Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1078/16.0T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMIAR
CONDENAÇÃO PENAL DO DEVEDOR
Data do Acordão: 05/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE COMÉRCIO DE VISEU – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 238º, Nº 1, AL. F) E 243º DO CIRE .
Sumário: 1. A condenação do devedor “por sentença condenada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração de insolvência ou posteriormente a esta data”, constitui motivo de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, assim como causa de cessação antecipada do procedimento de exoneração, independentemente de tal condenação resultar da prática de factos não conexionados com a declaração de insolvência a que se reporta o incidente de exoneração.

2. A condenação por um crime de insolvência dolosa referente ao processo de insolvência de uma sociedade da qual era sócio gerente constitui fundamento de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante no processo em que é decretada a sua insolvência pessoal.

3. Envolvendo a exoneração do passivo restante uma colisão de direitos ou valores constitucionalmente protegidos – de um lado, a proteção constitucional dos créditos, no quadro da proteção geral do património; do outro lado, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos –, apenas os interesses do devedor insolvente não culposo foram considerados pelo legislador como devendo prevalecer sobre os dos credores, tanto mais que para a exoneração não é exigida sequer uma satisfação parcial dos créditos destes.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Declarada a insolvência de M... e de C..., a 26 de maio de 2017 foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e decretado o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa, nos termos do artigo 230º, nº 1, al. d), do CIRE, dando início ao período de cinco anos da cessão.

A 22 de janeiro de 20020 foi proferido Despacho a declarar a cessação antecipada do procedimento relativamente ao insolvente/devedor C..., decisão de que agora se recorre:

“O Devedor C... foi condenado pela prática do crime de insolvência dolosa previsto e punido pelo art. 227º, nº 1, alíneas a), b) e c) e nº 3, do Código Penal, na pena de 350 dias de multa, à taxa diária de €5,00, através de sentença proferida no âmbito do Processo Comum Singular nº... do Juízo de Competência Genérica de ..., a qual transitou em julgado no dia 24 de Outubro de 2019.

Ora, dispõe o art. 243º, nº 1, do CIRE que “antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:

a) …

b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do art. 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;

c) …”.

No caso em apreço, atenta a condenação penal supra referida, verifica-se a circunstância referida na al. f) do nº 1 do art. 238º do CIRE relativamente ao Devedor C..., o que determina a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante quanto a ele.

Nesta conformidade, e pelo exposto, o tribunal decide:

- Recusar antecipadamente a exoneração do passivo restante ao devedor C...”

Inconformado com tal decisão, o Insolvente/C... dela interpõe recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se a prévia condenação do insolvente em processo de insolvência dolosa de uma sociedade de que era gerente constitui impedimento à concessão do benefício da exoneração do passivo restante.
2. Em caso afirmativo, constitucionalidade de tal solução.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:
1 – Por sentença proferida a 22 de março de 2018, no âmbito do Processo Comum Singular nº ... do Juízo de Competência Genérica de ..., a qual transitou em julgado no dia 24 de outubro de 2019, C... foi condenado pela prática do crime de insolvência dolosa previsto e punido pelo art. 227º, nº 1, alíneas a), b) e c) e nº 3, do Código Penal, na pena de 350 dias de multa, à taxa diária de €5,00.
2 – Tal condenação de C... foi decretada enquanto sócio gerente da sociedade Construções A...,L,dª declarada insolvente por decisão de 15.10.2009.
3 – A insolvência da sociedade Construções A..., Lda. foi considerada culposa por decisão transitada em julgado.
A análise dos autos permite-nos, ainda, ter em consideração os seguintes factos, constantes dos Relatórios juntos aos autos pelo A.I., com interesse para a decisão em apreço:
4. Sendo o património dos devedores/insolventes constituído pelo direito a uma herança indivisa por óbito do pai da insolvente mulher e por quotas em sociedades declaradas insolventes ou dissolvidas, património este de valor inferior a 5.000,00 €, o presente processo veio a ser declarado encerrado por insuficiência de bens, ao abrigo do disposto no artigo 232º CIRE, com a consequente declaração do carater fortuito da insolvência por força do nº6 da citada norma.
5. O imóvel onde os devedores residem já foi sua propriedade, tendo sido por estes vendido em 2009/01/05, à sociedade O..., Lda., da qual é gerente um irmão do insolvente, imóvel que foi posteriormente vendido à sociedade B..., S.A., e que se encontra onerado com duas hipotecas;
6. Da Lista Provisória de Credores constam créditos no valor global de 2.265.219,63 €.
7. Encerrado o processo por despacho de 26 de maio de 2017, quer no 1º, quer no 2º, anos da cessão, não houve lugar a qualquer cessão de rendimentos, por os rendimentos mensais do casal não atingirem o valor do rendimento indisponível fixado pelo tribunal, de 2,5 salários mínimo nacional.
Decorridos quase cerca de três anos desde o início da cessão, a decisão recorrida veio a recusar antecipadamente a exoneração do passivo restante relativamente ao devedor marido/ C..., com fundamento na al. f) do nº 1 do art. 238º CIRE, por força da al. b) do nº 1 do art. 243º CIRE, face à comunicação nos autos de que o insolvente tinha sido condenado pela prática de um crime de insolvência dolosa previsto e punível pelo artigo 227º, nº 1, als. a), b) e c), do CP, transitado em julgado a 24 de outubro de 2019.
Insurge-se o Apelante contra tal decisão, alegando, em síntese:
- a condenação penal a que foi sujeito advém da insolvência de pessoa coletiva e em nada se relaciona com a insolvência pessoal dos presentes autos;
- a atuação do insolvente não causou um prejuízo relevante que coloque em causa a satisfação dos créditos sobre a insolvência nos presentes autos ou mesmo da exoneração concedida, até porque a qualificação da insolvência nos presentes autos foi julgada fortuita;
- a decisão de cessação da exoneração tem-se como uma consequência demasiado gravosa para o insolvente quando comparada com o prejuízo mínimo causado aos credores;
- a interpretação do artigo 243º e por via deste, a al. f) do art. 238º do CIRE, no sentido de determinar a cessação antecipada resulta numa inconstitucionalidade, por violação dos princípios da igualdade e da segurança jurídica, sendo uma medida desproporcional que afeta o princípio da confiança ínsito no art. 2º da CRP.
Desde já podemos adiantar não ser de dar razão ao Apelante.
A condenação do devedor “por sentença condenada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração de insolvência ou posteriormente a esta data”, constituiu, não só, motivo de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante – artigo 238º, nº 1, al. f) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), como causa de cessação antecipada do procedimento de exoneração se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente – artigo 243º, nº 1, al. b).
Com a referida alínea entende-se não dever poder beneficiar da exoneração do passivo restante o credor que tem antecedentes criminais em crimes de insolvência dolosa (art. 227º-A CP), insolvência negligente (artigo 228º CP) ou favorecimento de credores (art. 229º CP)[1].
Não é exigido que o crime pelo qual foi condenado tivesse estivesse relacionado com o processo de insolvência de que a exoneração do passivo é incidente[2].
O elemento literal a extrair da redação dada à referida al. f), ao referir-se a condenações ocorridas “nos 10 anos anteriores à data de entrada em juízo do pedido de declaração de insolvência”, só pode estar a referir-se a condenações ocorridas no passado e respeitantes a outras situações de insolvência que não aquela cuja declaração é pedida nos autos.
Com efeito, se as alíneas a), d), e) e g) respeitam a comportamentos, anteriores ou contemporâneos ao processo de insolvência onde é formulado o pedido de exoneração do passivo restante, as alíneas c) e f) abrangem comportamentos ligados ao passado do insolvente que, no critério do legislador, justificam a não atribuição do beneficio de exoneração do passivo restante.
Quanto a uma eventual condenação do devedor pela prática de crime realizado no âmbito da declaração de insolvência em causa, constituirá, desde logo, motivo de indeferimento do benefício ou de cessação antecipada do procedimento, por via da al. e) do nº 1 do art. 238º – constarem do processo elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa ou agravamento da situação de insolvência nos termos do artigo 186º –, sem necessidade de qualquer condenação em processo crime.
Alega o Apelante que tal interpretação – de uma condenação resultante de atos praticados no âmbito de um outro processo de insolvência, nomeadamente da insolvência de pessoa coletiva, determinar a cessação antecipada da exoneração do passivo restante na sua insolvência pessoal – resulta numa inconstitucionalidade, por violação de princípios, mormente, do princípio da igualdade e da segurança jurídica. Contudo, não explicita de que modo é que tais princípios se podem mostrar afastados ou violados.
Alega ainda que a aplicação imediata e automática da solução legal ínsita na conjugação dos artigos 243.º e 238.º do CIRE, de que resulta a cessação antecipada da exoneração é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Ora, constituindo a exoneração do passivo restante um benefícioextinção do passivo não satisfeito, passivo este pelo qual continuaria a responder a totalidade do património do devedor, presente e futuro, até ao fim ao fim do prazo ordinário de 20 anos (artigos 601º e 310º do CC) –, pensado e concedido exclusivamente ao devedor que se encontre de “boa fé, a exclusão de tal benefício de todo aquele que tenha sido anteriormente condenado por algum daqueles crimes a que se refere a al. f) do nº 1 do artigo 238º do CIRE, surge como perfeitamente compreensível e justificada.
Considera-se de boa fé o devedor cuja situação patrimonial resultou de atos praticados sem o intuito de prejudicar os direitos dos credores, salvo se tivesse contribuído de forma consciente e censurável para gerar ou agravar o sobre-endividamento[3].
Tal benefício há de ser concedido ao devedor honrado mas desafortunado, que conduziu honestamente a sua atividade económica e financeira, mas que sofreu um infortúnio imprevisto na sua vida pessoal ou laboral – uma situação de desemprego, divórcio, incapacidade, ou outra[4].
A exoneração do passivo restante não é um direito de todo e qualquer devedor insolvente, mas apenas daquele que o mereça[5]. E este merecimento não abrange unicamente o comportamento que levou à situação de insolvência a que se respeita o pedido de exoneração do passivo restante, mas igualmente outros comportamentos do devedor suscetíveis de comprometer o juízo de merecimento.
E se a exoneração do passivo restante constitui uma vantagem para o devedor de se livrar do passivo não satisfeito, essa vantagem tem a correspondente desvantagem para os credores que verão extintos os respetivos créditos, ficando-lhes vedada a possibilidade de os vir a cobrar no futuro[6].
Distingue a doutrina dois modelos ou conceções deste instituto, o modelo da reeducação – assente na ideia de que o devedor, para beneficiar da exoneração deve merecê-lo, através de um comportamento passado, presente e futuro –, característico da europa continental, por contraposição ao regime do fresh start – no qual o que importa é a rápida recuperação do devedor, através da liquidação do seu património  e a liquidação quase imediata das suas dívidas –, com origem nos sistemas anglo-saxónicos[7].
Temos, assim, alguns ordenamentos jurídicos que concedem um perdão imediato e incondicional do remanescente da dívida e outros regimes, mais penalizadores e responsabilizadores dos sobreendividados, impondo um período longo durante o qual o devedor deve afetar a parte penhorável do seu salário ao pagamento das dívidas não pagas no decurso do processo de insolvência[8].
O nosso regime consagra um modelo de recuperação (também denominado de responsabilidade ou de reabilitação) ou, uma “versão bastante mitigada[9] do modelo do fresh start, na medida em que, a seguir à liquidação, decorre um “período probatório” de cinco anos, durante o qual o devedor deverá afetar o seu rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não foram integralmente satisfeitas no processo de insolvência. Só depois de decorrido tal período e se a sua conduta tiver sido exemplar, poderá o devedor requerer a exoneração, obtendo, assim, o remanescente não pago[10].
De qualquer modo atentar-se-á que, independentemente de se sujeitar ou não o devedor a um período de prova – o que pressupõe a existência de um bom comportamento futuro –, em qualquer um dos modelos acima referidos não se prescinde, nunca, da sua sujeição a determinados requisitos entre os quais se inclui o não ter cometido qualquer crime insolvencial, não ter ocultado ou dissipado o seu património, bem como relevantes elementos contabilísticos e financeiros[11].
Com efeito, o mínimo que se pode exigir a um devedor de boa-fé é que a declaração de insolvência não seja considerada culposa e que não tenha sido objeto de condenações penais anteriores por determinados crimes relacionados com o seu comportamento económico-financeiro. E, se a simples ausência de antecedentes criminais não é suficiente, por si só, para a caracterização da boa fé, a existência de uma condenação ocorrida nos 10 anos anteriores por um dos crimes aí previstos, ainda que por factos não diretamente relacionados com a situação de insolvência em questão, constituirá, por si só, fator de exclusão do beneficio de exoneração do passivo restante.
Envolvendo a exoneração do passivo restante uma colisão de direitos ou valores constitucionalmente protegidos – de um lado, a proteção constitucional dos créditos, no quadro da proteção geral do património; do outro lado, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos –, apenas os interesses do devedor insolvente não culposo foram considerados pelo legislador como devendo prevalecer sobre os dos credores, tanto mais que para a exoneração não é exigida sequer uma satisfação parcial dos créditos destes[12].
Segundo o Apelante não seria ele merecedor de tal cessação por o seu comportamento não ter aportado prejuízo para os credores, sendo que a declaração de insolvência foi declarada fortuita e que, por outro lado, a cessação da exoneração tem uma consequência demasiado gravosa para o insolvente, quando comparada com o prejuízo mínimo causado aos credores.
Tais afirmações não têm, contudo, qualquer apoio nos elementos constantes dos autos.
O presente processo de insolvência foi encerrado por insuficiência de bens, inexistindo até agora qualquer satisfação, ainda que parcial, dos créditos reclamados, satisfação que se afigura extremamente improvável uma vez que nos dois primeiros da cessão nenhum rendimento houve para ceder, por o casal ter auferido um rendimento mensal inferior ao valor dos 2,5 salários que lhes havia sido fixado pelo tribunal[13].
Quanto à afirmação de a sua declaração de insolvência ter sido considerada “fortuita”, necessita de alguns esclarecimentos. O que resulta dos autos é que, por inexistência de elementos à data da declaração de insolvência, não foi, então, declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência, e que, posteriormente, face à constatação da insuficiência de bens da massa, o encerramento do processo de insolvência implicou a declaração automática do carater fortuito da insolvência, nos termos do nº 6 do art. 233º CIRE.
Concluindo, não se vê como a exigência de ausência de condenações penais nos 10 anos anteriores à declaração de insolvência, ainda que reportada a comportamentos não diretamente relacionados com esta, possa envolver qualquer juízo de inconstitucionalidade.
Concluindo, a apelação é de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo Apelante/insolvente.          

                                                                Coimbra, 18 de maio de 2020
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. A condenação do devedor “por sentença condenada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração de insolvência ou posteriormente a esta data”, constitui motivo de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, assim como, causa de cessação antecipada do procedimento de exoneração, independentemente de tal condenação resultar da prática de factos não conexionados com a declaração de insolvência a que se reporta o incidente de exoneração.
2. A condenação por um crime de insolvência dolosa referente ao processo de insolvência de uma sociedade da qual era sócio gerente, constitui fundamento de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante no processo em que é decretada a sua insolvência pessoal.
3. Envolvendo a exoneração do passivo restante uma colisão de direitos ou valores constitucionalmente protegidos – de um lado, a proteção constitucional dos créditos, no quadro da proteção geral do património; do outro lado, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos –, apenas os interesses do devedor insolvente não culposo foram considerados pelo legislador como devendo prevalecer sobre os dos credores, tanto mais que para a exoneração não é exigida sequer uma satisfação parcial dos créditos destes.


[1] Luís Menezes Leitão, “A Recuperação Económica dos Devedores”, Almedina, p. 130.
[2] Alexandre Soveral Martins, “Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina 2016, p. 592.
[3] Cfr., Paulo Mota Pinto, segundo o qual, “a boa fé dever-se-ia presumir quando a insuficiência patrimonial resultasse de doença grave ou prolongada, acidente ou outro evento fortuito ou imprevisto, de modificação imprevisível da situação laboral, de alteração significativa do agregado familiar ou das suas condições de existência, ou de exploração, pelo credor, da situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter da  contraparte” –“Exoneração do passivo restante: Fundamento e constitucionalidade”, III Congresso de Direito da Insolvência”, Coord. Catarina Serra, Almedina 2015, p.177.
[4] Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade falam a tal propósito do sobreendividamento ativo – quando o devedor contribui ativamente para se colocar em situação de impossibilidade de pagamento, por exemplo, não planeando os compromissos assumidos –, e de sobreendividamento passivo – casos em que essa impossibilidade de cumprimento resulta da ocorrência de circunstancias imprevistas como o divórcio, o desemprego, a morte ou uma doença (os chamados “acidentes de vida), que determinam um aumento de despesas excecional ou uma quebra de rendimento habitual do devedor – “Regular o Sobreendividamento”, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o anteprojecto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete da Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, p.82.
[5] Cfr., Matilde Cuena Casas, “Regularization, aclaration y armonizaión de la legislation concursal” (1ªedition, 1 janeiro 2018), p.3.
[6] Gonçalo Gama Lobo, “Exoneração do passivo restante e causas de indeferimento liminar do despacho inicial”, I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, Coord. Catarina Serra, Almedina 2014, p.259.
[7] Gonçalo Gama Lobo, artigo citado, p.261.
[8] Catarina Serra e Maria Leitão Marques, dando como ex. do primeiro o norte-americano e, em certa medida o inglês, e integrando o segundo, a Alemanha e a Áustria – artigo e local citado, p. 94-95, nota (5).
[9] Na expressão de Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, “Regular o sobreendividamento”, in “Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o Anteprojecto do Código”, Ministério da Justiça – Gabinete da Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pág. 94.
[10] Como consta do Preâmbulo não publicado do Decreto-Lei que aprova o Código da Insolvência, “A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o credor permaneça, durante um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume entre várias outras obrigações a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (…), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, e tendo o devedor adoptado um comportamento liso para com os credores, cumprindo todos os deveres que sob ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor de eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento”.
[11] Quanto à exigência de tais pressupostos no modelo do fresh start, cfr., Lectícia Marques, “Fresh Start: a exoneração do passivo restante ou uma nova oportunidade concedida a pessoas singulares?”, in repositório-aberto.up.pt de L.Marques 2009, p. 7.
[12] Paulo Mota Pinto, artigo citado, pp. 187 e 191.
[13] Cfr. Relatório Anual de fls. 165 e ss., e Relatório Anual de fls. 188 e ss.