Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2651/11.9T2OVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: OBRIGAÇÃO
CONDIÇÃO SUSPENSIVA
INCUMPRIMENTO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
INCAPACIDADE ACIDENTAL
ANULABILIDADE
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INSTÂNCIA CÍVEL DE OVAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 257º, 270º E 790º DO CC
Sumário: 1.- Acordando extrajudicialmente a Ré com a Autora em receber desta a quantia de € 15.000,00, com a obrigação de a devolver, caso o recurso de revista (em que se discute a indemnização) fosse julgado totalmente procedente, a obrigação ficou sujeita a uma condição suspensiva (art. 270 CC).

2.- Verificada a condição, o incumprimento situa-se em sede de responsabilidade civil obrigacional (arts. 397, 398 e 405 CC), e não de responsabilidade civil delitual (arts.483 e segs. CC).

3.- A incapacidade negocial, designadamente por incapacidade acidental, distingue-se da incapacidade delitual, ou seja, da situação de inimputabilidade.

4.- A sanção legal para a incapacidade acidental é a da anulabilidade, exigindo-se, para além da alegação de um dos pressupostos do art. 257 nº1 (1ª parte) CC, que o respectivo facto seja notório ou conhecido do declaratário (art. 257 nº1 (2ª parte)), destinado precisamente à tutela da confiança deste.

5.- A circunstância de a impossibilidade económica tornar a prestação excessivamente difícil ou onerosa não significa que se esteja perante uma impossibilidade absoluta (superveniente e objectiva) que implique a extinção da obrigação, nos termos do art.790 CC.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1.1.- A Autora – A... – instaurou ( 22/6/2011 ) na, Comarca do Baixo Vouga, acção declarativa, com forma de processo sumário, contra a Ré – M...

         Alegou, em resumo:

Por sentença de 01/12/2008, proferida no Processo 896/06.2TBOVR, foi condenada a pagar aos pais (M… e P…) de L… a quantia global de € 35.000,00, a título de indemnização de danos não patrimoniais.

         Dessa sentença ambas as partes recorreram de apelação, com efeito devolutivo, e do acórdão da Relação do Porto, a aqui Autora recorreu de revista para o Supremo Tribunal de Justiça que, revogando o acórdão da Relação, absolveu a demandada (A…) do pedido.

         Contudo, face ao efeito devolutivo do recurso, a Autora entregou aos pais da L.., a quantia de €30.000,00, na proporção de €15.000,00 a cada um, mediante recibo de quitação, nos termos dos quais se obrigavam a devolver as quantias então recebidas caso o recurso interposto pela A... viesse a ser julgado procedente, como sucedeu.

O pai da L… devolveu à A… a quantia que lhe havia sido entregue, sendo que a ora Ré apenas devolveu €5.000,00, ficando em falta €10.000,00.

         Pediu a condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de € 10.000,00, acrescida de juros de mora legais, desde a citação.

         Contestou a Ré, defendendo-se, em síntese:

         Correspondem à verdade os factos alegados pela Autora, mas no momento da assinatura do recibo dequitação não tinha capacidade total para alcançar o significado e as consequências da sua declaração, na parte em que assumiu a obrigação de devolver o valor recebido (€15.000,00) em caso do recurso da Autora vir a ser totalmente procedente no Supremo Tribunal de Justiça.

É beneficiária de uma reforma por invalidez há aproximadamente 22 anos, resultante de uma doença de carácter permanente do foro psiquiátrico, agravada pela morte da sua filha L…, e não tem quaisquer outros rendimentos.

Deve ser qualificada como inimputável relativamente ao momento da assinatura do recibo de quitação, bem como nos momentos posteriores em que gastou os €10.000,00, o que lhe retira a culpa, e que, como não estava sob a vigilância de terceiros, ninguém deverá ser responsabilizado, nem a restituição se impõe pela equidade.

Concluiu pela improcedência da acção.

         1.2. - No saneador (fls.108 e segs.) decidiu-se julgar a acção procedente e condenar a Ré a entregar à Autora a quantia de € 10.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

         1.3. - Inconformada, a Ré recorreu de apelação (fls.120 e segs.), com as seguintes conclusões:

         A Autora contra-alegou (fls.132 e segs.) no sentido na improcedência do recurso.


II - FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. – O objecto do recurso:

         A questão essencial submetida a recurso, delimitado pelas conclusões, consiste em saber se o estado do processo permite o conhecimento do mérito da acção – a obrigação da Ré a restituir à Autora a quantia reclamada de € 10.000,00 ( o estado de incapacidade da Ré aquando da assinatura do recibo de quitação e a impossibilidade económica ).

         2.2. – Os factos provados (descritos na sentença):

1. Por sentença de 01.12.2008, proferida no processo n.º 896/06.2TBOVR, que correu termos pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Ovar, a A. foi condenada a pagar aos progenitores de L…, vítima mortal por atropelamento de comboio na Estação de Ovar, a quantia global de €35.000,00, a título de indemnização de danos não patrimoniais;

2. Os então Autores e Ré interpuseram os respectivos recursos de apelação, tendo-lhes sido atribuído efeito meramente devolutivo, na sequência dos quais o Tribunal da Relação do Porto condenou a A. a pagar €80.000,00 aos progenitores de L…;

3. Por acórdão de 25.11.2010, o Supremo Tribunal de Justiça veio

dar provimento ao recurso da A., absolvendo-a do pedido;

4. A Autora A. e a Ré M… acordaram, nos termos do documento constante de fls. 80, epigrafado “RECIBO DE QUITAÇÃO”, que aqui se dá por integralmente reproduzido e onde nomeadamente se lê:

“RECIBO DE QUITAÇÃO

M…, divorciada, contribuinte fiscal número …, residente na Rua …, declara ter recebido de A…, a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), referente ao pagamento parcial da indemnização global de €40.000,00, correspondente a 50% do montante fixado pelo Acórdão proferido nos autos de apelação que correm termos pela 2.º Secção do Tribunal da Relação do Porto – Processo n.º 896/06.2TBOVR.P1.

Declara, ainda, que aceita receber a parte restante da indemnização de €25.000,00, ou qualquer outro valor que vier a ser fixado, no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da decisão final, caso o Acórdão a proferir pelo Supremo Tribunal de Justiça confirme a decisão de condenação da A…, obrigando-se, todavia, a entregar o valor agora recebido no mesmo prazo, caso o recurso de revista interposto pela A… seja julgado totalmente procedente, ou o diferencial que se verifique no caso de a mesma decisão fixar um valor inferior ao agora recebido.

Ovar, 20 de Maio de 2010

O Declarante

(assinatura – M…)”

5. A Ré devolveu à Autora a quantia de €5.000,00, através do cheque n.º ...

         2.3. – O mérito do recurso:

         A sentença recorrida, depois de haver qualificado a defesa da Ré como de excepção peremptória ( factos impeditivos ), questionou se o alegado “tem virtualidade de impedir o direito invocado pela Autora”, para responder que a cláusula da obrigatoriedade da devolução do valor recebido ( que a Ré ataca por falta de incapacidade ) é “perfeitamente supérflua” em face do regime devolutivo do recurso para o STJ e da execução provisória, porque independentemente do convencionado, sempre seria esse o efeito legal, em caso da revogação da decisão (art.47 CPC).

         Nessa perspectiva, concluiu pela irrelevância do alegado estado de incapacidade de entendimento da Ré e deferiu a pretensão da Autora, com fundamento no enriquecimento sem causa (art.473 e segs. CC).

         Em contrapartida, objecta a Ré/recorrente dizendo que o estado do processo não permite o conhecimento do mérito da causa, por ter sido alegada a “inimputabilidade”, no momento da subscrição do recibo de quitação, o que implica a não obrigatoriedade da devolução, sendo que o enriquecimento sem causa assume natureza subsidiária, pois a não restituição tem “como norma aplicável o disposto no art.489 do CC enquadrado na responsabilidade civil por factos ilícitos”.

         A pretensão da Autora, tal como se apresenta estruturada a acção, parece emergir, em primeira linha (cf. arts.16º a 28º da petição inicial), da violação por parte da Ré da obrigação assumida, por escrito de 20 de Maio de 2010 (fls 81) de devolver à Autora o montante recebido, caso o recurso viesse a ser julgado totalmente procedente, no prazo de 30 dias após o trânsito.

         Demonstra-se que, dos € 15.000,00 efectivamente recebidos, a Ré apenas devolveu, por cheque, o montante de € 5.000,00.

         Neste contexto, o problema deve situar-se em sede de responsabilidade civil obrigacional (arts.397, 398 e 405 CC), na medida em que entre Autora e Ré foi celebrado acordo, nos termos do qual aquela pagou € 15.000,00 (referente ao pagamento parcial da indemnização global de € 40.000,00, correspondente a 50% do montante fixado pelo Acórdão da Relação do Porto na apelação nº 896/06.2TVOVR), e esta aceitou receber a parte restante da indemnização de € 25.000,00 ou qualquer outro valor que viesse a ser fixado (em caso de confirmação pelo STJ), obrigando-se a Ré a devolver o valor recebido em caso de procedência do recurso de revista, interposto pela aqui Autora – “ (…) obrigando-se, todavia, a entregar o valor agora recebido no mesmo prazo, caso o recurso de revista interposto pela A… seja julgado totalmente procedente, ou o diferencial que se verifique no caso de a mesma decisão ficar um valor inferior ao agora recebido”.

         Por conseguinte, a obrigação de devolução por parte da Ré da quantia entregue (€ 15.000,00) ficou sujeita a condição suspensiva (art.270 CC), ou seja, à procedência total do recurso de revista. Ora, verificada a condição, a Ré teria de devolver, no prazo de trinta dias, após o trânsito (conforme convencionado) o montante recebido, o que apenas fez parcialmente com a entrega de € 5.000,00, estando em dívida com o remanescente.

         Note-se que, por força do art.272 do CC, quem contrai uma obrigação sob condição suspensiva deve agir, na pendência da condição, segundo os ditames da boa fé, por forma a não comprometer a integridade do direito da outra parte.

         A Ré defendeu-se com a impossibilidade económica (arts.15º a 20º da contestação) e com incapacidade da declaração (arts.21º a 25º e 28º da contestação).

         Com efeito, alegou (art.28º) que:

“ Quando a Ré, em 20.05.2010, assinou o recibo de quitação apresentado pela Autora na petição inicial como doc. 6, não tinha capacidade total para alcançar o significado e as consequências da sua declaração, constante da obrigatoriedade da devolução do valor recebido (€ 15.000,00) em caso de o recurso da A… vir a ser julgado totalmente procedente no STJ “.

         A Ré, para sustentar a não obrigatoriedade da devolução, socorre-se do regime da responsabilidade civil por factos ilícitos praticados por inimputáveis (arts.483, 488 nº1 CC), dizendo não se justificar a indemnização com fundamento na equidade (art.489 nº1 CC), sendo este o verdadeiro enfoque da sua defesa.

         Contudo, já vimos que a situação não se enquadra no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, mas antes na responsabilidade civil obrigacional ou contratual, pelo que a alegada incapacidade terá que ser aquilatada na teoria da declaração negocial (incapacidade negocial), e não como incapacidade delitual, pois esta “não tem nada a ver com as incapacidades negociais (…) existe apenas um paralelismo na medida em que às incapacidades delitual e negocial correspondem as respectivas capacidades” (H. HORSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, pág.350).

         Uma vez que a Ré reporta a sua incapacidade ao momento da assinatura do documento de fls. 81 (em 20/5/2010), estamos perante a alegação de incapacidade acidental, regulada no art.257 do CC, cujo regime se aplica às pessoas que, em princípio, possuem plena capacidade de exercício, mas que estão transitoriamente incapacitados de representar o sentido da declaração negocial ou não têm o livre exercício da sua vontade, e daí a designação de “incapacidades naturais”.

         A sanção legal é a da anulabilidade, mas para tal é necessário, para além da alegação de um dos pressupostos do art.257 nº1 (1ª parte) CC, que o respectivo facto seja notório ou conhecido do declaratário (art.257 nº1 (2ª parte)), destinado precisamente à tutela da confiança deste.

         Verifica-se que a Ré não alegou sequer que a sua incapacidade acidental fosse notória (na acepção do nº2 do art.257 CC) ou conhecida da Autora, e esta omissão obstará à relevância jurídica da anulabilidade.

A circunstância de haver alegado (art.26º da contestação) que “(…) a A… (…) nem sequer pode alegar que, quando foi assinado o recibo de quitação desconhecia o estado de saúde da aqui Ré “ ) não é suficiente, pois uma coisa é a Autora não desconhecer o estado de saúde da Ré e outra a Autora ter conhecimento de que a Ré estava incapacitada de facto, no momento da subscrição do documento.

De resto, a procedência da anulabilidade do acordo, a coberto do art.257 CC, exigiria a prévia arguição, ainda que por via de excepção (art.287 nº1 e 2 CC), o que não sucedeu, porque todo o enfoque posto na contestação foi em termos de responsabilidade civil extracontratual.

         Uma vez que o pedido da Autora arranca do incumprimento do acordo (responsabilidade contratual), nem sequer se torna necessário convocar o instituto do enriquecimento sem causa, atenta a natureza subsidiária.

         A impossibilidade da prestação:

         Depreende-se da alegação de recurso que a Ré chama à colação a sua situação económica, ao invocar omissão da matéria alegada, o que contende com o problema da impossibilidade da prestação.

A prestação diz-se impossível quando não pode ser cumprida ou seja, quando se torna inviável a realização da prestação. É originária se for contemporânea da formação do negócio e designa-se de superveniente, quando, originariamente possível, deixou de o ser mais tarde. A impossibilidade é objectiva quando respeita a toda a gente, ou seja, quando ninguém pode efectuar a prestação, e chama-se impossibilidade subjectiva se apenas o devedor a não pode executar.

         Só a impossibilidade superveniente tem efeito liberatório da obrigação, já que a impossibilidade originária da prestação, a que se reporta o art.401 nº1 CC contende com a impossibilidade objectiva, geradora da nulidade (art.280 CC).

         A impossibilidade (originária ou superveniente) relativa à pessoa do devedor (subjectiva) só implica a extinção da obrigação se esta for infungível (por natureza ou convenção), conforme resulta do art.791 do CC, o que manifestamente não é o caso, tanto mais tratar-se, não de uma obrigação de prestação de facto, mas de uma obrigação pecuniária.

         Quanto à impossibilidade objectiva (superveniente), a circunstância de a impossibilidade económica tornar a prestação excessivamente difícil ou onerosa não significa que se esteja perante uma impossibilidade absoluta e só esta acarreta a extinção da obrigação (art.790 CC). Portanto, o devedor não se pode exonerar da obrigação quando a prestação se tornou excessivamente difícil ou onerosa, pelo que só a impossibilidade absoluta libera o devedor da obrigação, conforme argumento literal e histórico, já que não foi acolhida no Código de 1966 a teoria do “limite do sacrifício” do anteprojecto do Prof. Vaz Serra (cf., por ex., ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, II (4ª ed.), pág.66).

         Improcede a apelação, confirmando-se a sentença recorrida, embora com fundamentação diversa.

         2.4. – Síntese conclusiva:

1.- Acordando extrajudicialmente a Ré com a Autora em receber desta a quantia de € 15.000,00, com a obrigação de a devolver, caso o recurso de revista (em que se discute a indemnização) fosse julgado totalmente procedente, a obrigação ficou sujeita a uma condição suspensiva (art.270 CC).

2.- Verificada a condição, o incumprimento situa-se em sede de responsabilidade civil obrigacional (arts.397, 398 e 405 CC), e não de responsabilidade civil delitual (arts.483 e segs. CC).

3.- A incapacidade negocial, designadamente por incapacidade acidental, distingue-se da incapacidade delitual, ou seja, da situação de inimputabilidade.

4.- A sanção legal para a incapacidade acidental é a da anulabilidade, exigindo-se, para além da alegação de um dos pressupostos do art.257 nº1 (1ª parte) CC, que o respectivo facto seja notório ou conhecido do declaratário (art.257 nº1 (2ª parte)), destinado precisamente à tutela da confiança deste.

5.- A circunstância de a impossibilidade económica tornar a prestação excessivamente difícil ou onerosa não significa que se esteja perante uma impossibilidade absoluta (superveniente e objectiva) que implique a extinção da obrigação, nos termos do  art.790 CC.


III – DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:

1)

         Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

2)

         Condenar a Apelante nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário.

3)

         Remunerar o Ex.mo advogado, patrono oficioso da Ré/apelante, com os honorários legais.

        


Jorge Arcanjo (Relator)

Teles Pereira

Manuel Capelo