Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
12/11.9GTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FALTA DE NARRAÇÃO DE FACTOS INDICIADOS E NÃO INDICIADOS
NULIDADE DEPENDENTE DE ARGUIÇÃO
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, N.º 3, AL. B), 308.º, N.º 2, DO CPP
Sumário: I - A falta de narração, no despacho de não pronúncia, dos factos considerados suficientemente indiciados e de outros não tidos como indiciados com suficiência consubstancia nulidade, decorrente do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, reportada ao n.º 2 do artigo 308.º, ambas as normas do CPP.

II - A referida nulidade, sendo sanável, está dependente de arguição, perante o tribunal a quo (e não em recurso), no prazo legal.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. No âmbito dos presentes autos, findo o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido A... (melhor identificado nos autos), imputando-lhe a prática do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137.°, nº 1 e 2, 15.º, al. b) e 69.°, nº 1 al. a) do Código Penal e do crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.º, n.º 1, al. c), por referência ao artigo 255.°, al. b), ambos do Código Penal.

2. Na sequência, o arguido requereu a abertura de instrução, defendendo a inexistência da prática de qualquer dos crimes e pretendendo a prolação, a final, de despacho de não pronúncia.

3. Realizada a instrução, o Mmo Juiz proferiu decisão instrutória de não pronuncia do arguido por qualquer dos crimes por que tinha sido acusado, determinando o oportuno arquivamento dos autos.

4. Não se conformando com esta decisão na parte respeitante à não pronúncia pelo crime de homicídio por negligência, os assistentes C... , D... , E... e F... , interpuseram recurso, concluindo a respectiva motivação com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“I. Vem o presente recurso interposto pelos Recorrentes C... , D... , E... E F... da decisão instrutória proferida pelo J2 da Secção de Instrução Criminal – Instância Central, da Comarca de Leiria, que decidiu não pronunciar o arguido A... pelo crime de um  crime de homicídio  por  negligência,  p. e p. pelos  artigos  137.º, n.ºs 1 e 2,  15.º, al. b) e 69.º, n.º  1, al. a), todos do Código Penal (doravante designado, abreviadamente, por C.P.), por que vinha acusado. Entendem os Recorrentes que a decisão recorrida incorreu em erro de direito, tendo violado o disposto nos art.ºs 137.º, n.ºs 1 e 2,  15.º, al. b) e 69.º, n.º  1, al. a), todos do C.P., 283.º, nº 3, al. b), e 308.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (C.P.P.). Consideram os Recorrentes que a prova recolhida em sede de inquérito e produzida em instrução impunha uma pronúncia do arguido A... pelo crime por que vinha acusado, impugnando por isso no presente recurso, a matéria de facto.

II.  Considerou o Meritíssimo Juiz de Instrução, na decisão ora recorrida, que Face   ao   conjunto   de   indícios   recolhidos   no   inquérito,   que   são   substanciais   e decorrentes  de  prova  pericial,  testemunhal  e documental  abundante  e esclarecedora,  apenas uma   conclusão   é   legítima:   o   arguido   circulava,   dentro   do   limite   de  velocidade   e   em cumprimento  das normas  estradais;  o piso  estava em bom  estado  enquanto  circulou  na parte do IC 2 pertencente  ao distrito de Coimbra; na fronteira deste com o de Leiria, sem que tal se mostrasse  sinalizado  ou fosse perceptível  a quem conduzia,  o estado do piso mudou  de bom para  quase  ruinoso,   sendo  a  transição  feita  numa  irregularidade   sensível;  por  via  disso, embora  tudo  levasse  a esperar tratar-se  ponto  seguro  da via,  não  só pelo  estado  do piso  até então, como pelo  facto de se tratar  de zona de aceleração,  em  subida,  com duas faixas nesse sentido e com sinalização  incentivadora  de circulação  entre os 60 e os 90 km/hora,  o arguido foi surpreendido  com  a repentina  falta de aderência  do veículo  ao pavimento,  com  despiste  e perda  de  controlo  do mesmo;  o  acidente  tornou-se  inevitável  a partir  daí. Numa  imagem,  o arguido passou  de um piso normal  para um verdadeiro  ringue  de patinagem;  ao entrar aí sem “calçado”  adequado,  escorregou  e  seguiu  desgovernado   até  parar  por  inércia,  depois  de embater  em  obstáculo.  Mesmo  que  viesse  a  conduzir  há  três  horas,  que  circulasse  a  60 km/hora  ou que fosse o mais concentrado dos condutores, as probabilidades  de que o acidente ocorresse  continuavam  a ser  enormes  face ao  estado  do piso.  Decisivamente,  o  arguido  não tinha  qualquer  razão  objectiva  para  conduzir  de  modo  diferente  do  que  fez,  não  podendo considerar-se  indiciado  que  seguia  desatento  só  porque  o  acidente  ocorreu  e  outros  que passaram na via seguiram incólumes. Tal  implica  que,  não  só  não  resulta  indiciado  parte  substancial  do  comportamento negligente  que a acusação  imputa ao arguido,  como resulta ao contrário  fortemente indiciado que a  conduta  do  arguido  não  foi  adequadamente  causal  do  despiste  e subsequente  acidente mortal  para  B....  O  único  nexo  causal  adequado  para  esse  efeito  que  dos  autos resulta suficientemente  indiciado tem como causa o inaceitável  estado do piso e a igualmente inadmissível falta de sinalização da existência de falta de condições mínimas para a circulação rodoviária em segurança. Resta pois, nessa parte, proferir  despacho de não pronúncia  (artigo 308º, n.º 1, do C. P. Penal).

III. A fundamentação de facto exigível nos termos dos art.ºs 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, al. b), ambos do C.P.P. não foi cumprida na decisão instrutória, nomeadamente no que diz respeito aos factos constantes da acusação pública, os quais não se acham suficientemente indiciados.

IV. Do teor do relatório final elaborado pelo OPC, da douta acusação pública e da própria decisão instrutória, ressalta o entendimento que o estado da via desempenhou um papel na ocorrência do acidente, circunstância a que os recorrentes não se opõem, mas não nos termos descritos na decisão recorrida, nem como único, ou até, primordial factor para a ocorrência do acidente.

V.  A conduta do arguido A...   concorreu para a produção do acidente, porquanto este não adoptou as medidas que deveria ter adoptado: não é exigível que o arguido tivesse controlado o seu veículo logo depois de este entrar em despiste face às condições degradadas da via; todavia, algo mais que não apenas o estado degradado da via esteve na origem da perda de controlo do veículo, como consta aliás, a título introdutório, na decisão recorrida. “O que se discutiu no inquérito e volta a discutir-se  na  instrução  tem  que  ver  com  a  relação   de  causalidade   que  pode  julgar-se indiciariamente   estabelecida   entre   a  ocorrência   do  acidente   e  os  dois   factores   sempre considerados  como relacionáveis  com o evento: a conduta do arguido e o mau estado do piso.”

VI. Era esse o objecto dos presentes autos e o Meritíssimo Juiz de Instrução não se debruçou sobre essa possibilidade; o juízo efectuado pelo Meritíssimo Juiz de Instrução é, no mínimo, falacioso: por considerar que a via estava em más condições, conclui que a conduta do arguido não pode ter tido qualquer relação causal com o acidente.

VII.            Esta fundamentação dos factos não indiciados, relativos à conduta do arguido, é manifestamente insuficiente e, por tal, a decisão instrutória é nula, por violar as disposições contempladas nos art.ºs 308.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, al. b), do C.P.P.

VIII. O Meritíssimo Juiz de Instrução, na sua análise, erroneamente situou sempre o acidente que vitimou B... no limite dos distritos de Leiria e Coimbra, onde se fez a junção dos pavimentos resultantes das obras na IC2 (cfr. fls 215, 175 e última foto de fls 177); 

IX. Esse limite e junção de pavimentos, situa-se, porém, ao km 164,210. Porém, o acidente ocorreu ao km 163,993, portanto 217 metros depois desse local de confluência dos dois distritos (cfr participação de fls 31 e ss, croquis de fls 33 ou 188 e foto de fls 88 (onde se vêem ainda, além de outros, o carro da GNR e o camião do arguido, no local do acidente), a comparar com fotos de fls 215, 175 e última de fls 177);

X.  Nesse local de confluência de distritos e junção de pavimentos, efectivamente a IC2 apresentava irregularidades de piso nessa junção e a partir daí, numa extensão de 109 metros, a faixa da direita (tendo em conta o sentido N/S, que era o sentido de marcha do arguido) não tinha sido reparada convenientemente, apresentando rodeiras, e outras anomalias, bem visíveis mesmo através das fotos referidas nas als anteriores, alem de outras (cfr fls 215, 175 e  última de fls 177);

XI. Foi nesse local de confluência que o arguido entrou nessa faixa da direita e por ela circulou mais de 109 metros, até pretender ultrapassar a testemunha H... , que seguia à sua frente (cfr depoimento desta, a fls 147-1º Vol.);

XII.            Quando o arguido entrou nessa faixa da direita, o camião que tripulava seguia animado com a velocidade de 75 km/h, tendo o arguido já invadido essa faixa em “aceleração contínua” (cfr declarações do arguido de fls 327, 2º Vol);

XIII. O arguido, que era à data motorista de pesados da empresa “ G... , Lda”, conhecia perfeitamente o local, porque aí passava com o «seu» camião regularmente e com frequência, até porque a sede daquela empresa, situada em Ourém, dista daí menos de 60 Kms; : o arguido, como condutor profissional que faz largas dezenas de viagens por ano, tendo sempre o mesmo ponto de partida e de chegada, que dista a menos de 60kms do local do acidente já teria, com toda a certeza, passado naquele local vezes suficientes para conhecer o estado da via. Mas ainda que assim não se entenda, então a conclusão tem que ser a contrária àquela que foi adoptada pelo Tribunal recorrido: se o arguido não conhecia a via, deveria, obrigatoriamente, ter adequado a sua condução às condições do piso, que se encontrava molhado, adequando a sua velocidade a esse estado do piso e ao facto de não conhecer a via.

XIV. Na altura o piso estava molhado e escorregadio, em consequência da chuva que havia caído nesses dias, persistindo ainda chuviscos;

XV.            Nesse dia, 10 de Janeiro de 2011, o arguido havia iniciado a condução pela 01h05m em Espanha (00h05m, hora de Portugal), tendo conduzido toda a noite, e almoçou na zona de Anadia cerca de uma hora antes de entrar naquela faixa de rodagem da direita referida acima (cfr fls 2 do Apenso 1);

XVI. O arguido estava de regresso a casa, que lhe ficava a escassas dezenas de kms, vindo duma longa viagem de vários milhares de kms, que fez à Bélgica, iniciada 7 dias antes, no dia 3 desse mês (cfr  Apenso 1);

XVII. A partir da junção dos pavimentos, logo após o entroncamento para Soure, embora tratando-se duma recta com visibilidade não inferior a 500 metros, a estrada tem no seu eixo uma dupla linha longitudinal contínua, e no sentido de marcha do arguido conta ainda com um sinal de perigo de aproximação de lomba ou depressão;

XVIII. Embora só podendo circular a um máximo de 80 km/h, o arguido, quando seguia a par da testemunha H..., imprimia já ao seu veículo a velocidade de 90 km/h, projectando “neblina” para o pára-brisas do veículo dessa testemunha, incomodando-lhe a visibilidade (cfr. depoimento desta, fls 147-1º Vol.);

XIX. Esse local da estrada é tido pelos condutores como “perigoso” e por isso aí circulam com muita cautela, estando sinalizada como máximo de velocidade  80 km/h para o sentido N/S e 70 km/h para o sentido inverso (cfr. o mesmo depoimento);

XX. Tal «perigosidade» será devida ao facto de, embora recta de boa e extensa visibilidade, estar sinalizada com os dois sinais de perigo acabados de referenciar na al. 10ª, e de já aí terem ocorrido dois acidentes mortais, praticamente nas mesmas circunstâncias do dos autos, por que os dois condutores dos veículos pesados foram condenados em penas de prisão (cfr fls 727 a 773, 3º Vol);   

XXI. Ao entrar naquela faixa da direita, ao km 164,210, embora sabendo do mau estado do piso, que conhecia muito bem, o arguido acelerou o seu veículo, que já aí seguia a 75 km/h, com o objectivo de “vencer a subida”, que apenas tem uma inclinação de 4% (cfr declarações do arguido fls 327, 2º Vol);

XXII. Quando já seguia a par do veículo da testemunha H... , portanto pela faixa da esquerda, que apresenta bom piso, ou melhor, “em estado regular” (cfr esta indicação a fls 175), inesperadamente o arguido invade a faixa de rodagem contrária;

XXIII. Embora travando, só o fez numa distância de 8,5 metros, percorrendo mais 7 metros antes de abalroar o veículo do infeliz B... , que arrastou sobre o piso da via e depois sobre o talude (cfr croquis de fls 33 ou 118, 1º Vol);

XXIV. Este abalroamento (rectius, colisão) registou-se a 41 km/h do veículo do arguido, fruto daquela travagem, que o arguido abandonou 7 metros antes de colher o veículo ligeiro (vide fls 152, nº 7, 1º Vol. E croquis de fls 33 ou 118);

XXV. Se o arguido tivesse continuado a travar nesses 7 metros, talvez tivesse evitado embater no veículo ligeiro; ou, ainda que não conseguisse impedir esse embate, seguramente este ter-se-ia dado a uma velocidade muito mais baixa do que aqueles 41 km/h, e com muita probabilidade não teria provocado a morte do inditoso B... ;

XXVI. O acidente só ocorreu porque o arguido desprezou as más condições climatéricas e o mau estado da via, com piso molhado e escorregadio, que lhe aconselhavam moderar a velocidade em vez de ter acelerado até aos 90 km/h; porque esta velocidade, para lá de ilegal, era manifestamente exagerada para tais condições, estado da via e características do veículo que conduzia, e porque realizava esta condução desatento e em estado de forte fadiga, motivada por aquela longa viagem de milhares de kms que estava a terminar e pelas 13 ou 14 horas de condução que já trazia em toda a noite e em mais de metade desse dia;

XXVII. Embora tendo dito que não se sentia fatigado, o próprio arguido reconheceu expressamente que não devia ter “excedido as horas de condução, que tinha arranjado um sítio para ficar e fazia aí o descanso”. E em relação ao acidente respondeu que “eventualmente poderia ter acelerado menos na subida pelo facto de o carro vir vazio e o piso estar molhado” e se “tivesse desacelerado (…) o acidente não teria ocorrido” – (cfr. suas declarações de fls 327, 2º Vol.)

XXVIII. Os indícios sobre a culpabilidade do arguido no acidente são, assim, mais que óbvios, pelo que o Meritíssimo Juiz de Instrução fez uma muito errada apreciação desses indícios.

XXIX. Assim sendo, a “teoria do acidente” revelada quer pelo arguido, quer pelo OPC, quer pelo Meritíssimo Juiz de Instrução, que consideram que o veículo do arguido seguia na faixa da direita do sentido Norte/Sul e que, nessa faixa, entrou em hidroplanagem, o que o fez perder o controle do veículo, não está correcta, devendo assumir-se, face a todos os elementos que constam nos autos que o que efectivamente se passou foi o seguinte:

XXX. A via da esquerda do sentido Norte/Sul não apresentava exsudação. Tal fenómeno verificava-se, à data dos factos, apenas na via mais à direita, onde circulava o veículo da testemunha I... . Com efeito, como resulta de fls. 175, a via da esquerda no sentido Norte/Sul do IC2 (zona B na imagem das referidas folhas) estava em razoável estado de conservação, ou pelo menos, não tinha exsudação, que permitisse, sem mais, que o veículo conduzido pelo arguido entrasse em despiste.

XXXI. Na verdade, caso o veículo conduzido pelo arguido se tivesse despistado na via mais à direita do sentido Norte/Sul, sempre haveria um momento, na via da esquerda do mesmo sentido, em que o veículo deixaria de fazer hidroplanagem e os pneus tivessem contacto com o asfalto. Nesse momento, teria sido possível ao arguido iniciar a travagem, o que não aconteceu. Conforme resulta da prova constante nos autos, a fls. 157 e 167 dos autos, o arguido só iniciou a travagem quando estava já na faixa de rodagem em que seguia o falecido.

XXXII. Há um facto que é indesmentível nos presentes autos: se o arguido tivesse respeitado os tempos máximos de condução da jornada diária, o acidente, que foi a causa da morte de B... , não teria ocorrido.

XXXIII. Como referiu, e bem, o Ministério Público na douta acusação, naquelas  mesmas  circunstâncias  de  tempo  e  lugar, passaram   naquele local  inúmeros  veículos,  certamente   também  veículos  pesados   de  mercadorias,  conforme sucede  diariamente,  que  não  tiveram  qualquer problema  ou acidente, porventura  por  terem adequado a velocidade para  valores que permitiam  circular  em maior segurança.

XXXIV. Decorre dos preceitos legais contidos no CPP, mais concretamente o artigo 308.º, número 2, que o Juiz de Instrução deverá emitir despacho de pronúncia ao arguido pelos factos respetivos, se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Neste caso concreto entendeu o Meritíssimo Juiz de Instrução que era improvável que o arguido A... , levado a julgamento, fosse condenado pelo crime pelo qual foi acusado, contradizendo o que foi decidido pelo Tribunal Judicial de Pombal em processos em tudo semelhantes ao presente.

XXXV. No entanto, basta atender às doutas sentenças proferidas nos processos n.ºs 386/04.8 GTLRA e 357/08.5GTLRA, que correram os seus termos, respectivamente, no 2.º e 3.º Juízos do Tribunal Judicial de Pombal, para “pressentirmos” existir uma possibilidade mais do que razoável na condenação do arguido.

XXXVI. O arguido A... não tomou todas as precauções que devia, podendo ter evitado que o seu carro entrasse em despiste e, consequentemente, podendo ter evitado o acidente .

XXXVII. Os recorrentes retiram esta conclusão de dois factos indesmentíveis: o arguido A... circulava em excesso de velocidade, porque tinha pressa em chegar ao seu destino; e o arguido A... conduzia há mais tempo do que aquele que lhe é permitido por Lei.

XXXVIII. Consideram os Recorrentes que o período de condução do arguido não foi excedido em 19 minutos, mas em 1h19, porquanto, nos dias 5 e 6 de Janeiro de 2011 o arguido excedeu o período de 9 horas de condução – cfr. fls. 17 e 21 do Apenso 1. Ou seja, no período de 6 dias, entre os dias 5 e 10 de Janeiro de 2011, o arguido excedeu o período de condução das 9 horas em três desses seis dias.

XXXIX. Aliás, basta um olhar atento aos registos de GPS e discos de tacógrafo para retirar uma conclusão: o arguido A... tem pouco respeito pelas normas estradais, conduzindo, frequentemente, durante um período superior àquele que lhe é permitido por Lei e a uma velocidade superior à admitida legalmente, o que sucedeu nos dias 20, 23, 24, 26, 28 e 29 de Dezembro de 2010 e no dia 10 de Janeiro de 2011. Ou seja, retira-se destes elementos de prova dos autos que o arguido tem pouco respeito pelas regras estradais, nomeadamente quanto aos períodos máximos de condução permitidos por Lei.

XL.            Noutro sentido, a conclusão que se retira do facto de o arguido ter trocado os discos de tacógrafo e de ter conduzido para além do tempo que lhe é permitido por Lei no dia do acidente, ou seja, que estava com pressa, está também reflectida no disco de tacógrafo colocado em Sangalhos antes do momento do acidente, bem como nas declarações de testemunhas e do próprio arguido.

XLI. Tudo indicia que o arguido, antes de perder o controle do seu veículo, se encontrasse a efectuar uma manobra de ultrapassagem, porquando sabe-se que quem circulava à sua frente reduziu a velocidade e que, pelo retrovisor, viu o arguido na faixa da esquerda, a fazer a ultrapassagem.

XLII. Sabemos também, pelas declarações do arguido, que este acelerou, por forma a “vencer a subida”. Diz-nos a informação constante no disco de tacógrafo do veículo conduzido pelo arguido a fls. 189 dos autos,  que essa aceleração foi dos 75 kms/h para os 90 kms/h.

XLIII. Acresce que, ao contrário do que consta na decisão instrutória, o limite máximo de velocidade no local do acidente não era de 90 kms/h, mas de 80 kms/h, como é, aliás, em todas as vias reservadas a automóveis e motociclos e restantes vias públicas para automóveis pesados com semi-reboque, nos termos do n.º 1 do art.º 27.º do Código da Estrada, sem prejuízo do disposto nos art.ºs 24.º e seguintes do mesmo diploma, e de limites inferiores que sejam impostos na sinalização da estrada.

XLIV. Ora, sabendo que o limite máximo de velocidade do veículo do arguido é de 80 kms/h em todas as vias reservadas a automóveis e motociclos e restantes vias públicas e de 90 kms/h nas auto-estradas, analisando os discos de tacógrafo do dia 10 de Janeiro de 2011, verificamos que o arguido ultrapassou estes limites inúmeras vezes, entre o percurso desde Anadia até ao local da data do acidente. Na verdade, analisando as fls. 46 dos autos, verificamos que o arguido, ainda que não tenha circulado em auto-estradas nesse percurso, ultrapassou o limite de velocidade de 80 kms/h demasiadas vezes.

XLV. De acordo com o disposto no artigo 15.º do C.P., age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, não chega a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente -  al.  b)  ou,  represento-a,   confia em que ela  não  terá  lugar  (negligência consciente  - al. a).

XLVI. O limite de velocidade que o arguido estava obrigado a respeitar era de 80 kms/h, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 27.º do Código da Estrada. Todavia, face às disposições constantes no art.º 24.º e na alínea j) do n.º 1 do art.º 25.º, ambos do mesmo diploma, tendo em conta que o arguido acelerou na subida e que o piso estava molhado, e que, não conseguiu, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, não podemos deixar de considerar que o arguido violou as normas constantes nos artigos 24.º, 25.º, n.º 1, al. j) e 27.º, n.º 1, todos do Código da Estrada.

XLVII. Por outro lado, o n.º 1 do art.º 6.º do Regulamento CE 561/06, de 15.06, refere que o tempo diário de condução não deve exceder 9 horas. No entanto, não mais de duas vezes por semana, o tempo diário de condução pode ser alargado até um máximo de 10 horas.

XLVIII. Com a sua conduta o arguido não respeitou estas regras.

XLIX. Não actuou, pois, o arguido A... em conformidade com o dever de cuidado que lhe era imposto legalmente e de que era capaz, porquanto seguia excesso de velocidade, quer considerado de acordo com o limite máximo de 80kms/h exigido naquele local, quer considerado de acordo com o previsto nos artigos 24.º, 25.º, n.º 1, al. j) e 27.º, n.º 1, todos do Código da Estrada.

L.   Razões pelas quais deveria a decisão instrutória aqui recorrida ter decidido pela pronúncia do arguido A... da prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.º art.º 137.º,  n.º  1 do  C.P.

LI. Ao não pronunciar o arguido pelo crime de homicídio por negligência p. e p. no art.º 137.º do C.P., o Meritíssimo Juiz de Instrução violou o disposto nos art.ºs 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, al. b), ambos do C.P.P

Por todo o exposto, deve dar-se provimento ao presente recurso e, em sua consequência, deve o despacho de não pronúncia recorrido ser revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido A... pelo crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º do Código Penal, nos termos da douta acusação pública formulada pelo MP.

Assim se fazendo justiça”

                                                                *

5. O recurso foi admitido por despacho de fls. 1170.

                                                     *

6. O Ministério Público junto da 1ª instância (a fls. 1174 a 1191), respondeu ao recurso, concluindo que ao mesmo deve ser negado provimento e mantida a decisão recorrida.

                                                     *

7. Também o arguido (a fls. 1193 a 1207), respondeu ao recurso, concluindo que o mesmo deve ser julgado improcedente.

8. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, a fls. 1236 a 1240, emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

9. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.

10. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito.

No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, as questões suscitadas são as seguintes:

- Saber se a decisão instrutória é nula, nos termos do disposto nos artigos 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3 b) do CPP, por não conter a enumeração dos factos indiciados e não indiciados;

- Saber se existem, ou não, indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137º do Código Penal.

Vejamos, desde já, o teor da decisão recorrida (transcrição):

Decisão Instrutória
*

1ª Questão: - Saber se a decisão instrutória é nula, nos termos do disposto nos artigos 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3 b) do CPP, por não a enumeração dos factos indiciados e não indiciados.

Logo no início da motivação do recurso, alegam os recorrentes:

“A fundamentação de facto exigível nos termos dos art.ºs 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, al. b), ambos do C.P.P. não foi cumprida na decisão instrutória, nomeadamente no que diz respeito aos factos constantes da acusação pública que não se consideraram suficientemente indiciados.

A imposição de fundamentação, de facto e de direito, ao despacho de não pronúncia, por aplicação conjugada dos artigos 283.º, n.º 3, al. b) e 308.º, n.º 2, do C.P.P., só deve considerar-se cabalmente satisfeita, com a articulação e/ou a enumeração, clara, expressa, discriminada e autónoma, de cada um dos factos que se consideram indiciados e não indiciados, pois só desse modo se permitirá, por um lado, uma efetiva possibilidade de exercício do direito de recurso por parte dos sujeitos processuais que se sintam afetados com a decisão, e, por outro lado, um real e verdadeiro controlo (e possibilidade de sindicância) por parte do tribunal de segunda instância.

A omissão da descrição da matéria fáctica determina a nulidade do despacho, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 308.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, al. b), do C.P.P.

Impõe-se, nas situações de despacho de não pronúncia, a clara definição da factualidade que o Juiz de Instrução considera (e da que não considera) suficientemente indiciada, reportada, naturalmente, ao libelo acusatório. Só após tal enumeração se seguirá, então, a natural tarefa de decidir se os factos considerados como indiciados são, ou não, suficientes, para a sujeição do arguido a julgamento pelo crime imputado.

A imposição de fundamentação, de facto e de direito, ao despacho de não pronúncia, por aplicação conjugada das acima mencionadas disposições legais (artigos 283.º, n.º 3, al. b) e 308.º, n.º 2, do C.P.P.), só deve, por isso, considerar-se cabalmente satisfeita, com a articulação e/ou a enumeração, clara, expressa, discriminada e autónoma, de cada um dos factos que se consideram indiciados e não indiciados, pois só desse modo se permitirá, por um lado, uma efetiva possibilidade de exercício do direito de recurso por parte dos sujeitos processuais que se sintam afetados com a decisão, e, por outro lado, um real e verdadeiro controlo (e possibilidade de sindicância) por parte do tribunal de segunda instância.

Na decisão recorrida o M. Juiz de Instrução começa por transcrever a douta acusação pública, concentrando-se, de seguida, em atacar o libelo acusatório, por considerá-lo em dissonância com o relatório final elaborado pelo OPC. O M. Juiz de Instrução faz uma interpretação subjectiva do dito relatório final e conclui que as condições da via terão sido o único motivo para a ocorrência do acidente que vitimou mortalmente B... .

(…)

Em conclusão, a fundamentação dos factos não indiciados, relativos à conduta do arguido, é manifestamente insuficiente  na decisão recorrida e, por essa razão,, a decisão instrutória recorrida é nula, por violar as disposições contempladas nos art.ºs 308.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, al. b), do C.P.P.”

E nas Conclusões III a VII os recorrentes mantém essa mesma posição.

Apreciando.

É por demais consabido que a decisão de pronúncia, tal com a de não pronúncia, assume a natureza de acto decisório, porquanto assim são definidos os despachos dos juízes, quando, não se tratando de sentenças, puserem termo ao processo, nos termos do artigo 97.º, n.º 1, al. b), do CPP.

Além disso, tal como decorre do artigo 308º do CPP, o despacho de não pronúncia (aquele que aqui tem relevo) tem de conter os elementos referidos no artigo 283.º, n.ºs 2 e 3, sem prejuízo da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 307.º, do CPP, em que se consagra que o juiz pode fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.

Com efeito, de modo a permitir que o Tribunal da Relação possa fazer uma valoração lógica dos indícios por forma a tê-los como suficientes ou insuficientes à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e desta forma optar pela decisão de pronúncia ou não pronúncia, torna-se necessário saber qual a base indiciária tida por assente pela 1.ª instância, para, em operação posterior, confrontando a prova carreada à instrução, se pronunciar num ou noutro sentido.

Por isso, o despacho de não pronúncia há-de elencar, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência de prova indiciária.

Acontece que, no caso em apreço, a decisão de não pronúncia, após proceder ao saneamento do processo e de transcrever o despacho proferido pelo magistrado do Ministério Público final do inquérito, faz referência aos elementos probatórios produzidos em sede inquérito (repare-se que em sede de instrução apenas se procedeu a debate instrutório depois de terem sido indeferidas diligências de instrução que, pelo arguido, haviam sido requeridas no requerimento de abertura de instrução) e uma análise crítica da prova, sem contudo, descrever, em pormenor, quais os factos que considera suficientemente indiciados e os que não vislumbra indiciados com suficiência.

Torna-se, pois, claro que a decisão sob recurso não deu cumprimento ao determinado no artigo 308.º, n.º 2, do CPP.

E qual a consequência que daí deve ser retirada?

A propósito desta questão, entendemos por bem citar o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 26/10/2011, Processo n.º 199/10.8GDCNT.C1, relatado por Alberto Mira, e publicado in www.dgsi.pt, onde pode ser lido o seguinte:

Neste domínio têm existido profundas divergências na jurisprudência dos Tribunais da Relação.

Versando concretamente o despacho de não pronúncia, há quem entenda que se trata de uma irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto no artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Diversamente, referem outros tratar-se de uma nulidade oficiosamente cognoscível em sede de recurso].

Quanto a nós, seguimos, ao “pé da letra”, a posição assumida no Ac. da Relação do Porto de 07-07-2010, importando distinguir os casos de despacho de pronúncia com falta de narração dos factos indiciados dos casos de despacho de não pronúncia deficientemente fundamentado por não conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência de indícios.

A nulidade que se vislumbra decorre do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, reportada ao n.º 2 do artigo 308.º, do CPP.

É de admitir que, quando referida a uma acusação ou ao despacho de pronúncia, tal nulidade, por omissão de narração dos factos imputados ao arguido, pelos quais deverá responder em julgamento, seja considerada insanável, tendo em vista a lógica do sistema e o princípio da acusação.

Efectivamente, nesta situação, se a falta de descrição dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, determinando a rejeição desta como manifestamente infundada [artigo 311.º, n.º 3, al. b) do CPP], seria destituído de todo o sentido que a falta de factos do despacho de pronúncia não consubstanciasse nulidade de conhecimento oficioso.

Dito de outro modo: os casos elencados no n.º 3 do artigo 311.º que se contêm na previsão das diversas alíneas do n.º 3 do artigo 283.º constituem uma forma de nulidade “sui generis”, insanável e de conhecimento oficioso.

Os demais casos do n.º 3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.

Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação se traduza numa nulidade que é sanável e, assim, dependente de arguição.

Consequentemente, deveria ter sido suscitada, pela assistente, perante o tribunal a quo (e não em recurso), no prazo de 10 dias (artigo 105.º, n.º 1, do CPP), contados a partir da notificação ao arguido do despacho de não pronúncia. Porque assim não sucedeu, está sanada.”

Aderimos a esta orientação.

Nessa decorrência, atendendo a que os assistentes/recorrentes foram notificados da decisão instrutória em 02.12.2014 (cfr. fls. 1064 a 1066 e 1071 a 1073) e que à sua Ilustre Mandatária, por via postal registada, foi enviada cópia da decisão instrutória no dia 28.11.2014 (cfr. fls. 1067) e não vieram arguir, em tempo oportuno, a respectiva nulidade, considera-se a mesma sanada.

Naufraga, assim, esta pretensão dos recorrentes.

                                                     *

2ª Questão: Saber se existem, ou não, indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137º do Código Penal.

Vejamos, não sem antes tecermos algumas considerações gerais.

Decorre do artigo 286º nº 1 do Código de Processo Penal que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Constitui assim, no Código de Processo Penal, uma actividade de averiguação processual complementar daquela que foi levada a cabo durante o inquérito, destinando-se, tendencialmente, a uma investigação mais aprofundada dos factos constitutivos de um crime e sua imputação a determinada pessoa.

O artigo 308º, n.º1 do Código de Processo Penal estipula que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.”

Por sua vez o art. 283° n° 2 do Código de Processo Penal preceitua que "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".

A mencionada “possibilidade razoável” de condenação em julgamento envolve um juízo retrospectivo de valoração dos meios de prova recolhidos no processo que fundamentam a acusação; e um juízo de prognose prospectivo sobre os meios de prova que poderão vir a ser produzidas ou examinadas na audiência de julgamento, sabendo-se que a produção de prova em julgamento obedece a princípios diferentes da fase de investigação e instrução, com destaque para a “institucionalização” do contraditório e os princípios da imediação e da concentração nessa fase do julgamento.

O referido juízo retrospectivo sobre as provas recolhidas não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas face ao princípio in dubio pro reo, vigente em termos de apreciação da matéria de facto. Na verdade, nas palavras de Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, I vol, pag 213) “Um non liquet na questão da prova (…) tem que ser sempre valorado a favor do arguido”, sendo que “com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dúbio pro reo”.

É exigível pois, quer da parte do Ministério Público, quer da parte do Juiz de Instrução, uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, um juízo ou convicção equivalente ao de julgamento, na demonstração da objectividade do facto, na apreciação do material probatório que a suporta em conformidade com as normas relativas à aquisição e valoração das provas, nos critérios de racionalidade inerentes ao princípio da livre apreciação da prova.

Com efeito, na lição, sempre actual de CASTANHEIRA NEVES (Processo Criminal, Sumários, p. 39) “na apreciação da suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final - só que a instrução (…) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.

E o juízo retrospectivo que vimos falando incide sobre os meios de prova recolhidos no processo e que fundamentam a acusação. Meios de prova que “não serão, salvo casos excepcionais, reforçados até à audiência de julgamento. A tendência natural será, pelo contrário, no sentido do enfraquecimento dessas provas já que (além da erosão do tempo) irão ser submetidas ao crivo do contraditório e atacadas através do efectivo exercício do direito de defesa, até aí substancialmente afectado” – cf. Jorge Noronha e Silveira, O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, in JORNADAS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS, coordenação de Maria Fernanda Palma. Almedina, 2004 p. 168.

O mesmo juízo retrospectivo não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas, antes exige da parte quer do Ministério Público, quer do Juiz de Instrução, uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, um juízo ou convicção equivalente ao de julgamento, na sua estrutura fenomenológica, na objectividade de indagação fáctica e apreciação do material probatório, na conformação normativa pelas mesmas proibições de valoração da prova, na racionalidade lógica e metodológica em que assenta a sua livre apreciação dos elementos de prova coligidos, na parametrização (em prognose, na acusação, e actual, no julgamento) própria de condenação e no grau de convicção (que não se compadece, em ambos os casos, com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida) – cfr. Carlos Adérito Teixeira, «Indícios suficientes»: parâmetro de racionalidade e «instância» de legitimação concreta do poder-dever de acusar”, in REVISTA DO CEJ, nº1, p. 161; no mesmo sentido veja-se Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, p. 92 nota 127; e Jorge Noronha e Silveira, “O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, in JORNADAS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS, coordenação de Maria Fernanda Palma, Almedina, 2004p. 168 e 169).

E na jurisprudência, a interpretação do conceito do in dubio pro reo no âmbito da instrução é resumidamente efectuada pelo STJ da seguinte forma - «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime. Os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição” ( vide o Acórdão de 28/06/2006, in www.dgsi.pt)

Pelo que a não formação de uma convicção segura acerca da culpabilidade do arguido, em virtude da prova recolhida suscitar dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas, deve conduzir a uma decisão de não pronúncia, mediante a mobilização do principio in dubio pro reo – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/2002 (in www.tribunalconstitucional.pt). Com efeito, entendeu aquele tribunal que: “a interpretação normativa dos artigos citados que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, prevista no artigo 32º, nº 2 da Constituição”.

Sendo exigível este grau de certeza na análise das provas recolhidas subjacente à decisão sobre a existência ou não de indícios suficientes coloca-se a questão de saber em que medida isso se compatibiliza com o facto da lei utilizar como critério de decisão a “possibilidade razoável” de condenação.

A “possibilidade razoável” que o nº2 do artigo 283º do Código de Processo Penal  reporta-se ao tal juízo de prognose, que sendo uma previsão assenta necessariamente numa avaliação probabilística. Não se reportando apenas à convicção que a autoridade competente tem de efectuar em relação aos elementos probatórios recolhidos mas ainda à possibilidade de confirmação dessa convicção, em audiência de julgamento, na medida em que a audiência de julgamento obedece a uma racionalidade específica, com os princípios da concentração da prova, da imediação, do exercício pleno do contraditório.

E importa ter sempre presente que a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento para além de constituir sempre um “normal” incómodo, por vezes pode-se traduzir num vexame (neste sentido cfr. Ac do STJ de 28.06.2006, in www.dgsi.pt).

Por isso mesmo, cabe ao Ministério Público (enquanto detentor do exercício da acção penal) e ao juiz de instrução (quando há lugar a esta fase), avaliar sobre se os indícios são, ou não, suficientes.

E acerca do que devem ser considerados indícios suficientes, pode ver-se o eloquente Acórdão desta Relação de Coimbra, datado de 10-09-2008 (Relator Alberto Mira, disponível em www.dgsi.pt) sumariado do seguinte modo:

I.- Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado

II. – A suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento; mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo prova bastante para a acusação (ou para a pronúncia).

III. - O juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade.

IV. - Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.

Em conclusão:

Admitida a instrução, se, até ao encerramento da mesma, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado e virem a demonstrar, os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia – artigo 308.º do Código de Processo Penal.

Tecidas estas parcas considerações gerais, analisemos então da existência, ou não, de indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137º do Código Penal.

Da leitura atenta da decisão instrutória recorrida ressalta que o Mmo JIC, sem realizar qualquer diligência no âmbito da instrução e estribando-se essencialmente naquilo que retira do relatório do OPC que procedeu à investigação do acidente e no exame pericial constante de fls. 207 a 223, chega à conclusão que o despiste do veículo que o arguido conduzia e o subsequente embate no veículo conduzido pela malograda vítima mortal B... apenas teve como causa o mau estado do piso e a falta de sinalização que advertisse da falta de condições para a circulação rodoviária em segurança.

Discordamos de tal conclusão, tendo em conta os elementos probatórios recolhidos e constantes dos autos até ao final do inquérito (repare-se que nenhumas diligências de instrução foram realizadas, mormente aquelas que até haviam sido requeridas pelo arguido).

Desde logo, analisando a participação do acidente de viação, e respectivo “croquis”, de fls. 31 a 33 parecem não existir grandes dúvidas que o embate entre o veículo conduzido pelo arguido [veículo composto por tractor de mercadorias (de matrícula 14-48-UD) e semi-reboque (de matrícula L-169416)] e aquele que era conduzido pela vítima B... [veículo ligeiro de passageiros de matrícula 85-63-PV] ocorreu na hemi-faixa de rodagem por onde circulava a vítima, sensivelmente ao Km 163,993 da EN1/IC2.

Ou seja, tal colisão ocorreu em faixa de rodagem diversa daquela por onde deveria circular o veículo conduzido pelo arguido, a isso acrescendo que no local, a separar os sentidos de trânsito, existia uma linha longitudinal contínua (sinal M1).

Para além disso, parecem não existir grandes dúvidas que o local configura uma recta, com inclinação ascendente no sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido (sentido Norte/Sul), e que esse sentido de trânsito tem duas vias, sendo que pelas características do veículo do arguido (e à falta de qualquer sinal de limitação de velocidade) a velocidade máxima permitida, no local, para tal veículo era de 80 Km/hora (cfr. artigo 27º nº 1 do Código da Estrada).

Dessa mesma participação, decorre que o estado do tempo era de “chuva”, o que surge confirmado pelo arguido nas declarações que prestou em sede de interrogatório realizado pelo OPC em 17.10.2011 (cfr. auto de interrogatório de fls. 325 a 328), quando a dado passo referiu: “Que se recorda que no local do acidente chovia, mas antes não se recorda”. Aliás, também a testemunha I... , ouvida em sede de inquérito, a dado passo disse “Que no momento do acidente chovia uma chuva miudinha mas de forma sistemática. Que o pavimento se encontrava molhado (…)”. E esse estado molhado do pavimento é visível, entre outras, das fotografias de fls. 13 e 14.

Por outro lado, pela análise efectuada pelo investigador L... ao registo verificado no disco do tacógrafo constante de fls. 46, decorre que a velocidade do veículo do arguido antes da zona do acidente era, aproximadamente de 75Km/hora, tendo um pico de velocidade a aproximadamente 90Km/hora e face à movimentação do estilete de velocidade, a velocidade no momento do embate seria de 41Km/hora (cfr. fls. 188 a 190).

Existem também indícios nos autos que, aquando do embate, o arguido já tinha uma jornada de condução de 10h19m e que na altura do embate não transportava qualquer carga no semi-reboque (ou seja o veículo vinha leve, circunstância que, pelas regras da experiência comum, traduz uma menor aderência e/ou atrito dos pneumáticos do veículo ao pavimento, ao invés daquela que ocorre quando os veículos vão com alguma ou muita carga).

Muito embora transpareça dos autos que antes da zona do acidente, tomando por base o sentido de marcha do arguido, o pavimento não se apresentasse nas melhores condições de segurança (é feita alusão, pelo OPC investigador, a uma solução de descontinuidade transversal no pavimento decorrente “da repavimentação da faixa de rodagem desde a zona de Condeixa até ao local em análise, que compromete a homogeneidade do pavimento” e, bem assim, à existência de um troço com exsudação que “em situações de piso molhado tem uma maior propensão para fenómenos de hidroplanagem” (cfr. síntese conclusiva do Relatório Pericial de fls. 207 a 223, do IPL), desde logo pelos indícios atrás mencionados, consideramos que apontado mau estado da via - perante as condições climatéricas que se faziam sentir, ao piso molhado, ao facto de não transportar qualquer carga no semi-reboque e à velocidade a que vinha animado, a isso acrescendo que naquele dia o arguido já havia conduzido durante 10horas e 19 minutos - não foi exclusivamente determinante da ocorrência do despiste e subsequente embate do veículo conduzido pelo arguido no veículo conduzido pela vítima, do qual resultou a morte desta.

Consideramos até incorrecta a afirmação exarada pelo Mmo Juiz quando, reportando-se ao relatório final do OPC de fls. 644 a 698, diz que “o OPC conclui que o acidente se ficou a dever às condições do piso e à deficiente sinalização no local, na decorrência do já anteriormente sustentado, não atribuindo à conduta do arguido concorrência causal na produção do acidente.” Com feito, salvo o muito devido respeito por quem analisa tal relatório (sem qualquer relevo de nível pericial, frise-se) isso ali não conclui totalmente o OPC, sendo o mesmo até algo contraditório. Com efeito, depois de ali referir que o arguido “conduziu 10h19minutos pelo que, excedeu o tempo máximo de condução para a jornada de trabalho em 19 minutos” e que “imprimia ao veículo uma velocidade de 75 km/h e que pela análise ao disco diagrama de tacógrafo se verificou um pico de velocidade até aos 90 km/h”, mais à frente menciona que “No que respeita a manobras realizadas pelo arguido, não foi detetada nenhuma manobra que pudesse influir na produção do acidente.” Todavia, quando ainda mais à frente se reporta aos factores atmosféricos, também diz: “No que diz respeito aos fatores atmosféricos, no dia do acidente a via encontrava-se molhada devido à chuva que se fazia sentir. Este facto considera-se como negativo para o exercício da condução, fazendo com que o nível de exigência do condutor deve também corresponder a este aumento do nível de exigência para que o risco seja controlado.”(cfr. fls. 690 e 691).

Ou seja, depois de até chamar a atenção que o arguido teve comportamentos infractores, o OPC que elaborou tal relatório afirma que o arguido não contribuiu para o acidente. E perante as más condições atmosféricas que no local se faziam sentir, chama a atenção que o nível de exigência do condutor deve ser aumentado para que o risco de acidente seja controlado. Em que ficamos então! O arguido aumentou esse grau de exigência para evitar acidentes?

Os autos não espelham minimamente que o tivesse feito.

Também discordamos do afirmado pelo Mmo Juiz quando a dado passo da decisão instrutória, e à laia de conclusão, refere que “apenas uma conclusão é legítima: o arguido circulava, dentro do limite de velocidade e em cumprimento das normas estradais (…). Mesmo que viesse a conduzir há três horas, que circulasse a 60 km/hora ou que fosse o mais concentrado dos condutores, as probabilidades de que o acidente ocorresse continuavam a ser enormes face ao estado do piso. Decisivamente, o arguido não tinha qualquer razão objectiva para conduzir de modo diferente do que fez, não podendo considerar-se indiciado que seguia desatento só porque o acidente ocorreu e outros que passaram na via seguiram incólumes.

Tal implica que, não só não resulta indiciado parte substancial do comportamento negligente que a acusação imputa ao arguido, como resulta ao contrário fortemente indiciado que a conduta do arguido não foi adequadamente causal do despiste e subsequente acidente mortal para B... . O único nexo causal adequado para esse efeito que dos autos resulta suficientemente indiciado tem como causa o inaceitável estado do piso e a igualmente inadmissível falta de sinalização da existência de falta de condições mínimas para a circulação rodoviária em segurança.”

Como referimos, discordamos de tal conclusão.

Muito embora a via pudesse não apresentar as melhores condições de segurança (o que só por si também seria motivo para um redobrar de cuidados por parte do arguido), certamente que o Mmo Juiz a quo se esqueceu, ou por outras palavras, não teve em conta que na altura chovia e o piso estava molhado (sem cuidar de atentar, sequer, também a que a falta de carga no semi-reboque traduz uma menor aderência do mesmo ao pavimento).

Por um lado, importa referir que ao ter (em termos indiciários) atingido o pico de velocidade na ordem dos 90Km/hora poucos metros antes do embate, tal velocidade surge em infracção ao nº 1 artigo 27º do Código da Estrada que, para aquele tipo de veículo e para aquele local, proibia a velocidade instantânea acima dos 80Km/hora.

E mesmo que, porventura, esse pico de velocidade tivesse resultado apenas da falta de aderência ao piso (como de certa forma aventa, num dos seus relatórios, o OPC investigador, mas que nos deixa algumas dúvidas porque o veículo do arguido até se está a deslocar em sentido ascendente e com uma inclinação de cerca de 4%) mesmo assim a também registada velocidade de 75km/hora, perante aquelas condições atmosféricas e com o piso molhado (sem atender sequer ao insinuado súbito aparecimento de “piso ruinoso”) é manifesto que essa velocidade, naquele concreto contexto espácio-temporal, não era adequada, por excessiva. E uma mera solução de descontinuidade transversal decorrente da repavimentação do pavimento, situada em plena recta, caso o arguido seguisse a velocidade moderada pelo facto do piso estar molhado e adequada à não carga do semi-reboque, certamente que não determinaria que o veículo entrasse em despiste, mas apenas que seguisse, em frente, a trajectória que vinha tendo.

E pelo que acabamos de dizer, para além daquele artigo 27º do Código da Estrada (que estabelece os limites gerais de velocidade instantânea), importa ter sempre presente o que já à data dos factos estabeleciam em quer o artigo 24º (respeitante aos “princípios gerais” da velocidade) quer o artigo 25º, ambos do Código da Estrada (exigências essas que entretanto ainda mais se acentuaram e diversificaram, por força das alterações entretanto introduzidas a tais normativos por via do artigo artigo 2º da Lei nº 73/2013, de 3 de Setembro).

Com efeito, à data dos factos, e sob a epigrafe “Princípios gerais”, já estabelecia o nº 1 do artigo 24º do Código da Estrada que:

1 - O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.

E o artigo 25º do mesmo Código da Estrada, sob a epígrafe “Velocidade moderada”, à data dos factos estabelecia:

1 - Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade:

(…)

h) Nos troços de via em mau estado de conservação, molhados, enlameados ou que ofereçam precárias condições de aderência;”

Ou seja, para além do facto daquela velocidade que atingiu os 90km/hora ser infractora da norma respeitante aos limites máximos da velocidade para aquele tipo de veículo naquele local (proibição de exceder os 80Km/hora – cfr. artigo 27º nº 1 do Código da Estrada), mesmo que considerássemos apenas a também registada velocidade de 75km/hora, perante as condições atmosféricas que se faziam sentir, o piso molhado, o próprio estado do piso, e bem assim a ausência de carga no reboque (que como referimos implica uma menor aderência dos pneumáticos ao pavimento, senão mesmo também uma menor estabilidade do respectivo semi-reboque), esta mesma velocidade, por excessiva, não seria adequada para o local sendo, por isso mesmo, infractora do estabelecido nos já referidos arts 24º nº 1 e 25º nº 1 alínea h) – hoje alínea j) – do Código da Estrada vigente à data dos factos.

Com efeito, importa ter presente que a velocidade máxima permitida para aquele veículo (até 80 Km/hora, de acordo com o artigo 27º nº 1 do Código da Estrada) tem como pressuposto básico que estejam reunidas as condições ideais para a condução. Quando essas condições ideais não existam (mormente derivadas por factores relacionadas com o concreto local e respectivo contexto onde está a ser realizada a condução, com as características da via e do veículo, da carga (não) transportada, com as condições do tempo e ambientais, etc.) o condutor deve moderar e regular a velocidade por forma a que, em condições de segurança, possa executar manobras necessárias e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço que tem livre e visível à sua frente.

E da forma como se indicia a ocorrência do embate, ao local onde este ocorre, ao facto do veículo da vítima ter sido arrastado (em sentido contrário ao que seguia e no sentido de marcha do veículo do arguido), arrastamento esse ao longo de vários metros e com destruição quase total desse mesmo veículo (a título de exemplo vejam-se as fotografias de fls. 106, 109 e 110), tudo isso faz, sobejamente, indiciar, que o arguido imprimia uma velocidade excessiva ao veículo que conduzia, por demais contributiva para a ocorrência do referido embate, de consequência nefastas para a malograda vítima.

Na decorrência “fáctica” do que vimos analisando, poder-se-á afirmar que existem indícios de que morte de B... foram causadas (e/ou também causadas) por negligência do arguido aquando do exercício daquela condução?

Em termos de indícios, consideramos que sim.

Dispõe o Artº 15° CP que:

"Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou

b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto".

Distinguem-se, assim, na alínea a) a negligência consciente e na alínea b) a inconsciente.

Quanto à primeira, a qual está próxima do dolo eventual - o agente, admite, prevê como possível a realização do resultado típico, mas confia, podendo e devendo não confiar, em que o mesmo se não realiza. Não se conforma porém com a realização desse resultado, pois, se se conformasse haveria dolo eventual.

Por outro lado haverá negligência inconsciente sempre que o agente não previa, como podia e devia ter previsto, a realização do facto.

Maia Gonçalves escreve a propósito desta última modalidade de negligência (Código Penal Português Anotado, 13ª ed., pág. 115) "A negligência inconsciente é aquela que suscita maiores dificuldades. Nos casos subsumíveis a esta modalidade de imputação subjectiva, a lei, para evitar a realização dos resultados típicos antijurídicos, proíbe a prática das condutas idóneas para os produzirem, querendo que eles sejam representados pelo agente, ou permite tais condutas, mas rodeadas dos necessários cuidados, para que os resultados se não produzam. Esta permissão de condutas potencialmente perigosas é geralmente devida a imperativos de desenvolvimento científico, técnico ou económico. É o caso dos meios de transporte, das armas, da electricidade, da radioactividade, etc., meios em si perigosos, mas cujo uso é permitido mediante cuidados adequados a evitar desastres pessoais e danos. Quando estes cuidados são acatados, o risco esbate-se; na omissão dos mesmos cuidados se radica o fundamento principal da punição da negligência inconsciente".

Do exposto resulta que em qualquer uma das modalidades em que a negligência se pode apresentar, exige-se a capacidade do agente para proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz.

Assim o dever cuja violação a negligência supõe, consiste em o agente não ter usado aquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento. Dever esse decorrente quer de normas legais, quer do uso e experiência comum.

Porém, fundamental é que a produção desse resultado seja previsível e que só o facto de se ter omitido aquele dever tenha impedido a sua previsão ou a sua justa previsão. Contudo, como refere Eduardo Correia (Direito Criminal, I, Vol., pág. 426) "A previsibilidade e o dever de prever que assim objectivamente limitam a negligência não são todavia uma previsibilidade absoluta -mas uma previsibilidade determinada de acordo com as regras da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homem.

Mas, sendo assim, parece que deve haver um dever de prever, e, portanto, a objectiva possibilidade de negligência, sempre que uma conduta em si, sem as necessárias cautelas e cuidados, seja adequada a produzir um evento. Quer dizer, é um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objectivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar lugar à negligência, ou seja, que vem dizer quando se deve prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo."

Ora, do que acabamos de expor conclui-se que para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica, sendo necessário que possa imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente.

E neste particular, importa ter em conta que nas declarações que prestou aquando do seu interrogatório o próprio arguido reconheceu que “poderia ter acelerado menos na subida pelo facto do carro vir vazio e o piso estar molhado.

No caso dos autos, como acabámos de analisar, existem fortes indícios que a velocidade que o arguido imprimia ao veículo que conduzia, em infracção aos arts 24º nº 1, 25º nº 1 e 27º nº 1 do Código da Estrada, foi determinante para o despiste do veículo, com invasão da faixa contrária (onde provinha a vítima), embate no veículo conduzido por esta, na sequencia do qual resultou a morte.

Existem, pois, indícios suficientes da verificação de um nexo de causalidade entre a, sim, indiciada conduta do arguido e o resultado que vem a ocorrer (morte).

Por outro lado, pela análise do documentos de fls. 1 e 2 do Apenso 1, também se indicia que naquele dia (10.01.2011) e até ao momento do acidente o arguido já tinha atingido 10 horas e 19 minutos de condução, tendo assim excedido em 19 minutos o tempo diário máximo de condução fixado no artigo 6º nº 1 do Regulamento (CE) n.º 561/2006, de 15 de Março, normativo este que preceitua ”O tempo diário de condução não deve exceder 9 horas. No entanto, não mais de duas vezes por semana, o tempo diário de condução pode ser alargado até um máximo de 10 horas.”

Ora, é por demais consabido segundo as regras da experiência comum que, para além de ir contra as estabelecidas regras de duração máxima da condução, uma condução diária que abranja tão largo período de tempo para além de causar um natural estado de fadiga para o respectivo condutor, também é potenciadora de um menor grau de atenção e destreza na condução (nomeadamente na perspectiva de uma condução defensiva) e de uma diminuição dos reflexos necessários à realização de manobras mais reactivas/repentinas.

Por isso, também por aqui de alguma forma é possível a, mencionada na acusação, ocorrência da imputada falta de atenção por parte do arguido ao concreto contexto espacial em que efectuava aquela condução.
Em suma, a análise dos meios de prova considerados e dos demais recolhidos em sede de inquérito é fortemente persuasiva da prática, pelo arguido, do crime de homicídio por negligência tal como descrito na acusação pública, se bem que com o enquadramento jurídico atinente apenas à previsão e punição do artigo 137º nº 1 do Código Penal [ mas não do nº 2 do artigo 137º - repare-se que do libelo acusatório não eram alegados factos susceptíveis de configurar a negligência como “grosseira”, a que acresce que até tinha sido mencionada alínea b) do artigo 15º na qualificação jurídica nele constante – nem do artigo 69º nº 1 a) do Código Penal, na redacção vigente à data dos factos (10.01.2011), sendo que um eventual atendimento (na perspectiva de uma eventual condenação do arguido por aquele crime de homicídio por negligência) à redacção que neste último normativo veio entretanto a ser introduzida pela Lei nº 19/2013, de 21 de Fevereiro seria violador do princípio da não retroactividade das leis penais, que é também corolário do princípio da legalidade  plasmado nos artigos 2º nº 1 do Código Penal e 29º nº 1 da Constituição da República Portuguesa].
A manterem-se os elementos probatórios que haviam sido recolhidos em inquérito, será grande o grau de probabilidade de condenação do arguido por tal crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137º nº 1 do Código Penal.
Deverá, pois, o recurso proceder.
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A título de parênteses importa ainda referir o seguinte: pese embora o facto de jamais se poder discutir a já afastada, pelo Mmo Juiz a quo, incriminação da restante conduta do arguido pelo crime de falsificação técnica p. e p. pelo artigo 258º nº 1 al. c) do Código Penal (repare-se que quanto a tal parte decisória, nem daquela referente à também determinada extracção de certidões para procedimento contra-ordenacional, não foi interposto recurso pelo Ministério Público nem o assistente a suscitou no recurso que interpôs - motivo pelo qual não seria legalmente possível agora determinar a pronúncia por aquele crime) mesmo assim, por uma questão de contextualização da também imputada falta de atenção na condução e motivos que podem ter sido determinantes dessa mesma falta de atenção, consideramos que a demais factualidade que constava da acusação deve ser mantida na pronúncia do arguido que por este aresto se determinará.
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III. DISPOSITIVO:

Nos termos e fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação de Coimbra em, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que, pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, pronuncie o arguido A... pela autoria de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º nº 1 do Código Penal.
Sem tributação (artigo 513.º, n.º 1, do CPP).

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(Elaborado em computador e revisto pelo relator, 1º signatário - art. 94º nº 2 do Código de Processo Penal)

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Coimbra, 16 de junho de 2015



(Luís Coimbra)


(Alcina da Costa Ribeiro)