Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
176/12.4TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: USUCAPIÃO
DOAÇÃO
PRÉDIO
AUTORIZAÇÃO
CONSTRUÇÃO DE OBRAS
MORADIA
Data do Acordão: 02/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1252º, Nº 2 DO C. CIVIL.
Sumário: I – A ideia de doar um prédio – de transmitir a alguém a propriedade desse prédio – não se manifesta, para além da questão da inobservância da forma legal exigida para a doação, através da emissão de uma declaração escrita a “autorizar” o destinatário desta declaração a “construir uma moradia” num terreno aí reafirmado como “pertença do declarante”.

II – Vale a este respeito a asserção de que o acto de doar tem de assentar numa expressividade inequívoca quanto ao efeito de extinguir o direito de propriedade próprio, atribuindo-o à pessoa a quem se doa, sem margem para confusão com a concessão de autorização de uso.

III – A autorização de pai a filho quanto à construção por este de uma moradia num terreno daquele, não exterioriza – manifestando-se ela, tão-somente, pela autorização para construir – um intuito de transferência da propriedade do terreno no qual se constrói para o filho.

IV – Assim, não funda esta autorização uma posse apta a gerar a aquisição por usucapião do terreno no qual se autorizou a construção, decorrido que esteja o prazo prescricional aquisitivo aplicável ao caso, não induzindo tal situação a presunção decorrente do artigo 1252º, nº 2 do CC.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

            1. Em 24 de Janeiro de 2012[1] V… (A. e aqui Apelado) demandou A… e mulher, M…, respectivamente filho e nora do A. (1ºs RR. e aqui Apelantes), J…, S… e L… (2º, 3º e 4º RR. e aqui também Apelantes), impugnando o A. a escritura de justificação notarial na qual os 1ºs RR., através do testemunho dos 2º, 3º e 4º RR., se declararam donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, há mais de vinte anos, de um prédio rústico sito …, composto de terra de semeadura com a área de quinhentos e oitenta e quatro metros quadrados, com determinadas confrontações, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça, inscrito na matriz sob o artigo …, sendo que este prédio – e continuamos a parafrasear o declarado na escritura pretendida impugnar – veio à posse dos 1ºs RR. por doação verbal do A. e da sua falecida mulher (mãe e sogra deles) em 1986.

Ora, considerando o A. esta declaração inverídica – logo, sem qualquer suporte a declarada aquisição pelos 1ºs RR desse prédio por usucapião – formulou os seguintes pedidos:
“[…]
a) Deve ser declarada a ineficácia da escritura de justificação notarial lavrada no Cartório Notarial de …, declarando-se, assim, a não produção de efeitos porquanto outorgada com base em declarações falsas, não tendo os 1ºs RR. adquirido por usucapião o prédio rústico descrito no artigo primeiro desta petição inicial.
b) Serem cancelados os registos eventualmente feitos ou a fazer com base na supra referida escritura.
[…]”.

            1.1. Contestaram os RR., conjuntamente, afirmando a realidade do declarado na escritura, ou seja, que o A. e a sua falecida esposa doaram verbalmente aos 1ºs RR., em 1988, o prédio rústico em causa na escritura de justificação notarial, para construção da sua casa de habitação.

            1.2. A culminar o julgamento, depois de fixados os factos tomando por referência a base instrutória, foi proferida a Sentença de fls. 100/109a decisão aqui recorridajulgando a acção totalmente procedente.

            1.3. Inconformados, apelaram os RR., concluindo o seguinte a rematar o texto da motivação do recurso:
“[…]

II – Fundamentação

            2. Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pelos Apelantes – transcrevemo-las no antecedente item 1.3. – operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC) – ou, se se entendesse aplicável o Novo CPC, nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º deste[2]. Assim, fora das conclusões só valem, em sede de recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo, em qualquer dos casos, o artigo 660º, nº 2 do CPC, ou o artigo 608º, nº 2 do Novo CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

            Delimitando – delimitando através das conclusões – os fundamentos do recurso, observamos, (a) além da imputação de nulidade à Sentença apelada (logo na conclusão I), (b) a impugnação da matéria de facto decorrente das respostas (fundamentalmente negativas) aos quesitos 1º a 4º (conclusões II e III), pretendendo os Apelantes que se considere provada a existência da doação verbal em 1988. (c) Independentemente desta almejada recomposição fáctica, entendem os Apelantes (e valem a este respeito as conclusões IV e V) que a actuação da presunção prevista no nº 2 do artigo 1252º do Código Civil (CC) conduziria à afirmação da prescrição aquisitiva nos termos declarados na escritura.

            2.1. Os factos fixados na primeira instância foram os seguintes:
“[…]

2.2. (a) A imputação de nulidade à Sentença, por suposta contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 668º, nº 1, alínea c) do CPC) – o primeiro fundamento do recurso –, assenta num erro dos Apelantes quanto à caracterização distintiva do que constitui uma nulidade do pronunciamento, e funda a arguição de nulidade decisória do suporte desse pronunciamento, e do que se traduz na crítica ao sentido do julgamento quanto à questão de facto e à questão de direito nele envolvidas. A este respeito, importa ter presente que o artigo 668º (ou outra nulidade de rito decisório adequado) se refere aos desvalores da própria sentença ou decisão, enquanto actos processuais documentalmente expressos, cujo conteúdo é vinculado a determinados pressupostos e cujos parâmetros são definidos (valem, quanto àquele e a estes, as regras constantes dos artigos 653º e 658º e seguintes do CPC e o artigo 668º fixa a consequência da infracção destas regras quanto à sentença), sendo coisa bem distinta desses desvalores a crítica ao conteúdo da própria decisão, enquanto acto de fixação dos factos e de aplicação (a esses mesmos factos) do direito. Na essência desta diferença se radica a distinção, por referência aos valores negativos da sentença, entre inexistência jurídica e a nulidade desta, por um lado, e, por outro lado, a revogabilidade do respectivo pronunciamento[3]. É, pois, neste último elemento – aqui primordialmente referido ao acto de julgamento da questão de facto –, e não numa suposta nulidade da Sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão[4], que se encontra o espaço de intervenção desta Relação no presente recurso.

Improcede, pois, notoriamente, este primeiro fundamento da apelação.

2.3. (b) No que respeita à fixação dos factos – que corresponde ao segundo fundamento do recurso –, pretendem os Apelantes a formulação por esta instância de respostas distintas (positivas e sem a restrição introduzida na resposta ao quesito 4º) aos quesitos 1º a 4º da base instrutória (fls. 57).

Ora, ouvido o registo áudio da prova testemunhal, compaginando esta – o significado que esta Relação autonomamente lhe atribui – com a escritura de justificação de fls. 10/13 e, principalmente, com o teor do documento de fls. 39, consideramos serem correctas as respostas de “não provado” formuladas aos quesitos 1º a 3º e a resposta especificada de pendor restritivo dada ao quesito 4º, revendo-se este Tribunal, inteiramente, na fundamentação exarada pelo Julgador em primeira instância no despacho de fls. 90/97.

Assim, dos seis depoimentos prestados em julgamento o que se apresentou como mais expressivo foi, seguramente, o prestado pela primeira testemunha, …, irmã do R. A…, e filha do A. Com efeito, transmitiu esta, não obstante assumidamente posicionada ao lado do pai (do A.) no conflito que opõe este ao irmão (e desavinda com este em função dessa situação), com expressividade, rigor e objectividade, o sentido que entende ter sido o atribuído pelo seu pai à autorização (cedência, se preferirmos) dada aos 1ºs RR., através do documento de fls. 39, formalizado em 1990, para edificaram uma casa no terreno dele (dele A.), terreno este sintomaticamente qualificado nessa declaração como sendo (como continuando a ser) do A. – “[…] cujo prédio é pertença do declarante […]”, conforme se escreveu nessa declaração. Tenha-se presente que esta testemunha (a irmã do R. A…) atribuiu a esse documento um sentido – e trata-se do sentido ostensivamente sugerido pelo texto – concordante com a posição do A. expressa nesta acção, qual seja, o de possibilitar formalmente ao R. seu filho e à R. sua nora a edificação de uma casa num terreno cuja propriedade é conservada pelo cedente (o documento terá servido para o processamento camarário da licença de construção da moradia). Trata-se, como veremos adiante no texto deste Acórdão, de um procedimento usual de pais para filhos – possibilitar a um filho a construção da respectiva casa em terreno dos pais – cuja intencionalidade se afigura como excludente da ideia de doação, precisamente por assentar numa opção de base quanto à destinação de um bem diversa da que preside ao acto de doar esse bem pura e simplesmente. Se se quer doar-se doa-se se se quer ceder cede-se, valendo aqui a expressividade intencional do acto de ceder, no confronto com a (outra, distinta) expressividade do acto de doar, no sentido em que empregamos quanto a ele – quanto à demonstração de ter ocorrido uma doação – o aforismo clássico donatio non praesumitur[5]. Com efeito, através da exclusão de que a doação apareça, à partida, como facto desconhecido directamente e só alcançado por presunção (v. o artigo 349º do CC), valorizamos, quanto à doação, uma expressividade inequívoca, incompatível com uma realidade construída por presunção em torno do vocábulo “autorizar”, sendo este – o vocábulo aqui empregue pelo A. – etimologicamente inapropriado para caracterizar o acto de doar, até porque este, juridicamente integrado, implica a transmissão da propriedade de uma coisa (artigo 954º, alínea a) do CC), com a consequente extinção do direito de propriedade próprio, e, em função disso, a cessação da legitimidade para “autorizar” o uso do que se dá.

Aliás, estamos aqui – estão aqui os RR. – a pretender atribuir ao A. um propósito que este à partida negou ter sido o seu, conhecendo este (o A.), como se intui desta acção, o sentido do acto de doar (e os pressupostos formais deste) e existindo, como existe, um suporte documental apontando em sentido distinto do acto de doar. É que, se o A. ou a sua falecida mulher pretendiam doar aos 1ºs RR. o terreno, em vez de tão-somente autorizar a sua utilização para construir uma moradia, não teria sentido que não tivessem feito isso mesmo: doado formalmente o terreno (então, em 1990, ou ao longo de todos estes anos até ao presente).

Ora, é com este sentido que o lúcido depoimento da irmã do A. nos parece claro quanto à fixação lógica do sentido da vontade do A., nos termos em que esta se expressou numa autorização de uso que, por definição intuitiva, se esgotava para o destinatário no acto de usar.

Note-se que esta visão, enquanto elemento de compreensão da realidade mais consistente e compatível com a expressão documental empregue, não foi minimamente desmentida pelo sentido da restante prova testemunhal, designadamente pela testemunha …, que referiu uma conversa da mulher do A., sua cunhada, pouco antes do seu falecimento, no sentido de ter “dado” o terreno ao seu filho Américo “para construir a casa”, em função da ajuda que este teria prestado ao pai, sendo que “dar”, no contexto comunicacional que a testemunha relatou, não é incompatível com ceder para construir[6].

Vale tudo isto, enfim, para sublinhar que a posição dos RR. não adquiriu, no quadro global de toda a prova aqui produzida, um contexto significativo que torne substancialmente mais provável a doação e não a simples cedência para construir, sendo verdade, aliás, o contrário. Significa isto, tendo presente a alocação do ónus da prova neste caso (declaração negativa) aos 1ºs RR. – mesmo colocando o resultado no domínio da incerteza quanto à existência da doação –, que estes (os 1ºs RR.) não lograram demonstrar aquilo que declararam na escritura de justificação aqui impugnada pelo A. E, com efeito, como se observou no Acórdão de 23/04/2002 desta Relação, numa situação idêntica à presente:
“[…]
O que […] se pretende com este modelo de acção é a declaração de que o réu não tem o direito que foi objecto da escritura de justificação notarial. A acção de impugnação de justificação notarial é uma acção de simples apreciação negativa, porque proposta para obtenção da declaração de inexistência dum direito (artigo 4º, nº 2, alínea a) do CPC). O que se pretende é a declaração de que o justificante não é o titular do direito justificado na escritura que vai servir [que aqui serviu] de base ao registo de aquisição, nos termos do artigo 116º do Código do Registo Predial.
[…]”[7]

Sendo que esta natureza – de acção de simples apreciação negativa – convoca, enquanto regra específica de atribuição do ónus da prova, o artigo 343º, nº 1 do Código Civil (CC)[8] e, em função disso, projecta, na incerteza, a regra de decisão inerente ao non liquet probatório decorrente dessa alocação[9].

Em qualquer dos casos – certeza de que não existiu doação (como nos parece ser o caso) ou incerteza quanto a ter existido doação –, não existe aqui espaço algum, decorrente da prova produzida, para alterar a matéria de facto fixada na primeira instância.

Improcede, pois, este fundamento do recurso.

2.4. (c) Subsiste o terceiro fundamento que os Apelantes equacionam, mesmo no pressuposto, aqui verificado, de se manter inalterada a factualidade fixada pelo Tribunal a quo.

Refere-se este elemento do recurso a um alegado descaso, feito pela decisão recorrida, da presunção de animus na posse dos 1ºs RR., conforme previsto no nº 2 do artigo 1252º do CC, sendo que daí resultaria a realidade, decorrido que estaria o prazo prescricional aplicável, da aquisição do terreno pelos RR. por usucapião, ou seja,  através da “[…] constituição, facultada ao possuidor, do direito real correspondente à sua posse, desde que esta, dotada de certas características, se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei”[10].

A argumentação dos Apelantes reconduz-se à alegação de que estas características, traduzidas no clássico somatório do controlo de facto sobre a coisa (corpus) à intenção de ser proprietário dela (animus), se mostrariam integradas, na base da presunção, que eles alicerçam no artigo 1252º, nº 2 do CC, de que aquele “[…] que exerce o poder de facto […]” é o possuidor.

Admitindo que esta disposição manda presumir o animus de quem exerce o poder de facto, e não se limita, na concorrência de titulares da posse, a presumi-la relativamente a quem exerce esse poder de facto, admitindo, dizíamos, a interpretação da norma invocada propugnada pelos Apelantes, sempre importaria que o Tribunal não dispusesse de elementos suficientes para caracterizar devidamente o exercício de tal poder de facto pelos Apelantes como detenção e não como posse. De facto, só nesse caso ocorreria a dúvida e só esta desencadearia a presunção em causa no mencionado nº 2: só o desconhecimento das circunstâncias que conduziram a um determinado exercício do poder de facto levaria, pois é esse o sentido de uma presunção (extrair de factos conhecidos um facto desconhecido, v. o artigo 349º do CC), a ficcionar o seu conhecimento em determinado sentido.

As coisas não são, porém, como os Apelantes as pretendem ver, e não o são mesmo dentro dos pressupostos argumentativos dos quais partem, pressupostos que este Tribunal, todavia, não partilha.

Com efeito, apreciando conjugadamente os elementos que na matéria de facto provada expressam o controlo (o uso) pelos Apelantes do prédio e o exercício continuado desse controlo, mesmo com o alcance amplo decorrente dos pontos 6, 8 e 9 do elenco fáctico, e compaginando essa realidade com a indemonstração de ter o prédio sido “doado verbalmente aos 1ºs RR.” (resposta negativa ao quesito 1º) e, enfim, da referenciação desse uso ao conteúdo do documento de fls. 39 (ponto 7 dos factos), conjugando, como dizíamos, todas estas incidências, teremos de qualificar o controlo do prédio[11] como realidade situada aquém da posse, afastando-se assim a dúvida que desencadearia, nessa visão do artigo 1252º, nº 2 do CC, a presunção de posse, enquanto ficção da existência de animus por banda de quem, exercendo o poder de facto, teria o chamado corpus.

Com efeito, referindo-se o animus a uma determinada atitude psicológica de quem exerce o poder de facto sobre uma coisa na sua relação com ela, seremos sempre levados, na caracterização dessa especial atitude, à posição pouco cómoda de ter de decidir na base de conjecturas sobre estados de espírito[12], mais ainda – pior ainda – quando esses estados de espírito só resultam, como aqui sucede, da afirmação de quem tem interesse pessoal em prevalecer-se dessa afirmação de determinado estado de espírito. Como certeiramente observa António Menezes Cordeiro, “[…] o Direito não tem maneira de conhecer o que se passa no espírito humano, sendo desejável que assim continue: remeter para um «animus» indecifrável é abdicar de dirigir as soluções”[13]. É na superação deste dilema que ganham sentido as chamadas teorias objectivas da posse, ao procurarem, através da compreensão aprofundada da situação geradora desse exercício de um poder de facto sobre a coisa, o elemento fulcral de distinção entre a mera detenção e a posse, reconhecendo que mesmo aquela (a detenção) não deixará, frequentemente, de exprimir um profundo animus de proprietário, sem que por isso o direito as trate – as pretenda tratar e as deva tratar – como situações geradoras de posse, e de posse boa para usucapião. É este, paradigmaticamente, o caso, previsto no artigo 2096, nº 2 do CC, daquele que sonega bens à herança: é sempre havido como mero detentor, e ninguém disputará que ele se pretende proprietário. E é este, também, o caso de quem – e esta é, face aos factos provados, a situação que aqui se configura – aproveita, e aproveita audaciosamente, construindo mesmo uma casa, a tolerância ou mesmo da autorização do titular do direito quanto ao exercício desse poder de facto (artigo 1253º, alínea b) do CC).

Nestas situações – as quais, repetimos, são usuais de pais para filhos –, nas quais um avançar pujante no quadro de uma “detenção por complacência”[14], ou de uma detenção derivada de autorização de construção num terreno pelo seu proprietário, gera situações de detenção muito expressivas, não tem a nossa jurisprudência deixado de recusar a aceitação de que um “facto consumado”, por intenso que se afigure, origine mais do que aquilo que singelamente significou no quadro desse acto gerador: aqui, tão-somente, autorizar um filho a edificar uma moradia em terreno subsistentemente dos pais[15].

Ora, na situação que nos ocupa, estando em causa o terreno no qual foi construída a casa dos 1ºs RR. e não a própria casa – desta tratar-se-á quando for caso disso e se vier a ser caso disso[16] –, e não se tendo demonstrado que o terreno em causa foi doado aos Apelantes, conforme eles afirmaram na escritura, restava ao Tribunal a quo, e foi isso o que este fez, valorar os actos que as respostas positivas ilustravam no quadro de uma situação excludente da aquisição por usucapião.

Improcede também este fundamento, improcedendo, pois, todo o recurso.

2.5. Antes de formular a decisão correspondente a essa improcedência, importa sumariar o presente Acórdão (artigo 713º, nº 7 do CPC) nos termos seguintes:
I – A ideia de doar um prédio – de transmitir a alguém a propriedade desse prédio – não se manifesta, para além da questão da inobservância da forma legal exigida para a doação, através da emissão de uma declaração escrita a “autorizar” o destinatário desta declaração a “construir uma moradia” num terreno aí reafirmado como “pertença do declarante”;
II – Vale a este respeito a asserção de que o acto de doar tem de assentar numa expressividade inequívoca quanto ao efeito de extinguir o direito de propriedade próprio, atribuindo-o à pessoa a quem se doa, sem margem para confusão com a concessão de autorização de uso;
III – A autorização de pai a filho quanto à construção por este de uma moradia num terreno daquele, não exterioriza – manifestando-se ela, tão-somente, pela autorização para construir – um intuito de transferência da propriedade do terreno no qual se constrói para o filho;
IV – Assim, não funda esta autorização uma posse apta a gerar a aquisição por usucapião do terreno no qual se autorizou a construção, decorrido que esteja o prazo prescricional aquisitivo aplicável ao caso, não induzindo tal situação a presunção decorrente do artigo 1252º, nº 2 do CC.

III – Decisão

            3. Pelo exposto, na improcedência do recurso, decide-se confirmar a Sentença apelada.

Custas pelos Apelantes.
Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 18/02/2014 
(J. A. Teles Pereira - Relator)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] Data esta correspondente à propositura desta acção e que marca a aplicação à presente instância de recurso do regime processual originariamente decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Não se aplica aqui, desta feita por estar em causa decisão recorrida (a de fls. 383/404) anterior a 1 de Setembro de 2013 (de 02/04/2012), o texto do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho (v. os respectivos artigos 7º, nº 1 e 8º, cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, 2013. p. 15). Assumimos ser discutível se a regra do artigo 7º, nº 1 da Lei nº 41/2013, a única disposição do Diploma introdutório do Novo Código de Processo Civil que se refere à instância de recurso, abrange os recursos referidos a decisões anteriores a 01/09/2013 aos quais já se aplicasse, como aqui sucede, o regime do DL nº 303/2007 – processos instaurados depois de 01/01/2008 –, sendo que quanto a estes, em rigor, não há qualquer regime transitório expressamente definido, pelo que há que entender que, em tais casos, se continuará a aplicar o regime antigo, aqui sinónimo do regime “originário” do DL nº 303/2007, até porque, se o legislador se preocupou em definir um regime para as acções instauradas antes de 01/01/2008, não tem sentido concluir que um regime idêntico também vale para as acções propostas depois dessa data, além de que a “tradição” dos nossos Diplomas introdutórias de reformas profundas do Processo Civil é tratar a instância de recurso individualizadamente.
[2] Em qualquer caso, v. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[3] V. a caracterização desta distinção em João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, III vol., ed. policopiada, Lisboa, 1978/79, pp. 307/312.
[4] A contradição prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 668º do CPC é a contradição lógica interna, inultrapassável, em que se retira uma conclusão decisória ostensivamente inapropriada às premissas estabelecidas para essa conclusão – por exemplo, se se disser nos factos que as rendas foram pontualmente pagas e se decidir decretar o despejo com fundamento na falta desse pagamento. Neste sentido, não existe contradição alguma quando se imputa um errado julgamento em função da prova produzida ou uma incorrecta interpretação jurídica.
[5]Donatio non praesumitur is a legal maxim that means ‘donation is not presumed.’ This means that a gift cannot be presumed. A gift is a voluntary transfer of property or right made gratuitously to a recipient. The intention of a donor to gift a property or right can not be presumed beforehand.
No deed is considered to be a gift if it can be given some other construction. Presumption of gift cannot be taken easily. This is because no one can be presumed to do what that could normally bring profit to a person, to be done by that person in a gratuitous manner. Donation or gift can be only proved if the intention to donate is expressly provided in the deed” (definição registada em: http://definitions.uslegal.com/d/donatio-non-praesumitur/).   
[6] Sem esquecer que “dar”, se significasse doar, implicaria aqui um acordo entre o A. e a sua falecida mulher que ninguém demonstrou, bem pelo contrário, ter existido, sendo evidente que se não materializou formalmente com esse sentido.
[7] Aresto relatado pelo Desembargador Coelho de Matos e publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVII, Tomo II/2002, pp. 33/36 (34).
[8] “Nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga”.
[9] Ou seja, resulta ser a versão do autor a feita prevalecer quando indemonstrada a versão do réu. Está nesta situação em causa o chamado “ónus objectivo” da prova, aquele que Pedro Ferreira Múrias caracteriza dizendo ser “[…] o instituto que determina segundo qual das versões disputadas deve decidir-se quando é incerta a verificação de algum facto pertinente […]” (Por uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 20/21).

[10] António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lisboa, 1993, reprint, 1979, p. 466.
[11] O controlo do terreno no qual os 1ºs RR. construíram a casa, pois é esse terreno o que aqui está em causa.
[12] “Uma tradição românica, sedimentada pelos jurisprudentes elegantes e, depois por Savigny, consagrou a ideia de posse assente em dois elementos: o corpus, ou controlo de facto em si e o animus ou intenção de ser proprietário – animus domini –, de ser possuidor – animus possidendi – ou de ter a coisa para si – animus sibi habendi. Mau grado as convicções da doutrina, nunca foi possível dar uma noção clara de animus. E por isso, nenhum legislador a inseriu, jamais, em texto legal. Não obstante, o peso da tradição e a necessidade de delimitar, em geral, a posse da detenção, têm levado a doutrina maioritária do Sul a exigir, junto do corpus e para que, de posse, se possa falar, o animus” (Menezes Cordeiro, A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª ed. actualizada, Coimbra, 2005, p. 51).
[13] A Posse…, cit., p. 65.
[14] A expressão, que se nos afigura particularmente sugestiva, é usada no Acórdão do STJ de 11/07/1988 [BMJ, 279, 165 (169)], relatado pelo Conselheiro Aníbal Aquilino Ribeiro.
[15] A nossa jurisprudência, conforme a caracteriza António Menezes Cordeiro, “[…] tem ampliado a noção de tolerância, levando-a para além da mera simpatia ou da obsequiosidade entre vizinhos [, centrando essa]  mera tolerância no exercício tácita ou expressamente autorizado pelo proprietário, mas sem a concessão por este último de um direito. Os tribunais superiores têm tido em vista, como sendo de detenção, situações de intenso controlo: assim o viver numa casa, o ocupar um terreno durante doze anos, nele construindo uma casa com anexos ou o construir uma casa com autorização do dono do terreno: nenhum destes casos daria lugar a posse, por haver simples tolerância […]” [A Posse…, cit., p. 60, sublinhado acrescentado; cfr., neste sentido, o Acórdão do STJ (Oliveira Barros) de 3/03/2005, no processo 04B4796, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/13a7b33dd49622fc80256fe3002f4d91].
[16] Num quadro em que poderá ter interesse – e trata-se aqui de um simples obiter dictum – a distinção entre acessão e a realização de benfeitorias (v. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, Coimbra, 2009, pp. 238/240).