Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
80/20.2GABBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: PANDEMIA
COVID 19
ESTADO DE EMERGÊNCIA
VIOLAÇÃO DO DEVER GERAL DE RECOLHIMENTO DOMICILIÁRIO
DESOBEDIÊNCIA
Data do Acordão: 02/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 348.º, N.º 1, AL. B), DO CP; ARTS. 5.º E 43.º DO DECRETO N.º 2-B/2020, DE 02-04; ARTS. 5.º E 46.º DO DECRETO N.º 2-C/2020, DE 17-04; ARTS. 1.º E 3.º, N.ºS 1 E 6, DO DL N.º 28-B/2020, DE 26-06
Sumário: I – A cessação da vigência dos decretos governamentais de execução n.º 2-B/2020, de 02-04, e n.º 2-C/2020, de 17-04, destinados a perdurar durante o período de tempo neles previsto – consubstanciando, nessa medida, leis temporárias –, não implica a sua inaplicabilidade aos factos ocorridos durante o período em que vigoraram, sendo certo que o regime introduzido pelo DL n.º 28-B/2020, de 26-06, não afasta a punição da violação dos deveres contemplados, designadamente o concernente ao recolhimento obrigatório, como crime.

II – Sendo transversal a ambos os decretos os deveres que impediam sobre os cidadãos, coincidindo os mesmos, quer no que ao dever geral de recolhimento domiciliário respeita, quer quanto às eventuais consequências decorrentes da sua violação/não acatamento, existe uma previsão normativa continuada de que o incumprimento das “ordens” inerentes ao estado de excepção é passível de fazer incorrer o destinatário (da “ordem”) no crime de desobediência.

III – Estando em causa a violação do dever geral de recolhimento domiciliário, a eventual prática do crime de desobediência não prescinde de “ordem” emanada da entidade competente.

IV – A cominação da prática de um crime de desobediência não tem de ser renovada cada vez que o cidadão incumpre o dever de recolhimento domiciliário.

Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo abreviado n.º 80/20.2GBBR do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Caldas da Rainha – JL Criminal – Juiz 1, mediante acusação pública, foi o arguido HF submetido a julgamento, sendo-lhe então imputada a prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, artigo 5.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 02/04, artigo 5.º do Decreto n.º 2-C/2020, de 17/04 e no artigo 6.º, n.º 4, da Lei n.º 27/2006, de 03/07.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 25.02.2021, o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:

Pelo exposto julgo integralmente por provada a acusação e consequentemente:

a) Condeno o arguido HF pela prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, art.º 5º, do Decreto 2-B/2020, de 2 de abril, art.º 5.º, do Decreto 2-C/2020, de 17 de abril e art.º 6.º, n.º 4, da Lei 27/2006, de 3 de julho, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros).

3. Inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

1.º: O arguido impugna a douta decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do n.º 3 do art.º 412.º do CPP, por considerar que foram incorretamente julgados provados os factos nos n.ºs 2, 3, 4 e 5 que constam da douta acusação e por considerar que deviam ter sido julgados provados os factos constantes dos art.ºs 8, 9, 10, 12 e 15 da contestação por serem de relevo para a decisão da causa.

a) Os militares da GNR, PJ e FA, declararam nos depoimentos que prestaram que, no dia 09 de abril e 2020, abordaram o arguido, que lhe comunicaram que estava sujeito a um dever geral de recolhimento domiciliário, que o arguido deveria recolher à residência e que se não acatasse a ordem de recolher à residência que incorria na prática de um crime de desobediência e declararam que o arguido acatou a ordem e recolheu à residência.

b) Os militares RM e FM barbosa declararam, nos depoimentos que prestaram, que, no dia 24 de abril de 2020, cerca das 19 horas, se depararam com o arguido e com PM a beberem cerveja num banco na Rua do (…), rua onde o arguido reside e que lhes comunicaram que estavam sujeitos a um dever geral de recolhimento domiciliário, que deram ordem ao arguido e a PG que deveriam recolher às respetivas residência e que se não acatassem a ordem que incorriam na prática de um crime de desobediência. Mais declararam que o arguido e PG acataram a ordem e recolheram às respetivas residências.

c) Conforme resulta das declarações do arguido, no dia 24.04.2020, quando terminou o seu dia de trabalho, a carrinha que o transportou para o trabalho em Lisboa e que o transportou na viagem de regresso à vila do ..., deixou-o cerca das 19h00m no posto de abastecimento de combustível da Repsol, sito na proximidade do seu domicílio, onde, na loja, o arguido comprou uma cerveja para beber e iniciou a viagem de regresso a casa.

d) A testemunha PM declarou no depoimento que prestou que trabalha no continente, que saiu do trabalho em direção a casa, cerca das 19h00m, passou no posto de abastecimento de combustível da Repsol, sito na proximidade do seu domicílio, onde, na loja, comprou uma cerveja para beber e iniciou a viagem de regresso a casa, subiu as escadas que estabelecem comunicação entre o posto da Repsol e a Rua do (…), onde encontrou o arguido, também, de regresso a casa, sentaram-se no banco colocado no patamar das escadas por escassos minutos a fruir aquele momento ao ar livre, a beber a cerveja e a conversar, quando foram intercetados pelos militares da GNR.

e) Conforme resulta das declarações do arguido e do depoimento de MP, na viagem de regresso a casa, no dia 24 de abril de 2020, cerca das 19 horas, o arguido subiu as escadas que estabelecem a comunicação entre o local onde fica situado o posto de abastecimento de combustível da Repsol, e a Rua (…), onde reside, encontrou na parte final das escadas PG, que regressava do trabalho em direção à sua residência e sentaram-se no banco colocado no patamar das escadas, por escasso minutos a fruir aquele momento ao ar livre, a beber uma cerveja e a conversar.

f) À data, em 24 de abril de 2020, não era proibido adquirir bebidas alcoólicas nos postos de abastecimento combustível, bebidas que, apenas, podiam ser ingeridas no exterior, não era proibido ingerir bebidas alcoólicas na via pública, e, também, não era proibido sentar-se nos bancos existentes nos passeios das ruas e nos jardins, a beber bebidas alcoólicas.

g) Como consta da fundamentação da douta sentença recorrida, o comportamento do arguido constituía uma situação fortuita, pois o arguido regressava do trabalho e encontrou um amigo que, também, regressava do trabalho, e trazendo ambos, uma cerveja, sentaram-se no banco que existia no passeio da Rua do (…) a conversar por uns minutos, a beber a cerveja.

h) Salvaguardado o devido e merecido respeito que nos merece a Meritíssima Juiz a quo, que é muito, parece-nos, claramente, que as circunstâncias fácticas do dia 09 de abril de 2020, são totalmente distintas das circunstâncias fácticas do dia 24 de abril de 2020 e que o arguido não teve consciência de que os atos por si praticados no dia 24 de abril de 2020 constituíam incumprimento do dever de recolhimento domiciliário.

i) O Tribunal a quo não podia ter dado como provado que o arguido desobedecia a uma ordem legal, emanada de autoridade competente, que lhe foi regularmente comunicada, bem como as cominações a que estaria sujeito caso não cumprisse a mesma, pois a ordem que foi dada ao arguido no dia 09 de abril de 2020 não vigorava no dia 24.04.2020, pois a lei ao abrigo da qual a mesma ordem foi dada o Decreto 2-B/2020 de 02 de abril, tinha deixado de vigorar no dia 17 de abril de 2020, porque às 0h00m do dia 18 de abril de 2020 tinha entrado em vigor o Decreto 2-C/2020 de 17 de abril, que na alínea a) do artigo 49.º (Decreto 2-C/2020) o revogou.

j) No dia 24 de abril de 2020, o arguido não cogitou a possibilidade de estar a incumprir o dever geral de recolhimento, não teve consciência, e, consequentemente, não teve vontade de desobedecer à ordem que lhe foi dada no dia 09 de abril de 2020 (ao abrigo do Decreto 2-B/2020), que no dia 24 de abril não vigorava.

k) O arguido cumpriu a ordem que lhe foi dada no dia 09 de abril de 2020, pois recolheu ao domicílio. No dia 24 de abril de 2020, na vigência do Decreto 2-C/2020 de 17 de abril o arguido não faltou à obediência devida às ordens que lhe foram regularmente comunicadas pelos militares RM e FM, pois o arguido acatou a ordem e recolheu ao respetivo domicílio.

l) Com fundamento nos concretos meios probatórios constantes da gravação da audiência supra descritos, designadamente, nas declarações prestadas pelo arguido, nos depoimentos prestados pelas testemunhas RM, FM, FA e PJ, nos depoimentos prestados pelas testemunhas JC, JL e PM, em que o arguido/recorrente fundamenta a impugnação que deduz sobre a decisão da matéria de facto constante dos factos nºs 2, 3, 4 e 5 da douta acusação, considerados provados, e, ainda, dos art.ºs 8, 9, 10, 12 e 15 da contestação, considerados não provados, e que são de relevo para a decisão da causa, o arguido requer que seja proferida decisão sobre as questões de facto impugnadas, alterando-se a decisão sobre a matéria de facto, considerando não provados os factos 2, 3, 4 e 5 (constantes da douta acusação), ou, apenas, provado o seguinte:

2. Aquando o referido no art.º 1.º, o arguido foi informado que o não acatamento da referida ordem de recolhimento o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, ordem que o arguido cumpriu.

3. O arguido, no dia 24/04/2020, cerca das 19h foi avistado na companhia de PG, sentado num banco municipal, na Rua (…), na vila do ..., a consumir uma cerveja.

4. Ao agir como agiu no dia 24.04.2020, o arguido não teve consciência, nem, consequentemente, teve vontade de faltar à ordem que lhe foi dada no dia 09 de abril de 2020.

5. O arguido agiu sem ter consciência de que o seu comportamento era proibido por Lei.

m) O arguido requer, ainda, que seja proferida decisão sobre as questões de facto impugnadas, alterando-se a decisão sobre a matéria de facto, e relativamente à matéria constante dos artigos 8, 9, 10, 12 e 15 da contestação, que se considere provado o seguinte:

8. No dia 24.04.2020, e, também, nos restantes dias úteis do mês de abril, o arguido trabalhou numa obra em Lisboa por conta da sua entidade patronal. No dia 24.04.2020, quando terminou o seu dia de trabalho, a carrinha que o transportou para o trabalho em Lisboa e que o transportou na viagem de regresso à vila do ..., deixou-o cerca das 19h00m no posto de abastecimento de combustível da Repsol, sito na proximidade do seu domicílio, onde, na loja, o arguido comprou uma cerveja para beber e iniciou a viagem de regresso a casa.

9. Na viagem de regresso a casa, o arguido subiu as escadas que estabelecem comunicação entre o local onde fica situado no posto de combustível da Repsol, e a Rua (…), onde reside, encontrou nesse local PG que, também, regressava do trabalho em direção a casa.

10 e 15. O arguido sentou-se, uns minutos, no banco colocado no patamar das escadas na Rua …. (onde o arguido reside) a conversar com PG que encontrou naquele local, também, regressando do trabalho em direção à sua residência e bebeu a cerveja que tinha comprado nas condições referidas no n.º 8.

12. O arguido regressava do trabalho, estava a regressar ao seu domicílio pessoal, sentou-se no banco, por escassos minutos, para fruir aquele momento ao ar livre.

2º: Errada interpretação e errada aplicação do disposto nos art.ºs 348.º n.º 1 b) do Cód. Penal, 5º do Decreto 2-B/2020 de 02 de abril e 5.º do Decreto 2-C/2020 de 17 de abril:

n) Os militares da GNR, PJ e FA, no dia 09 de abril de 2020, informaram o arguido que estava sujeito a um dever geral de recolhimento domiciliário, imposto pelo disposto no art.º 5.º do Decreto n.º 2-B/2020 de 02/04, devendo recolher, de imediato, à sua residência, uma vez que não se encontrava a circular com nenhum dos propósitos das circunstâncias excecionais a que alude o art.º 5.º do referido Decreto. Mais o informaram que o não acatamento da referida ordem de recolhimento o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.

o) Ficou provado que na sequência da intervenção dos Srs. Militares da GNR, no dia 09.04.2020, e após lhe ter sido comunicado que não podia estar naquele local, o arguido obedeceu à ordem legal emanada da autoridade competente, que lhe foi dada no dia 09.04.2020, pois acatou a ordem de recolhimento e recolheu, de imediato, ao respetivo domicílio.

p) Quer nos factos ocorridos no dia 09.04.2020 quer nos factos ocorridos no dia 24.04.2020, o arguido foi interpelado pelos agentes de autoridade que o informaram que estaria a incumprir um dever geral de recolhimento domiciliário, que lhe ordenaram que recolhesse ao domicílio, ordens que o arguido cumpriu.

q) Do regime instituído pelo Decreto n.º 2-B/2020 de 2 de abril de 2020 e pelo Decreto n.º 2-C/2020 de 17 de abril de 2020, resulta expressamente que as forças policiais devem recomendar o cumprimento do confinamento, pelo que é apenas o que é apelidado de “recomendação agravada”, só no caso de incumprimento e de violação da ordem legitima emanada da autoridade competente (emanada ao abrigo da lei), de recolher ao domicílio, incorre na prática de crime de desobediência. Se receber ordem de recolher ao domicílio e se optar por não o fazer, aí sim está a incorrer num crime de desobediência.

r) Ora, no dia 09 de abril de 2020 vigorava o art.º 5.º e o art.º 46.º ambos do Decreto 2-B/2020 de 02 de abril, sendo evidente que, quando o órgão de polícia criminal advertiu o arguido de que deveria cumprir o dever de recolhimento domiciliário, apenas se limitou a enunciar e a dar a conhecer ao arguido o preceituado no Decreto 2-B/2020 de 02 de abril, não podendo, como é óbvio, constituir uma ordem legítima, para efeitos do artigo 348.º, al. b), do Código Pena, porque esta só pode ser dada na ausência de lei que o faça (mas havia …).

s) Os art.ºs 5.º, 43.º n.ºs 1 c) e 6 do Decreto 2-B/2020 estabeleciam que a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes quando praticadas em violação ao disposto no Decreto 2-B/2020, eram sancionadas nos termos da lei penal. O crime de desobediência decorria de uma disposição legal, o art.º 5.º conjugado com o art.º 43.º n.ºs 1 e 6 do Decreto 2-B/2020, cominar as condutas desobedientes a ordens legítimas das entidades competentes, no caso, a punição da desobediência.

t) A ordem dada ao arguido no dia 09 de abril de 2020 não subsistia no dia 24.04.2020, não podendo o arguido ser condenado pela prática do crime de desobediência. O agente da autoridade que emitiu a “ordem” ao arguido com a cominação de “desobediência qualificada”, fê-lo nos termos conjugados do art.º 5.º e do art.º 43.º n.º 6 do Decreto 2-B/2020, sendo certo que o Decreto apenas teve aplicabilidade no período intercorrente entre 03 de abril de 2020 e 17 de abril de 2020, não vigorava no dia 24.04.2020.

u) A douta sentença recorrida efetuou errada interpretação e errada aplicação do disposto nos art.ºs 348.º n.º 1 al. b) do Cód. Penal, 5.º do Decreto 2-B/2020 de 02 de abril e 5.º do Decreto 2-C/2020 de 17 de abril, que deveriam ter sido interpretados e aplicados ao caso sub judice, decidindo que não se mostravam preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de desobediência previsto e punido pelo art.º 348.º n.º 1 alínea b) do Cód. Penal, e, consequentemente, deveria ter absolvido o arguido do crime de que vinha acusado.

v) Com a exposta fundamentação, deve ser dado provimento ao recurso, e, consequentemente, deve ser revogada a douta sentença recorrida, sendo substituída por douta decisão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que absolva o arguido da prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, art.º 5.º, do Decreto 2-B/2020, de 2 de abril, art.º 5.º, do Decreto 2-C/2020, de 17 de abril e art.º 6.º, n.º 4, da Lei 27/2006, de 3 de julho.

3.º: Errada interpretação e aplicação do disposto no art.º 2.º n.ºs 2, 3 e 4 do Cód. Penal:

w) Nas alegações que produziu, a defesa invocou a descriminalização da inobservância do dever geral de recolhimento domiciliário, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 28-B/2020, de 2020-06-26 (com todas as alterações posteriormente introduzidas), passando a inobservância do dever geral de recolhimento domiciliário a ser punida como contraordenação, nos termos dos art.ºs 3.º e 3.º-A do referido Decreto-Lei 28-B/2020, sendo, também, punidas como contraordenação as condutas reincidentes.

x) Os militares da GNR RM, FM, FA e PJ, questionados sobre a concreta aplicabilidade do Decreto-Lei 28-B/2020, de 26.06.2020, em caso de operação de fiscalização em que detetassem uma situação do incumprimento do dever de recolhimento domiciliário, declararam unanimemente que, após a entrada em vigor do referido Decreto-Lei 28-B/2020, elaborariam um auto de contraordenação e perante a repetição de comportamentos de incumprimento do dever de recolhimento domiciliário, seria elaborado um segundo auto de contraordenação e o comportamento do incumpridor do dever de recolhimento domiciliário seria considerado como reincidente e seria responsabilizado a nível contraordenacional como reincidente.

y) Por outro lado, em situações de sucessão de leis de emergência, a aplicação retroativa da lei mais favorável deve impor-se sempre que persista como elemento constante do tipo incriminador a mesma situação de excecionalidade, como sucede no caso dos autos, pois quer nos Decretos 2-B/2020 e 2-C/2020, quer no Decreto-Lei 28-B/2020, persiste como elemento constante do tipo incriminador a situação de excecionalidade – estado de emergência, contingência ou calamidade (nesse sentido Maria Fernanda Palma – (Direito Penal – Conceito material de crime, princípios e fundamentos – Princípio da Legalidade: interpretação da lei penal e aplicação da lei penal no tempo – AAFDL Editora 2016, págs. 174 e 175.

z) Pelo que o caráter temporário associado a uma situação de excecionalidade que persiste como elemento constante do tipo incriminador, não se pode subtrair pela própria natureza, nem pode ultrapassar o princípio constitucional da igualdade previsto no art.º 29.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

aa) Pelo que, persistindo à data da entrada em vigor do Decreto-Lei 28-B/2020 (com todas as alterações que lhe foram introduzidas), a mesma situação de excecionalidade justifica-se a aplicação do Decreto-Lei 28-B/2020 que descriminaliza o incumprimento do dever de recolhimento e que o considera contraordenação, e implica a extinção da responsabilidade criminal por todos os factos passados.

ab) Ao interpretar o disposto nos art.ºs 5.º dos Decretos 2-B/2020 e 2-C/2020, e nos art.ºs 2.º e 3.º do Decreto-Lei 28-B/2020 e ao considerar que o regime contraordenacional instituído pelo Decreto-Lei n.º 28-B/2020 de 2020-06-26 era inaplicável ao caso dos autos, pelo motivo de o Decreto n.º 2-B/2020 de 02 de abril e de o Decreto n.º 2-C/2020 de 17 de abril valerem, apenas, durante os períodos das suas vigências, a douta sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente ao caso dos autos o disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 2º do Cód. Penal.

ac) O Tribunal a quo devia ter considerado que quer os Decretos 2-B/2020 e 2-C/2020 quer o Decreto-Lei 28-B/2020 incluíam entre os seus elementos típicos a situação excecional de estado de emergência, contingência ou calamidade, e deveria, ainda, ter considerado que o Decreto-Lei 28-B72020 descriminalizou a conduta de incumprimento do dever de recolhimento obrigatório e, consequentemente, deveria ter declarado extinta a responsabilidade criminal do arguido.

4.ª: A douta sentença recorrida cometeu uma inconstitucionalidade por preterição do princípio da igualdade e das garantias de defesa do processo criminal, previstos no n.º 4 do art.º 29.º e no n.º 1 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, por referência ao disposto no art.º 2.º, n.ºs 3 e 4 do Cód. Penal.

ad) Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 28-B/2020 de 26.05.2020, o incumprimento do dever de recolhimento domiciliário passou a ser considerado contraordenação e a repetição desse incumprimento passou a ser considerado contraordenação, sendo punido como reincidente.

ae) Daqui resulta que, no caso sub judice impõe-se julgar extinta a responsabilidade criminal do arguido, pela prática de um crime de desobediência 8previsto e punido pelo art.º 348.º, n.º 1, al. b), por referência ao artigo 5.º do Decreto 2-B/2020 e ao artigo 5.º do Decreto 2-C/2020.

af) Por outro lado, tal punição não se deve manter, pelo facto de a condenação pelo crime de desobediência se poder alcançar, nos termos da al. b) do art.º 348.º, n.º 1, do Código Penal, pois a ordem comunicada por órgão de polícia criminal, ao abrigo dos art.ºs 5.º e 43.º n.ºs 1 al. c) e 6 do Decreto 2-B/2020, não poderia vigorar nem ser considerada legítima no dia 24.04.2020, pois nessa data já não vigorava o Decreto 2-B/2020 de 02 de abril.

ag) Sendo forçoso concluir, portanto, que a conduta que, abstratamente podia constituir crime de desobediência, por inobservância do dever de recolhimento domiciliário nos dias subsequentes a 09.04.2020, a ter sido dada uma ordem de recolher ao domicílio, ao abrigo do Decreto 2-B/2020 de 02 de abril, deixou de o ser com a entrada em vigor do Decreto-Lei 28-B/2020 de 26 de junho.

ah) Pelo que, persistindo à data da entrada em vigor do Decreto-Lei 28-B/2020 (com todas as alterações que lhe foram introduzidas), a mesma situação de excecionalidade (estado de emergência, contingência ou calamidade), justifica-se a aplicação do Decreto-Lei 28-B/2020 que descriminaliza o incumprimento do dever de recolhimento domiciliário e que o considera contraordenação, e implica a extinção da responsabilidade criminal por todos os factos passados.

al) Ao interpretar o disposto nos art.ºs 5.º dos Decretos 2-B/2020 e 2-C/2020, e dos art.ºs 2.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 28-B/2020 e ao considerar que o regime contraordenacional instituído pelo Decreto-Lei n.º 28-B/2020 – Diário da República n.º 123/2020, 2.º Suplemento, Série I de 2020-06-26) era inaplicável ao caso dos autos, pelo motivo de o Decreto nº 2-B/2020 de 02 de abril e de o Decreto n.º 2-C/2020 de 17 de abril valerem apenas durante os períodos das suas vigências, e ao considerar a inaplicabilidade ao caso dos autos do regime contraordenacional previsto no Decreto-Lei 28-B/2020, por considerar que a retroatividade daquele Decreto-Lei não abrangia a lei temporária de emergência, a douta sentença recorrida cometeu uma inconstitucionalidade por preterição do princípio da igualdade e das garantias de defesa do processo criminal, previstos no n.º 4 do art.º 29.º e no n.º 1 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, por referência ao disposto no art.º 2.º, n.ºs 3 e 4 do Cód. Penal.

aj) O Tribunal a quo deveria ter considerado que quer os Decretos 2-B/2020 e 2-C/20220, quer o Decreto-Lei n.º 28-B/2020, incluíam entre os seus elementos típicos a situação excecional do estado de emergência, contingência ou calamidade, que o Decreto-Lei 28-B/2020 era aplicável e descriminalizava a conduta de incumprimento do dever de recolhimento e, consequentemente, deveria ter declarado extinta a responsabilidade criminal do arguido.

ak) Com a exposta fundamentação, deve ser dado provimento ao recurso, e, consequentemente, deve ser revogada a douta sentença recorrida, sendo substituída por douta decisão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que julgue extinta a responsabilidade criminal do arguido.

Como é de direito e justiça.

4. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

5. O Ministério Público respondeu ao recurso defendendo a respetiva improcedência, posição sufragada no parecer proferido pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto.

6. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º do CPP o recorrente, contrariando o parecer supra, concluiu no sentido de o recurso merecer provimento.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, no caso em apreço importa decidir se (i) incorreu o tribunal em erro de julgamento; (ii) os factos imputados ao recorrente foram descriminalizados; (iii) não se mostram perfetibilizados os elementos típicos do crime de desobediência.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença em crise [súmula parcial da decisão de facto e respetiva fundamentação da convicção, a partir da audição do registo áudio correspondente]:

Da prova produzida em audiência de julgamento resultaram provados todos os factos constantes da acusação, que este tribunal ora transcreve:

1. No dia 09/04/2020, cerca das 01h30m, junto do pavilhão municipal da vila do ..., o arguido encontrava-se na via pública a consumir bebidas alcoólicas, ocasião em que foi notificado, por militares da GNR, em exercício de funções e devidamente identificados, que estava sujeito a um dever geral de recolhimento domiciliário, imposto pelo disposto no art.º 5.º do Decreto n.º 2-B/2020 de 02/04, devendo recolher de imediato à sua residência, uma vez que não se encontrava a praticar nenhuma das circunstâncias excecionais a que alude o art.º 5.º do referido Decreto.

2. Mais foi informado o arguido que o não acatamento do referido dever geral de recolhimento e da referida ordem de recolhimento o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.

3. Não obstante a referida advertência, o arguido no dia 24/04/2020, cerca das 19 h foi avistado na companhia de PG, sentado num banco do jardim municipal da vila do ... novamente a consumir bebidas alcoólicas.

4. Ao agir da forma supra descrita, o arguido quis e conseguiu permanecer na via pública e ingerir bebidas alcoólicas, bem sabendo que se encontrava sujeito ao dever geral de recolhimento imposto pela declaração do Estado de Emergência (à data o art.º 5.º do Decreto n.º 2-C/2020 de 17/04) e tendo plena consciência que ao atuar da forma acima descrita desobedecia a uma ordem legal, emanada da autoridade competente, a qual lhe foi regularmente comunicada, bem como as cominações a que estaria sujeito caso não cumprisse a mesma.

5. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido por Lei.

Mais resultou apurado:

6. O arguido exerce a atividade profissional de ajudante de serralheiro, auferindo mensalmente € 635,00.

7. Contribui com € 250,00 para as despesas da casa.

8. Vive com a mãe, que trabalha como embaladora de fruta, e os avós, reformados, em casa própria.

9. Possui como habilitações o 9.º ano de escolaridade.

10. Não regista antecedentes criminais.

11. É considerado, por quem que com ele convive e trabalha, uma boa pessoa, trabalhador, prestável, solicito e cumpridor.


*

Quanto a nós não existem factos de relevo para a decisão da causa que não tenham resultado provados.


*

Em sede de motivação da convicção, o tribunal a quo ponderou conjugadamente as declarações prestadas pelo arguido, os documentos juntos aos autos, maxime o auto de notícia de fls. 2/3, a notificação de fls. 4, bem como o certificado de registo criminal, o depoimento das testemunhas, militares da GNR, sendo que FF e PS confirmaram, nos seus precisos termos, os factos narrados no ponto 1. da acusação, a notificação então feita ao arguido, revelando as circunstâncias em que os mesmos ocorreram, aspetos que este confirmou.

No que respeita aos factos do dia 24.04, o arguido referiu que regressava do trabalho e que na ocasião encontrou um seu conhecido, tendo-se afigurado ao tribunal credível a sua versão, acreditando haver-se tratado de encontro fortuito, que originou a sua permanência na rua numa atitude de confraternização com PG, também ouvido como testemunha. As testemunhas da GNR (RP e FB), que interpelaram o arguido no dia 24.04, esclareceram igualmente as circunstâncias em que tal ocorreu, corroborando os factos descritos na acusação.

Ponderou ainda o tribunal a quo o depoimento das testemunhas JL (pai do arguido), JC (colega de trabalho e chefe do arguido) e JF (familiar afastado do arguido), os dois primeiros essencialmente no que respeita às circunstâncias em que no dia 24.04 se desenvolveu o trabalho e o regresso do arguido a casa, proveniente de Lisboa, o último quanto às suas qualidades, sem que em momento algum resulte que não se lhe tenham apresentado verosímeis – bem pelo contrário!

Quanto ao elemento subjetivo considerou o julgador não ser crível que o arguido, atenta a proximidade da data da notificação que lhe havia sido efetuada (no dia 09.04), desconhecesse que sobre ele recaia o dever geral de recolhimento e que ao agir da forma descrita (confraternização na via pública), não tivesse consciência de que estava a violar a ordem (com a advertência de caso a incumprisse incorria num crime de desobediência) que lhe havia sido, nos termos descritos, dada.

3. Apreciação

§1. Da impugnação da matéria de facto

Inicia o recorrente por se insurgir contra a matéria de facto, concretamente a vertida nos itens 2, 3, 4 e 5 (factos provados), os quais teriam sido incorretamente julgados, defendendo, por outro lado, a inclusão dos factos invocados nos artigos 8, 9, 10, 12 e 15 da contestação - os quais, ao invés do que se extrai da sentença em crise, assumiriam relevância para a decisão da causa-nos factos provados.

Vejamos.

Na perspetiva deste tribunal, por se prenderem com as circunstâncias que rodearam o caso, impõe-se iniciar pela apreciação dos factos invocados em sede de contestação – os quais não foram consideradas na sentença porquanto, conforme decorre da audição integral do correspondente registo áudio, não assumiriam relevância para a decisão - incluídos nos artigos:

(i) 8, a saber: «Durante o mês de abril e, também, no dia 24.04.2020, o arguido trabalhou numa obra em Lisboa por conta da sua entidade patronal, e quando terminou o seu dia de trabalho, a carrinha que o transportou para o trabalho em Lisboa e na viagem de regresso à vila do ..., deixou-o cerca das 19h00m no posto de abastecimento de combustível da Repsol, sito na proximidade do seu domicílio, onde, na loja, o arguido comprou uma cerveja para beber em casa e iniciou a viagem de regresso a casa».

(ii) 9, do seguinte teor: «Na viagem de regresso a casa, o arguido subiu as escadas que estabelecem comunicação entre o local onde fica situado no posto de abastecimento de combustível da Repsol, com entrada nas antigas instalações do (…), e a Rua do (…), onde reside, conforme fotografias extraídas do Google Maps, que junta como docs. N.ºs 3 e 4, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais».

(iii) 10, cujo teor se transcreve «O arguido sentou-se, uns minutos, no banco colocado no patamar das escadas junto a umas árvores que se visualiza nas fotografias retiradas do Google Maps, a conversar com PG que encontrou naquele local, também, regressando do trabalho em direção à sua residência, conforme fotografias extraídas do Google Maps que junta como docs. N.º 3 e 4, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais».

(iv) 12, a saber: «O arguido regressava do trabalho, estava a regressar ao seu domicílio pessoal, sentou-se no banco, por escassos minutos, para fruir aquele momento ao ar livre».

(v) 15, do seguinte teor: «No dia 24.04.2020, o arguido terminou o trabalho, a carrinha que o transportou para o trabalho em Lisboa e nas viagens de regresso ao domicílio, deixou-o cerca das 19h00m, no Posto de abastecimento de combustível da Repsol, sito na proximidade do domicílio do arguido, e no decurso da viagem de regresso do trabalho ao domicilio pessoal do arguido, sito na Rua (…), o arguido sentou-se, durante escassos minutos, no banco colocado no patamar das escadas junto a umas árvores na Rua (…), para fruição de um momento ao ar livre, a conversar com um amigo que encontrou naquele local e bebeu a cerveja que tinha comprado na loja do posto de abastecimento de combustível da Repsol, onde o deixou a carrinha que o transportou do local de trabalho para a vila do ...».

Da análise da matéria supra transcrita resulta evidente a duplicação/repetição dos factos suscetíveis de relevar para a decisão da causa, os quais se reconduzem às concretas circunstâncias que os rodearam.

A pretensão do recorrente surge ancorada no depoimento das testemunhas JL, JC, PG e nas suas próprias declarações (nas correspondentes passagens do registo áudio que indica), bem como nos prints do Google Maps referentes ao local onde teria sido interpelado no dia 24.04.2020, designadamente no que respeita à relação de proximidade à sua residência e, ainda, na declaração da entidade patronal quanto ao horário de trabalho.

Efetivamente, dos segmentos do depoimento das duas primeiras testemunhas resulta que no dia 24.04.2020 o arguido se encontrava a trabalhar, ao serviço da sua entidade patronal, numa obra em Lisboa, tendo regressado (findo o dia de trabalho) juntamente com os colegas, numa carrinha (que procedia ao transporte dos trabalhadores para o local de trabalho e de regresso a casa), ao ..., onde chegou próximo das 19 horas, altura em que ficou junto ao posto de abastecimento da Repsol, sito a cerca de 200/300 metros da sua casa. Por outro lado, decorre das declarações do arguido que nessa ocasião, no dito posto de abastecimento, comprou uma cerveja, iniciando o percurso a pé para casa, altura em que encontrou a testemunha PG – antigo colega de escola, a quem há muito tempo não via - tendo-se ambos sentado num banco situado no caminho para a sua residência, na Rua (…), quando, poucos minutos após foram interpelados pelos guardas da GNR. Declarações estas, no que respeita ao sucedido após o encontro de ambos, corroboradas por PG, surgindo igualmente sustentadas pelos ditos prints.

Nenhum destes elementos de prova foi posto em crise pelo tribunal a quo, ressumando da sentença que mereceram credibilidade, pese embora, na perspetiva do julgador, irrelevantes, juízo, este, que não se acompanha.

Isto dito, importa proceder ao aditamento, como provados, dos seguintes factos (artigo 431.º, alínea b), do CPP):

(a) «No dia 24.04.2020 o arguido encontrava-se a trabalhar, ao serviço da sua entidade patronal, numa obra em Lisboa, donde regressou, com outros colegas, numa carrinha - que procedia ao transporte dos trabalhadores para o local de trabalho e de regresso a casa -, ao ..., onde chegou próximo das 19 horas, onde ficou junto ao posto de abastecimento da Repsol, sito a cerca de 200/300 metros da sua casa»;

(b) «Ocasião em que após ter comprado uma cerveja, iniciou o percurso a pé em direção a casa, altura em que encontrou PG – antigo colega de escola, a quem há muito tempo não via -, tendo-se, então, sentado ambos num banco, localizado no caminho que o levava à residência, sita na Rua (…), quando, poucos minutos após foram interpelados pelos elementos da GNR».

Já quanto aos factos inscritos como provados, o recorrente coloca em crise os vertidos nos itens:

 (vi) 2, do seguinte teor: «Mais foi informado o arguido que o não acatamento do referido dever geral de recolhimento e da referida ordem de recolhimento o faria incorrer na prática de um crime de desobediência».

Entende o recorrente que nesta sede apenas poderia ter sido considerado provado que nas circunstâncias descritas em 1. dos factos provados foi informado que o não acatamento da referida ordem de recolhimento o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, ordem que o arguido cumpriu. Em crise, por conseguinte, a informação relativa ao não acatamento do dever geral de recolhimento e a correspondente cominação com a prática de um crime de desobediência, surgindo, no contexto da decisão, o segmento relativo ao cumprimento da ordem por parte do arguido destituído de relevância pois em momento algum da decisão de facto decorre não haver o mesmo, no dia 9 de abril, acatado o que lhe foi determinado pelos agentes de autoridade. Na verdade, como o recorrente bem demonstra estar ciente, os factos então verificados apenas ganham sentido em articulação com aqueloutros do dia 24 de abril.

A impor decisão diversa da recorrida convoca o depoimento das testemunhas PS e FM, militares que o interpelaram no dia 9 de abril.

Ora se da audição do depoimento das ditas testemunhas, concretamente nas passagens em que deram a conhecer o que foi transmitido ao arguido, não resulta contrariado o item em questão, também o teor da notificação de fls. 4 (cujo original se mostra a fls. 11) o corrobora.

Já quanto às considerações de direito a propósito tecidas pelo recorrente em sede própria serão objeto de apreciação.

Em suma, inexiste fundamento que imponha neste ponto decisão diversa da recorrida.

(vii) 3, a saber: «Não obstante a referida advertência, o arguido no dia 24/04/2020, cerca das 19h foi avistado na companhia de PG, sentado num banco do jardim municipal da vila do ... novamente a consumir bebidas alcoólicas».

Na ótica do recorrente o tribunal a quo apenas poderia ter como provado que no dia 24.04.2020, cerca das 19h, o arguido foi avistado na companhia de PG, sentado num banco municipal, na Rua (…), na vila do ..., a consumir uma cerveja.

Dada a irrelevância por via da equivalência entre bebidas alcoólicas e cerveja, tendo presente o teor do segundo item (§1. (b)) aditado supra à matéria de facto provada, com vista a evitar uma desnecessária duplicação de factos, do ponto ora em apreço passa a constar: (c) «Não obstante a referida advertência, o arguido no dia 24.04.2020, foi interpelado pelos militares da GNR nas circunstâncias de tempo, lugar e modo supra descritas no item (§1. (b))».

 (viii) 4, cujo teor se transcreve: «Ao agir da forma supra descrita, o arguido quis e conseguiu permanecer na via pública e ingerir bebidas alcoólicas, bem sabendo que se encontrava sujeito ao dever geral de recolhimento imposto pela declaração do Estado de Emergência (à data o art. 5.º do Decreto n.º 2-C/2020 de 17/04) e tendo plena consciência que ao atuar da forma acima descrita desobedecia a uma ordem legal, emanada de autoridade competente, a qual lhe foi regularmente comunicada, bem como a cominações a que estaria sujeito caso não cumprisse a mesma».

Defende o recorrente, com referência ao dito item, que o tribunal a quo deveria ter consignado como provado que ao agir como agiu no dia 24.04.2020, o arguido não teve consciência, nem, consequentemente, vontade de faltar à ordem que lhe foi dada no dia 9 de abril de 2020.

Para tanto convoca as suas próprias declarações quando referiu não ter tido “a noção de que estava a fazer mal” e o depoimento da testemunha PG, na parte em que admitiu ter dito, aquando da interpelação, aos militares da GNR que não estava a fazer nada de mal, acrescentando não ter, então, ideia que estava a ir contra a lei.

Os factos pertinentes aos elementos subjetivos do crime, não sendo de apreensão direta, situando-se antes ao nível da vida interior do indivíduo, podem resultar da sua assunção por parte do agente ou, como as mais das vezes ocorre, de um juízo de inferência, baseado nas regras da experiência comum, de acordo, portanto, com um critério de razoabilidade, segundo o normal acontecer.

No caso em apreço afigura-se-nos da maior relevância as circunstâncias em que tiveram lugar os factos ocorridos no dia 9.4.2020 e aqueles outros que sucederam no dia 24.04.2020, pese embora ambos em plena vigência do estado de emergência e na pendência dos decretos de execução governamental n.º 2-B/2020, de 02.04 e n.º 2-C/2020, de 17.04, respetivamente, impondo, qualquer deles – é certo - o dever geral de recolhimento.

E porquê?

Enquanto na primeira das referidas datas o recorrente se encontrava de madrugada (pelas 1h30m) na via pública, junto ao pavilhão municipal, na segunda estava no caminho para sua casa, depois de um dia de trabalho, sendo que em qualquer dos identificados decretos de execução governamental, a deslocação para efeitos de desempenho de atividades profissionais ou equiparadas e o retorno ao domicílio pessoal integravam os «propósitos» contemplados no artigo 5.º, ou seja as «exceções» ao dever geral de recolhimento obrigatório. É verdade que o mesmo encontrou no percurso para a sua residência um antigo colega (que não via há tempo) e que nas circunstâncias agora fixadas na matéria de facto se sentou - necessariamente pouco antes de ter sido interpelado pelos militares da GNR - na sua companhia, num banco público. Não é, pois, o facto de o recorrente se encontrar na via pública - posto que de regresso do trabalho a casa -, sequer – dizemos nós – sentado, por breves instantes, num banco que encerra violação ao dever de recolhimento domiciliário; antes sim a circunstância de se ter sentado (momentaneamente) com o colega. Neste contexto, a razoabilidade das coisas, a experiência comum, o conhecimento de que o dever geral de recolhimento não se aplicava às deslocações de casa para o trabalho e vice-versa, é de admitir não ter o recorrente representado que ao adotar aquela concreta conduta estava a desobedecer à ordem que lhe havia sido dada no pretérito dia 09.04.2020. Na verdade, tratou-se de um tempo em que a generalidade dos cidadãos se viu confrontada com um conjunto de restrições que, contudo, admitiam «exceções», as quais, não raramente foram sendo “interpretadas” – e por vezes veiculadas por fontes oficiais - nem sempre de modo uniforme, realidade compreensível à luz da novidade que representou a declaração do estado de emergência. Aliás, ainda hoje, já num quadro diferente surgem dúvidas sobre os procedimentos a adotar consoante as situações, o que não deixa de ser compreensível. Afigura-se-nos, pois, no contexto, plausível a versão apresentada pelo arguido/recorrente, a qual, ainda que se suscitasse a dúvida, em face da respetiva razoabilidade, sempre teria de ser valorada em seu benefício.

Concluindo, os factos inscritos no item em referência passam a não provados (artigo 431.º, alínea b), do CPP).

(ix) 5, do seguinte teor: «O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido por Lei»

Como corolário lógico do que se deixou exposto a propósito do item que antecede também os factos agora em questão se tem como não provados.

Uma vez definitivamente fixada, com as alterações produzidas por este tribunal, a matéria de facto analisemos o direito.

§2. Da qualificação jurídico-penal

Vem o recorrente acusado da prática, em autoria material, de um crime de desobediência, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do C. Penal, com referência ao artigo 5.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, 5.º do Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril, e artigo 6.º, n.º 4, da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, pelo qual sofreu condenação em primeira instância.

Com vista a contrariar a qualificação jurídico-penal, com arrimo na acusação, levada a efeito pelo tribunal a quo sustenta em síntese que (i) a ordem dada no dia 9 de abril de 2020 não vigorava no dia 24 do mesmo mês e ano, uma vez que na alínea a), do artigo 49.º o decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril revogou o decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril; (ii) quer na primeira (09.04.2020), quer na segunda (24.04.2020) datas acatou a ordem dos militares para recolher ao respetivo domicílio; (iii) resultando dos decretos n.º 2-B/2020 e n.º 2-C/2020 impender sobre as forças policiais o dever de recomendar o cumprimento do confinamento – recomendação agravada – só se incumprisse a ordem de recolher ao domicílio, o que nunca aconteceu, é que podia incorrer no crime de desobediência; (iv) a ordem que lhe foi dirigida no dia 9 de abril de 2020 só podia ter acontecido na ausência de lei que cominasse a conduta como crime de desobediência, circunstância que, face ao teor dos artigos 5.º, 43.º, n.ºs 1, alínea c) e n.º 6, todos do decreto 2-B/2020, não se verificava; (v) com a entrada em vigor do D.L. n.º 28-B/2020, de 20.06, enquanto estabelece o regime contraordenacional, foi descriminalizada a inobservância do dever geral de recolhimento domiciliário, verificando-se uma situação de sucessão de leis de emergência, tendo a sentença em crise, ao assim não haver decidido, violado o artigo 2.º do C. Penal, bem como o princípio da igualdade e as garantias de defesa do processo criminal – artigos 29.º, n.º 4 e 32.º, n.º 1 da CRP.

Vejamos o quadro legal.

No seguimento da qualificação pela Organização Mundial de Saúde da emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19, como uma pandemia internacional, a sua rápida propagação conduziu à adoção por parte dos Estados de um conjunto de medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias consideradas indispensáveis a prevenir a transmissão do vírus SARS-Cov-2 (Coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2) e um maior agravamento da situação de calamidade pública. Foi neste contexto que o Presidente da República declarou, no dia 18 de março, de 2020 o estado de emergência (cf. decreto do PR n.º 14-A/2020, de 18.03; vide ainda a resolução, de prévia autorização, da AR n.º 15-A/2020 e o decreto governamental de execução n.º 2-A/2020, de 20.03), para vigorar de 19 de março a 2 de abril de 2020, declaração essa que veio a ser objeto de uma primeira renovação, vigente de 3 a 17 de abril de 2020, pelo decreto do PR n.º 17-A/2020, de 02.04 (vide, a resolução, de prévia autorização, da AR n.º 22-A/2020, de 2 de abril e o decreto governamental de execução n.º 2-B/2020, de 2 de abril), tendo sido de novo renovada, abrangendo agora o período de 18 de abril a 2 de maio, pelo decreto do PR n.º 20-A/2020, de 17.04 (vide, a resolução, de prévia autorização, da AR n.º 23-A/2020, de 17 de abril, os decretos governamentais de execução n.º 2-C/2020, de 17 de abril e n.º 2-D/2020, de 30 de abril, este último para o período de 1 a 3 de maio de 2020).

Do acervo factual já definitivamente fixado importa reter as duas datas relevantes para a concretização do regime então vigente, ou seja os dias 9 e 24 de abril de 2020, situadas ambas, como vimos, em pleno decurso do estado de emergência, levando, assim, direcionar a nossa atenção para os decretos governamentais de execução n.º 2-B/2020 e n.º 2-C/2020.

O decreto 2-B/2020, de 2 abril estabeleceu no seu artigo 3.º, sob a epígrafe Confinamento obrigatório: «1 – Ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde, no respetivo domicílio ou noutro local definido pelas autoridades de saúde: a) Os doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-Cov2; b) Os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa; 2- A violação da obrigação de confinamento, nos casos previstos no número anterior, constitui crime de desobediência» (sublinhado nosso), seguindo-se-lhe o artigo 4.º elencando as pessoas que ficam sujeitos a um dever especial de proteção, onde se incluem os maiores de 70 anos, os imunodeprimidos e os portadores de doença crónica que, «de acordo com as orientações da autoridade de saúde devam ser considerados de risco, designadamente os hipertensos, os diabéticos, os doentes cardiovasculares, os portadores de doença respiratória crónica e os doentes oncológicos», em relação aos quais enumera os propósitos capazes de justificar a respetiva circulação em espaços e vias públicas ou equiparados, excluindo da restrição prevista no n.º 2 as pessoas que exerçam determinadas profissões, desde que no exercício de funções. Já sobre os cidadãos não incluídos nos artigos 3.º e 4.º prescreve o artigo 5.º, sob a epígrafe Dever geral de recolhimento obrigatório: «1 – Os cidadãos não abrangidos pelo disposto nos artigos 3.º e 4.º só podem circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, (…)» para algum dos propósitos enunciados nas diferentes alíneas que se seguem, entre os quais b) Deslocação para efeitos de desempenho de atividades profissionais ou equiparadas e s) Retorno ao domicílio pessoal.

A função de fiscalização do cumprimento das medidas prevenidas no diploma, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º, foi atribuída às forças e serviços de segurança e à polícia municipal, mediante: «a) A sensibilização da comunidade quanto ao dever geral de recolhimento; (…); c) A emanação das ordens legítimas, nos termos do presente decreto, designadamente para recolhimento ao respetivo domicílio; d) A cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, bem como do artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, por violação do disposto nos artigos 6º, 9º a 11º do presente decreto, bem como do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º; e) O aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública e a dispersão das concentrações superiores a cinco pessoas, salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar; f) A recomendação a todos os cidadãos do cumprimento do dever geral de recolhimento domiciliário, nos termos e com as exceções previstas no artigo 5.º».

Por fim, de acordo com o n.º 6, do citado artigo 43.º «A desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho».

No decreto n.º 2-C/2020 a redação das normas relativas ao confinamento obrigatório (artigo 3.º), ao dever geral de proteção (artigo 4.º) e ao dever geral de recolhimento domiciliário (artigo 5.º), salvo em questões de pormenor, sem relevância no caso, manteve-se.

Também em matéria de fiscalização, de cominação e participação pelo crime de desobediência o artigo 46.º reproduz, no essencial, o artigo 43.º do decreto n.º 2-B/2020, concretamente a alínea d), do n.º 1, correspondendo o n.º 7, do artigo 46.º ao n.º 6, do artigo 43.º.

Enfrentando, agora, as concretas questões colocadas pelo recorrente, iniciando pela invocada descriminalização da violação do dever geral de recolhimento obrigatório, afigura-se-nos não lhe assistir razão.

O D.L. n.º 28-B/2020, de 26 de junho veio estabelecer o regime contraordenacional, no âmbito da calamidade, contingência e alerta, extraindo-se do respetivo preâmbulo: «Apesar da tendência atual de evolução da situação epidemiológica, verifica-se que os novos contágios decorrem, frequentemente, de situações de incumprimento de normas de distanciamento físico, em especial em eventos que implicam a aglomeração de pessoas.

Torna-se necessário, portanto, associar o incumprimento das disposições que visam assegurar a adoção de práticas sociais adequadas à aplicação de sanções administrativas com efeito predominantemente dissuasor (…).

A necessidade de um quadro sancionatório tem, aliás, sido constantemente avaliada pelo Governo. No presente, tal ocorre ao abrigo do n.º 5 da Resolução de Conselho de Ministros n.º 40-A/2020, de 29 de maio, na sua redação atual, que estabelece que o Governo «avalia, a todo o tempo, a necessidade de aprovação de um quadro sancionatório por violação da presente resolução, com base no reporte efetuado pelas forças e serviços de segurança ao membro do Governo responsável pela área da administração interna relativamente ao grau de acatamento das medidas adotadas pela presente resolução»

Sucede, no entanto, que a Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, que aprova a Lei de Bases da Proteção Civil, não contém um quadro contraordenacional que seja instrumental ao bom cumprimento das medidas adotadas no seu âmbito, não obstante o teor dos seus artigos 6.º e 11.º

Não obstante, a Lei de Bases da proteção Civil prevê, no seu artigo 62.º que, «sem prejuízo das sanções já previstas, o Governo define as contraordenações correspondentes à violação das normas da presente lei que implicam deveres e comportamentos necessários à execução da política de proteção civil».

Depois do artigo 1.º do D.L. n.º 28-B/2020 definir o objeto do regime sancionatório instituído como «aplicável ao incumprimento dos deveres estabelecidos por decreto que regulamente a declaração do estado de emergência e dos deveres estabelecidos por declaração da situação de alerta, contingência ou calamidade adotada ao abrigo da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua atual redação, que aprova a Lei de Bases da Proteção Civil (…)», a alínea a) do artigo 2.º dispõe: «Durante a verificação de estado de emergência ou da situação de alerta, contingência ou calamidade determinadas nos termos da Lei de Bases da Proteção Civil, declaradas no âmbito da situação epidemiológica originada pela doença COVID-19, constituem deveres das pessoas singulares e coletivas; a) A observância do dever geral de recolhimento domiciliário», cujo incumprimento é sancionado a título de contraordenação, se não constituir simultaneamente crime, caso em que «será o infrator sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contraordenação» - (cf. os n.ºs 1 e 6 do artigo 3.º) – [sublinhado nosso].

Significa isto que não estamos perante um caso de descriminalização, pois parece claro que o facto punível (como crime) segundo a lei vigente no momento da sua prática não o deixou de ser com a aprovação do D.L. n.º 28-B/2020, de 26 de junho, que veio estabelecer o regime contraordenacional, no âmbito da calamidade, contingência e alerta – (cf. artigo 2.º, n.º 2, do C. Penal); sequer confrontados com qualquer violação ao n.º 4 do dito artigo 2.º porquanto arredada se mostra a respetiva previsão dirigida à problemática da sucessão de leis penais no tempo, o que manifestamente não acontece no caso.

Pelo que, colhendo aplicação na situação em apreço os identificados decretos governamentais de execução, destinados a vigorar durante o período de tempo neles previsto – consubstanciando nessa medida leis temporárias -, da cessação da respetiva vigência não resulta que não colham aplicação aos factos ocorridos durante o período em que vigoraram, sendo certo que o regime introduzido pelo D.L. n.º 28-B/2020, de 26 de junho – publicado já após o período do último estado de emergência e justificado pela sistemática afirmação, por parte do governo, da necessidade de avaliação a todo o tempo, com base nos elementos reportados pelas forças e serviços de segurança, da situação epidemiológica, v.g. da (s) causa (s) dos novos contágios - não afasta a punição da violação dos deveres contemplados, designadamente o concernente ao recolhimento obrigatório, como crime.

  Soçobra, pois, nesta parte o recurso, resultando, assim, prejudicada a apreciação da violação dos princípios convocados, bem como das inconstitucionalidades a propósito invocadas.


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Também nos parece não estar a razão da parte do recorrente quando defende que a «ordem» que lhe foi dada no dia 9 de abril de 2020 não vigorava no dia 24 do mesmo mês e ano, uma vez que na alínea a), do artigo 49.º o decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril revogou o decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril.

De facto, a revogação do dito decreto, bem como da resolução do Conselho de Ministros n.º 18-B/2020, de 2 de abril, prende-se com o processo legislativo que envolve a declaração do estado de emergência por parte do Presidente da República, implicando a prévia autorização da Assembleia da República, bem como a sua execução cuja competência é do Governo, tudo nos termos dos artigos 5.º, 10.º, 17.º e 23.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro (Regime Jurídico do estado de sítio e do estado de emergência). Dito por outras palavras a cessação de vigência do decreto n.º 2-B/2020 ficou a dever-se à circunstância de o estado de emergência não poder prolongar-se por mais de 15 dias, sem prejuízo de eventual renovação por um ou mais períodos, com igual limite, como veio a suceder (cf. artigo 5.º).

Tendo sido prorrogado, através do decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17 de abril, o estado de emergência, o Governo aprovou o decreto de execução n.º 2-C/2020, de 17 de abril, cujo objeto foi definido nos seguintes termos: «O presente decreto procede à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A72020, de 18 de março, renovada pelo Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril, e pelo Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17 de abril», o que ilustra a continuidade de todo o processo, sem prejuízo de «ajustamentos às medidas já aprovadas, de forma adequada e no estritamente necessário, com o intuito de conter a transmissão do vírus e a expansão da doença COVID-19…».

Neste quadro, sendo transversal a ambos os decretos n.º 2-B/2020 e n.º 2-C/2020 os deveres que impendiam sobre os cidadãos, coincidindo os mesmos, quer no que ao dever geral de recolhimento domiciliário respeita, quer quanto às eventuais consequências decorrentes da sua violação/não acatamento, com o devido respeito, afigura-se-nos carecer de fundamento, com o invocado fundamento, falar de uma espécie de revogação da «ordem» dirigida ao recorrente no dia 9 de abril de 2020.

Julgamos, pois, que, tendo sido o estado de emergência renovado, existindo norma em tudo idêntica no decreto seguinte – como foi o caso - se pode falar numa previsão normativa continuada de que o incumprimento das «ordens» inerentes ao dito estado de exceção é passível de fazer incorrer o destinatário (da «ordem») no crime de desobediência.


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Coisa diferente, também ela suscitada no recurso, traduz-se em saber se o recorrente apenas poderia incorrer num crime de desobediência se, na ocasião, tivesse incumprido a ordem para recolher ao domicílio, o que não resulta ter sido o caso.

Dito de outro modo, retira-se das palavras do recorrente que a «ordem» que lhe foi dirigida no dia 9 de abril 2020, tendo sido por si – em ato contínuo – observada se esgotou nessa ocasião, não podendo, com fundamento na mesma, dizer-se que, ao ser interpelado nas apuradas circunstâncias, no dia 24 do mesmo mês e ano, estava a desobedecer àquela.

Levanta, contudo, a questão de a «ordem» que lhe foi dirigida no dia 9 de abril de 2020 não encontrar fundamento legal, pois – diz – só podia ter acontecido na ausência de lei que cominasse a conduta como crime de desobediência, circunstância que, face ao teor dos artigos 5.º, 43.º, n.ºs 1, alínea c) e n.º 6, todos do decreto n.º 2-B/2020, não se verificava.

Neste concreto ponto não lhe assiste razão.

Na verdade, como decorre do excurso já levado a efeito pelo quadro legislativo relevante, o decreto n.º 2-B/2020 (o mesmo sucedendo com o decreto n.º 2-C/2020), apenas previu, nos termos do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do C. Penal, a punição por desobediência da violação do dever de confinamento obrigatório (cf. o n.º 2, do artigo 3.º). Já quanto aos demais deveres (comuns a todos os decretos executivos regulamentares), entre os quais o dever geral de recolhimento domiciliário (cf. artigo 5.º), o artigo 43.º atribui às forças e serviços de segurança, bem como à polícia municipal a emanação das ordens legítimas, designadamente para recolhimento ao respetivo domicilio (alínea c)); a cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1, do artigo 348.º do C. Penal, e do artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, por violação do disposto nos artigos 6.º, 9.º e 11.º do decreto, bem como do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º (alínea d)). Por seu turno, o n.º 6 do artigo 43.º sanciona nos termos da lei penal a «desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto», prevendo o agravamento das penas nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho. (sublinhado nosso).

De semelhante acervo normativo não se vê como defender, para o caso de violação do dever geral de recolhimento domiciliário, prescindir a eventual prática do crime de desobediência da «ordem» emanada da entidade competente.

E estará a razão da parte do recorrente enquanto defende o «esvaziamento» da ordem que lhe foi dirigida em 9 de abril de 2020, à qual de imediato obedeceu, na própria ocasião?

Temos de reconhecer que se trata de um domínio onde se suscitam dúvidas, resultantes da conjugação da novidade que representou toda uma panóplia de legislação e, por vezes, alguma imprecisão dos próprios diplomas, com reflexos nas diferentes posições que vem sendo defendidas em estudos/artigos e jurisprudência – [cf., v.g. André Lamas Leite, em “Desobediência em tempos de cólera”: a configuração deste crime em estado de emergência e em situação de calamidade”, RMP, Número Especial COVID-19:2020, pp. 165-191; Jorge Varão Pinto, em “Do crime de desobediência por violação da obrigação de confinamento estabelecida pelo estado de emergência”, Julgar Online, julho de 2020; Vânia Filipe Magalhães, em “Reflexões sobre o crime de desobediência em Estado de Emergência”, Julgar Online, março de 2020; o acórdão do TC n.º 352/2021; os acórdãos do TRL de 11.03.2021 (proc. n.º 166/20.3PCLRS.L1-9), de 15.04.2021 (proc. n.º 266/20.0PGLRS.L1-9), acórdão do TRG de 09.11.2020 (proc. n.º 119/20.1PBCHV.G1)].

Quanto à concreta questão, tendo presente que o arguido/recorrente foi notificado de que estava sujeito a um dever geral de recolhimento domiciliário, imposto pelo disposto no art.º 5.º do decreto n.º 2-B/2020 de 02/04, devendo recolher de imediato à sua residência, uma vez que não se encontrava em nenhuma das circunstâncias excecionais a que alude o art.º 5.º do dito decreto, mais tendo sido informado de que o não acatamento do dever geral de recolhimento e da referida ordem de recolhimento o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, afigura-se-nos, tal como foi considerado no acórdão do TRL de 11.03.2021 (proc. n.º 166/20.3PCLRS.L1-9), que no dia 24.04.2020, mantendo-se – como se mantinha - o dever geral de recolhimento domiciliário (cf. artigo 5.º do decreto n.º 2-C/2020) -, não se impunha a renovação da «ordem» e que só perante uma recusa efetiva naquele mesmo dia seria de cominar a prática de um crime de desobediência. Com efeito, como refere o aresto, «Tal exigência, que não decorre da lei, frustraria o cumprimento efetivo do dever geral de recolhimento domiciliário pois, na esmagadora maioria das vezes, o cidadão acata momentaneamente a ordem, mas, momentos, horas ou dias volvidos volta a incorrer na mesma violação. Aqui exigir que se repetissem novamente todos os preceitos de que o cidadão já está esclarecido (…), o novo aconselhamento, a recomendação, a sugestão para voltar ao domicílio, retiraria (…) toda a eficácia ao dever geral de recolhimento domiciliário como um dos deveres integrantes do estado de Emergência (…). Por tais motivos, a cominação da prática de um crime de desobediência não tem de ser renovada cada vez que o cidadão incumpre o dever de recolhimento domiciliário (…). Sendo o Estado de Emergência uma exceção constitucional que foi decretada e que foi renovada mais duas vezes (…) tal cominação tem de valer para o futuro».


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Não obstante o percurso traçado, onde tivemos a preocupação - e isto porque se trata de um domínio novo onde se identificam entendimentos por vezes dificilmente conciliáveis - de tomar posição sobre o essencial das questões suscitadas pelo recorrente, a não verificação, no caso, do elemento subjetivo do crime só pode conduzir à absolvição. Com efeito, ao recorrente foi imputada a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, artigo 5.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 02/04, artigo 5.º do Decreto n.º 2-C/2020, de 17/04 e no artigo 6.º, n.º 4, da Lei n.º 27/2006, de 03/07, ilícito, em qualquer circunstância, punível a título de dolo, não dispensando como tal a presença dos respetivos elementos intelectual e volitivo, os quais não resultaram provados.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que integram este tribunal, na procedência do recurso, em absolver o arguido HF da prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, artigo 5.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 02/04, artigo 5.º do Decreto n.º 2-C/2020, de 17/04 e no artigo 6.º, n.º 4, da Lei n.º 27/2006, de 03/07, revogando, em consequência, a decisão recorrida.

Sem tributação.

Texto processado e revisto pela relatora.

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)