesmo tempo que a sua namorada, que o acompanhava, conduzia o MS, abandonando depois o local”. Entende o recorrente que este comportamento cai na previsão do art. 208 nº 1 do Cod. Penal. Vejamos: O crime de furto de uso de veículo está inserido no capítulo dos «crimes contra a propriedade». O que nele se tutela é o direito do proprietário poder gozar de modo pleno e exclusivo do uso, fruição e disposição de um meio de transporte que lhe pertence (cfr. art. 1305 do CC). Embora o agente do crime actue sem intuito de apropriação, ele viola o direito de propriedade do ofendido, porque, passando a utilizar o veículo, impede aquele gozo indissociável do conteúdo do direito de propriedade. Ou seja, para que o crime exista é necessário que a utilidade do veículo, nomeadamente enquanto meio de transporte, passe da disponibilidade do proprietário para a do agente do crime. Nada disso se verifica no caso em apreço. É certo que o arguido entrou no veículo do recorrente, mas apenas para o retirar do local e desimpedir a sua passagem. Não «usou» o veículo (para os efeitos do art. 208 do Cod. Penal), porque não retirou dele qualquer das utilidades que normalmente ele proporciona ao proprietário. Nem privou este do gozo dessas utilidades. Por isso não cometeu o crime que lhe foi imputado.”
Passemos, agora, ao Acórdão do STJ citado.
Embora o recorrente, uma vez mais, o não cite correctamente (indica só, uma vez mais, a data), trata-se do Acórdão proferido em 26/11/2003, relatado pelo Exmo. Conselheiro Henriques Gaspar, P 03P2727, Nº Convencional JSTJ000, in www.dgsi.pt, no qual, uma vez mais a propósito do crime de furto de uso de veículo, pode apenas ser lido o seguinte:
“5. O recorrente apresenta como fundamento do recurso também a divergência sobre a qualificação dos factos, que, em seu entender, integram apenas o crime de furto de uso de veículo (artigo 208º do Código Penal), e não o crime de furto qualificado por que vem condenado. O tipo de crime previsto no artigo 208º do Código Penal contém, como elementos essenciais e caracterizadores da descrição, a "utilização" de um automóvel ou outro veículo motorizado, "sem autorização de quem de direito". O elemento diferenciador em relação ao crime de furto, previsto como tipo base no artigo 203º do Código Penal, está, assim, na especificidade da intenção do agente: no caso de furto, a intenção é a "de apropriação", no sentido de tomada de poder de facto sobre a coisa, contra a vontade do proprietário ou detentor, passando a comportar-se com animo domini, integrando-a na sua própria esfera patrimonial ou de terceiro; no furto de uso de veículo, diversamente, a intenção é apenas a "utilização" abusiva, com a mera tomada da disponibilidade do veículo para benefício do uso. Perante tais elementos, assentes na doutrina e jurisprudência relativamente à construção e apreensão dos elementos dos referidos crimes, e revertendo aos factos provados, vê-se que o recorrente, juntamente com outro indivíduo não identificado, se apropriaram de um veículo automóvel de matrícula HT, retirando-o do local onde se encontrava, fazendo-o conscientemente, com o intuito de fazerem seus quer o veículo, quer todos os objectos que se encontravam no seu interior. Os factos, na clareza com que se apresentam, não permitem outra qualificação que não seja a que foi acolhida no acórdão recorrido. Com efeito, diferentemente da simples utilização abusiva, "sem autorização de quem de direito", o recorrente quis fazer seu, isto é, apropriar-se animo sibi rem habendi, do veículo referido; mais e diversamente do uso, pretendeu integrá-lo na sua esfera patrimonial, bem como os objectos que se encontravam no seu interior. Tanto que o veículo não foi restituído pelo recorrente, mas apenas «recuperado», e os objectos que se encontravam no interior do veículo apenas foram parcialmente recuperados: não consta ter sido recuperado o telemóvel marca Eriksson. Praticou, pois o recorrente, tal como vem decidido, o crime de furto qualificado, p. e p. pelo artº. 203, nº. 1 e 204º, nº. 2, alínea a), do Código Penal. Improcede, pois, este fundamento do recurso.”
Pois bem, relativamente a estes dois acórdãos apresentados pelo recorrente, nenhum deles serve, em bom rigor, para apoiar a tese por este defendida.
Com efeito, em nenhum deles é referido que o elemento subtracção não faz parte do tipo de crime em causa.
E se no primeiro nada legitima aderir a conclusão contrária (dada a singeleza da questão de facto subjacente, não houve sequer necessidade de falar sobre isso), já no segundo há uma frase que aponta, indubitavelmente, para uma posição diferente daquela que o recorrente defende e que é a seguinte: “(…) O elemento diferenciador em relação ao crime de furto, previsto como tipo base no artigo 203º do Código Penal, está, assim, na especificidade da intenção do agente:(…)”
Ora, se o tribunal considera que o crime do artigo 208.º, do C. Penal, tem por referência o tipo base do artigo 203.º, do mesmo diploma legal, é porque pressupõe o elemento subtracção.
Tal é claro e inviabiliza, à partida, qualquer outra hipótese.
Aliás, a jurisprudência do STJ vai no sentido, que temos por unânime, de que o crime de furto de uso de veículo exige o elemento subtracção – ver, a título de exemplo:
a)Acórdão do STJ, de 15/9/1993, P 043643, Nº Convencional JSTJ 00020867, relatado pelo Exmo. Conselheiro Teixeira do Carmo, in www.dgsi.pt:
“(…) Como se sustenta na Doutrina e na Jurisprudência, no crime de furto da coisa há como que um atentado contra a propriedade perfeita e, no de furto de uso, o atentado como que atinge a propriedade imperfeita. A Relação do Porto, em seu acórdão de 11 de Novembro de 1987, in Colectãnea da Jurisprudência 1987, tomo V, página 231 pronunciou-se no sentido de que "É elemento essencial do furto de uso a subtracção de determinadas coisas alheias (automóveis ou outros veículos, aeronaves, barcos ou bicicletas) para delas o agente se servir momentânea ou passageiramente, deixando-as, a seguir, prontas a reingressar na esfera patrimonial do lesado". No mesmo sentido ainda, pronunciou-se a Relação de Lisboa, no seu acórdão de 17 de Fevereiro de 1988, citando Nelson Hungria. "Ocorre o chamado furto de uso, quando alguém, arbitrariamente, retira coisa alheia infungível (v.g. um cavalo, um automóvel, um terno de roupa, um livro) para dela servir-se momentaneamente ou passageiramente, repondo-a a seguir, íntegra, na esfera de actividade patrimonial do dono". Do que vimos de dizer ou expôr, temos que o "furtum rei" é, por sua natureza, um crime de execução instantânea, cuja consumação se opera com a subtracção. É este seu elemento constitutivo, isto é, a intenção de apropriação de coisa alheia contra a vontade do dono, operada pela subtracção. No crime de "furtum usus", embora exista subtracção da coisa - o agente lança mão dela, apodera-se dela, contra a vontade ou sem consentimento do dono ou do seu legitimo possuidor -, não o faz, contudo, com animus apropriativo, no sentido de integrar definitivamente a coisa subtraída no seu património ou no de terceiro. Apenas pretende servir-se dela por algum tempo, sendo sua vontade restitui-la ou criar as condições para que a coisa regresse ao património ou esfera patrimonial do despojado. Enquanto que, no "furtum rei" a situação anti-jurídica que se criou é definitiva, exprimindo a vontade do agente, no "furtum usus" a situação anti-jurídica nascida da subtracção é momentânea, de relativa duração no tempo, sendo vontade do agente pôr-lhe fim.”;
b) Acórdão do STJ, de 18/10/2006, P 06P2809, Nº Convencional JSTJ 000, relatado pelo Exmo. Conselheiro Armindo Monteiro, in www.dgsi.pt:
“(…) O traço diferencial, a linha de fronteira essencial entre um furto e outro, vai buscar a sua raiz ao elemento subjectivo do agente, mais restritivo no furto uso do que no “ furtum rei”, pois se aqui ao agente preside o intuito de introduzir na sua esfera patrimonial a coisa alheia de que se apoderou , na mira de passar a exercer sobre ela os poderes como se fosse seu dono, pela inversão do título de posse, já no furto de uso o agente não passa de um detentor, de propósito mais limitado, sobre a forma de usar a coisa . O dolo específico de intenção, presente, e de que se não abdica na subsunção jurídico-penal , em ambos os furtos, é, porém , no furto de uso direccionado ao aspecto particular do gozo inerente àquele uso. Carlos Codeço, in “o Furto no C. Penal e no Projecto” , ATHENA EDITORA , págs. 274, sublinha por isso mesmo esse dolo específico , que assim é configurado, como sendo a pedra de toque para a distinção entre o crime de furto e o crime de furto de uso de veículo – neste sentido, entre outros, o acórdão do STJ de 26-11-2003 , in www.dgsi.pt. Entre ambos os furtos há um ponto de coincidência: um acto material de subtracção de uma coisa. No “furtum rei”, escreve Frederico da Costa Pinto, in Furto Uso de Veículo, Associação Académica de Lisboa, pág. 87, citado pelo Exm.º Magistrado do M.º P.º em 1.ª instância, em proficientes alegações, prepondera um especial elemento subjectivo, a intenção de apropriação; no furto uso vinga, não uma vontade dirigida a tal apropriação, pois o agente representa tão só a utilização ilegítima, abusiva, do veículo, “não com o animus de um proprietário , mas sim com a atitude espiritual de um possuidor precário”. A detecção desse intuito, questão que se coloca ao julgador, exterioriza-se através de factos-índices que objectiva e inequivocamente são dela revelação . Assim a utilização tendencialmente momentânea e a restituição quase imediata é considerada por Faria e Costa, in Comentário ao Código Conimbricense, II, 140, elemento implícito do crime de furto de uso; a utilização para além do limite temporal que se pressupõe momentâneo é já demonstração da utilização “ uti dominus “, enquanto que a restituição prevista no art.º 206.º , do CP é mero pressuposto de atenuação especial do crime de “furtum rei”. A restituição efectiva só caracteriza o furto uso se, “ ab initio “, preencher o propósito do agente de abandonar a coisa , teoriza José António Barreiros , in Crimes Contra o Património , Universidade Lusíada , pág. 60. Sublinhe-se que o abandono do veículo só por si não é absolutamente conclusivo dessa intenção , escreveu-se no Ac. deste STJ , de 27.1.99 , in P.º n.º 1146 /98 , tudo passando pela demonstração factual do intuito que orientou o agente na deslocação patrimonial que efectivou. Outro não é o sentido da jurisprudência deste STJ, patente no seu Ac. de 15.12.95, acessível in www.dgsi.pt, onde se escreveu que estando perfectibilizados os elementos objectivos do crime ( subtracção ilegítima de coisa móvel , com intenção de ilegítima apropriação para o agente ou para terceiro) , não tendo o agente demonstrado a sua intenção de restituir a coisa após a sua utilização , fica excluída a prática de crime de furto uso .”;
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Note-se que a orientação acabada de referir é aquela que se coaduna melhor com aquilo que corresponde ao chamado princípio do mínimo de intervenção, próprio do direito penal.
Alargar o conceito de furto de uso de veículo de modo a englobar a situação descrita nos autos é, a nosso ver, algo que afronta tal princípio.
A sanção penal deve sempre ter uma função de ultima ratio.
Na realidade, salvo o devido respeito pela posição expressa pelo recorrente, apoiado na interpretação que fazem Pinto de Albuquerque e António Barreiros (e não cabe aqui discutir se é isso, realmente, o que ambos defendem, em última análise), e para passarmos a ver o problema sob o prisma da doutrina, não pode o julgador ultrapassar um dado objectivo que consiste na entrega voluntária que o assistente fez ao arguido. Este não subtraiu, por modo ilegítimo, o quadriciclo. O assistente autorizou o acesso ao mesmo.
É certo que o arguido recebeu o veículo para reparação e não para o conduzir na via pública.
Todavia, isso não significa que tenha cometido o crime ora em causa.
Nesta matéria, este Tribunal acompanha o que é expresso por José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 139:
E se quem autoriza – perguntemo-nos – limitar o uso do veículo a um determinado fim ou a certo período temporal, cometerão o crime em apreço todos os que violarem os limites daquela precisa autorização? Estamos convictos de que a resposta outra não pode ser que negativa (…). Admitir-se neste quadro a punição do agente seria pressupor como punível, penalmente punível, o abuso de uso. O que o legislador quis foi considerar penalmente punível o furtum usus. Por outras palavras: aquele quis proteger o uso, não em todas as suas manifestações ou refracções, mas sim defender aquela particular situação juridicamente relevante (o uso) de uma particular forma de ataque: da sua usurpação ilegítima. Pensar-se punir as situações de abuso de uso seria, em nosso juízo, um intolerável e a nenhum título fundamentado alargamento das margens da punibilidade. (…).
Concluindo, assente que está não existir nos autos o elemento subtracção, nada há que censurar, neste âmbito, no despacho recorrido. ****
D - Decisão:
Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em não conceder provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça de 4 UC.
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José Eduardo Martins (Relator)
Isabel Valongo