Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
30/08.4GAOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
REENVIO DE PROCESSO
NOVO JULGAMENTO
Data do Acordão: 02/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 374º,Nº2 ,379º, 410º,Nº2, AL.B), 426º, TODOS DO CPP.
Sumário: 1.A sentença é nula por não fundamentar a conclusão da não substituição da pena de prisão aplicada em cúmulo por uma pena de substituição não privativa da liberdade – imposta, por princípio, constituindo, como tal um poder/dever vinculado do tribunal.
2 Existe para além da aplicação de uma pena superior ao limite máximo abstracto admissível, uma contradição insanável entre a fundamentação – ao referir por um lado o limite legal máximo de um ano e, por outro, ao escolher (e depois aplicar) uma pena superior ao limite máximo previamente enunciado. Resultando assim dos dois segmentos da fundamentação referidos, duas proposições opostas e incompatíveis entre si.
3.Questão que, tendo por referência o texto da própria decisão configura o vício de contradição insanável da fundamentação, um dos vícios do art. 410º, nº2, al.b) do CPP
4.Verificado-se vício de contradição insanável, o mesmo afecta não só a sentença – fica-se sem perceber verdadeiro sentido da decisão recorrida, não podendo por isso sindicar-se, não podendo por isso ser corrigido pelo tribunal de recurso – tal obriga ao reenvio do processo para novo julgamento restrito ao suprimento do vício e actos subsequentes por ele afectados - cfr. art. 426º do CPP.
5.O vício, acima referido, prejudica a decisão quanto à pena concreta do crime de condução sem habilitação e, consequentemente, quanto à pena a aplicar em cúmulo jurídico.
Decisão Texto Integral: I.
Nos presentes autos, depois de realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença na qual o tribunal recorrido decidiu condenar o arguido, JZ melhor identificado nos autos:
- como autor de um crime de condução em estado de embriaguês p e p pelo art. 292º, n.º1 do C. Penal, na pena parcelar de 9 (nove) meses de prisão; e
- como autor de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p e p pelo art. 3º, n.ºs 1 e 2 do DL n.º 2/98 de 03.01, na pena parcelar de 16 (dezasseis) meses de prisão;
- efectuando o cúmulo jurídico das duas referidas penas parcelares, condenar o arguido na pena unitária de 1 (um) ano de prisão.
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Recorre da referida sentença o digno magistrado do MºPº.
Na respectiva motivação, formula as seguintes CONCLUSÕES:
1. O arguido JZ foi acusado pela prática, em concurso real, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nos 1 e 2, do Decreto Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, com referência ao artigo 121º do Código da Estrada;
2. Contudo, veio a ser condenado pela prática, como autor material e em concurso real, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, na pena parcelar de 9 meses de prisão, e de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2 do Decreto Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena parcelar de 16 meses de prisão e, em cúmulo jurídico destas duas penas, na pena única de 1 ano de prisão;
3. No que concerne à questão da aplicação da pena acessória de proibição de conduzir, requerida na acusação deduzida pelo Ministério Público, o Tribunal não se pronunciou;
4. Assim, afigura-se-nos que tal omissão de pronúncia acerca da referida questão (de aplicação ou não, ao arguido, da pena acessória de proibição de conduzir, sobre a qual, a nosso ver, o Tribunal estava obrigado a apreciar e a pronunciar-se, pois foi invocada na acusação, constitui nulidade da sentença, nos termos do preceituado no artigo 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal;
5. Requer-se, em consequência, que a sentença seja declarada nula e substituída por outra que conheça a questão omitida;
6. Caso se entenda que a sentença recorrida não é nula, ainda assim se nos afigura que a mesma deve ser alterada de forma a ser aplicada ao arguido a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor;
7. Com efeito, entende-se que a não aplicação da pena acessória de proibição de conduzir ao arguido constituiria um privilégio injustificado para quem assumiu um comportamento globalmente mais grave do que a simples condução de veículo em estado de embriaguez, apenas porque não é titular de carta de condução;
8. A pena acessória tem por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e a personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável;
9. Por outro lado, a lei admite a possibilidade de aplicação da medida a quem não esteja habilitado ao impedir, nos termos do disposto no artigo 126º, n.º 1, alínea d), do Código da Estrada (Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro), a obtenção de tal título a quem esteja a cumprir inibição de conduzir;
10. Ora, a manutenção de um tal requisito para a obtenção da carta de condução pressupõe que a proibição de conduzir possa (e deva) ser aplicada a quem dela não for titular;
11. O conteúdo material desta pena acessória é o da imposição de uma proibição de conduzir e não o da previsão de uma suspensão dos direitos conferidos pela titularidade da carta de condução;
12. Com isto está relacionado e a tudo isto acresce o facto de o artigo 353º do Código Penal criminalizar a violação de proibições impostas por sentença criminal a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa de liberdade. Da violação dessa proibição, não sendo o condenado titular de carta de condução, pode derivar a prática, em concurso efectivo, de um crime p. e p. pelo artigo 3º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e de um crime p. e p. pelo referido artigo 353º do Código Penal, uma vez que esta última incriminação visa a tutela da autoridade pública e não a da segurança das vias de comunicação;
13. Não se pode, portanto, a nosso ver, defender que a pena acessória não está prevista na lei com uma extensão que permita a sua aplicação a quem não for titular de carta de condução ou que falte um pressuposto lógico para essa punição;
14. No sentido de que a pena acessória de proibição de conduzir deve ser aplicada mesmo a quem não seja titular de carta de condução, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/09/2007, da Relação do Porto de 09/07/2008 e da Relação de Coimbra de 10/12/2008, consultáveis in www.dgsi.pt.
15. Entende-se, pois, que o Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal.
16. Daí que, pelas razões apontadas, entendemos que a decisão recorrida, quanto a este ponto particular, deve, caso não seja declarada nula, ser revogada e alterada de forma a ser aplicada ao arguido a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor;
17. Nessa sequência, e tendo em conta que milita em desfavor do arguido a ilicitude do facto, que é elevada, pois que o crime de condução em estado de embriaguez põe em perigo uma multiplicidade de bens jurídicos. Esta ilicitude do facto é, por outro lado, especialmente agravada pela quantidade de álcool que o arguido apresentava (uma TAS de 1,86 g/l), à forma dolosa com que actuou - a culpa do arguido é elevada.
Mais, a conduta do arguido, de conduzir um veiculo automóvel, na via pública, sem ser titular de carta de condução e em estado de embriaguez, atentou contra um bem que, em face dos elevados índices de sinistralidade que marcam as nossas estradas, se revela cada vez mais importante do ponto de vista social (segurança rodoviária) o que eleva a medida de pena imposta pelas exigências de prevenção geral, ditadas pela necessidade de “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida.” Por outro lado, a desfavor do arguido está ainda a falta de preparação para manter uma conduta lícita, pois que já foi condenado, entre outros crimes, sete vezes pela prática do crime de condução sem habilitação legal e duas vezes pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
Ora, atendendo ao supra exposto, e perante uma moldura penal abstracta que situa o limite mínimo da pena acessória a aplicar em três meses e o limite máximo em três anos, afigura-se-nos adequado que o arguido deva ser condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de pelo menos 18 meses, proibição essa que produzirá efeitos a partir do trânsito em julgado da decisão.
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Respondeu o arguido sustentando a manutenção da decisão recorrida, alegando, além do mais, que não sendo titular de carta de condução não faz sentido inibi-lo de conduzir.
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No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido de que o recurso deve proceder, anulando-se a sentença a fm de que o tribunal recorrido conheça da aplicação, no caso, da pena acessória prevista no art. 69º do CP e proceda ao cúmulo jurídico nos termos alegados na motivação, sendo a sentença ainda nula a sentença por omissão de pronúncia por não se pronunciar sobre a questão da possibilidade, ou não, da substituição da pena de prisão aplicada em cúmulo, por pena de substituição não privativa da liberdade.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos e realizado o julgamento, em conferência, mantendo-se a validade e regularidade afirmadas no processo, cumpre decidir.
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II.

1. Omissão de pronúncia
Compulsando os autos verifica-se que, no que toca ao crime de condução em estado de embriaguês, a acusação (cfr. fls. 100) refere-se, de forma expressa, à respectiva punição “pelos artigos 292º n.º1 e 69º, n.º1, alínea a) do C. Penal.
Sendo certo que esta última disposição invocada como aplicável ao crime (art. 69º, n.º1, alínea a) do C. Penal) prevê a aplicação ao crime em questão de pena acessória de proibição de condução de veículos com motos de 3 meses a 3 anos.
Por outro lado a sentença nada refere (nem na motivação, nem na decisão propriamente dita) acerca da aplicação – ou não – do dispositivo legal referido no qual a acusação enquadra os factos.
Alega o arguido na sua resposta que não sendo titular de carta de condução não faz sentido inibi-lo de conduzir.
No entanto o tribunal recorrido, caso fosse esse o seu entendimento admitindo que a questão não seja líquida, face, designadamente aos arestos dos tribunais superiores citados nos autos) deveria dizê-lo, tomando posição sobre a aplicação da pena acessória suscitada na acusação.
Sendo, pois, omissa em relação a tal questão definida na acusação, que lhe competia apreciar,
É pois nula, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379º, n.º1, al. c) do CPP.

2. No douto parecer é apontada ainda à sentença recorrida a omissão de pronúncia quanto à eventual substituição da pena de prisão aplicada em cúmulo por pena de substituição não privativa da liberdade, imposta como regra.
Compulsando a decisão verifica-se que no último parágrafo da fundamentação refere textualmente: “Não se procede à substituição da pena de prisão nem à suspensão por se entender que a sua execução é necessária para assegurar as finalidades da punição, nomeadamente para prevenir o cometimento de futuros crimes (art.os 43º, n.º1 e 50º, n,º1, ambos do C. Penal)”.
Verifica-se, pois, que a decisão se pronuncia sobre a questão, ainda que fazendo-o de forma tabelar. Reproduzindo, ipsis verbis, o jargão legal sem curar de substanciar, minimamente, em termos de matéria de facto provada (que por sua vez remete também genericamente para o certificado do RC do arguido sem identificar condenações concretas que justifiquem a opção) os fundamentos materiais dessa opção.
Não esclarece, pois, ainda que sumariamente, em termos fácticos, as razões materiais concretas, relativas à personalidade do agente, pelas quais entende que execução da prisão é necessária para assegurar as finalidades da punição.
Sendo assim também nula por não fundamentar a conclusão da não substituição da pena de prisão aplicada em cúmulo por uma pena de substituição não privativa da liberdade – imposta, por princípio, cosntituindo, como tal um poder-dever vinculado do tribunal.
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3. Vem ainda apontado à decisão recorrida um outro erro de direito: - a aplicação em cúmulo de pena inferior ao limite mínimo legalmente aplicável.
Ora, como resulta do enunciado supra, a sentença recorrida aplicou em concreto, pelo crime de condução sem habilitação legal, a pena de 16 (dezasseis) meses de prisão. Pena essa que foi previamente definida na parte da motivação da sentença relativa à determinação da pena concreta a aplicar no caso.
No entanto a referida pena concreta é superior ao limite máximo da pena abstracta aplicável - prisão até um ano (12 meses) ou multa até 120 dias.
Sendo certo, outrossim, que a pena abstracta aplicável ao crime é identificada na motivação da própria decisão – prisão até um ano ou multa até 120 dias (cfr. fls. 171, 2º parágrafo do título “enquadramento jurídico”).
Verifica-se, pois, que foi aplicada uma pena concreta superior ao limite legal aplicável em abstracto, definido no tipo de crime e identificado na própria sentença.
Daí que - talvez por ter incorrido em erro na definição da pena parcelar, superior ao limite legal – a sentença tenha, depois, no cúmulo, corrigido implicitamente o erro ao aplicar uma pena inferior aquela pena parcelar. Sendo certo que a pena aplicada em cúmulo, por inferior à pena parcelar mais elevada, é contra legem, violando o disposto no art.77º, n.º2 do CP, in fine, que define o limite mínimo da pena aplicada em cúmulo pela pena concreta mais elevada daquelas que entram no cúmulo.
Não se trata de um lapso susceptível de correcção nos termos do art. 380º do CPP não só porque, como se viu, a decisão está em conformidade com a motivação jurídica em que se fundamenta mas ainda porque em contradição a parte da motivação onde identifica o limita máximo da pena. Por ultimo, ainda porque envolve uma alteração essencial da decisão – alteração da pena parcelar e do consequente cúmulo jurídico.
Existe, pois, para além da aplicação de uma pena superior ao limite máximo abstracto admissível, uma contradição insanável entre a fundamentação – ao referir por um lado o limite legal máximo de um ano e, por outro, ao escolher (e depois aplicar) uma pena superior ao limite máximo previamente enunciado. Resultando dos dois segmentos da fundamentação referidos, duas proposições opostas e incompatíveis entre si.
Questão que, tendo por referência o texto da própria decisão configura o vício de contradição insanável da fundamentação, um dos vícios do art. 410º, nº2 do CPP
Constituem vícios relativos à estrutura interna da sentença, emergindo do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Repercutindo-se todavia os seus efeitos ao nível da decisão de mérito, uma vez que a sua consequência típica é o reenvio para novo julgamento - cfr. art. 426º do CPP.
Verificando-se quando “resultem do texto da própria decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum” – cfr. SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 68 e jurisprudência ali citada.
Trata-se de “vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confecção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão” – cfr. Ac. STJ de 07.12.2005, CJ-STJ, tomo III/2005, p. 224.
Daí que sejam de conhecimento oficioso – cfr. Acórdão do STJ para Fixação de Jurisprudência de 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.
Verificado o referido vício de contradição insanável, o memo afecta não só a sentença – fica-se sem perceber verdadeiro sentido da decisão recorrida, não podendo por isso sindicar-se, não podendo por isso ser corrigido pelo tribunal de recurso – tal obriga ao reenvio do processo para novo julgamento restrito ao suprimento do vício e actos subsequentes por ele afectados - cfr. art. 426º do CPP.
O vício prejudica a decisão quanto à pena concreta do crime de condução sem habilitação e, consequentemente, quanto à pena a aplicar em cúmulo jurídico.
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III. Decisão:
Nos termos e com os fundamentos expostos decide-se o reenvio parcial do processo, para novo julgamento restrito à matéria relativa ao crime de condução sem habilitação e subsequente realização do cúmulo jurídico, devendo ainda o tribunal, na nova sentença a proferir, pronunciar-se sobre a aplicação, in casu, da pena acessória cominada no art. 69º do CP bem como, caso aplique, em cúmulo, a pena de prisão, fundamentar em concretas razões fácticas a opção pela não substituição por pena não privativa da liberdade. ----
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