Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1053/10.9T3AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA. MORTE
FETO
PARTURIENTE
PARTO
UNIDADE DE INFRACÇÕES
PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 05/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 15.º, 30.º E 137.º, DO CP
Sumário: I - Para efeitos da tutela penal, a vida humana começa no início do parto, ou seja, com o início das contracções ritmadas, intensas e frequentes de expulsão do feto ou, no caso de parto com cesariana, com início da intervenção médica na barriga da mulher.

II - Consequentemente, a morte do feto, no decurso de trabalho de parto, causada por profissionais de saúde, devido a violação das legis artis, consubstancia a prática de um crime de homicídio negligente.

III - Existe uma pluralidade de crimes de homicídio por negligência quando o agente causa a morte a várias pessoas, ainda que com uma única acção.

IV - Assim, se nas referidas circunstâncias, ocorre também a morte da parturiente, verificam-se dois crimes de homicídio p. e p. no artigo 137.º do CP.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

No âmbito do inquérito registado sob o n.º 1053/10.9T3AVRque correu termos no 2º juízo de Instrução Criminal de Aveiro, o MP deduziu, em 6-01-2012, a fls.603 a 607, acusação contra A... e B..., devidamente identificados nos autos, imputando a cada um dos arguidos, um crime p. p. pelo art 137º, nºs 1 e 2, do Código Penal.

Inconformado com o despacho de acusação, o assistente C... requereu a abertura de instrução, nos precisos termos de fls. 705 a 717.

Admitida a abertura da instrução, teve lugar o respectivo debate, tendo a final sido proferido despacho, no qual foi decidido pronunciar os arguidos pelos factos e constantes da acusação imputando a cada um dos arguidos a prática de dois crimes p. p. art 137º, nºs 1 e 2, do Código Penal.

*

Desta decisão recorreu o arguido, formulando na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

I. O direito à vida protegido pelo Art.º 24.º da Constituição da República Portuguesa é reconhecido a pessoas completamente nascidas e com vida;

II. Assim deve entender-se, igualmente, para a realização do tipo previsto no n.º 1 do Art.º 137.º do Cód. Penal, sendo esse o conceito de pessoa e o bem jurídico que com aquela norma se protege;

III. Assim não se entendendo, na douta Decisão recorrida foram violados aqueles preceitos legais.

IV. Por outro lado, tal como decorre do disposto no n.º 1 do Art.º 30.º do Código Penal, apenas podem ter relevância, para efeitos de censura penal, condutas que mereçam valorações distintas e que realizem um plúrimo tipo de crimes,

V. Já não sendo assim quando de uma mesma e única conduta, e apenas valorável pela omissão ou violação de um único dever, possa eventualmente resultar o preenchimento de vários tipos de um mesmo crime,

VI. Caso em que não se estará perante um concurso real, mas perante um concurso ideal homogéneo,

VII. Sendo esse o caso dos presentes Autos, como decorre do teor da douta Acusação e não resulta, aliás, sequer, indiciado no inquérito.

VIII. Assim, a douta Decisão recorrida violou o disposto no Art.º 30.º do Código Penal e, ainda, o disposto nos Art.ºs 308.º e 309.º do Código de Processo Civil.

Termos em que, e melhores de direito, pede seja o presente recurso provido, revogando-se o douto Despacho recorrido, mantendo-se a douta Acusação Pública.

Justiça!

*

Respondeu o MP concluindo:

1. A vida intra-uterina - no caso, o feto que estava vivo, aquando dos trabalhos de parto de D..., falecida igualmente - tem protecção constitucional directa no art. 24° nº 1) da CRP e protecção jurídico-penal no art. 137° do Cód. Penal.

2. Mortes estas que foram devidas à conduta negligente de cada um dos arguidos.

3. Cada um dos arguidos praticou dois crimes de homicídio negligente por não poderem deixar de prever que, das suas condutas de falta de atenção e cuidados requeridos para o acompanhamento do parto, as mortes do feto e da D... poderiam ocorrer, como aconteceram.

4. Em suma, deve ser negado provimento ao recurso por não ter sido violada nenhuma norma legal, nomeadamente as invocadas pelo arguido recorrente e, consequentemente, deve ser mantida nos seus precisos termos a decisão sob recurso.

Todavia, decidindo,

VOSSAS EXCELÊNCIAS FARÃO, COMO SEMPRE,

JUSTIÇA.

*

Também o assistente respondeu, concluindo:

1. Entende o ora Recorrido, contrariamente ao alegado pelo Recorrente que bem andou o Tribunal a quo na decisão instrutória proferida, em que veio a pronunciar o Recorrente pela prática de dois crimes de homicídio p.e p. pelo artigo 137°, n.º 1 e 2 do código penal.

2. De facto, no que concerne à primeira questão suscitada de merecer ou não o feto a protecção penal do crime de homicídio, sufraga integralmente o Recorrido, como o fez aliás o Tribunal a quo o entendimento defendido a este propósito pelo Professor Figueiredo Dias.

3. Sendo de facto, entendimento geral acolhido na nossa doutrina e jurisprudência nacional o de que sendo o momento do parto considerado como o momento de mais intensa exposição do ser humano que nasce, à intervenção de terceiros, o momento decisivo para que se passe a qualificar a vida intra-uterina como vida humana é o do início do processo de nascimento, seja por via natural (contracções uterinas) seja por cesariana - vide Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo I, artigo 131.°, pág. 6, anotação de Jorge Figueiredo Dias e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15/02/2006, processo n.º 0542341, disponível em www.dgsi.pt.

4. Sendo de facto tal tese a mais consonante com o nosso ordenamento jurídico, atendendo a que, a não se considerar desta forma, o feto nunca estaria protegido durante o parto, momento em que se poderão verificar inúmeros e especiais perigos.

5. Na verdade, a “tutela jurídico-penal em caso de aborto é restrita a comportamentos dolosos, pelo que, a criança ao nascer ficaria, no decurso do parto, completamente desprotegida face a ofensas (à vida, ao corpo ou à saúde) não dolosas”- vide Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo I, artigo 131.°, pág. 6, anotação de Jorge Figueiredo Dias.

6. Ora, no caso em apreço, encontrávamo-nos perante um feto completamente formado, e com vida, tendo-se já iniciado o parto, atendendo a que, a parturiente se encontrava já com contracções e dilatação quando entrou no hospital, factos estes devidamente comprovados nos autos.

7. Pelo que, se havia já iniciado o nascimento do feto, tendo o mesmo vindo a falecer durante o parto por asfixia fetal, decorrente da conduta negligente dos arguidos.

8. Existindo indícios nos autos que permitiam assim, como foi decidido pronunciar os arguidos por dois crimes cada de homicídio negligente.

9. Pelo que, em face do exposto entende o Recorrido que bem andou o Tribunal a quo, na douta decisão instrutória de pronúncia proferida, nenhum reparo à mesma havendo a fazer, pelo que de deverá manter integralmente sendo assim o recurso interposto julgado totalmente improcedente.

10. Acresce ainda que, vem por outro lado alegar o Recorrente que apenas deveria ser acusado e levado a julgamento pela prática de um crime de homicídio, uma vez que ambas as mortes terão decorrido da mesma conduta negligente.

11. Contudo, com o devido respeito por entendimento diverso, entende o Recorrido não assistir qualquer razão ao Recorrente.

12. De facto, por um lado entende o Recorrido não ser tal claro como pretende o Recorrente fazer parecer que tenha havido uma única conduta negligente por parte dos arguidos.

13. Na verdade, encontrava-se o Recorrido obrigado, de acordo com as funções por si desempenhadas a vigiar o estado de saúde da parturiente e também do feto.

14. Sendo que omitiu tais deveres, não tendo monitorizado ao sinais e registos nem da parturiente, nem do feto, apesar de bem saber que o processo de nascimento se tinha já iniciado.

15. Acresce que, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, a maioria da doutrina e jurisprudência defende o entendimento de que mesmo havendo uma única conduta negligente, verificam-se tantos crimes quanto a vítimas que de tal conduta resultarem.

16. De facto, veja-se a título de exemplo os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 15/04/2009, proc. n.º 7403/08 - 4a Sec. e de 16/05/2007 in www.dqsi.pt.

17. Pelo que, se de uma conduta negligente resultar a morte em mais de uma pessoa, há tantos crimes de homicídio por negligência quantas as mortes/vítimas.

18. Pelo que, “dever-se-á considerar que o agente comete tantos crimes quantos os resultados que previu ou devesse ter previsto, posição que alicerçamos nos ensinamentos de Figueiredo Dias (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 1, p. 114, em anotação ao art. 137° do Código Penal), Pedro Caeiro e Cláudia Santos, (in RPCC, n.°6, p. 127 a 142, em anotação ao Acórdão da Relação de Coimbra de 6 de Abril de 1995). No mesmo sentido, vide Reis Bravo, "Negligência, unidade de conduta e pluralidade de eventos", Revista do Ministério Público, n.°71, 3° semestre de 1997, p. 97.”

19. Sendo que, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, entende o Recorrido que o artigo 30.° do Código Penal conduz precisamente à conclusão de que uma mesma conduta, seja negligente ou dolosa (atendendo a que o artigo não distingue) é punida pela prática de tantos crimes quantas as mortes ou vitimas.

20. De facto, não se poderá defender, com o devido respeito por entendimento diverso, que a morte de uma ou de dez pessoas, a título de exemplo, em consequência de uma única conduta, deve ser tratada da mesma forma, apenas sendo o agente julgado pela prática de um único crime.

21. Na verdade, mesmo sendo uma conduta única, o certo é que foi violado o direito à vida de diversas pessoas, cada uma merecendo a sua própria e necessária protecção penal, sob pena de entrarmos num esquema de ser a negligência premiada.

22. Sendo ainda de referir no sentido defendido pelo Recorrido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/10/2010, proc. n.º 195/07.2GTCTB.C1, onde se pode ler, a posição defendia pelo Professor Eduardo Correia: “Pelo que se diversos valores ou bens jurídicos são negados, outros tantos crimes haverão de ser contados, independentemente de, no plano naturalístico, lhes corresponder uma só actividade (...)”.

23. Sendo ainda de salientar em tal acórdão a vasta referência a doutrina e jurisprudência no mesmo sentido.

24. Pelo que, em face do exposto, também neste ponto deve improceder na totalidade o recurso, mantendo-se assim integralmente a douta decisão instrutória recorrida.

Termos em que, deve negar-se provimento ao recurso apresentado, mantendo-se integralmente o douto despacho recorrido, assim fazendo-se inteira

JUSTIÇA!!

*

Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, em douto parecer, suscita a questão prévia da irrecorribilidade do recurso e pugna pela improcedência do recurso, concluindo:

“Questão Prévia


Vem o recurso interposto pelo arguido A...da decisão instrutória, proferida em 22.06.2012 e inserta a fls. 934, que o pronunciou, além de outra, pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo artº 137º, nºs 1 e 2, do CP.

Com efeito, naquela decisão, refere-se:

Nestes termos, e procedendo à avaliação de todo o complexo probatório angariado no processo e aderindo às razões de facto enunciadas na acusação pública e às razões de direito invocadas no RAI do Assistente C... – nos termos do artº 307º, nº1, do C.P.P. – pronuncio, para julgamento perante Tribunal Colectivo, os arguidos…. pela prática, por cada um, em autoria material, na forma consumada e em concurso real de dois crimes de homicídio por
negligência, p. e p. pelo artº 137º, nºs 1 e 2, do CP.

Ora, se analisarmos a Acusação deduzida pelo MP e RAI apresentado pelo Assistente – temos que a factualidade vertida na primeira peça processual se mantém integralmente, sendo igualmente certo vir subsumida à prática do mesmo tipo legal, ou seja, ao crime de
homicídio por negligência, p. e p. pelo artº 137º, nºs 1 e 2, do CP.

O que, resultou da realização da instrução, foi tão só a imputação não de um crime mas de dois crimes da mesma natureza, em conformidade com o requerimento da instrução apresentada pelo assistente.

Assim, a questão que suscitamos tem a ver com a admissibilidade/inadmissibilidade do recurso da decisão instrutória, no caso concreto.

Na verdade, estamos em crer que, no caso em apreço, nos termos do estabelecido no artº 310º, nº1 do CPP, será inadmissível, na medida em que vem interposto de uma decisão instrutória que pronunciou o arguido pelos factos constantes da acusação deduzida pelo MP, onde se imputa o mesmo tipo de ilícito penal, tendo aquela obedecido ao estabelecido no artº 283º do CPP.

Por outro lado, a decisão instrutória não sofre de nulidade, nomeadamente da apontada no artº 309º do CPP (note-se que a existir, teria de ser arguida no prazo de oito dias, contados da data da decisão). Face ao exposto, parece-nos que o recurso do arguido do despacho de pronúncia proferido, com todo o respeito por opinião contrária, na nossa perspectiva, é legalmente irrecorrível e, em conformidade deverá ser rejeitado, nos termos dos artºs 310º, nº1, 414º, nºs 2 e 3 e
420º, nº1 al. b), todos do CPP.

Porém, ressalvando sempre a hipótese de diverso entendimento, diremos

1 – Do recurso

Fls. 957/961 – Impugna o Arguido A...a decisão instrutória (fls. 934/942), que o pronunciou pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo artº 137º, nºs 1 e
2, do CP, que lhe vinha imputado (1) pelo MP e (2) pelo assistente.

Responderam, à motivação apresentada pelo arguido, o MP na 1ª instância e o Assistente pugnando ambos pela manutenção do decidido - cfr. fls. 975/978 e 1044/1055 –, respectivamente.

Cumpre-nos emitir parecer.

A instrução, nos termos do disposto no artigo 286º n.º 1 do Código de Processo Penal, tem por objectivo a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Trata - se de uma fase facultativa, com carácter processual, a qual visa, sinteticamente, a comprovação processual da decisão do Ministério Público de acusar ou de arquivar o inquérito.

Não se pretende a formulação de qualquer juízo sobre o mérito, mas tão só um juízo sobre a acusação, em ordem a verificar da admissibilidade da submissão do arguido a julgamento com base na acusação que lhe é formulada. Tem uma dupla finalidade, como diz Maia Gonçalves, in "Código de Processo Penal Anotado e Comentado", 12ª Edição, 2001, p. 572, a de
garantia para o arguido e a de sindicância da actuação do Ministério Público, finda a fase de inquérito.

No caso em apreço a pretensão da recorrente é a anulação do despacho de pronúncia e sua substituição por outro que não pronuncie o recorrente arguido pelo cometimento de dois ilícitos penais mas tão só da prática de um crime como lhe vinha imputado, na acusação do MP.

Ora, o artº 308º, nº1 do CPP, dispõe:

 “Se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Nesta fase processual, não se pede ao juiz, a convicção do crime para pronunciar o arguido.

Basta-se a lei com a existência de indícios suficientes, ou seja, com
uma probabilidade razoável.

Assim, para que se acuse ou pronuncie um arguido há que dos elementos recolhidos nos autos extrair-se uma convicção de que existe uma probabilidade mais positiva do que negativa de que determinado crime foi cometido.

O juízo (objectivo) que subjaz a tal decisão tem, necessariamente, de se fundamentar em provas recolhidas nos autos.

Assim, no culminar da fase de instrução, e como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/03/2006 [arresto do qual relator o Exmo. Sr. Juiz Desembargador, Dr. Joaquim Gomes, processo 0516874, disponível no site www.dgsi.pt], o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases:

 “Em primeiro lugar a um juízo de indiciação da prática de um crime, ou seja, a uma indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada.

Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação
desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido.

Por último efectuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se possa concluir que predomina uma razoável possibilidade do arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efectuar em julgamento”

Temos pois, que a pronúncia só deve ter lugar quando tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.

Donde, cumpridas tais observações, reputamos a prova indiciária recolhida suficiente para a prossecução dos autos contra o recorrente, nos termos em que foi pronunciado, pelas razões doutamente produzidas na resposta do Ministério Público junto da 1ª Instância e Assistente, que acompanhamos e nos dispensam de quaisquer outros comentários, sem olvidarmos a douta motivação aduzida na própria decisão instrutória posta em crise que, estamos em crer, não merecerá qualquer censura.

3. Pelo exposto, sem necessidade de quaisquer outros considerandos, vai o nosso parecer no sentido do improvimento do recurso do arguido.”

*

Cumprido o art. 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido A...exerceu o seu direito de resposta, concluindo:

1. Como se refere no douto Parecer ora em apreço, sem dúvida que a douta Acusação/Pronúncia não teve decerto em vista a apreciação do mérito mas, tão só, a existência de indícios para que fosse proferida acusação/pronúncia.

2. Não estando isso em causa, o que importa é se ao Arguido/Recorrente pode, com os indícios existentes nos Autos, ser imputada a prática de um ou de dois crimes,

3. O que é relevante, designadamente, para a determinação do Tribunal competente (se o Tribunal Singular ou o Tribunal Colectivo).

4. Assim, dando-se por reproduzido o alegado na motivação de recurso, existe alteração de facto na matéria da pronúncia, relativamente à fundamentação de facto da douta Acusação.

5. Aliás, estranha-se que o Ministério Público, nesse particular, tenha agora posição diferente da que foi assumida e defendida, quer na douta Acusação, quer, mesmo, no debate instrutório, em alegações orais.

Termos em que, e, sempre, sem prejuízo do maior respeito pela opinião contrária, se mantém o alegado e concluído na motivação de recurso.”

*

Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Do objecto do recurso:

De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, e com jurisprudência pacífica e constante, designadamente do STJ, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.

As conclusões acima transcritas circunscrevem o recurso às seguintes questões:

- os factos indiciados descritos na acusação do MP integram a prática de um crime p.p. no art 137º, nºs 1 e 2 ou antes, a prática de dois crimes pp art 137º, nºs 1 e 2 do CP;

- os factos constantes da acusação consubstanciam um concurso ideal homogéneo.

2. Do mérito do recurso:

Questão prévia:

Importa decidir se no caso vertente se configura uma situação de inadmissibilidade legal da instrução por o requerimento de abertura de instrução pretender operar uma alteração da qualificação jurídico-penal adoptada na acusação quanto aos factos, o que reconduz à discordância quanto à qualificação jurídica dos factos apurados.

A Lei nº 48/2007 de 29.08 resolve expressamente o problema da alteração da qualificação jurídica na instrução, rejeitando a solução da livre qualificação jurídica e a da vinculação estrita do juiz de instrução à qualificação jurídica da acusação.

A solução por que o legislador optou impõe que o JIC proceda nos mesmos termos da alteração não substancial dos factos, já defendida no TRC de 17/04/2002 ( CJ, XXVUU, 2, 52.

Acresce que a Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, aditou ao art. 358º, do C. Processo Penal o nº 3, instituindo o regime legal da alteração da qualificação jurídica: é equiparada à alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, havendo lugar à sua comunicação ao arguido que poderá requerer prazo para a preparação da defesa. Desta forma, desde que assegurado o contraditório, o tribunal pode qualificar juridicamente os factos descritos na acusação ou na pronúncia, ainda que da alteração resulte a condenação do arguido pela prática de crime mais grave do que o ali imputado.

O Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar a constitucionalidade da interpretação consagrada na alteração legislativa (cfr. Acs. nºs 279/95, 16/97 e 446/97), assegurada que seja a possibilidade de defesa do arguido, os princípios do direito de defesa e do contraditório, sem esquecer que a liberdade da qualificação jurídica dos factos assegura a própria independência do tribunal.

Reportando-nos aos autos é inquestionável que a pronúncia operou uma alteração da qualificação jurídica dos factos ( os factos integram a prática não de um mas de dois crimes de p.p. art 137º, nºs 1 e 2 do CP) descritos na acusação,  dela podendo resultar um agravamento do sancionamento dos arguidos. Mas este agravamento, que opera pela mera alteração da qualificação jurídica, não significa uma qualquer alteração substancial dos factos imputados.

Idêntico regime se estabelece no art 303º, nºs 1 e 5 do CPP, pelo que resulta claro que o assistente pode requerer a abertura da instrução com a finalidade de corrigir a acusação no âmbito e com os fundamentos assinalados.

Improcede pois a questão prévia.

*

2.1. É do seguinte teor a decisão de pronúncia:

«DECISÃO INSTRUTÓRIA

Data: 22-06-2012        

Arguido: A...e outro(s)...        

Declaro encerrada a instrução          

*         

O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.  Não há nulidades ou questões prévias que cumpra conhecer.          

*         

Proferida a acusação pública de fls. 603 e ss., veio o assistente C... requerer a abertura desta fase processual com os fundamentos constantes do rai de fls. 705, que qui se dá por reproduzido e que, no essencial, consubstanciam a discordância quanto ao número de crimes imputados aos arguidos; pugnando pela pronúncia dos mesmos pela prática em concurso real de dois, e não de um, crimes de homicídio por negligência. *Foi declarada aberta a instrução e procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância do devido formalismo legal, com formulação a final de conclusões pelo M.P., assistentes e arguidos. *O âmbito da instrução: A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende da existência de Indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art. 308.º, n.º 1, do cód. proc. penal).          Os indícios são suficientes, na perspectiva do normativo invocado, quando, em face dos mesmos, seja em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. art. 283.º, n.º 1 ex vi do art.º 308.º, n.º 2, ambos do cód. proc. penal). A concretização do que sejam “indícios suficientes” assume fulcral importância nos ulteriores desenvolvimentos e  metodologia  empregue   na apreciação   do   processado.   Assim,   referia-se   Cavaleiro   Ferreira   aos   indícios, por   aproximação   às   presunções   naturais   civis,   nos   seguintes   termos:   -  “A prova indiciária é prova indirecta. Os factos probatórios indiciários são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos por meio de raciocínio em regras da experiência comum, ou da ciência, ou da técnica”(). A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária. Como refere Germano Marques da Silva, o indício é  um  meio de prova e todas as provas são indícios “enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime” . É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no art. 308.º, do cód. proc. penal. Chama-se também a atenção para o facto de, nesta fase preliminar do  processo,  não  se  visar “alcançar  a  demonstração  da realidade  dos   factos”(),  mas  apenas sinais de que o  crime se verificou, praticado   por  determinado arguido. Como conclui Germano Marques da Silva(), “As provas recolhidas nas fases preliminares  do  processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento” . Interpretando o exposto, nesta fase preliminar que é a instrução, não se pretende   uma   espécie   de   “julgamento   antecipado”   nem   um   juízo   de   certeza moral   e   de   verdade   que   são   pressupostos   da   condenação,   mas   tão   só   a verificação de existência de indícios de que determinado crime se verificou e que existe uma probabilidade séria, aferida pela positiva e objectivamente, de que o mesmo foi praticado por um ou mais arguidos, e assim se apreciando a decisão   do   Ministério   Público   ou   do   Assistente   de   acusar.   Nessa   verificação deverá no entanto o julgador interpretar criticamente e no seu prudente arbítrio os indícios recolhidos em sede de inquérito e instrução. Em qualquer dos casos essa verificação da suficiência de indícios não implica   a   apreciação   do   mérito   da   acusação,   no   mesmo   sentido   em   que   tal ocorre   na   audiência   de   julgamento,   mas   apenas   se   julga   da   verificação   dos pressupostos de que depende a abertura da fase de julgamento.

No  caso decidendo,  os   indícios  e  o  contexto   factológico   descrito   na acusação   pública não   foram   postos     em    causa;    impondo-se-nos  somente apreciar   se   a   actuação   de   cada   um   dos   arguidos   consubstancia   um   ou   dois crimes de homicídio por negligência.         Pugna o assistente que o Ministério Público andou mal ao desconsiderar o   bem   jurídico   vida   corporizado   pelo   feto;   não   o   protegendo   ao   arrepio   da tutela jurídica concedida pelo nosso ordenamento jurídico-penal. Porquanto a vida    humana,       para    efeitos    penais,    é   considerável       a   partir  do    início  do nascimento. Vejamos então:

Estabelece o art. 137.º, do cód. penal, que: «1. Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2. Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos». O  tipo-de-ilícito  negligente,  contextual  e  estruturalmente   divergente dos tipos comissivos dolosos, tem os seus elementos   constitutivos   parcialmente traduzidos no artigo 15.º, do cód. penal, na parte em que considera que age com negligência todo aquele que não proceda com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que era capaz. Este normativo  expressa que: «Age com  negligência   quem,   por   não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de   que   é   capaz: a)  -   Representa   como   possível   a   realização   de   um   facto correspondente   a   um   tipo   de   crime,   mas   actua   sem   se   conformar   com   sua realização; b) - Não chega sequer a representar a possibilidade da realização do facto».

Daqui  se  alcança  que  a lei  penal  distingue  duas    modalidades  de negligência: a consciente (referida na antecedente al. a)), que é a mais grave, quase nas  fronteiras do dolo eventual, mas    que    dele   se   distingue,   e  a inconsciente que se observa quando o agente não previu, como podia e devia ter previsto, a realização do acontecimento (al. b)).

Integrando  um    especial   tipo de censurabilidade, a negligência reflecte-se numa atitude pessoal, caracterizada num ilícito típico, de descuido ou leviandade face às exigências do dever ser jurídico-penal. «A negligência é um   tipo   especial   de   punibilidade   que   oferece   uma   estrutura   própria,   quer   ao nível do ilícito, quer ao nível da culpa. (...) determina-se, no fundo, segundo duplo critério;  de um  lado, examina-se  que  objectivamente devido para evitar a violação involuntária de um bem jurídico, perante   uma   dada e   concreta   situação    de   perigo,   e   de   outro   lado,  se   tal comportamento  poderá  ser exigido   pessoalmente  àquele  agente  segundo   as suas características e capacidades individuais ».() Para a concreta integração e integral  preenchimento do tipo,  a negligência postula a verificação de um conjunto de pressupostos específicos.

Neste   contexto,   surge prima   facie   a   exigência   de   uma   previsibilidade objectiva      do   perigo     de   realização     típica,   não    como     uma     previsibilidade absoluta, mas determinada de acordo com as regras gerais da experiência dos homens, ou de certo tipo profissional de homem

O    critério   delimitador     desta    previsibilidade      encontra-se      no   homem médio      e   consubstancia-se         na   exigência      de   que    a   atenção      do   homem consciente e cuidadoso tivesse podido advertir do perigo de violação do bem jurídico pela conduta adoptada. É, portanto, imperiosa a omissão do dever, a inobservância do cuidado objectivamente adequado à produção do resultado típico.          

In casu, face à quadro fáctico supra  indiciado, é incontroverso que os arguidos  agiram  imprudentemente e com  violação das legis    artis  da enfermagem em bloco de partos, o que consubstanciou a génese do decesso da D... e do feto. Este, em virtude de asfixia fetal.         

Ora, indicia-se com suficiente certeza de que, quando o feto faleceu, a D... se encontrava em trabalho de parto. E também dúvidas não há  que,  quando  esta   foi  internada     no   Serviço    de   Obstrectícia     do   Hospital E..., o feto ainda estava vivo. Afirma-se, portanto, e sem margem para dúvidas o nexo de causalidade entre a conduta negligente dos arguidos e o decesso do feto. Aqui chegados, cumpre-nos decidir sobre a possibilidade do objecto do crime de   homicídio   negligente   preconizado   pelo   assistente   e   reconduzido   ao feto.

A esta questão, entendemos responder positivamente. Arredando a tese de  que   o    feto só  é susceptível de protecção  jurídico-penal,    em termos de homicídio por negligência, quando ocorra o nascimento com vida. Não deixando de representar um entendimento sufragado por uma parte importante   da   Doutrina,   nomeadamente   entre   nós,   Maia   Gonçalves   e   tanto quanto alcançamos Leal-Henriques - Simas Santos (Código Penal Anotado, 3.ª, pág. 15) – onde se expressa que: «Portanto, para haver homicídio é preciso que o sujeito passivo seja   um    ser   vivo.   Isto  é:  que    tenha    já  iniciado    o  nascimento       (a protecção   legal   dirige-se,    pois,   a  uma     vida   extra-uterina)»; afigura-se-nos eticamente  mais válida  a  inteleção  propugnada  pelo  Prof.  Figueiredo  Dias  (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Tomo I, pág. 6). Este ilustre penalista fazendo eco da  doutrina   e   da   jurisprudência   maioritária   quer  na  Alemanha quer   em   Itália   –   preconiza   ser   perfectível   a   concepção de que  a   protecção dispensada  ao   crime de homicídio, verifica-se  não   com   a  “completação  do processo de nascimento”, mas antes “com o início do acto de nascimento”

Esta inteleção – nitidamente emergente da carência de estabelecer uma  correspondência   entre   a   especial   força de tutela jurídico-penal e   os   perigos que podem verificar-se no decurso do processo de nascimento, tanto mais (…) quanto   a tutela jurídico penal em   caso de aborto   é   restrita   a   comportamentos dolosos” -, postula “que o fim de protecção da norma do homicídio impõe que a morte   dada   durante   o   parto,   seja   qual   for   a   via   pela   qual   esta   se   opere,   se considere já um verdadeiro homicídio, antes que um mero aborto”. Não   escondendo  as   dificuldades  que      sempre       encerrará a determinação   do  momento       do   início   do    acto de nascimento, defende-se nessa   sede   como   melhor   solução,   aquele   em   que   “se   iniciam   contracções ritmadas,   intensas   e   frequentes   que   previsivelmente   conduzirão   à   expulsão do feto”. Neste sentido, veja-se a título de exemplo a jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto, corporizada no acórdão de 15 de Fevereiro de 2006, no âmbito do processo n.º 0542341 (in www.dgsi.pt).         

Cotejando, então, os indícios recolhidos em sede de inquérito, que não lograram ser abalados em sede de instrução e aderindo à intelecção jurídica aduzida pelo assistente – maxime no que diz respeito à existência de vida do feto   no   momento   de   que   se   iniciou   o   trabalho   de   parto   -,   entendemos   ser imputável,      a   cada    um    dos   arguidos     e   em    concurso     real,   dois   crimes     de homicídio, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1 e 2, do cód. penal.

Decisão:         

Nestes termos, e procedendo à avaliação de todo o complexo probatório angariado no processo e aderindo às razões de facto enunciadas na acusação pública e às razões de direito invocadas no rai do assistente C... –  nos    termos     do   art.   307.º,    n.º  1,   do   Cód. Proc. Penal, pronuncio, para julgamento perante Tribunal Colectivo, os arguidos:          A...; e B... – melhor id. a fls. 603; pela prática, por cada um, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º, números 1 e 2, do cód. penal.

Prova:

 A indicada na acusação pública.

 Medidas de coacção

Considerando os elementos constantes dos autos, determina-se que os arguidos continuem a aguardar os ulteriores trâmites do processo sujeitos às obrigações decorrentes do TIR, já prestados.

*

Sem custas.      

*        

Oportunamente, remeta os autos para julgamento.         

Notifique.».

*

2.2.

A dedução de acusação findo o inquérito, como o despacho de pronúncia no caso de ter havido lugar a instrução, supõem a existência no processo de indícios suficientes de que se tenha verificado crime e de quem foi o seu agente - artigos 283.º, n.º 1 e 308.º, n.º 1, do CPP.

O recorrente não discute a factualidade indiciada.

Pretende apenas que a previsão do Art.º 137.º, n.º 1 do Código Penal se reporta a "pessoas" já completamente nascidas e com vida, ou seja, titulares da vida humana são somente as pessoas singulares vivas, ou seja, a partir do nascimento.

E defende ainda que - mesmo que se considere que pode praticar-se o crime de homicídio contra feto em início de trabalho de parto -, ocorrendo a morte juntamente com a mãe parturiente, em consequência de um mesma conduta, existe meramente concurso "ideal" de crimes.

Primordial é definir o momento em que começa a vida para efeito de delimitação do âmbito de protecção da norma relativa ao homicídio.

Na literatura jurídico penal têm sido defendidas duas teses, recorda o ProfFigueiredo Dias Comentário Conimbricence tomo I, 2a edição, p.6:

- a vida começa, tal como para o direito civil é prescrito pelo art 66º, nº 1 do CC, com a “completação do processo de nascimento” - o nascimento completo e com vida;

- segundo outra tese, a protecção dispensada pelo crime de homicídio iniciar-se-ia com o início do acto de  nascimento.

Entende o referido Professor, que é de sufragar esta segunda tese, - também adoptada pela doutrina e jurisprudência dominantes na Alemanha e na Itália(tomo I, 2a edição, p. 6) - esclarecendo que o início do acto de nascimentopode verificar-se por via natural (contracções uterinas)ou por cesariana.

Tal como salienta o assistente, a não se considerar desta forma, no nosso ordenamento penal, o feto nunca estaria protegido durante o parto, momento em que se poderão verificar inúmeros e especiais perigos, uma vez que a “tutela jurídico-penal em caso de aborto é restrita a comportamentos dolosos, pelo que, a criança ao nascer ficaria, no decurso do parto, completamente desprotegida face a ofensas (à vida, ao corpo ou à saúde) não dolosas” - Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo I, artigo 131.°, pág. 6, anotação de Jorge Figueiredo Dias.

Também Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário ao Código Penal pág .344”,escreve que “(…) para os efeitos da tutela penal, a vida humana começa no início do parto, isto é, com o início das contracções ritmadas, intensas e frequentes de expulsão do feto ou, no caso de parto com cesariana, com início da intervenção médica na barriga da mulher (...) Deste modo, a morte causada pelo médico durante o parto por descuido não é aborto negligente (que seria impune) mas antes homicídio negligente”.

Reportando-nos aos factos indiciados, resulta do ponto 3 da acusação “Nesse dia 12/05/2010, pelas 4,21 horas, D... deu entrada na Urgência do Serviço de Obstetrícia/Bloco de Partos do Hospital E..., nesta cidade de Aveiro, em fase inicial de trabalho de parto.”.

Além de que consta do ponto 5 da acusação: “Estando em início de trabalho de parto mas com dores pélvicas significativas, foi sujeita a analgesia epidural (...)”. O que consente a forte indiciação de que no caso em apreço se iniciara já o parto e que a morte do feto por asfixia fetal, se deveu a uma conduta negligente dos arguidos que não tendo agido com o cuidado e atenção devidos, deixaram passar um longo período de tempo sem verificar a situação da parturiente, o que tornou impossível a reversão da paragem cardio-respiratória de D.... Aliás, resulta do relatório do Hospital E... E.P.E., elaborado aquando do internamento de D... - com o feto vivo - e constante de fls. 33 a 37 que esta se apresentava com contracções moderadas e dilatação de 2/3 cm. E do relatório de colheita de dados de enfermagem da Obstetrícia, constante de fls. 56 a 65, que D... deu entrada queixando-se contracções uterinas dolorosas.

Bem andou pois o Juiz de Instrução ao concluir pela prática de um homicídio por negligência, relativamente ao nascituro.

2.3 Do concurso de crimes

O art.30.º, n.º1 do Código Penal estatui que “ o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”

Na esteira do Ac da Rel. de Coimbra de 23-11-2005 - relator Des. Orlando Gonçalves, -o critério de destrinça da unidade e pluralidade de crimes terá de ser resolvido no âmbito de uma teoria jurídica. Se a acção tem uma estrutura valorativa, como negação de valores ou interesses pelo homem, há-de ser o número de acções assim entendidas que há-se determinar a unidade ou pluralidade de infracções. Assim, “ se diversos valores ou bens jurídicos são negados, outros tantos crimes haverão de ser contados, independentemente de, no plano naturalístico , lhes corresponder uma só actividade, isto é, de estarmos perante um concurso ideal.”- “ Direito Criminal”, Vol. II, páginas 198 a 200.

O art.30.º do Código Penal equipara os casos de concurso real aos de concurso ideal de infracções.

O fundamento principal da punição da negligência radica no facto do agente não ter querido, em face do conhecimento de que certos resultados são puníveis, preparar-se para, perante certa conduta perigosa, os representar justamente (negligência consciente) ou mesmo para os representar (negligência inconsciente).

“ O problema de se decidir se num caso concreto existe um ou vários crimes é obviamente diverso do de determinar se tais crimes se devem considerar dolosos ou culposos ” e , “ do mesmo modo que é lícito reprovar a actividade do agente, quando de dolo se trate, tantas vezes quantas as lesões jurídicas que ele quis produzir, igualmente é possível censurar a sua conduta por negligente tantas vezes quantas as lesões jurídicas que ele devia prever se produziriam e efectivamente vieram a ter lugar.” - Cfr. diz o Prof. Eduardo Correia “ A teoria do concurso em Direito Criminal”- Almedina, Coimbra , edição de 1983 , pág. 109.

Também o Prof. Figueiredo Dias, em anotação ao art.137.º do Código Penal, defende que “ se através de uma acção são mortas várias pessoas estar-se-á perante uma hipótese de concurso efectivo, sob a forma de concurso ideal, com absoluta indiferença por que a negligência tenha sido consciente ou inconsciente.” - "Comentário Conimbricense do Código Penal" , Tomo I , pág. 114 , apoiando o trabalho de anotação dos Dr.s Pedro Caeiro e Cláudia Santos, apresentado na “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, ano 6º, Fascículo 1º , pág.133 e seguintes.

A unidade da acção ou da omissão nos crimes negligentes não exclui a possibilidade de uma pluralidade de juízos de culpa, quando uma pluralidade de lesões jurídicas tenha sido causada, sempre que os resultados da acção lhe possam ser imputados, por poderem ter estado no seu âmbito de previsão.

Ofendendo-se vários bens jurídicos eminentemente pessoais, como a vida, a pluralidade de ofendidos determina a pluralidade de tipos incriminadores preenchidos.

Concluindo, tantas vezes quantas as lesões jurídicas o agente devia prever se produziriam e efectivamente vieram a ter lugar, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável, devendo, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes de homicídio negligente quando o agente causa a morte a várias pessoas, ainda que com uma única acção.

Sobre a questão de unidade ou pluralidade de homicídios negligentes, o acórdão do STJ de 15 de Novembro de 1998, “ Não há, em suma, do nosso ponto de vista, razão válida para se continuar a defender que, ainda que só nos casos de negligência inconsciente, o concurso ideal heterogéneo deve ser punido como um único crime. Logo, o que se impõe concluir, é que, qualquer tipo de concurso ideal – homogéneo ou heterogéneo, doloso ou negligente – se integra na previsão do art. 30.º, n.º 1 do C. Penal, o que significa que o agente que, com uma só acção, realiza diversos tipos legais ou realiza diversas vezes o mesmo tipo legal de crime, independentemente de agir com dolo ou negligência (consciente ou inconsciente), comete tantos crimes quantos os tipos preenchidos ou o número de vezes que o mesmo tipo foi realizado, a punir nos termos do art.77.º do mesmo código.”.

No mesmo sentido , o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15/04/2009, proc. n.º 7403/08 - 4a Sec.,Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/05/2007 in www.dgsi.pt)

Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/10/2010, proc. n.º 195/07.2GTCTB.C1, onde se pode ler, a posição efectivamente defendia pelo Professor Eduardo Correia:

“De outro lado, a maioria da jurisprudência, sustenta que o resultado verificado (morte e ofensas corporais, danos...) é o que se pretende evitar com as normas infringidas em causa, ou seja os artigos 137° e 148°, do CP. O art. 30°, n.° 1, do C.Penal não faz qualquer distinção entre dolo e negligência, nem entre negligência consciente e inconsciente, para decidir do concurso de crimes, preceito este que teve por fonte principal o art. 33.° do Projecto de Parte Geral do Código Penal de 1963, que acolheu a solução de EDUARDO CORREIA sobre a unidade e pluralidade de infracções. De acordo com este autor a teoria naturalística, segundo a qual a unidade da conduta é o índice da unidade do crime, não é de acolher, pois conduziria a decidir o número de crimes pelo número de acções, conduzindo a soluções inaceitáveis em casos de concurso ideal quando, com uma só acção, se viola uma pluralidade de normas (concurso ideal heterogéneo), ou várias vezes a mesma norma (concurso ideal homogéneo). Segundo EDUARDO CORREIA (Direito Criminal, Vol. II, pág. 200.), «se acção tem uma estrutura não naturalística, mas valorativa (é a negação de valores ou interesses pelo homem), há-de ser o número de acções assim entendidas que há-de determinar a unidade ou pluralidade de infracções. Ou por outras palavras: o número de infracções determinar-se-á pelo número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. Pelo que se diversos valores ou bens jurídicos são negados, outros tantos crimes haverão de ser contados, independentemente de, no plano naturalístico, lhes corresponder uma só actividade, isto é, de estarmos perante um concurso ideal.

Não merece pois qualquer censura o entendimento do JIC.

III. Dispositivo

Face ao exposto, acordam no Tribunal da Relação de Coimbra e Secção Criminal em negar provimento ao recurso, mantendo-se o despacho recorrido.

Custas pelo arguido fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.


 (Isabel Valongo - Relator)

(Joaquim Correia Pinto)