Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
42/10.8GALSA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
FALTA DE CUMPRIMENTO DAS CONDIÇÕES DE SUSPENSÃO OMISSÃO DE NOTIFICAÇÃO DA PROMOÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO AO CONDENADO
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 09/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – J4)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 56.º DO CP; ARTS. 119.º, AL. C), E 495.º, N.º 2, DO CPP
Sumário: A omissão de notificação da promoção do Ministério Público ao condenado, no sentido da revogação da pena de prisão imposta, e bem assim dos meios de prova enunciados naquela proposta, constitui a nulidade prevista na alínea c) do artigo 119.º do CPP.
Decisão Texto Integral:










Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

1. Por acórdão cumulatório proferido nestes autos e transitado em julgado, em 4 de Julho de 2014, foi, o arguido A. condenado na pena única de cinco (5) anos suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova assente num plano individual de readaptação social, com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, tendo como finalidade a sua inserção social bem como a continuação de frequência do programa de recuperação de toxicodependentes e a obrigação de reparação dos prejuízos causados ao ofendido, tendo de depositar todos os meses, à ordem do processo, € 200,00, até perfazer o total de € 3500,00.

2. Por despacho proferido em 22 de fevereiro de 2020, foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão e determinado o seu cumprimento pelo arguido.

3. Inconformada tal despacho, recorre o condenado, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

A. O recorrente foi presencialmente ouvido no circunstancialismo referido (06 de Fevereiro de 2020), não se tendo furtado à notificação processual, e tal qual consta da respectiva acta, o Ministério Público não alegou e solicitou prazo para o fazer por escrito, o que mereceu concordância do Tribunal e foi deferido, conforme despacho supra transcrito, julgando-se que  todo e qualquer cidadão médio colocado perante tal situação ganharia a expectativa de que viria a ser notificado de tal douta promoção para efeitos de exercício de contraditório, o que a defesa fez mas em vão, pois tal douta promoção nunca foi notificada à defesa para efeitos de contraditório, não tendo tido o signatário oportunidade de alegar oralmente aquando do auto de audição do arguido e nunca foi notificado para o fazer por escrito;

B. A fazer fé na consulta via CITIUS ora levada a cabo, tal douta promoção do Ministério Público é datada de 18 de Fevereiro de 2020 e a douta decisão recorrida foi proferida escassos quatro dias depois, não deixando de ser tida por decisão-surpresa, com preclusão dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, da transparência decisória, da boa-fé e do contraditório bem como violadas as mais elementares garantias de defesa do arguido, invocando-se a nulidade de tal douta decisão em razão de tal vício processual pois a prévia notificação para comparência aludia unicamente a “proceder à sua audição por incumprimento dos deveres, regras de conduta ou obrigações, que lhe foram impostas na sentença/acórdão que decretou a suspensão da execução da pena - art.º 495º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Penal.”, pelo que em rigor e em concreto nunca o arguido foi notificado para exercer contraditório face à promoção do Ministério Público para revogação da suspensão da pena de prisão, tendo-se deixado alguma jurisprudência colhida sobre a questão e que na óptica do recorrente abonam a sua posição no sentido da nulidade insanável levada a cabo;

C. O princípio da boa-fé remete a Administração Pública para um padrão ético de comportamento na sua relação com os cidadãos, agindo de forma correcta, leal e sem reservas, o que se mostra extensível à administração da justiça, tratando-se de de um princípio programático de comportamento que se materializa através da observância de três outros princípios: I) da protecção da confiança, a remeter para a tutela da estabilidade dos actos da Justiça, como condição indispensável à segurança dos cidadãos e à permanência e estabilidade da ordem jurídica, e II) da transparência decisória, convocando o direito e o dever de informação, de fundamentação e de participação dos cidadãos, maxime, dos arguidos;

D. Tem-se por notório, o que se alega nos termos e para efeitos do art. 412º do Código de Processo Civil, que é quase intuitiva a ideia de que qualquer sujeito cria expectativas e orienta as suas opções de vida de acordo com decisões ou notificações judiciais, antecipando riscos baseados em tais situações que prevê (e ganhando acréscimo de confiança na sua materialização escrita, como sucedeu com a acta em causa a conceder vista ao Ministério Público para posterior promoção, confiando-se no exercício futuro de contraditório face à mesma!) manterem-se, e planificando a vivência com base em tais factos, dúvidas inexistindo que tal preterição da segurança jurídica e protecção da confiança terá como consequência mais gravosa a desintegração do interesse público, que não poderá nunca significar o resultado da soma algébrica de todos os interesses individuais mas deverá consistir um plus em relação a este resultado;

E. Tais princípios, uma vez cristalizados na Constituição da República Portuguesa (ou seja, dotados de assento constitucional!) constituirão trave mestra de todo o sistema normativo e judicial e ser-lhe-ão tão essenciais quanto o próprio oxigénio para a humanidade, mostrando-se in casu verificada a existência de uma situação justificada de confiança a ser protegida, não deixando qualquer cidadão médio colocado no lugar do arguido e seu defensor de criar a expectativa pelos mesmos gerada: notificação posterior da douta promoção superveniente do Ministério Público e possibilidade de exercício de contraditório, existindo verdadeiramente um benefício prático e efectivo para o arguido, reclamante da proteção da confiança, uma vez que com o recurso apresentado se visa obstar um prejuízo sério, decorrente da imediata execução de pena de prisão em estabelecimento prisional;

F. Não poderá assim a confiança depositada pelo arguido, assente na segurança jurídica, deixar de merecer tutela jurídica, não podendo o Direito globalmente considerado ficar absolutamente indiferente à eventual frustração dessa confiança, devendo serem tidos em consideração e douta análise a efectivar por V/ Exas. os princípios da boa-fé, da segurança jurídica e da proteção da confiança dado que sob pena de preterição da noção de Estado de Direito ter-se-á de admitir que se vive sob a legitimação do princípio da confiança, exigindo-se do poder público a boa-fé nas relações com os particulares e o respeito pela confiança que os indivíduos depositam na estabilidade e continuidade do ordenamento jurídico e bem andará o Tribunal quando tutele tal expectativa já criada e adequada ponderação das diversidades da situação, sem conversão dos critérios de justiça substantiva em instrumentos de plasticidade jurídica inadequados ao caso concreto;

G. Mostra-se inconstitucional, por violação dos princípios do contraditório, da boa-fé, da transparência decisória, da protecção da confiança e da segurança jurídicas, a interpretação e dimensão normativa do art. 495º n.º 2 CPP segundo a qual “Para efeitos de revogação de suspensão da pena de prisão em que se mostra condenado o arguido basta a realização de auto de audição presencial do arguido, na presença do técnico da DGRSP, para efeitos de incumprimento dos deveres, regras de conduta ou obrigações, que lhe foram impostas na sentença/acórdão que decretou a suspensão da execução da pena sem necessidade de notificação para efeitos de concessão de contraditório face a douta e superveniente (após vista para pronúncia!) promoção do Ministério Público, no sentido da revogação”;

H. Atento o teor da douta decisão recorrida julga-se que o fundamento para a revogação assentará na alínea a) do art. 56º n.º 1 CP, por ser a única alínea que o Tribunal a quo faz expressa alusão (curiosamente a douta promoção do Ministério Público, que se mostra enxertada no teor decisório, apontava unicamente para alínea b) do n.º 1 do art. 56º CP e art. 495º n.º 3 CPP), ou seja, incumprimento grosseiro de deveres, invocando-se que se o arguido tem culpas no cartório por força das condenações sofridas (ainda que com as ressalvas por ele explicitadas face a uma das condenações!), já no tocante ao não pagamento integral da indemnização assim não será pois face a tal incumprimento a acaba por ser mais vítima que culpado(e tem-se dificuldade em percepcionar que um Tribunal, órgão de soberania nos termos da lei fundamental, use como argumento para a improcedência da alegação de ausência de culpa, a justificação de “estado de alma, sem respaldo fáctico”!);

I. Deverão ser valorados os teores dos relatórios elaborados pela DGRSP e juntos aos autos, com os teores que se deixaram transcritos face ao intercalar de 05 de Dezembro de 2018 e o final, sendo que os relatórios anteriores acabam por relatar aquilo que depois acaba consagrado no relatório final, que se traduziu numa avaliação positiva do arguido e acompanhamento levado a cabo pela DGRSP, tendo-se o arguido esforçado no sentido do cumprimento das medidas e injunções determinadas, não tendo faltado a qualquer das convocatórias do Tribunal, seja em 2016 ou a que teve lugar este ano;

J. Do teor das suas declarações, presencialmente prestadas e conforme gravação efectuada com início às 14:15:40 h e termo às 14:27:15 h, podemos extrair o seguinte: I) tem estado a desempenhar actividade laboral na limpeza debaixo das linhas de alta tensão; II) está a tomar o substituto de heroína; III) tem penhora das Finanças e cada vez que comprava um carro a penhora caía e ficava sem carro; IV) tinha de pagar o sustento ao pai, contribuindo para as despesas da casa; e V) tem três filhos;

K. Teve lugar igualmente a audição da Ex.ma Sra. Técnica, C., conforme gravação efectuada com início às 14:27:51 e termo às 14:36:15, sendo possível percepcionar I) dificuldade na estabilidade profissional e dificuldades económicas do arguido; II) percepção em como havia procura activa de trabalho, sujeitando-se a ocupações menos rentáveis face à sua formação de soldador, com biscates como madeireiro, apanha de pinha, limpeza de matas; III) o arguido tem filhos, que vivem com a mãe; IV) a gestão do dinheiro é pessoal, reconhecendo que ele não tinha muito dinheiro e auxiliava o pai; V) na Holanda tinha de pagar outras despesas; VI) falecimento da mãe do arguido; e VII) necessidade de auxílio económico por parte do pai durante o desemprego;

L. Temos assim que nem só o arguido não desenvolveu sempre actividade laboral contínua (todavia, estando longe de ser mandrião), vendo-se em momentos de desemprego, como sempre teve dificuldades económicas, não havendo desafogo pois se manteve ocupação laboral entre 2014 a 2019, conforme ressalta do ponto 4, não foi a mesma contínua e dotada de estabilidade, tendo exigido emigração e despesas majoradas, não se podendo também olvidar que o incumprimento não é total pois que pagou € 520,00 e que arguido tem três filhos e responsabilidades parentais para com os mesmos, não sendo tal incumprimento de pagamento integral da quantia censurável nem podendo ser qualificado como culposo ou grosseiro, na esteira da jurisprudência supra convocada e que se julga abonar a posição do arguido e apontar para a nulidade decisória por omissão de pronúncia/demissão ajuizativa face aos concretos proveitos económicos e rendimentos do arguido;

M. Salvo o devido respeito a visão global dos factos está mais próximo do incumprimento necessário do que do incumprimento culposo e grosseiro, devendo ser revogada a douta decisão de revogação da suspensão da pena de prisão, seja para reenvio para realização dos actos de averiguação em falta (nomeadamente rendimentos obtidos elo arguido ao longo dos últimos cinco anos!) ou então extinção da pena;

N. No tocante ao cometimento de ilícitos posteriores, em qualquer um dos casos o juízo de prognose favorável sempre esteve subjacente pois nunca o arguido foi condenado em pena de prisão efectiva a cumprir em sede de estabelecimento prisional, denotando-se uma duplicação na douta decisão recorrida pois a condenação relativa aos autos de processo 2/18.0GALSA aparece duplicada, sendo possível verificar uma diminuição da carga ilícita pois se atentarmos ao que estava em causa nas penas que vieram a ser cumuladas com a dos presentes autos, então ter-se-á uma panorâmica de manifesta progressiva adequação comportamental, sendo que os problemas do arguido radicam nas recaídas na dependência e consumo de estupefacientes, ocorrendo os crimes em razão as dificuldades económicas, não se vislumbrando que a reclusão em estabelecimento prisional permita a correcção;

O. A perigosidade do arguido mostra-se devidamente minorada atento o tratamento a que o mesmo, voluntariamente se submeteu após a prática dos últimos factos ilícitos (veja-se o teor do relatório de 05 de Dezembro de 2018!), tendo tal submissão e evolução positiva de ser devida e cabalmente apreendida pelo Tribunal, sendo que desde Agosto de 2018 que lhe não conhecidas novas práticas ilícitas, tendo 37 anos e três filhos, com os quais mantém as relações possíveis (que não as que desejaria porque não tem condições para isso), atento o facto de estarem com as mães pelo que uma condenação em pena de prisão efectiva, seria um rude golpe e constituiria uma machadada no processo de recuperação que o mesmo pretende continuar a levar a cabo, o qual se mostra reiniciado, no âmbito do presente processo, atravessando o recorrente uma fase vital na projecção da sua vida futura, pois, ou agarra de uma vez a oportunidade ou corre o risco da mesma se perder para sempre, uma vez que se mostra na fase definitiva de assunção de responsabilidades;

P. Tem dado mostras, mais recentemente, de inequivocamente pretender agarrar tal oportunidade, solicitando a V/ Exas. a concessão da derradeira oportunidade de reabilitação, tendo consciência que o seu registo criminal constitui igualmente um óbice à revogação da revogação da suspensão, mas o mesmo é igualmente motivo de vergonha para si pois a dependência de estupefacientes lançou o arguido ao “inferno”, procurando o mesmo reerguer-se, estando a actividade delituosa umbilicalmente correlacionada com tais consumos, sendo a sua causa única, sendo que é também por pretender colocar um ponto final na delinquência,

que ora, humildemente, peticiona a especial atenção de V/ Exas. para a sua situação, certo de que não desiludirá a confiança depositada;

Q. A ver-se o arguido na imposição de ter de cumprir pena de prisão efectiva, deixará de contar com o apoio dos técnicos do combate à desintoxicação, pois o processo de recuperação mostrar-se-á mais dificultado em sede de cultura prisional, solicitando-se que saibam V/ Exas. educar o recorrente, por forma a que todos nós, enquanto sociedade, o possamos salvar e recuperar para a vivência em comunidade, em observância dos valores justos e transporte para o mundo do qual nunca devia ter descarrilado, sendo que a suspensão da execução, não tendo sido 100% positiva, acabou por ser uma medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico pois a liberdade não fará o arguido necessariamente feliz, mas fá-lo-á ser humano!

R. Mostra-se inconstitucional a interpretação e dimensão e normativa do art. 56º n.º 1 a) CP segundo a qual “Para efeitos de revogação de suspensão da pena de prisão em que se mostra condenado o arguido, em razão do incumprimento grosseiro do dever de pagamento de indemnização não tem o Tribunal de procurar averiguar com rigor os rendimentos auferidos pelo arguido durante o tempo de suspensão para efeitos de juízo de capacidade de liquidação da mesma, podendo ordenar a revogação da suspensão ao arrepio do relatório final da DGRSP que deu parecer positivo ao acompanhamento e relatou dificuldades económicas como justificação para tal incumprimento da injunção de cariz pecuniário”;

S. Mostra-se inconstitucional a interpretação e dimensão e normativa do art. 56º n.º 1 a) [e a simile da alínea b)] CP segundo a qual “Para efeitos de revogação de suspensão da pena de prisão em que se mostra condenado o arguido, em razão do incumprimento grosseiro de deveres, ainda que resultando em novas e supervenientes condenações judiciais, não importa atentar no juízo de prognose favorável vertida em todas e cada uma de tais decisões judiciais, nomeadamente no facto de nenhuma delas co-envolver a condenação em penas de prisão efectiva a cumprir em estabelecimento prisional”;

T. Normas jurídicas violadas: maxime arts. 56º n.º 1 a) CP; arts. 119º c), 379º n.º 1 c) e 495º n.º 2 CPP; arts. 13º n.º 1, 18º n.os 1 e 2, 27º n.os 1 e 4, 32º n.os 1, 2 e 5, 110º n.º 1, 202º n.os 1, 2 e 3, 204º e 205º CRP; art. 412º n.º 1 CPC; Princípios violados e erroneamente aplicados: maxime da segurança jurídica, da protecção da confiança, da transparência decisória, da imparcialidade, da boa-fé, do inquisitório, do contraditório, da culpa, da legalidade, da tipicidade, da igualdade, da proporcionalidade e da proibição do excesso.

Sic, contando sempre com o mui douto suprimento de V/ Exas., atento o supra exposto, entende o recorrente que em obediência aos mais elementares princípios constitucionais e comandos interpretativos que presidem a um Direito penal que se queira materialmente justo e processualmente conforme, não poderá deixar de ser dado provimento ao presente recurso, maxime em razão dos vícios de que padece a douta decisão recorrida e dos quais deverá ser expurgado: I) vício de nulidade, por preterição de contraditório; II) demissão ajuizativa/preterição de inquisitório, face aos concretos rendimentos do arguido e erro na subsunção jurídica (ausência de dolo ou culpa grave no incumprimento que não poderá ser tipificado como grosseiro, com a consequente ausência de preenchimento integral da previsão normativa subjacente à revogação da suspensão);

V/ Exas., seres humanos sábios, pensarão e decidirão necessariamente de forma justa, alcançando a costumada e almejada Justiça, catalogada por François René Chateubriand como o pão da nação, a qual dele sempre se encontra esfomeada, bem como, nas doutas palavras de António Cánovas del Castillo, se afigura a alma do juiz e, citando Marco Túlio Cícero, invencível quando bem dita… Todavia, nunca esquecendo que, citando Piero Calamandrei, O Juiz é o Direito tornado homem…

4. Cumprido o artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais nada obsta ao conhecimento de mérito do Recurso.

II. O DESPACHO RECORRIDO

Em causa está o despacho com o seguinte teor:

Incidente de apreciação do incumprimento, por parte do condenado A. de condições determinativas da suspensão da execução de pena de prisão, em este foi condenado.

Vistos os autos deles há a reter o seguinte:

Sob a douta promoção ref.ª 82030648, após a tomada de declarações ao condenado, veio o Digno MP promover seja declarada a revogação da suspensão da pena de prisão em que foi condenado A..

Estriba a posição assumida, em síntese, no seguinte e citamos [ transcrevemos ]:

“Por acórdão cumulatório proferido nestes autos e transitado em julgado, em 4 de Julho de 2014, foi, o arguido, A., condenado na pena única de cinco (5) anos suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova assente num plano individual de readaptação social, com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, tendo como finalidade a sua inserção social bem como a continuação de frequência do programa de recuperação de toxicodependentes e a obrigação de reparação dos prejuízos causados ao ofendido, tendo de depositar todos os meses, à ordem do processo, € 200,00, até perfazer o total de € 3500,00.

O PRS foi homologado e, numa primeira fase, o arguido foi cumprindo com as determinações da D.G.R.S.P., no entanto, nos últimos meses do ano de 2015, começou a faltar às entrevistas do CRI e a eximir-se ao contacto com a técnica da DGRSP (cfr. fls. 853 a 856.

O arguido foi ouvido, neste Tribunal, em 25 de Fevereiro de 2016, e advertido das consequências do incumprimento das acções a desenvolver constantes do plano homologado retomou os contactos com a DGRSP, embora, com alguns incidentes, conforme descrito nos relatórios de fls. 882 a 883 e 896 a 897.

No que respeita à obrigação de reparação dos prejuízos ao ofendido e à daí decorrente obrigatoriedade de depósito mensal, nos autos, do quantitativo de € 100,00, o arguido apenas procedeu ao cumprimento parcial dessa obrigação (depositando um total de € 520,00), cessando os depósitos a partir de 18 de Dezembro de 2014, apesar de, no decurso dos anos de 2015 a 2019, ter mantido ocupação laboral (conforme declarou à Técnica de Reinserção Social e consta dos diversos relatórios de execução cfr. fls. 854/856, 873 a 876, 882 a 884, , 891, 904 a 905) que lhe permitiria ir cumprindo, ainda que faseadamente, essa obrigação.

Junto aos autos o C.R.C. do arguido verificou-se que o mesmo praticou:

- em 2 e 23 de Fevereiro de 2015 (cfr. fls. 820 a 824), no processo n.º 148/15.7PBVIS, do Juízo Local Criminal de Viseu, J.2, dois crimes de furto simples, tendo sido condenado, em cúmulo jurídico na pena única de seis (6) meses e quinze (15) dias de prisão, suspensa na sua execução por um ano (boletim de fls.970);

- em 10 de Agosto de 2018, dois crimes de furto qualificado, no processo n.º92/18.6GATBU, do Juízo de Competência Genérica de Tábua (certidão de fls. 945 a 954 e boletim de fls. 977, verso), tendo sido condenado na pena única de um (1) ano e seis (6) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação, com V.E.;

- em 22 de Fevereiro de 2018, no processo n.º 2/18.0GALSA do Juízo de Competência Genérica de Tábua (certidão de fls. 958 a 963 e boletim de fls. 978) um crime de consumo de estupefacientes, tendo sido condenado na pena de quatro (4) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, com regime de prova.

Foi designada, de novo, data para audição do arguido, bem como da Exma. TRS – cfr. fls. 976.

O arguido declarou, em síntese, que foi condenado injustamente no processo n.º 92/18.GATBU, negando ter sido o autor dos factos e afirmando que não cumpriu a obrigação de pagamento estipulada por não possuir as necessárias condições económicas para o efeito.


*

A suspensão da execução da pena decidida nestes autos, foi condicionada ao cumprimento de deveres específicos que não foram satisfeitos na íntegra, conforme antes referenciado, para além de que o arguido violou o dever geral de não praticar factos ilícitos típicos.

O arguido suportou, no decurso do período de suspensão da execução da pena imposta nestes autos três condenações, todas elas em pena principal de prisão, embora duas delas suspensas na sua execução, todas pelo mesmo crime (de furto) ou conexionado com o anterior (caso do consumo de estupefacientes) que determinaram as anteriores condenações. A prática destes crimes na sequência dos quais lhe foram concedidas várias oportunidades para adequar o seu comportamento ao dever ser jurídico-penal, é bem demonstrativo de que o arguido não apenas desprezou essas oportunidades, como cavou ainda mais o fosso que lhe competia transpor para se reinserir socialmente, revelando uma personalidade com alguma apetência para a prática de crimes contra o património, bem como de crimes de perigo abstracto, como o são os crimes de tráfico e de e de consumo de estupefacientes, atento o alarme social que geram, e a sua dificuldade em adequar-se aos padrões e normalidades sociais.

Note-se que o arguido não só ignorou a advertência implícita na condenação em pena de prisão suspensa imposta nestes autos, assim evidenciando incapacidade de sentir essa ameaça, como nem sequer a primeira condenação, no decurso do período dessa suspensão, em pena de prisão, de novo suspensa na sua execução, exerceu sobre si qualquer efeito contentor, pois que, logo de seguida, voltou a delinquir. Revela, assim, sérias dificuldades em conduzir a sua vida de acordo com os valores do Direito, mostrando-se incapaz de interiorizar a censurabilidade do seu comportamento e demonstrando insensibilidade às penas que o tribunal lhe cominou.

O arguido não podia deixar de perceber que, aquando da suspensão da execução da pena de prisão, ditada nestes autos, se encontrava na antecâmara da prisão e que a oportunidade que, ainda dessa vez lhe foi assegurada, não foi uma manifestação de permissão na impunidade, mas um sério e último aviso, que aquele não quis ou não foi capaz de observar.

A estas razões que tornam intensas as exigências de prevenção especial, acrescem fortes necessidades cautelares de prevenção geral. A manutenção da suspensão da execução da pena, no caso, colocaria em crise as expectativas comunitárias na validade das normas jurídicas violadas.”

Assim estribando a sua posição entende, [e voltamos a citar] ”… estarem reunidos os requisitos cumulativos determinantes da revogação da suspensão da execução da pena, nos termos do estabelecido no artigo 56º e seu n.º 1, alínea b), do Código Penal, pelo que promove-se que de harmonia com o disposto conjugadamente nesse normativo e no n.º 3, do artigo 495º, do C.P.P., se declare revogada a suspensão da pena imposta ao arguido. “.

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

Releva para a apreciação do incidente processual suscitado nos autos a seguinte factualidade:

1. Por acórdão cumulatório proferido nestes autos e transitado em julgado, em 4 de Julho de 2014, foi, o arguido, A., condenado na pena única de cinco [ 5 ] anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova assente num plano individual de readaptação social, com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, tendo como finalidade a sua inserção social bem como a continuação de frequência do programa de recuperação de toxicodependentes e a obrigação de reparação dos prejuízos causados ao  ofendido, tendo de depositar todos os meses, à ordem do processo, € 200,00, até perfazer o total de € 3500,00.

2. O PRS foi homologado e, numa primeira fase, o arguido foi cumprindo com as determinações da D.G.R.S.P., no entanto, nos últimos meses do ano de 2015, começou a faltar às entrevistas do CRI e a eximir-se ao contacto com a técnica da DGRSP.

3. O arguido foi ouvido, neste Tribunal, em 25 de fevereiro de 2016, e advertido das consequências do incumprimento das acções a desenvolver constantes do plano homologado retomou os contactos com a DGRSP, embora, com alguns incidentes.

4. No que respeita à obrigação de reparação dos prejuízos ao ofendido e à daí decorrente obrigatoriedade de depósito mensal, nos autos, do quantitativo de € 100,00, o arguido apenas procedeu ao cumprimento parcial dessa obrigação (depositando um total de € 520,00), cessando os depósitos a partir de 18 de dezembro de 2014, apesar de, no decurso dos anos de 2015 a 2019, ter mantido ocupação laboral

5. Junto aos autos o C.R.C. do arguido, do mesmo deflui que:

i) em 2 e 23 de fevereiro de 20155 no processo n.º 148/15.7PBVIS, do Juízo Local Criminal de Viseu, J.2, dois crimes de furto simples, tendo sido condenado, em cúmulo jurídico na pena única de seis (6) meses e quinze (15) dias de prisão, suspensa na sua execução por um ano;

ii) em 10 de agosto de 2018, dois crimes de furto qualificado, no processo n.º 92/18.6GATBU, do Juízo de Competência Genérica de Tábua, tendo sido condenado na pena única de um (1) ano e 6) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação, com V.E.;

iii) em 22 de fevereiro de 2018, no processo n.º 2/18.0GALSA do Juízo de Competência Genérica de Tábua, um crime de consumo de estupefacientes, tendo sido condenado na pena de quatro (4) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, com regime de prova;

i) em 22 de fevereiro de 2018, no processo n.º 2/18.0GALSA do Juízo de Competência Genérica de Tábua, um crime de consumo de estupefacientes, tendo sido condenado na pena de quatro (4) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, com regime de prova.

Apreciando e decidindo:

Da conjugação dos artigos 50.º, nºs. 1 e 2 e 55.º, nº 1 e 2, ambos do Código Penal, resulta que a suspensão será sempre revogada se, durante o respectivo período de suspensão, o condenado infringir grosseira e repetidamente os deveres e regras de conduta impostos e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

Nos termos do referido artigo 50.º, nºs.1 e 2, do Código Penal, é pressuposto material da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão um prognóstico favorável pelo Tribunal, relativamente ao comportamento do condenado, tendo em atenção a sua personalidade e as circunstâncias do facto, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para o afastar da criminalidade, satisfazendo, simultaneamente, as exigências de prevenção geral, ínsitas na finalidade da punição.

Dispõe artigo 56º, nº 1, al. a), do Código Penal que “a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social.”

Tudo reside, então em saber o que significa “incumprimento grosseiro”. “O incumprimento consiste na omissão da satisfação de deveres e das regras de conduta com natureza de facere ou na violação de regras de conduta com natureza de non facere. Em ambos os casos, a conduta do condenado deve ser voluntária, “culposa”, admitindo-se o incumprimento doloso ou negligente.

Note-se incumprimento doloso ou gravemente culposo

Da factualidade assente por provada não existem, em primeiro lugar, dúvidas de que o arguido não cumpriu nenhuma das condições de que dependia a suspensão da execução da execução da pena de prisão em que foi condenado, e isto na dupla vertente de, por um lado, não ter efectuado o pagamento das quantias a que estava obrigado e determinativas da suspensão da execução da pena; doutra banda, cometeu vários novos ilícitos pelos quais veio a ser novamente condenado.

Ora, a lei não define o que deve entender-se por incumprimento culposo, ou mesmo por incumprimento “doloso ou gravemente culposo”.

Impõe, pois, a hermenêutica jurídica que façamos uso do conceito de negligência, correspondendo este à figura da culpa e /ou esquecimento de deveres.

Assim, ao lado do elemento objectivo da violação do dever, a lei penal torna dependente a concorrência de um elemento subjectivo, traduzido na culpa, enquanto infracção dos deveres impostos na decisão condenatória.

Para que estejamos perante um facto negligente, Nélson Hungria, refere que “o limite inferior, o mínimo necessário é, pois, a previsibilidade do resultado. Esta é a linha de fronteira, além da qual começa o império do caso fortuito e “nullum crimen est in casu.”

Segundo Eduardo Correia, “para que haja negligência não basta, todavia, que tenha tido lugar uma actividade que viola estes usos ou costumes da experiência. É necessário que a produção do evento seja previsível, e só a omissão desse dever impeça a sua previsão ou a sua justa previsão.”.

“A previsibilidade, e o dever de prever, que assim limitam a negligência não são todavia uma previsibilidade absoluta, mas uma previsibilidade determinada de acordo com as regras gerais da experiência dos homens ou de certo tipo profissional de homem.”

Para Figueiredo Dias, “existe previsibilidade quando o agente, nas circunstâncias em que se encontra, podia, segundo a experiência geral, ter representado, como possíveis, as consequências do seu acto. É previsível o acto cuja possível ocorrência não escapa à perspicácia comum, quando a sua previsão podia ser exigida ao homem comum, ao homem médio. Mas não é lícito ficar-se por uma resposta meramente objectiva, que vá buscar para padrão a capacidade normal ou do homem médio. Está aqui verdadeiramente em causa um critério subjectivo e concreto ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido -- mas só nessas condições -- é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo de culpa próprio da negligência e de fundamentar, assim, a respectiva punição.”

Para que um comportamento seja ainda negligente [actuação que não observa o cuidado objectivamente requerido] em sede do tipo de culpa, dir-se-á que o cumprimento de um dever objectivo de cuidado é um elemento essencial da censurabilidade.

Conforme refere Eduardo Correia, “o dever, cuja violação a negligência pressupõe, consiste, antes de tudo, em não se ter usado aquela negligência exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento.”.

Ou segundo o mencionado no Ac. da R.G. de 4/05/2009: “A violação grosseira é aquela em que o condenado se demite dos mais elementares cuidados no cumprimento do que lhe foi determinado, tendo uma actuação em que o comum dos cidadãos não incorre, não merecendo ser tolerada.” Estes deveres podem estar particularmente ligados pelo uso e pelas normas jurídicas ao exercício de um certo ofício, profissão ou actividade. Podem, assim, ter uma origem legal autónoma (quando derivam de certas normas ou regulamentos que visam prevenir perigos) ou derivar dos usos e da experiência comum.”

Ora o que resulta de todo o exposto, em termos legais e doutrinários, com respaldo jurisprudencial resulta que o arguido/condenado não só não cumpriu a condição revertível ao montante a entregar, procedendo apenas à entrega da quantia de €520,00, sendo certo que durante o hiato temporal em que manteve ocupação laboral nada entregou, como, e decisivamente, no decurso do período da suspensão veio a cometer novos ilícitos pelos quais veio a ser efectivamente condenado.

As razões aduzidas pelo arguido, verbalizadas em torno da injusta condenação que imposta lhe foi no âmbito dos autos n.º 92/18.GATBU, negando ter sido o autor dos factos e afirmando que não cumpriu a obrigação de pagamento estipulada por não possuir as necessárias condições económicas para o efeito, são para o Tribunal revertíveis a líquidos estados de alma, sem respaldo fáctico.

O arguido sabia e ademais não o poderia ignorar que sobre ele, qual espada de Dâmocles, pairava a condenação em pena de prisão suspensa na sua execução.

Como com acerto o salienta o Digno MP, não poderia o arguido ignorar, como não ignorava, que se encontrava na antecâmara do cumprimento de pena de prisão.

A justeza das decisões judiciais, por definição e conceito, devem assentar na força da razão e não na razão da força. E neste conspecto, perante a factualidade supra elencada, não pode o Tribunal deixar de concordar com a posição assumida pelo Digno MP, determinando-se a revogação da suspensão da execução da pena de 5 [cinco] anos de prisão em que o arguido A., foi condenado nos presentes autos determinando-se por conseguinte o cumprimento da pena em que neles foi condenado, o que se decide.

Notifique e deposite.

Transitado se mostre o antecedente despacho, proceda-se à emissão de mandados de detenção e condução do arguido ao EP, a fim de cumprimento da pena em que nestes autos foi condenado».

III. APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Violação do principio do contraditório

O tribunal recorrido procedeu à audição presencial do recorrente, confrontando-o com a condenação por crime perpetrado no decurso na suspensão da execução da prisão e com o incumprimento da obrigação de pagar ao lesado, o valor total da indemnização de 3 500,00€ (apenas pagou quantia de 520€), condição fixada no Acórdão cumulatório que suspendeu a pena de 5 anos de prisão, por igual período.

Posteriormente, o Ministério Público, requereu a revogação da suspensão da pena de prisão,

Diante desta omissão, o Recorrente coloca em discussão a questão de saber se o tribunal recorrido preteriu o principio do contraditório e as suas garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, da Constituição da República, cometendo a nulidade insanável prevista pelo artigo 119º, alínea c) do Código de Processo Penal.

Vejamos se, assim, é:

O artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, sob a epigrafe “garantias do processo criminal” dispõe:

1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

(…)

5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.

(…)

De todas as garantias de defesa do arguido, o principio do contraditório reflectido no nº 5 do preceito citado, assenta na ideia de que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem em nenhuma decisão (ainda que intercalar) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada uma ampla oportunidade ao arguido de se pronunciar, como melhor se aprouver, assegurando um efectivo direito de ser ouvido.

Como corolário deste principio, o artigo 61º, do Código de Processo Penal, estabelece, nos direitos especiais do arguido, no nº1, os seguintes:

a) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito;

b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte;

c) Ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade;

d) Não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar;

e) Constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor;

f) Ser assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar e, quando detido, comunicar, mesmo em privado, com ele;

g) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias;

h) Ser informado, pela autoridade judiciária ou pelo órgão de polícia criminal perante os quais seja obrigado a comparecer, dos direitos que lhe assistem;

(…)

j) Recorrer, nos termos da lei, das decisões que lhe forem desfavoráveis.

No que respeita à decisão sobre aos procedimentos reguladores da execução da suspensão da pena de prisão, estabelece, no que ao caso interessa, o artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal:

O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente.

Da conjugação destes preceitos, aceita-se que o despacho de revogação da suspensão da pena de prisão exige a prévia audição do condenado, só, assim, se garantindo o efectivo exercício do direito ao contraditório.

Igualmente se aceita, na esteira do que vem sendo defendido pela jurisprudência, que a falta de audição prévia do arguido sobre os pressupostos de facto e de direito que determinam a revogação da suspensão da prisão integra a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal.

Fulcral é saber se a revogação da suspensão da execução da pena violou o direito do Recorrente a ser ouvido sobre os factos e os meios de prova subjacentes à decisão recorrida, por omissão da notificação da promoção do Ministério Público.

Salvo o devido respeito pela opinião contrária, entendemos que sim.

Com efeito,

Documentam os autos:

- Em 6 de setembro de 2019, sob promoção do Ministério Público, iniciaram-se as diligências com vista a averiguar: a) os motivos que obstaram ao cumprimento da condição de pagar a quantia de 200,00€ mensais ao ofendido, até perfazer os 1 500,00€ e b) se se mostra definitivamente infirmado o juízo de prognose que esteve na base da suspensão da pena (fls. 919);

- Foram juntos aos autos:

a) o despacho de arquivamento e acusação proferida em 24 de abril de 2019, no âmbito do processo nº 92/18.6GATBU (fls. 923 a 925);

b) informação da Segurança Social sobre a situação laboral do arguido, desde 2014 a 2018 (fls. 926 a 928);

c) lista dos processos pendentes na Comarca de Viseu (fls. 929 a 931);

d) certidão da sentença proferida no processo comum singular nº 92/18.6GATB, da data de trânsito em julgado da mesma e liquidação da pena (fls. 932 a 939 e 945 a 954);

e) pedido da Autoridade Tributária solicitando cópia do despacho de derrogação do sigilo fiscal (fls. 942);

f) certidão da sentença proferida no processo comum singular nº 2/18.0GATSA, da data de trânsito em julgado da mesma e liquidação da pena (fls. 958 a 963);

g) certificado do registo criminal do arguido (fls. 964 a 971);

h) promoção de designação de data para audição do arguido, nos termos do artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal e da audição da Sra. Técnica da DGRS (fls. 972);

i) designação de data para audição do arguido, nos termos do artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal (fls. 973);

j) audição presencial do recorrente, acompanhado de defensor, tendo sido confrontado com as condenações registadas no certificado do registo criminal e com o incumprimento da condição de pagamento estipulada no Acórdão condenatório, após o que se ordenou que os autos fossem com vista ao Ministério Público para se pronunciar (fls. 976);

l) promoção do Ministério Público da revogação da suspensão da execução da prisão, com fundamento, entre outros, nos relatórios sociais de fls. 854 a 856, 833 a 856, 882 a 884, 873 a 876 e 891a 895 e na sentença proferida em 2 e 3 de fevereiro de 2015, no processo nº 148/15.7PBVIS.

m) despacho recorrido, revogando a suspensão da execução da prisão, com fundamento na promoção do Ministério Público.

Ou seja, o arguido não foi notificado da promoção do Ministério Público nem do teor dos documentos nela indicados, muito embora, tenha sido ouvido presencialmente e confrontado com as condenações pela prática dos crimes praticados, em 2018 (enquanto ainda vigorava a suspensão da execução da pena), susceptíveis de constituírem causa de revogação da suspensão da prisão.

Não se trata, pois, de falta de audição prévia do arguido sobre a revogação da suspensão da prisão (esta foi, como já se disse, escrupulosamente cumprida) mas de preterição do direito do Recorrente a pronunciar-se sobre a subsequente promoção do Ministério do Público e dos meios de prova subjacentes ao pedido de revogação da suspensão da pena de prisão

A promoção do Ministério Público da revogação da suspensão da execução da prisão com base nos meios de prova indicados, nos fundamentos de facto e de direito, foi acolhida na integra pelo julgador a quo na decisão de revogação da execução da pena de prisão.

Pelo que;

Não se trata de uma simples opinião sobre as consequências que devem ser retiradas da conduta assumida pelo arguido no período da suspensão da execução da pena, mas de um efectivo impulso do Ministério Público para a revogação da mencionada suspensão da execução da prisão.

Ora, como já se aflorou, ressalta da literalidade do artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal, que, antes de decidir a revogação da suspensão da pena e, depois de colhidos os meios probatórios, o tribunal recorrido deveria, em primeiro lugar, obter o parecer do Ministério Público e depois ouvir o arguido, o que no caso, não foi observado.

Invertendo a ordem da audição dos sujeitos processuais (audição do arguido seguida da promoção do Ministério Público e respectivos documentos) não observou o tribunal recorrido a tramitação prevista no artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal acima transcrito, cometendo uma nulidade processual (e não da própria decisão).

Verificado o vicio, há que caracterizá-lo e definir os seus efeitos, de acordo com o regime das nulidades.

O Recorrente qualifica-o como nulidade insanável, por equiparação da omissão da notificação da promoção do Ministério Público à alínea c), do nº 1 do artigo 119º, do Código de Processo Penal, enquanto o Ministério Público integra-o no regime das irregularidades (artigos 118º, nº 2, e 123º, do Código de Processo Penal).

Que decidir?

É, por demais, sabido que o legislador consagrou um sistema de nulidades que varia de acordo com a importância do vicio, graduado em função da tutela dos interesses subjacentes protegidos pela norma violada, sancionando as mais graves, como nulidades insanáveis, de conhecimento oficioso, em qualquer estado do processo, as medianas, como nulidades sanáveis e as mais leves, como irregularidades.

Neste particular, dispõe o artigo 118º do Código Processo Penal:

«1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.

2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.

3 - As disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova».

Vigora, assim, o princípio da legalidade, do qual resulta que o elenco legal das nulidades, sejam estas sanáveis ou insanáveis, é taxativo, assumindo a natureza de normas com carácter excepcional, não admitindo interpretação analógica.

Nos termos do artigo 119º, do Código de Processo Penal, «constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:

a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição;

b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência;

c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;

d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;

e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º;

f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.

Por seu turno, o artigo 120º, do Código de Processo Penal, estatui:

«1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.

2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:

a) O emprego de uma forma de processo quando a lei determinar a utilização de outra, sem prejuízo do disposto na alínea f) do artigo anterior;

b) A ausência, por falta de notificação, do assistente e das partes civis, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;

c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória;

d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.

3. (…).

Já o artigo 123º, do Código de Processo Penal determina:

«1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.

2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado».

As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar, devendo a declaração de nulidade determinar quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordenar, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade, devendo o juiz aproveitar todos os actos que puderem ser salvos do efeito daquela (cf. artigo 122º, nº 2 e 3, do Código de Processo Penal).

As nulidades e irregularidades não abrangidas pelo artigo 119º, do Código de Processo Penal, só têm como efeito a invalidade do acto e dos subsequentes, se forem arguidas tempestivamente pelos interessados e por estes não forem sanadas, por uma das formas previstas pelo artigo 121º, do Código de Processo Penal.

A questão está, assim, em saber se o vicio processual cometido pela primeira instância traduz a nulidade insanável prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 119º, do Código do Processo Penal, equivalendo a omissão de notificação ao arguido da promoção do Ministério Público e respectivos documentos à ausência do arguido e defensor, na medida em que nunca foi ouvido sobre os todos os meios probatórios, nem sobre o requerimento do Ministério Público.

Salvo o devido respeito pela opinião contrária, respondemos a esta questão afirmativamente.

Com efeito, na previsão do artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal, acautelam-se os direitos de defesa do arguido, ouvindo-o sobre os fundamentos da suspensão da revogação da pena impulsionada pelo Ministério Público, o que, no caso aconteceu.

O artigo 495º, nº2, em análise, impõe o exercício do contraditório, protegido constitucionalmente no artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa, sendo tal contraditório exercido na oportunidade conferida ao arguido, através do defensor, em momento prévio ao despacho de revogação, se pronunciar quanto à promoção do Ministério Público.

Como decidiu o Acórdão da Relação de Évora (de 19 de novembro de 2019, em www.dgsi.pt) as considerações expandidas no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 6/2010 emanado do Supremo Tribunal de Justiça sobre a notificação da decisão de revogação -  o despacho de revogação da suspensão da execução da pena é complementar da sentença, tendo como efeito directo a privação da liberdade do condenado, com consequências similares às da sentença condenatória em pena de prisão -   se transmutam para o caso  subjudice, tratando-se sempre e só de uma decisão que pode decretar a privação da liberdade, o cumprimento da prisão.

Assim decorre do artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal que o juiz não deve mexer na pena proferida na sentença sem antes, para tanto, ouvir o arguido, o no caso foi feito.

Contudo, “o contraditório” não é o cumprimento de uma mera formalidade para acautelar a regularidade processual; é a garantia de que a todo o sujeito afectado por uma decisão é dada de ser previamente ouvido e de, assim, trazer ao processo os elementos necessários a essa decisão, contribuindo activamente para que o tribunal possa decidir bem. Assim, para além da sua audição presencial, deve o arguido tomar também conhecimento da posição do Ministério Público expressa no processo, no sentido de que a suspensão seja revogada, antes que o tribunal decida por essa revogação.

Está latente a alteração/revogação da pena de substituição, com a probabilidade de ser ordenado o cumprimento da prisão.

Há, pois que assegurar o principio do contraditório com a dimensão exigida para julgamento.

No caso em apreço, a omissão da notificação da promoção do Ministério Público e dos meios de prova nela enunciados, impediu o arguido de conhecer cabalmente os fundamentos (que vieram a ser acolhidos na decisão de revogação da suspensão da execução da pena), não lhe sendo dada a oportunidade de se pronunciar sobre os mesmos ou de requerer a produção dos meios de prova suplementares, consubstanciando, assim, violação do principio do contraditório e de defesa do Recorrente, acolhidos constitucionalmente, nos termos do artigo  32º, da Lei Fundamental acima transcrito (neste sentido, cf., ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10 de Outubro de 2016, in www.dgsi.pt).

Donde, assiste razão ao Recorrente, procedendo, nesta parte o Recurso.

2. Esta decisão prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas pelo Recorrente.

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar procedente o recurso, anulando a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que ordene a notificação do Recorrente, do teor da promoção do Ministério Público e dos documentos nela referidos, proferindo-se, depois, novo despacho sobre a revogação da suspensão da execução da pena.

Sem tributação

Coimbra, 30 de Setembro de 2020

Alcina da Costa Ribeiro – Relatora

Ana Carolina Cardoso - Adjunta