Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
77/05.2TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
JUNTA DE FREGUESIA
Data do Acordão: 01/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.211, 212 CRP, 18 LOFTJ, 1, 4 ETAF, 66 CPC
Sumário: 1.- O Tribunal Comum é materialmente incompetente para conhecer da acção em que um particular demanda uma Junta de Freguesia, pedindo que seja condenada a destruir as obras de ampliação do cemitério desenvolvidas sobre um caminho público e em cima de um troço de estrada romana, acautelando-se os riscos para a saúde pública decorrentes de acesso ou rotura em equipamentos de saneamento, e da contaminação da água e dos mesmos equipamentos fruto de escorrências cadavéricas.

2.- Porque o litígio emerge de uma relação jurídica administrativa, prendendo-se, directa ou indirectamente, com as questões acolhidas nas alíneas a), e l), do artigo 4º do E.T.A.F., a competência material está deferida aos Tribunais Administrativos.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

1. J (…), residente em (...), Aguiar da Beira intentou contra a Freguesia da sua residência, na pessoa do seu Presidente da Junta, acção popular com processo ordinário, pedindo que a Ré seja condenada a destruir as obras de ampliação do cemitério desenvolvidas por sobre um caminho público conhecido por Rua F (...) e em cima de um troço de estrada romana, acautelando-se os riscos para a saúde pública decorrentes de acesso ou rotura em equipamentos de saneamento, e da contaminação da água e dos mesmos equipamentos fruto de escorrências cadavéricas.

Alega para tanto, em síntese, que a Junta de Freguesia demandada, desnecessariamente - já que tem disponível um cemitério novo, sem qualquer enterro nele realizado – e ainda sem quaisquer projectos, estudos, inspecções ou avaliações técnicas, decidiu ampliar o antigo cemitério por sobre aquele terreno, tornando inacessíveis um caminho romano e uma rua por baixo da qual passam condutas de água e saneamento, assim causando perigos vários para a saúde pública, decorrentes das escorrências cadavéricas que inundariam as referidas condutas.

            Citada, contestou a ré referindo que a obra em causa era uma necessidade urgente e desejada por toda a população, excepto pelo demandante, razão pela qual todos contribuíram com dinheiro ou com trabalho ou materiais para a sua concretização, a qual foi devidamente vistoriada e aprovada, acrescentando que foram elaborados todos os projectos e planos legalmente exigidos.

Finaliza negando a existência dos invocados perigos, sustentando que, previamente à obra, foram desactivadas todas as condutas em causa, as quais, aliás, serviam unicamente o autor, a quem foram já disponibilizados os serviços em causa por percurso alternativo.

Após os articulados, foi proferido despacho saneador, que julgou válida e regular a instância e, seleccionada a matéria de facto considerada relevante à decisão da causa, fixou-se a mesma sem reclamação.

Realizado o julgamento, foi proferida decisão sobre a matéria de facto.

No final, foi proferida sentença que, julgando improcedente a acção, por não provada, absolveu a Ré do pedido.

2. Inconformado com tal decisão, dela interpôs o Autor recurso de apelação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

(…)

A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

B. A violação das regras da competência absoluta do tribunal em razão da matéria, constitui excepção dilatória, que pode/deve ser conhecida oficiosamente por este tribunal superior, uma vez que, limitando-se o despacho saneador à declaração tabelar de que “inexistem excepções dilatórias ou nulidades processuais alegadas pelas partes de que possa conhecer-se agora ou que devam ser apreciadas oficiosamente”, tal questão não foi expressamente apreciada e decidida no despacho saneador, nem tão pouco em qualquer outra decisão autónoma, ainda que a sentença a tenha aflorado, numa perspectiva meramente dogmática, mas sem que a tenha expressamente declarado, retirando dela os consequentes efeitos jurídicos.

A omissão de decisão concreta quanto à aludida questão da competência, ou falta de competência, em razão da matéria, pressuposto necessário à formação de caso julgado formal, não veda a esta instância o conhecimento (oficioso) da excepção dilatória da incompetência absoluta, que, assim, aqui será objecto de apreciação.

A ter-se por verificada a referida excepção dilatória, ficará prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelo apelante nas suas conclusões de recurso: nulidades da sentença, erro de julgamento da matéria de facto e mérito do julgado.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A primeira instância deu como provados os seguintes factos:

1. O autor é morador no lugar de (...), Aguiar da Beira.

2.A ré iniciou, a 20 de Setembro de 2004, obras de ampliação de um cemitério, no lugar de (...), obras que ainda se encontravam em curso a 1 de Fevereiro de 2005 e que se concluírem nesse mês.

3.Debaixo do pedaço de terreno em que foram efectuadas as obras de ampliação do cemitério encontram-se instaladas condutas de águas e de saneamento.

4.Para acesso ao cemitério ampliado, foi calcetado e alargado um caminho que já existia, e que ocupava parte da calçada agora existente.

5. Alguns moradores conheciam a via em causa como a Rua F (...) , outros por outras designações.

6.O caminho em causa pode, presentemente, ser utilizado por todas e quaisquer pessoas, nomeadamente as de (...), pela forma e ocasião que entenderem por convenientes, enquanto que, anteriormente à obra de ampliação do cemitério, a mesma via era intransitável por veículos e deixou de ser utilizada por quaisquer peões ou animais, na mesma medida em que as culturas dos campos em redor deixaram de ser feitas com a regularidade de outros tempos.

7.Antigamente, quando os campos a seguir ao cemitério eram cultivados, e também há mais de oitenta anos, a via em causa servia os utentes desses campos.

8.Tal caminho, no período temporal imediatamente à pavimentação, tinha uma largura irregular, por vezes superior por vezes inferior a três metros, e chegou a estender-se por cinquenta metros, se bem que tal largura corresponda à visão do que, anteriormente, teria sido transitável, sem o ser no momento referido.

9.No leito do caminho, eram visíveis as tampas metálicas das caixas de visita daquelas condutas de água e de saneamento.

10. O habitante de (...) que beneficiava das referidas condutas de água e saneamento era conhecedor da existência das mesmas, bem como, necessariamente, os habitantes que se recordassem de utilizar tal caminho.

11. Há rocha no solo onde se mostra implantado o caminho.

12. O caminho em causa apresenta-se a descer desde a igreja e o cemitério, cuja ampliação se lhe encontra à direita, para os campos outrora lavrados, para onde se dirige.

13. Algumas pessoas de (...) sentem os monumentos históricos existentes na freguesia como património cultural comum e valioso.

14. A obra de repavimentação do caminho que alguns conhecem como Rua F (...) incluiu a colocação de terra e pedra por sobre a anterior via.

15. Depois de devidamente selados e substituídos, os equipamentos de água e saneamento ficaram soterrados pelo novo pavimento da via.

16. Os aludidos equipamentos de água e saneamento, uma vez substituídos e selados (chumbados), ficaram soterrados pelo novo pavimento, o que dificulta o acesso aos mesmos, ainda que não se vislumbre razão para tal acesso.

17. Há escorrências cadavéricas que são próprias dos cemitérios.

18. A existência de rocha no solo onde foi implantada a ampliação do cemitério leva a que as escorrências percorram percurso mais longo antes de virem a diluir-se em terreno apropriado, o que é explicado pela natureza pouco permeável da rocha.

19. As escorrências seguirão o seu trajecto com observância das regras que se lhes aplicam, entre as quais as da gravidade, da sedimentação e da capilaridade.

20. Não foi solicitado qualquer parecer prévio à realização da obra sobre a natureza do terreno.

21. Previamente ao início da obra, não foi solicitado qualquer parecer às entidades sanitárias públicas.

22. Previamente ao início da obra, não foi solicitado qualquer parecer ao Instituto Português do Património.

23. Previamente ao início da obra, não foi o terreno onde a mesma foi realizada sujeito a qualquer inspecção pela autoridade sanitária.

24. Previamente ao início da obra, não foi pedido qualquer parecer à Direcção Geral de Saúde.

25. Previamente ao início da obra, não foi pedido qualquer parecer à Comissão Municipal de Higiene ou serviços equivalentes.

26.  Previamente ao início da obra, não foi, relativamente à mesma, realizada qualquer estimativa de custo, nem foi elaborado qualquer plano de actividades, caderno de encargos ou orçamento em que a mesma estivesse prevista, bem como qualquer memória descritiva e justificativa, indicando o esquema funcional do cemitério.

27. A 18 de Agosto de 2005, foi realizada a vistoria pela comissão que elaborou e subscreveu o relatório – que aqui se dá por integralmente reproduzido – e que consta da folha 53.

28. Previamente ao início da obra, não foi elaborada qualquer planta de localização e planta geral à escala de 1/200, com indicação dos talhões, arruamentos, tipos de sepultura e vedação, posição dos jazigos, outras construções e zonas verdes.

29. Previamente ao início da obra, não foi elaborada qualquer planta, nomeadamente do alçado principal, incluindo o portão de entrada, com largura não inferior a dois metros e meio.

30. Previamente ao início da obra, não foi previsto o portão de entrada principal, de forma a que nesse local seja possível o estacionamento e manobra de veículos e o movimento dos cortejos fúnebres.

31. As obras de ampliação desenvolveram-se ocupando, pelo menos em larga parte, terreno pertencente à própria Junta de Freguesia, ao lado do actual cemitério, junto à casa do autor, não querendo este a ampliação do cemitério naquele local.

32. A conduta de água instalada debaixo daquelas lajes destinou-se a conduzir a água a casa do autor e de um outro vizinho.

33. Nessa altura, o autor não se opôs às obras nem qualquer morador daquele lugar.

34. Em (...) vigora o disposto no artigo 3º nº 1 do código da estrada, e as vias existentes na freguesia encontram-se, em geral, no estado em que se encontra a média das estradas e caminhos portugueses.

35. O autor ocupava parte do terreno em que foi implantada a ampliação do cemitério, tendo aí amontoada lenha e outros objectos de sua pertença que não é possível identificar com precisão.

36. A calçada que o autor denomina de estrada romana foi calcetada como o foram outras lá no lugar.

37. Antes da pavimentação era impossível ali subirem veículos carregados.

38. Quando foi substituído e desactivado, o colector de esgoto colocado sob o terreno para onde foi ampliado o cemitério servia unicamente a casa do autor.

39. A Câmara Municipal já providenciou pelo desvio daquela conduta de saneamento, tendo desactivado a mesma, desligando-a da conduta que serve a área de (...), procedendo à instalação de uma nova conduta que servirá o requerente e servirá os moradores que dela venham a fazer uso.

40. A calçada, como se encontrava anteriormente à pavimentação, nunca foi classificada nem foi nunca objecto de qualquer preocupação por parte da Junta de Freguesia, da Câmara Municipal, de quaisquer entidades públicas nem da maioria dos moradores da Freguesia.

41. A desactivação da conduta de saneamento leva a que não mais seja necessário mexer no troço que ficou soterrado com a obra de ampliação.

42. Naquele local não existe qualquer captação de água.

43. Os moradores que têm terrenos nas imediações não se opuseram àquelas obras de ampliação, considerando-as muito importantes e necessárias, bem como a generalidade dos moradores daquele lugar.

44. O outro cemitério existente situa-se a cerca de oitocentos metros do cemitério agora ampliado.

45. O cemitério ampliado fica no centro do mesmo lugar, o que facilita a veneração dos entes queridos.

46. Foi colocada terra vegetal no solo da parte ampliada do cemitério.

47. A terra vegetal facilita os processos químicos inerentes à decomposição dos cadáveres.

48. O espaço destinado, pela ampliação, ao enterro dos cadáveres tem altura de cerca de nove metros de terra.

49. A Junta de Freguesia decidiu a realização da obra, que foi discutida e aprovada pela Assembleia de Freguesia.

50. O padre local, na missa, aludiu ao assunto, não tendo recolhido qualquer oposição.

51. Criou-se uma comissão para angariação de fundos, e a mesma contactou os moradores.

52. Com dinheiro, trabalho ou promessas, a quase totalidade dos residentes disponibilizou-se a contribuir para a obra.

53. A obra foi aprovada.

54. O cemitério tem entradas.

55. Após a conclusão da obra de ampliação, foi a mesma vistoriada pela Câmara Municipal, pelo Delegado de Saúde e por um representante da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro.

56. O cemitério e arruamentos próximos permitem a manobra de veículos.

57. A obra de ampliação fica a cerca de dez metros da casa do autor.

58. A obra de ampliação é uma aspiração antiga; a generalidade dos moradores sente-a como necessária e urgente.

59. A freguesia tem cerca de seiscentos moradores.

60. Dentre os moradores de (...), alguns, cujo número não foi possível precisar, têm oitenta e mais anos de idade.

61. Antes da ampliação, o cemitério tinha doze metros de largura por trinta de profundidade.

62. Os cadáveres tinham que ser sepultados prevendo a necessidade de outros o serem por cima.

63. (...) tem vários seus naturais – em número que não foi possível apurar – residentes algures pelo país e pelo mundo.

64. Alguns dos que se encontram a residir habitualmente fora da Freguesia pretendem vir a ser enterrados no local onde nasceram.

65. O outro cemitério novo está construído há mais de vinte e oito anos.

66. Os familiares dos mortos não permitem que aqueles sejam sepultados naquele cemitério novo.

67. Os actuais moradores de (...) dizem que, quando morrerem, não querem ser sepultados naquele cemitério novo.

68. Aquele cemitério novo foi construído contra a vontade do povo, estando vazio desde a sua construção porque as pessoas se recusam a permitir que aí sejam enterrados os seus familiares que morrem.

69. A Junta de Freguesia iniciou a obra de ampliação para satisfazer a vontade do povo nesse sentido.

70. A obra incorporou dinheiro e trabalho de muitos populares.

71. A obra foi paga, em parte, com dinheiro que o povo entregou em peditório realizado para o efeito.

72. Houve populares que trabalharam gratuitamente na realização da obra.

73. Houve populares que cederam gratuitamente materiais e máquinas para a realização da obra.

74. Devido às obras de ampliação do cemitério o espaço em frente à casa do autor ficou tratado.

75. Anteriormente à obra, esse espaço tinha mato, silvas, lenha e objectos que não é possível identificar com precisão, o que facilitava a acumulação de lixo.

76. Com a alegação dos factos constantes da petição, o autor pretende alcançar os seus objectivos, entre os quais que o cemitério não seja ampliado para mais próximo da sua casa.

77.  Com a instauração desta acção – onde foram alegados os factos constantes da petição – o autor já causou, à ré, incómodos e prejuízos, mormente na dinamização de todo um processo burocrático que, de outra forma, não ocorreria, bem como na obtenção de estudos e pareceres e na promoção e realização de diligências que, de outro modo, não seriam realizadas.

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pela causa de pedir e pedido respectivos[3].

De acordo com o artigo 211º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

E o artigo 66º do Código de Processo Civil determina que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

O carácter residual da competência dos tribunais comuns também encontra expressão no artigo 18º, nº1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro quando estabelece: “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Por sua vez, o artigo 212º, nº3 da Lei Fundamental delimita o campo de intervenção jurisdicional dos tribunais administrativos, os quais têm por objectivo a resolução de litígios de natureza administrativa e fiscal.

Dispõe, também no mesmo sentido, o artigo 1º, nº1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro[4] que “os tribunais da jurisdição administrativa são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Freitas do Amaral[5] caracteriza a relação jurídico - administrativa como sendo a que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.

Vieira de Andrade[6] enquadra no mesmo conceito as relações “…em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.

Por regra, à jurisdição administrativa só interessam as relações administrativas públicas, as reguladas por normas de direito administrativo, aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, actue na veste de autoridade pública, munido de um poder de imperium, com vista à realização do interesse público legalmente definido.

No regime legislativo anterior à entrada em vigor[7] do actual ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro a qualificação dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou agentes de uma pessoa colectiva pública, (de gestão pública ou de gestão privada) constituía o critério basilar para a delimitação do âmbito de actuação (competência) das duas ordens de jurisdição (tribunais administrativos/tribunais comuns).

O Prof. Marcello Caetano qualifica de gestão pública a actividade da Administração regulada por normas que conferem poderes de autoridade para a prossecução de interesses públicos, disciplinam o seu exercício ou organizam os meios necessários para esse efeito, sendo actos de gestão privada os que surjam no âmbito da actividade desenvolvida pela Administração no exercício da sua capacidade de direito privado, procedendo como qualquer outra pessoa no uso das faculdades conferidas por esse direito, ou seja, pelo direito civil ou comercial[8].

Para o Prof. Antunes Varela[9], "actividades de gestão pública são todas aquelas em que se reflecte o poder de soberania próprio da pessoa colectiva pública e em cujo regime jurídico transparece, consequentemente, o nexo de subordinação existente entre os sujeitos da relação, característico do direito público". E esclarece: "simplesmente, nem todos os actos que integram gestão pública representam o exercício imediato do jus imperii ou reflectem directamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoas colectivas. Essencial para que seja considerada de gestão pública é que a actividade do Estado (ou de qualquer outra entidade pública) se destine a realizar um fim típico ou específico dele, com meios ou instrumentos também próprios do agente".

Como salientam os Professores Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida[10], “nas propostas de lei que o Governo apresentou à Assembleia da República, foi assumido o propósito de pôr termo a essas dificuldades” - quanto à delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil e de contratos -, “consagrando um critério claro e objectivo de delimitação nestes dois domínios. A exemplo do que (…) acabou por suceder em matéria ambiental, o critério em que as propostas se basearam foi o critério objectivo da natureza da entidade demandada: sempre que o litígio envolvesse uma entidade pública, por lhe ser imputável o facto gerador do dano ou por ela ser uma das partes no contrato, esse litígio deveria ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos. Propunha-se, assim, que a jurisdição administrativa passasse a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvessem pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado (...). Em defesa desta solução, sustentava-se na Exposição de Motivos do ETAF que, se a Constituição faz assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, a verdade é que ela “não erige esse critério num dogma”, pois “não estabelece uma reserva material absoluta”. Por conseguinte, “a existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado (...). O art. 4º do ETAF só veio a consagrar, no essencial, estas propostas no domínio da responsabilidade civil extracontratual. Já não no que toca aos litígios emergentes de relações contratuais”.

O artigo 4º do citado diploma, na versão anterior à introduzida pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro[11], delimita o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.

Contemplam-se nele:

“a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;

c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos, praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;

e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;

j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;

l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal”.

Com a entrada em vigor do novo ETAF, o acto de gestão pública, quer na sua vertente teleológica, quer por referência ao exercício do jus imperii por parte do agente ou órgão da pessoa colectiva de direito público, deixou de ser o critério exclusivo para a atribuição da competência dos tribunais administrativos: não estão hoje excluídos da jurisdição administrativa os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, bastando que ambas ou uma das partes seja ente de direito público. Tal possibilidade encontra-se claramente consagrada na alínea g) do nº1 do artigo 4º do ETAF. Como salienta o Acórdão da Relação do Porto de 06.07.2009[12], “deixou de relevar, para a determinação de competência, que os actos praticados sejam qualificados como de gestão pública ou de gestão privada, apenas bastando estar-se em presença de uma relação jurídico administrativa, ou seja, aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a Administração”[13].

No caso vertente, o Autor, insurgindo-se contra a ampliação do cemitério da sua freguesia, pelas razões que invoca na petição inicial, pede que a Ré Junta de Freguesia, que promoveu essas obras, seja condenada a destruí-las na parte desenvolvida por sobre um caminho público conhecido por Rua F (...) e em cima de um troço de estrada romana, acautelando-se os riscos para a saúde pública decorrentes de acesso ou rotura em equipamentos de saneamento, e da contaminação da água e dos mesmos equipamentos fruto de escorrências cadavéricas.

“Os cemitérios públicos são bens dominiais possuídos e administrados pelos municípios e pelas freguesias, afectos a um fim de utilidade pública, a inumação em condições sanitárias suficientes dos cadáveres das pessoas falecidas na autarquia[14].

O Decreto nº 44 220, de 3 de Março de 1962[15] estabelece o regime normativo relativo à construção e gestão dos cemitérios.

Deferindo às autarquias, Câmaras Municipais ou Juntas de Freguesia, a competência para promoverem a construção, ampliação ou remodelação dos cemitérios, nele se estabelecem os condicionalismos legalmente exigíveis para as obras em causa e os procedimentos administrativos a observar, designadamente para acautelar interesses de natureza pública como a salubridade e a saúde das populações locais.

Daqui deriva que a lei reserva às mencionadas entidades públicas a tarefa de prossecução das obras relativas à construção e ampliação dos cemitérios, estabelecendo normas condicionadoras dessa actividade e submetendo-as a procedimentos administrativos, tendo por fim último a tutela de direitos e interesses de natureza pública.

No caso em apreço, o Autor, ora apelante, pede que a Ré Junta de Freguesia seja condenada à destruição de obras de ampliação do cemitério da freguesia no fundamento no facto de não terem sido observadas procedimentos legalmente exigidos para as obras em questão, assim como a violação de interesses de ordem pública, designadamente o património (destruição de uma alegada calçada romana).

Ou seja: a acção é direccionada contra uma pessoa colectiva de direito público e visa a discussão de actos de gestão pública, compreendidos nas suas atribuições legais.

O litígio emerge, pois, de uma relação jurídica administrativa, prendendo-se, directa ou indirectamente, com as questões acolhidas nas alíneas a), e l), pelo menos, do artigo 4º do E.T.A.F.

Assim, como decorre dos artigos 212º, nº3 da Constituição da República, 1º, nº1 do E.T.A.F., 66º do Código de Processo Civil e 18º, nº1 da Lei nº 3/99, de 13.01 (LOFTJ) são os tribunais administrativos os materialmente competentes para a resolução do litígio em debate nesta acção, sendo, por conseguinte, incompetente o tribunal comum.

Não constitui obstáculo a tal afirmação a veste de acção popular que o Autor usou para judicialmente ter reclamado a destruição das obras de ampliação do cemitério, tal como, e bem, é reconhecido na sentença recorrida

Sentença recorrida que, embora questionando a competência em razão da matéria dos tribunais comuns para apreciar e decidir a pretensão do Autor, e admitindo estar ela reservada aos tribunais administrativos, disso não extraiu as necessárias consequências jurídicas, optando antes por não reconhecer a existência da aludida excepção dilatória, e conhecer do mérito da acção, que acaba por julgar improcedente, absolvendo do pedido a Ré.

Nela se argumenta, entre o mais, que, ainda que arrimada nos preceitos legais, “…dificilmente seria entendida de outra forma por qualquer dos sujeitos processuais se não como mais um grão de areia a perder-se na vasta praia de decisões judiciais que contribuem para o descrédito as que os tribunais chegaram à face dos que obrigatoriamente a eles têm que acorrer”.

A tal suceder, sempre se lhe poderia contrapor o facto de terem sido as próprias partes que, por razões de conveniência ou não, a tal deram azo: o Autor ao propor a acção em tribunal claramente incompetente para sindicar a questão submetida a debate judiciário, e a Ré por se ter demitido de arguir a incompetência absoluta.

Independentemente da maior ou menor relevância pragmática para, ainda que realizado o julgamento e decidida a matéria de facto sem que a questão da incompetência em razão da matéria do tribunal comum antes se tivesse colocado, constatada a falta daquele pressuposto processual, não se ter dele conhecido, sendo ele de conhecimento oficioso em qualquer estado do processo “enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o funda da causa”[16], e antes se ter optado por, ainda que “denunciando” essa falta de competência, porventura acautelando a hipótese de ser conhecida em sede recursiva, conhecer do mérito da causa, com as implicações que desse conhecimento poderiam advir com a formação de caso julgado material, se este tivesse lugar, não sana o vício em causa.

A repartição da função jurisdicional material pelos vários órgãos aos quais é submetido o seu exercício não é uma questão de importância menor, ou meramente formal, constituindo, pelo contrário, questão de interesse público, pois que com a delimitação das áreas de intervenção de cada um desses órgãos jurisdicionais se visa assegurar a adequação técnica dos mesmos para a apreciação de determinadas matérias, assim contribuindo para uma melhor administração da justiça.

Assim, finalmente detectada a incompetência absoluta do tribunal, ainda que apenas no momento de ser proferida a sentença, e tratando-se a competência absoluta de pressuposto processual de conhecimento prioritário, podendo sê-lo até ao trânsito em julgado da sentença que haja apreciado o fundo da causa, uma vez que sobre tal questão não se tinha formado caso julgado formal que a tal vedasse, devia o Sr. Juiz da primeira instância ter conhecido da referida excepção dilatória, absolvendo da instância a Ré.

Note-se que hoje a lei define com clareza que o caso julgado formal, relativamente às excepções dilatórias ou nulidades processuais suscitadas pelas partes ou que, face aos elementos constantes dos autos, devam ser apreciadas oficiosamente, só se constitui quando tais questões sejam concretamente apreciadas[17], o que manifestamente não aconteceu no despacho saneador proferido nestes autos, que, lacónica e tabelarmente, afirma a validade e regularidade da instância, estranhamente sem qualquer referência expressa à competência do tribunal.

E não se clame pela economia processual, pelo desgaste e encargos financeiros que esta acção já absorveu para, com isso, se justificar a sanação de algo que é insanável: a falta de pressuposto processual.

Conforme se assinala no Acórdão da Relação de Lisboa de 09.12.2010[18], “não colhe (…) fazer apelo a um suposto princípio de economia processual para através dele «sanar» uma falta insanável, com invasão da esfera própria de actuação de outro órgão ou entidade, ainda que a decisão sobre essa competência implique maior dispêndio de actividade do que a exigida para conhecer de mérito ou que se preveja que a questão decidenda possa vir a ser submetida à jurisdição comum”.

E assim se conclui: sendo o foro administrativo o competente em razão da matéria para conhecer desta acção, é o Tribunal Judicial da Comarca de Trancoso (foro comum) incompetente para tal efeito.

Tal incompetência absoluta, podendo ser conhecida oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver trânsito da decisão que tenha conhecido de mérito, conduz à absolvição do réu da instância: artigos 101º, 102º, nº1, 105º, nº1, 493º, nºs 1 e 2, 494º, a), 495º, 510º, nº1, a) e nº3, todos do Código de Processo Civil.

Uma última nota apenas para deixar expressamente consignadas as razões da desnecessidade de assegurar o cumprimento do nº3 do artigo 715º e nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil: pelo facto da decisão recorrida ter abordado a questão da incompetência material dos tribunais comuns, manifestando-se, ainda que forma pouco conclusiva, pela sua existência, não obstante não lhe aplicar o respectivo regime legal, e alertando para a possibilidade de vir a ser conhecida pela segunda instância, em caso de interposição de recurso, tendo o apelante sobre tal questão se pronunciado nas suas alegações, a ponto de se insurgir pelo facto de não ter sido conhecida a ausência do pressuposto processual em causa, nisso fundamentando o vício da nulidade da sentença que invoca, e tendo o apelado respondido àquelas alegações, não constituirá para as partes surpresa a decisão desta Relação que aprecie tal questão, mostrando-se, por tal via, assegurado o princípio do contraditório.


*

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar o Tribunal Judicial de Trancoso incompetente em razão da matéria para conhecer desta acção, por ser o foro administrativo o competente, e, em consequência, revogando a sentença recorrida, absolvem da instância a Ré/Apelada.

Custas (acção e recurso): pelo Autor/Apelante.


Judite Pires (Relatora)

Virgílio Mateus

Carvalho Martins



[1] Artigos 684º, nº 3 e 690, nº 1 do C.P.C., na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 4 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma.
[3] Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 91.
[4] Sucessivamente alterada pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, Lei 107-D/2003, de 31 de Dezembro, Lei nº 1/2008, de 14 de Janeiro, Lei nº 2/2008, de 14 de Janeiro, Lei nº 26/2008, de 27 de Junho, Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto, Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, Decreto - Lei nº 166/2009, de 31 de Julho e Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro.
[5]Direito Administrativo”, vol. III, p. 439.
[6]A Justiça Administrativa”, Lições, 3ª ed., 2000, págs. 79.
[7] 1 de Janeiro de 2004: artigo 9º, na redacção introduzida pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro.
[8]Manual de Direito Administrativo”, tomo I, 10ª edição, pág. 431.
[9] “RLJ”, 124º, 59.
[10]Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, 3ª ed.., págs. 34, 35.
[11] Ou seja, na redacção conferida pela Lei nº 107-D/2003, aplicável à situação dos autos.
[12] Processo nº 464/08.4TBARC.P1, www.dgsi.pt.
[13] Idêntica posição é defendida pelo Acórdão do STJ, de 12.02.2007, processo nº 07B238, www.dgsi.pt.
[14] Acórdão do STA, 10.03.1992, processo nº 029754; no mesmo sentido, Acórdãos do mesmo Tribunal, de 07.03.1989, processo nº 026036, de 24.09.1998, processo nº 043843, de 06.03.2002, processo nº 046143, de 08.07.2003, processo nº 010/02, e Acórdão da Relação do Porto, de 12.05.2009, processo nº 3376/08.8TJVNF-A.P1, todos em www.dgsi.pt.
[15] Com as alterações sucessivamente introduzidas pelos Decretos nºs 45 864, de 12.08.64, 463/71, de 02.11.71, 857/76, de 20.12.76 e Decreto-Lei nº 168/2006, de 16.08.2006
[16] Nº 1 do artigo 102º do Código de Processo Civil.
[17] Artigo 510º, nº1, a) e nº 3 do Código de Processo Civil.
[18] Processo nº 268/10.4YRLSB-8, www.dgsi.pt.