Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
270/21.0T8PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RUI MOURA
Descritores: INVENTÁRIO NA SEQUÊNCIA DE DIVÓRCIO
RECLAMAÇÃO À RELAÇÃO DE BENS
DIREITO A LUCROS DE EMPRESA
EXTEMPORANEIDADE
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 265.º, 2; 573.º; 1104.º E 1110.º, 1, A), DO CPC
Sumário: I-Se num inventário judicial para partilha dos bens comuns na sequência de divórcio, a que se aplica o CPC com a reforma introduzida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, depois de ter havido reclamações da relação de bens, já decididas, um interessado requer “seja relacionado como bem comum - por referência à verba nº 3 da relação de bens, quota social de que o ex-casal é titular na sociedade “X e Z Lda.”, de que o outro interessado e cabeça-de-casal é sócio-gerente - o direito de crédito aos lucros da mesma empresa, isto é, aos resultados ou dividendos relativos ao exercício da actividade desde a data de 27/3/2016, data da separação de facto entre os cônjuges fixada na sentença de divórcio nos termos do artº 1789º nº 2 do CC., e até efectiva partilha”,

II-Pode entender-se não ser caso para indeferimento liminar por extemporaneidade, com base no efeito preclusivo de já ter havido reclamação à relação de bens,

III-E entender-se a pretensão como uma consequência do decurso do tempo relativamente à titulação da participação social, algo acessório que flui naturalmente com o decurso do tempo e o prosseguimento da exploração da sociedade, uma espécie de desenvolvimento ou ampliação da relacionação da referida verba nº 3.

Em tudo um raciocínio semelhante ao plasmado no artigo 265º, 2 do CPC ao estatuir sobre a livre ampliação do pedido na 1ª instância.

 

IV-O artigo 1110º, 1, a) do CPC prevê haver lugar a despacho saneador com o propósito de resolver todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, sendo a que agora nos ocupa uma delas, certamente, pelas implicações que pode ter.

Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na 2ª Secção Judicial do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

i)-
Correu termos pelo Juízo de Família e Menores ..., J ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., acção de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges intentada por AA contra BB, com o nº 2818/16...., e com prévio arrolamento dos bens comuns do casal.

Nela teve lugar em 7 de Fevereiro de 2017 audiência final no âmbito da qual as Partes chegaram a acordo parcial.

Na sequência, a acção foi convolada para de divórcio por mútuo consentimento.

Nela, a 7 de Fevereiro de 2017, foi prolatada douta sentença, transitada em julgado, que dissolveu por divórcio o casamento que unia as partes, com efeitos a partir de 27 de Março de 2016. 

ii)-
Em 2021 veio AA intentar inventário judicial para partilha dos bens comuns em consequência do divórcio havido - que inicialmente correu termos em Cartório Notarial -, e que passou a correr termos com o nº de processo 270/21.0T8PBL-A.C1, no Juízo de Família e Menores ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., sendo o outro interessado e ainda cabeça-de-casal BB.

Trata-se do processo principal de que este apenso – o A – é o apenso de recurso em separado.

O processo seguiu o ritualismo próprio - cfr. artigo 1133º do CPC, na redacção introduzida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro.

Foi apresentada relação de bens e houve reclamação.

iii)-
Em sede de audiência prévia – cfr. artigo 1109º do CPC – que ocorreu a 7 de Junho de 2022, e como se vê da respectiva acta certificada de fls. 16 a 18, as partes e Il. Mandatários fizerem saber à Mma. Juiz haverem chegado a acordo quanto à matéria ainda controvertida.
Ficou a constar da acta haverem os interessados chegado a acordo quanto à verba 6 – veículo automóvel – eliminando-a e substituindo-a pelo relacionamento de um crédito; quanto à verba 53 – prédio urbano – eliminando-a e substituindo-a pelo relacionamento de um crédito; quanto à verba 54, relacionando-a por inteiro; e relacionar como passivo duas dívidas.

O cabeça-de-casal foi notificado para em 10 dias juntar relação de bens actualizada.
Foi ordenada a avaliação de todos os bens constantes da relação de bens.
Diligenciou-se pela indicação de peritos a nomear para o efeito.

No final foi a diligência declarada encerrada.  

iv)-
Entretanto a Requerente e interessada AA veio a 5 de Julho de 2022, invocando o disposto nos artigos 1082º, d) e 1097º, c) e d), ambos do CPC, requerer seja relacionado como bem comum - por referência à verba nº 3 da relação de bens, quota social de que o ex-casal é titular na sociedade A... Lda., de que o interessado e cabeça-de-casal é sócio-gerente - o direito de crédito aos lucros da mesma empresa, isto é, aos resultados ou dividendos relativos ao exercício da actividade desde a data de 27/3/2016, data da separação de facto entre os cônjuges fixada na sentença de divórcio nos termos do artº 1789º nº 2 do CC.
Acrescenta que o cabeça-de-casal tem conhecimento directo deste valor, porquanto, é sócio-gerente da mesma sociedade, e, pelas funções desempenhadas no inventário, incumbe-lhe, também, o dever de relacionar tais direitos de crédito sobre a dita sociedade A..., Lda.
Invoca a lição dos Acs. do T. Rel. de Coimbra de 20/10/2009, Proc. nº. 68/04.0TMCBR-BC.1 e do T. Rel. de Guimarães de 29/06/2019, no Proc. nº. 4863/16.0T8VNF.G1, acessíveis no site da DGSI.net.

Opôs-se o cabeça-de-casal dizendo, que a data de 27/3/2016 constitui não a data da propositura da acção de divórcio, mas a data da fixação da separação de facto entre os cônjuges fixada na sentença de divórcio, constituindo a pretensão da Requerente uma nova reclamação à relação de bens, sendo certo que se mostra esgotada há muito a possibilidade de acusar a falta de quaisquer bens.
Referiu ainda, que o bem que a Requerente agora acusa estar em falta, remonta ao momento em que o divórcio produziu os seus efeitos em termos patrimoniais, não estando em causa qualquer bem superveniente ou de cuja existência a mesma só tivesse tido conhecimento agora, nem tal vem alegado.
Termina pedindo, que independentemente da existência ou não do bem em causa, seja a reclamação agora apresentada totalmente indeferida por extemporânea.

v)-
Com a ref. 101268136 e em 23 de Setembro de 2022 foi lavrado o seguinte despacho, vindo a ser este a decisão recorrida:

(…)
Decidindo.
A propósito da possibilidade de apresentação de nova reclamação posterior aos articulados, referem Miguel Teixeira de Sousa e Outros ( in O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, p. 9) que «a estruturação sequencial e compartimentada do processo de inventário envolve algumas cominações e preclusões, inexistentes no regime anterior, tendo o novo regime implícito um reforço da auto-responsabilidade das partes: o modelo consagra um princípio de concentração na invocação dos meios de defesa que é em tudo idêntico ao que vigora no artigo 573º: toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, activo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados têm para deduzirem oposição (artº 1104º). Assim, por exemplo, é no articulado de contestação que os interessados devem suscitar todas as impugnações, reclamações e meios de defesa, quer respeitem à oposição ao inventário, à legitimidade dos citados ou à competência do cabeça de casal, quer se refiram à relação de bens ou aos créditos e dividas da herança. Institui-se, assim, um efeito cominatório, já que a revelia conduz em regra, ao reconhecimento das dívidas não impugnadas (artº 1106º nº 1 do CPC). Posteriormente só podem ser invocados os meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo actuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo de oposição) ou que a lei admita expressamente passado o momento da oposição ou que se prendam com questões que sejam de conhecimento oficioso (artº 573º nº2). Em comparação com o modelo anterior verifica-se por exemplo, que as reclamações contra a relação de bens devem ser deduzidas na sub-fase da oposição (artºs 1104º nº 1 al. d) e 1105º nº 1) e não a todo o tempo como parecia admitir-se no CP/61»
E mais à frente em anotação ao artigo 1111º do CPC, - ob. cit.. p. 104 - referem « assim, por exemplo, pode algum dos interessados deduzir ainda reclamação contra a relação de bens, alegando e demonstrando que, no momento da oposição prevista no artº 1104º nº 1 al. d), não podia, mesmo agindo com a diligência devida, ter conhecimento do fundamento da reclamação que agora pretende deduzir».
Ora, in casu, resulta do teor do requerimento apresentado pela interessada AA, que o mesmo consubstancia uma nova reclamação à relação de bens, pretendendo a mesma que seja relacionado como bem comum - por referência à verba nº 3 da relação de bens, quota social de que o ex-casal é titular na sociedade A... Lda - o direito de crédito aos lucros da mesma empresa, isto é, aos resultados ou dividendos relativos ao exercício da actividade desde a data de 27/3/2016, data da separação de facto entre os cônjuges fixada na sentença de divórcio nos termos do artº 1789º nº 2 do CC.
Ou seja, já após o esgotamento de todos os articulados (reclamação e resposta, tendo já sido proferida decisão pelo Sr. Notário sobre o incidente de reclamação à relação de bens e designada audiência prévia, na qual foi alcançado acordo quanto à fixação da relação de bens comuns e determinada a avaliação aos mesmos), vem agora a interessada AA, apresentar nova reclamação à relação de bens.
Todavia, não alega nem demonstra, que à data da apresentação da reclamação de bens inicial, não podia ter conhecimento, que tais rendimentos constituem direito de crédito que, o ex-casal tem perante a sociedade comercial por quotas A... Lda.
Ou seja, a questão agora suscitada pela Requerente, era previsível aquando da apresentação da reclamação à relação de bens inicialmente apresentada, não só porque a quota social foi desde logo relacionada, como a interessada 2 ob. cit.. p. 104.
apresentou reclamação em relação à referida quota social, altura em que devia ter acusado a falta de do direito de crédito aos lucros da mesma empresa, que agora pretende ver relacionado.
Tudo para concluir, que não está em causa qualquer bem superveniente ou de cuja existência a mesma só agora tenha tido conhecimento, nem tal vem por si alegado, inexistindo assim fundamento para a sua reclamação nesta fase processual, uma vez que a existência ou inexistência de tais créditos não podia ser para si desconhecida.
Termos em que, ao abrigo do disposto no artº 590º nº 1 ex vi do artº 549º do Cód. Proc. Civil, sendo a pretensão da Requerente manifestamente improcedente, indefere-se a requerida reclamação.
Custas do incidente pela interessada AA, cuja taxa de justiça se fixa em 1,5 Uc.
Notifique.

vi)-
Inconformada, deste douto despacho recorre a Requerente, recurso admitido como apelação, a subir imediatamente, em separado e efeito meramente devolutivo.

vii)-
Alega a Recorrente, em conclusão verberando:

1- Os direitos de crédito resultantes da titularidade de quotas societárias resultam da actividade empresarial durante o ano económico com o encerramento de contas, e, como tal, não é possível o conhecimento o conhecimento anterior da sua existência.
2- Todavia, tais créditos decorrem da titularidade do capital societário e, como tal, devem ser relacionados pelo cabeça-de-casal nessa condição de direitos de crédito a partilhar.
3- A exigência do seu relacionamento decorre dos artigos 1082º, d), 1097º, c) e 1098º, 1, b) e c) do CPC, e da circunstância do cabeça-de-casal ser o gerente societário.
4- O qual, tem acesso às contas e à apresentação de contas a título de IRC da sociedade detida pelo ex-casal.
5- A omissão de tais direitos de crédito na relação de bens constitui uma violação dos deveres do cabeça-de-casal na apresentação da gestão do património comum.
6- Pelo exposto, o tribunal recorrido deveria ter admitido o requerimento impetrado nos autos pela ora Recorrente e determinado ao Recorrido, enquanto cabeça-de-casal, o relacionamento dos créditos emergentes dos resultados transitados da sociedade comercial A... Lda., …, por referência á data de separação – 27-3-2016.      

viii)-
Contra-motiva o Interessado e cabeça-de-casal, rematando:

1. No presente recurso, a recorrente insurge-se contra o douto despacho proferido pelo Tribunal “a quo” que lhe indeferiu a reclamação à relação de bens, que apresentou no processo em 05/07/2022.
2. Cabe lembrar que a versão da relação de bens objecto da reclamação, foi oferecida pelo cabeça-de-casal na sequência da audiência prévia que teve lugar no dia 07/06/2022, diligência esta no âmbito da qual as partes chegaram a acordo quanto à matéria até aí ainda controvertida e fixaram de forma definitiva os bens que a haviam de integrar.
3. Surpreendentemente, após notificada dessa relação de bens, elaborada exactamente de acordo com o que resultou acordado naquela audiência, a recorrente veio apresentar a reclamação em causa, na qual acusa o cabeça-de-casal de ter omitido “o direito de crédito aos lucros, aos resultados ou dividendos relativos ao exercício da actividade”, desde .../.../2016 (data da produção de efeitos do divórcio em termos patrimoniais), sobre a sociedade A..., Lda., na qual o ex-casal detém uma quota social, no valor nominal e 4.988,00 €, lá relacionada sob a verba 3.
4. Ouvido o cabeça-de-casal, que sustentou em primeiro lugar o indeferimento dessa reclamação por extemporânea, foi proferido o douto despacho objecto de recurso, que, sem se debruçar sobre a susceptibilidade de tal bem, a existir, ser relacionável como direito de crédito em verba autónoma e independente da própria participação social (verba 3), considerou manifestamente intempestiva tal reclamação, indeferindo-a.
5. E bem, do ponto de vista do Recorrido.
6. Com efeito, a Recorrente pretende agora a inclusão na relação dos bens a partilhar, o direito de crédito do casal sobre a sociedade A..., Lda., respeitante aos “lucros, resultados e dividendos” proporcionais à quota social que constitui bem comum do casal e relacionado sob a verba três, apurados desde o dia .../.../2016.
Ou seja, segundo a própria, trata-se de um bem, cujo apuramento deverá ser reportado ao dia .../.../2016. Não estamos assim perante um bem que tenha surgido na esfera patrimonial do casal posteriormente ao início do processo de partilhas, ocorrido em 27 de Julho de 2016 por iniciativa da própria recorrente, que instaurou o presente processo Inventário.
7. A relação de bens inicial oferecida pelo recorrido, enquanto cabeça-de-casal, em 15/12/2017 (quando o Inventário ainda corria no Cartório Notarial), foi objecto de reclamação por parte da recorrente logo em Março do ano de 2018, ou seja, posteriormente à tal data que agora aponta como marco temporal a partir do qual deverão ser apurados os supostos lucros da sociedade.
Contudo nessa reclamação, nenhuma referência é feita a esse “direito aos lucros, resultados e dividendos” como estando omitido da relação, apesar de se tratar de um direito alegadamente já existente, ou previsível, no entender da recorrente.
8. Por outro lado e como bem aponta a decisão Recorrida, a recorrente “não alega nem demonstra, que à data da apresentação da reclamação de bens inicial, não podia ter conhecimento, que tais rendimentos constituem direito de crédito que, o ex-casal tem perante a sociedade comercial por quotas A..., L.da”
9. Tratando-se de um bem cuja existência é muito anterior ao momento em que a Recorrente apresentou reclamação à relação de bens (em Março de 2018) e não tendo sido por ela alegado sequer, que o conhecimento da sua existência ocorreu posteriormente ao respectivo incidente, o Tribunal “a quo” não poderia ter tomado decisão divergente da que tomou.
10. Quanto ao momento próprio para oferecimento da reclamação à relação de bens em processo de Inventário, o Tribunal da Relação do Porto (processo 212/19.3T8PVZ) em acórdão proferido em 09/03/2020, consultável em www.dgsi.pt, seguiu o seguinte entendimento:
I - De acordo com o desenho legal, a reclamação da relação de bens assume-se, ela própria, como um incidente da instância do inventário, no qual as partes apresentam as suas alegações e as provas tidas por pertinentes, sendo essa a sede própria para os interessados tomaram expressa posição sobre todas e quaisquer deficiências que se registem na peça processual destinada a balizar e definir as concretas situações jurídicas activas e passivas que compõem o acervo hereditário a partilhar.
II - Dado o seu escopo, a reclamação deve, pois, ser decidida numa fase inicial do processo de molde a evitar consequentes e óbvias perturbações no seu regular andamento, compreendendo-se, por isso, que, como regra, deva ser deduzida dentro do prazo fixado no nº 1 do artigo 30º da Lei nº 23/2013, de 5 de Março, embora se preveja a possibilidade, com cariz marcadamente excepcional, de a mesma ser apresentada mais tarde dentro do condicionalismo temporal estabelecido no nº 5 do art. 32º do mesmo diploma legal.
III - Consequentemente o início da audiência preparatória marca o dies ad quem do prazo para apresentação de reclamação da relação de bens, prazo esse que, na economia do preceito, assume natureza peremptória e preclusiva.
11. Ou seja, a reclamação à relação de bens suscitada para além do limite temporal legalmente previsto para o respectivo incidente, apenas poderá ser admitida e atendida para os bens supervenientes ou de cuja existência o reclamante só tenha tido conhecimento comprovadamente posterior.
Assim, não tendo a recorrente invocado qualquer situação excepcional que a legitimasse à apresentação, agora, do incidente de reclamação à relação de bens, o mesmo só pode ser havido, de acordo com o que entendeu a Meritíssima Juiz “a quo”, por manifestamente extemporâneo.
12. Uma análise mais atenta ao teor das conclusões de recurso apresentadas pela Recorrente, permite deduzir que a razão da sua discordância com o despacho não radica do facto de este sustentar o indeferimento da reclamação na sua extemporaneidade.
Veja-se que, como acima se referiu, o despacho em crise em momento algum se posiciona relativamente à susceptibilidade dos direitos em questão serem ou não relacionáveis. A razão desse indeferimento radica tão-somente na circunstância manifesta de a reclamação ter sido apresentada fora do tempo legalmente previsto para o efeito, o que prejudicou o conhecimento sobre a susceptibilidade de relacionamento do crédito em causa.
13. Mas a recorrente, nas suas conclusões, não rebate os verdadeiros fundamentos expostos nesse despacho e que conduziram ao indeferimento do seu requerimento. Ou seja, em nenhuma dessas conclusões é defendido que a reclamação em causa foi oferecida atempadamente.
Quanto a esse pormenor - que traduz a essência do que está em discussão - apenas é dito na primeira conclusão “Que os direitos de crédito resultantes da titularidade de quotas societárias resultam da actividade empresarial durante o ano económico com o encerramento de contas e, como tal, não é possível o conhecimento anterior da sua existência”.
No entanto, entre a data da separação de facto (.../.../2016) e o momento em que a Recorrente apresentou a reclamação à relação de bens (Julho de 2018) fecharam-se dois anos económicos, dois exercícios (o de 2016 e o de 2017), pelo que nessa altura, a Recorrente já tinha (ou devia ter) conhecimento da existência dos eventuais créditos sobre a sociedade, estando apta a reclamar da sua omissão.
Assim, deverá esta primeira conclusão improceder, mantendo-se inalterado o despacho recorrido.
14. Nas restantes conclusões, a recorrente defende e fundamenta a susceptibilidade de relacionamento do direito de crédito que acusa estar em falta na relação de bens.
Apesar de, conforme acima se referiu, se tratar de matéria que não está em causa no despacho em crise, o aqui recorrido, salvo melhor opinião, continua a entender que os eventuais direitos de crédito relativos a resultados, lucros e dividendos de uma sociedade não são passíveis de relacionamento em verba própria, muito menos como crédito sobre a referida sociedade, por duas razões:
15. A primeira porque entende que a própria participação social encerra em si própria e titula não só todos os direitos (lucros resultados, dividendos, etc.), como também as obrigações dos sócios perante a sociedade.
No presente caso a quota social, encontra-se relacionada sob a verba nº 3, pelo respectivo valor nominal, conforme prescreve o artigo 1098º, nº 2, al. c), do C.P.C. na redacção actual.
Assim, todos os direitos (e também os deveres) para com a sociedade, encontram-se reflectidos na própria participação social.
16. E a segunda porque, conforme efectivamente decorre dos artigos 20º e 21º do Código das Sociedade Comerciais, todo o sócio tem o dever de quinhoar nas perdas e nos lucros da sociedade, acrescentando o nº 1, do artigo 22º que “na falta de preceito especial ou convenção em contrário, os sócios participam nos lucros e nas perdas da sociedade segundo a proporção dos valores das respectivas participações no capital”.
Também de acordo com o C.S.C., no artigo 8º, nº 2, “quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal”.
17. Ora, no caso em concreto, quem assume a qualidade de sócio perante a sociedade A..., Lda. é o aqui Recorrido, sendo com ele que as relações societárias são estabelecidas.
Portanto, a terem existido lucros nos exercícios de 2016 até à actualidade, o que por mera cautela de patrocínio se concede (até porque a Recorrente também não alega a sua existência), os mesmos já terão sido distribuídos por quem na sociedade é havido como sócio e pagos ao final de cada exercício. E encontrando-se já pagos, o casal não detém qualquer direito de crédito perante a sociedade, pelo que nada há a relacionar a esse título.
18. Com efeito, um direito de crédito pressupõe, do outro lado, a existência de uma dívida e, no caso em concreto, a sociedade em causa não tem qualquer dívida nem para com o Recorrido enquanto sócio, nem para com o casal.
Quando muito, o valor que tivesse cabido ao aqui Recorrido como sócio a título de dividendos, seria relacionável por outra via, ou em dinheiro, ou em depósito bancário, mas nunca como um crédito sobre uma entidade que já saldou a sua dívida perante o respectivo devedor. (pensamos pretender dizer credor em vez de devedor)
Assim sendo, mesmo que a reclamação apresentada pela Recorrente fosse tempestiva, o que não se concede, nunca os eventuais dividendos distribuídos e pagos em função da quota relacionada, poderiam ser relacionáveis como direito de crédito sobre a sociedade.

Termos em que deverá o recurso interposto pela recorrente ser julgado totalmente improcedente.

*
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II- ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Pelas conclusões das alegações do recurso se afere e delimita o objecto e o âmbito do mesmo.
“Questões” são as concretas controvérsias centrais a dirimir.

III - OBJECTO DO RECURSO 

A questão que se coloca ao julgador através da presente apelação consiste em saber se a pretensão da Requerente e interessada AA, de 5 de Julho de 2022, conforme iv) do Relatório, onde, invocando o disposto nos artigos 1082º, d) e 1097º, c) e d), ambos do CPC, requer seja relacionado como bem comum - por referência à verba nº 3 da relação de bens, quota social de que o ex-casal é titular na sociedade A... Lda., de que o interessado e cabeça-de-casal é sócio-gerente - o direito de crédito aos lucros da mesma empresa, isto é, aos resultados ou dividendos relativos ao exercício da actividade desde a data de 27/3/2016, data da separação de facto entre os cônjuges fixada na sentença de divórcio nos termos do artº 1789º nº 2 do CC., - é ou não de indeferir liminarmente por extemporaneidade.

IV- mérito do recurso

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A ter em conta o acervo fáctico-processual do relatório supra.

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À questão colocada o julgador no 1º grau respondeu negativamente, com que o Requerido concorda. Discorda, porém a Requerente, que da douta decisão recorre.


A decisão recorrida entendeu a pretensão da ora Apelante como sendo uma nova reclamação à relação (embora actualizada) de bens a partilhar. Entendeu que com a reforma do processo especial de inventário operada pela Lei n.º 117/2019 de 13 de Setembro só é admissível nova reclamação se invocada a superveniência do seu conhecimento. Entendeu-se que tal requisito se não verificava, e a pretensão foi indeferida por extemporaneidade.

Para melhor entendimento desta argumentação podemos socorrer-nos do Ac. TRG, de 15 de Junho de 2021, proferido no processo nº 556/20.1T8CHV-A.G1 (Conceição Sampaio), acessível no site da dgsi.net., onde, para uma situação diferente da nossa, seguiu argumentação tirada a papel químico.
Nesse aresto – para uma situação diferente – escreveu-se:

A nova lei que veio regulamentar o processo de inventário procurou instituir um novo paradigma com o objectivo de assegurar uma maior eficácia e celeridade processuais, introduzindo um princípio de concentração associado a um principio de preclusão.
Nas palavras de Lopes do Rego, “Do regime estabelecido no art. 1104.º CPC decorre obviamente um princípio de concentração no momento da oposição de todas as impugnações, reclamações e meios de defesa que os citados entendam dever deduzir perante a abertura da sucessão (…). Ou seja, adopta-se, na fase de oposição, um princípio de concentração na invocação de todos os meios de defesa idêntico ao que vigora no art. 573.º do CPC: toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, activo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo atuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo da oposição, dando origem à apresentação de um verdadeiro articulado superveniente), que a lei admita expressamente passado esse momento (como sucede com a contestação do valor dos bens relacionados e o pedido da respectiva avaliação, que, por razões pragmáticas, o legislador admitiu que pudesse ser deduzido até ao início das licitações) ou com as questões que sejam de conhecimento oficioso pelo tribunal” - Carlos Lopes do Rego, A Recapitulação do Inventário, Julgar Online, Dezembro de 2019, pág. 12.
Da imposição deste modelo procedimental resulta que as reclamações contra a relação de bens tenham de ser necessariamente deduzidas, salvo demonstração de superveniência objectiva ou subjectiva, na fase da oposição, com indicação de toda a prova.
Por outro lado, como afirma o autor, a circunstância de o exercício de determinadas faculdades estar inserido no perímetro de certa fase ou momento processual implica igualmente que, salvo superveniência (nos apertados limites em que esta é considerada relevante, na parte geral do CPC e na regulamentação do processo comum de declaração), qualquer requerimento, pretensão ou oposição tem obrigatoriamente de ser deduzido no momento processual tido por adequado pela lei de processo, sob pena de preclusão -  Carlos Lopes do Rego, A Recapitulação do Inventário, Julgar Online, Dezembro de 2019, pág. 13.
Com esta tramitação pretendeu-se dar resposta às questões processuais que, no anterior regime, constituíam um verdadeiro “convite ao entorpecimento”, impondo-se agora uma rígida disciplina processual, de molde a acabar com a tramitação sinuosa e permissiva do processo de inventário.
Foi a consciência de que uma significativa responsabilidade pela morosidade do processo de inventário “cabia” à própria tramitação, que motivou a necessidade imperiosa de se procurar dotar o processo de uma tramitação que permitisse que o mesmo fluísse e não proporcionasse um uso menos apropriado por parte dos interessados - Neste sentido, Pedro Pinheiro Torres, Notas Breves de Apresentação do Processo de Inventário na Redacção dada pela Lei n.º 117/2019 de 13 de Setembro, pág. 14, CEJ, eb-inventário, 2020.
Com este regime de antecipação/concentração na suscitação de questões prévias à partilha ou de meios de defesa, associado ao estabelecimento de cominações e preclusões, pretende evitar-se que a colocação tardia de questões – que podiam perfeitamente ter sido suscitadas em anterior momento ou fase processual – ponha em causa o regular e célere andamento do processo, acabando por inquinar irremediavelmente o resultado de actos e diligências já aparentemente sedimentados, tendentes nomeadamente à concretização da partilha, obrigando o processo a recuar várias casas, com os consequentes prejuízos ao nível da celeridade e eficácia na realização do seu fim último - Lopes do Rego, ob. cit. pág. 14.
Dito isto, não vindo invocada a superveniência, nenhuma justificação se prefigura como atendível, no sentido da admissibilidade do requerimento apresentado pelos reclamantes, tendo sido bem decidido o seu indeferimento.

*
O processo principal, de que este apenso A é o de recurso em separado -, trata de Processo de Inventário para partilha subsequente ao divórcio, previsto no artigo 1133º do CPC, regulado nos termos aí previstos, aplicando-se em tudo o que for omisso, as disposições relativas ao inventário para pôr termo à comunhão hereditária do artigo 1097º e ss, do m. d.,  na redacção operada pela Lei n.º 117/2019 de 13 de Setembro.

Teve lugar uma audiência prévia - cfr. artigo 1109º do CPC -, diligência que foi dada por finda, e que conseguiu o objectivo de conciliar os interessados em pontos específicos sobre o que estavam desavindos, culminando pela notificação do cabeça-de-casal para entregar, em prazo, uma relação de bens actualizada. 

Não consta da respectiva acta que os Interessados ficaram sem divergências.

A Requerente não refere vir reclamar da relação de bens. Não se compromete com a figura incidental da reclamação.

O que a Requerente vem dizer é que a verba nº 3 da relação de bens é constituída por quota social de que o ex-casal é titular na sociedade A... Lda., de que o interessado e cabeça-de-casal é sócio-gerente.
Vem dizer subentendidamente que a exploração da sociedade comercial se fazia em proveito do ex-casal.
Uma vez que já passou muito tempo entre o momento a que se reportam os efeitos patrimoniais do divórcio – 27-3-2016 - e ainda passará até ao momento da efectiva partilha, deve ser relacionado o lucro líquido, de cada exercício,  correspondente à quota em causa.
Entende-o como uma consequência do decurso do tempo relativamente à titulação da participação social, algo acessório que flui naturalmente com o decurso do tempo e o prosseguimento da exploração da sociedade, uma espécie de desenvolvimento ou ampliação da relacionação da referida verba nº 3.

Em tudo um raciocínio semelhante ao plasmado no artigo 265º, 2 do CPC ao estatuir sobre a livre ampliação do pedido na 1ª instância.

À partida uma pretensão destas não parece ser de rejeitar liminarmente por extemporaneidade, uma vez também se prevê no artigo 1110º, 1, a) do CPC haver lugar a despacho saneador com o propósito de resolver todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, sendo a que agora nos ocupa uma delas, certamente, pelas implicações que pode ter.

*
Procede a apelação.

V-DECISÃO:

Pelo que fica exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e por isso vai revogada a decisão recorrida, que é substituída por outra que ordena o prosseguimento do incidente, salvo se ocorrer outro motivo aqui não tratado.

Custas pelo Apelado, BB.

Valor da causa: € 6.000,00.

Coimbra, 28 de Fevereiro de 2023.


(Rui  António Correia  Moura)                                

(Fonte Ramos)    

(Alberto Ruço)