Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45/17.1GCCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: RECUSA DE DEPOIMENTO
Data do Acordão: 11/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JL CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 134.º DO CPP
Sumário: I – O art. 134.º do CPP consagra o direito de recusa a depor de quem tenha sido casado com o sujeito-arguido, relativamente a respectivos (do próprio arguido) actos comportamentais virtualmente criminais temporalmente compreendidos no intervalo de vigência da própria sociedade conjugal;

II – Inexistindo entre si qualquer subsequente (ao divórcio) união de facto, é apodíctico o inaproveitamento à …, na qualidade jurídico-processual de testemunha (ofendida), do referenciado direito legal de recusa a depor em audiência de julgamento do referido ex-marido (arguido …) concernentemente a seus relevantes actos eventualmente delitivos alegadamente produzidos em posterior época, antes se lhe impondo o correspectivo e verdadeiro dever informativo, sob pena de incursão em pessoal e pertinente responsabilização criminal, como emerge, perspícuo, da dimensão normativa integrada pelos dispositivos ínsitos sob os arts. 131.º/1, 132.º/1, 138.º/1 e 348.º/1 do CPP, e 360.º do CP.

III – A demissão pelo órgão julgador do próprio dever legal de rigorosa fiscalização da reunião dos inerentes e enunciados pressupostos, e a indevida aceitação do exercício de tal incabível direito de recusa em depor, sobremaneira comprometedores da exigível missão judicial de busca da verdade material, histórica, prático-jurídica, dessarte evidentemente inviabilizada/embaraçada/prejudicada, configura, incontornavelmente, o vício de nulidade jurídico-processual – secundária ou relativa, dependente de arguição, na circunstância prontamente efectivada pelo M.º P.º.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra:


TÍTULO I – INTRODUÇÃO


1 – Recorreu o Ministério Público – pelas peças ínsitas a fls. 203/209v.º e 210/218 (cujos teores nesta sede se têm por integrados) – da decisão judicial documentada na acta de fls. 193/196 (referente à sessão de julgamento de 03/04/2018) – cuja nulidade foi prontamente arguida por representante do mesmo órgão da administração da Justiça (M.º P.º), e judicialmente irreconhecida –, de aceitação da recusa da cidadã … em depor no âmbito do julgamento do sujeito-arguido, seu ex-cônjuge, , relativamente a respectivos actos comportamentais de si supostamente atentatórios em época posterior à dissolução (por divórcio) do próprio (de ambos) casamento, porém no decurso de pessoal compartilha residencial da unidade habitacional que fora residência do seu extinto casal, imputados na acusação de fls. 78v.º/80, virtualmente susceptíveis de integração de crime de violência doméstica [p. e p. pelo art.º 152.º/1/a)/2 do Código Penal], e, outrossim, da sentença documentada a fls. 197/201, absolutória do id.º sujeito de tal assacado ilícito criminal, por nuclear efeito dessa opcional declinação informativa a tal propósito da id.ª , e do silêncio do próprio arguido, essencialmente pugnando (o M.º P.º) pelo reconhecimento por esta Relação do contextual incabimento do direito de recusa a depor prevenido sob o art.º 134.º/1/b) do Código de Processo Penal (CPP) e pela consequente determinação de reabertura da audiência para correlata prestação de depoimento testemunhal pela referida pessoa e subsequente valoração judicial do respectivo conteúdo – vd., máxime, quadros-conclusivos das correspectivas motivações recursivas, consabidamente circunscritores do objecto, âmbito e fundamento do manifestado dissídio.

2 – O id.º arguido pronunciou-se pela inconsistência/inconsequência jurídica do respeitante argumentário e pela decorrente improcedibilidade dos sinalizados recursos, (vide peça processual de resposta, a fls. 226/229v.º, cujo conteúdo nesta sede outrossim se tem por integrado).

3 – Nesta Relação foi emitido parecer por Exm.ª representante do mesmo órgão da administração da Justiça, recorrente, em sentido concordante com a tese e pretensão recursória, (vide peça de fls. 235/238).


TÍTULO II – FUNDAMENTAÇÃO

CAPÍTULO I – RECURSO INTERLOCUTÓRIO


1 – Com o devido respeito por diverso entendimento, máxime pelo enunciado do competente órgão julgador[1], reconhece-se, de facto, a recursivamente apontada ilicitude da sua aceitação da enunciada recusa em depor da id.ª cidadã , incontornavelmente comprometedora da validade do respectivo acto jurídico-processual, e, decorrentemente, da própria sentença, pela seguinte ordem-de-razões:

1.1 – Estabelece-se sob o referenciado normativo do art.º 134.º/1/b) do CPP que se pode recusar a depor no respectivo âmbito processual, mormente em fase de julgamento – que ora releva –, quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem […] com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.

Como é bom-de-ver, em razão da cristalinidade da respectiva proposição, consagra-se aqui o direito de recusa a depor:

1.1.1 – De quem tenha sido casado com o sujeito-arguido, relativamente a respectivos (do próprio arguido) actos comportamentais virtualmente criminais temporalmente compreendidos no intervalo de vigência da própria sociedade conjugal;

1.1.2 – E/ou de quem, embora com ele não houvesse casado, ou dele já se encontrasse divorciado, tenha vivido em união de facto – definida sob o art.º 1.º/2 da Lei n.º 7/2001, de 11/05, na versão introduzida pelo art.º 1.º da Lei n.º 23/2010, de 30/08, como a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos – com o sujeito-arguido, relativamente a respectivos (do próprio arguido) actos comportamentais virtualmente criminais temporalmente compreendidos no intervalo de vigência dessa relação.

1.2 – Ora, no caso sub judice – e no que recursivamente importa –, é consensual, e bastantemente demonstrado nos autos, como exaustiva e eloquentemente elucidado na peça recursiva, que desde o decretamento do divórcio do respectivo casal, por sentença de 23/02/2017, transitada em julgado em 31/03/2017, (cfr. doc. de fls. 85/86), os ex-cônjuges – assaz desavindos (!) – e (arguido no âmbito deste processo) não mais restabeleceram entre si qualquer similar convivência íntima, meramente havendo concedido – por respeitante acordo de 23/02/2017, então judicialmente homologado – em continuar a viver, separadamente, na mesma casa (dos pais de …), até à partilha dos bens comuns, (cfr. docs. de fls. 126/128, 173/174 e 149/153).

1.3 – Por conseguinte, inexistindo entre si qualquer subsequente (ao divórcio) união de facto – de resto pessoalmente intransmitida no oportuno momento procedimental, (cfr. acta de fls. 193/196) –, é apodíctico o inaproveitamento à id.ª cidadã …, na qualidade jurídico-processual de testemunha (ofendida), do referenciado direito legal de recusa a depor em audiência de julgamento do referido ex-marido (arguido …) concernentemente a seus relevantes actos eventualmente delitivos alegadamente (pela sinalizada acusação de fls. 78v.º/80, sob os respectivos pontos 8 e seguintes) produzidos em posterior época, antes se lhe impondo o correspectivo e verdadeiro dever informativo, sob pena de incursão em pessoal e pertinente responsabilização criminal, como emerge, perspícuo, da dimensão normativa integrada pelos dispositivos ínsitos sob os arts. 131.º/1, 132.º/1, 138.º/1 e 348.º/1 do CPP, e 360.º do Código Penal.

1.4 – Logo, a demissão pelo órgão julgador do próprio dever legal de rigorosa fiscalização da reunião dos inerentes e enunciados pressupostos, e a indevida aceitação do exercício de tal incabível direito de recusa em depor, sobremaneira comprometedores da exigível missão judicial de busca da verdade material, histórica, prático-jurídica – postulada pela normação ínsita sob os arts. 322.º/1, 323.º/a)/b), 340.º/1 e 348.º/3/5, máxime, do CPP –, dessarte evidentemente inviabilizada/embaraçada/prejudicada, configura, incontornavelmente, o vício de nulidade jurídico-processual – secundária ou relativa, dependente de arguição, na circunstância prontamente efectivada pelo M.º P.º, embora imprecisamente, sem compreensível caracterização jurídica, (cfr. referida acta de fls. 193/196) – prevenido sob o art.º 120.º/2/d), parte final, do CPP, inelutavelmente invalidativo do próprio/específico procedimento, bem como, naturalmente, da sinalizada e consequente sentença absolutória, por efeito da estatuição normativa do art.º 122.º/1 do mesmo compêndio legal, (vd., neste sentido, acórdão desta Relação de Coimbra de 03/06/2015, produzido no âmbito do Proc. n.º 9/12.1PELRA-G.C1[2], in http://www.dgsi.pt/jtrc).

2 – Impor-se-á, pois, a procedência do correlato recurso intercalar, com a consequente determinação de reabertura da audiência de julgamento para pertinente inquirição da id.ª cidadã …, na qualidade jurídico-processual de testemunha (ofendida), acerca dos assacados actos comportamentais do seu ex-marido … em época posterior à dissolução do próprio casamento, por divórcio, ou seja, após 31/03/2017 – data do trânsito em julgado da respectiva sentença de 23/02/2017 –, de oportuna sopesação do valor probatório do adquirido conteúdo informativo, e de produção de nova e pertinente sentença.


TÍTULO III – DISPOSITIVO


Destarte, em função da verificada inquinação do acto de inquirição da testemunha pelo sinalizado vício de nulidade jurídico-processual prevenido sob o art.º 120.º/2/d), parte final, do CPP, o pertinente órgão colegial judicial deste Tribunal da Relação de Coimbra delibera:

1 – Decretar a respectiva anulação, bem como, decorrentemente, da própria sentença absolutória do sujeito-arguido (seu ex-cônjuge) ;

 2 – Ordenar a baixa do processo à 1.ª instância para: [a)] reabertura da audiência de julgamento – pela mesma Exm.ª Juíza de Direito –; [b)] pertinente inquirição da id.ª cidadã …, na qualidade jurídico-processual de testemunha (ofendida), acerca dos assacados actos comportamentais do seu ex-marido … em época posterior à dissolução do próprio casamento, por divórcio, ou seja, após 31/03/2017; [c)] oportuna sopesação do valor probatório do assim eventualmente adquirido conteúdo informativo, [d)] e produção de nova e pertinente resolução sentencial sobre a integralidade do objecto processual.


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Fica obviamente prejudicada a apreciação do recurso sentencial.

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Sem tributação.

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Coimbra, 28 de Novembro de 2018

Abílio Ramalho, (relator)[3]

Luís Ramos (adjunto)


[1] Representado por Exm.ª Juíza de Direito.
[2] Relatado pelo Exm.º Juiz-desembargador Jorge França.
[3] Elaborei e revi o presente aresto, (cfr. art.º 94.º/2 do C. P. Penal).