Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1068/08.7TBTMR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: BENFEITORIA
PRÉDIO URBANO
TERRENO
ALHEIO
Data do Acordão: 05/13/2014
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DECLARADA NULA
Legislação Nacional: ARTº 216º DO C. CIVIL.
Sumário: I – De harmonia com a orientação jurisprudencial prevalecente, o prédio urbano construído, pelos cônjuges, terreno de um só deles, deve ser considerado uma benfeitoria e como tal deve ser descrito no inventário consequente à extinção, por divórcio, da comunhão de bens entre eles.

II - No regime de bens de comunhão de adquiridos considera-se bem próprio do cônjuge, por força da titularidade de bens próprios, o proveniente de acessões, sem prejuízo da compensação, devida pelo cônjuge proprietário, ao património conjugal comum ou ao outro cônjuge, conforme o caso.

Decisão Texto Integral:                 I. Forma de julgamento do recurso.

                Dado que a questão objecto do recurso – que nem sequer obteve resposta – não é complexa e tem sido decidida pela jurisprudência de forma acorde, declaro que o recurso será julgado, liminar, sumaria e singularmente (artºs 652 nº 1 c) e 656 do CPC).

                II. Julgamento do recurso.

                1. Relatório.

                No inventário para partilha do património conjugal comum, consequente à extinção, por divórcio, da comunhão de bens entre A… e I… – cujo casamento, contraído, segundo o regime de comunhão de adquiridos foi dissolvido, por divórcio, por decisão de 30 de Dezembro de 2003, passada em julgado – que corre termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Tomar – o primeiro, que exerce as funções de cabeça-de-casal, relacionou, como bem comum, entre outros, sob a verba nº 56, o seguinte bem imóvel:

                - Prédio urbano composto de rés-do-chão e 1º andar, que se destina a habitação, com a área aproximada de 240 m2, sito na Rua do … (edificada no prédio rústico com a área de 3 920 m2, inscrito sob o art.º matricial nº …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o nº …, mesma Freguesia de Paialvo, e que constitui, (este último), bem próprio do cabeça-de-casal advindo por herança por óbito de sua mãe M…, com o valor de € 75 000,00.

                Na diligência de inquirição de testemunhas, realizada no contexto do incidente da reclamação contra a relação de bens, no dia 14 de Dezembro de 2010, ambos os interessados requereram, conjuntamente, que se procedesse à avaliação, designadamente, da verba nº 56, devendo ser distinto o seguinte: a) Valor da casa, r/c e 1º andar; b) valor apenas do terreno onde a casa e anexos estão implantados, como se essas edificações não existissem; c) Valor dos anexos implantados no terreno que consta como bem próprio na Verba nº 56 da Relação de fls. 36 – requerimento que, por despacho proferido acto contínuo para a acta, foi deferido, qua tale.

                O perito único, que procedeu à diligência de avaliação, rematou o seu relatório – que não foi objecto de reclamação - com esta conclusão:

                1. Valor da verba V56 – VV56.

                1.1. Valor da moradia: € 81 198,38

                1.2. Valor do terreno: € 17 290,00;

                1.3. Valor de anexos, churrasqueira e garagem: € 14 858,00.

                Na conferência, designada para o dia 14 de Novembro de 2013, os interessados directos na partilha ditaram para a acta este requerimento conjunto: do teor da relação de bens infere-se que a verba nº 65 se encontra descrita como prédio urbano autónomo, mas implantada num prédio rústico, aí identificado, o qual constitui, porém, bem próprio do cabeça-de-casal. Afigura-se-nos, porém, tratar-se de uma inexactidão na descrição dessa verba (verba nº 65, conforme fls. 503). Em termos técnico-jurídicos deverá passar a constar tal descrição, mas como benfeitoria realizada por ambos os cônjuges, em bem próprio do cabeça de casal, com os pormenores de descrição, quanto à sua identificação, nos mesmos termos que constam da dita verba nº 65. Requer-se, por conseguinte, que seja ordenada a ora requerida rectificação.

                Sob este requerimento recaiu, no dia 24 de Janeiro de 2014, este despacho:

                Tendo em conta o que João António Lopes Cardoso afirma in Partilhas Judiciais, vol. I, págs., 474 a 479, da Editora Almedina, com o que concordamos e ainda tudo o que aquele afirma a propósito do inventário em consequência de separação ou divórcio, vol. III, págs., 340 e ss., concluímos que como é de suma importância a casa de morada de família daí todo o conjunto de normas imperativas a rodear a oneração e disposição daquele bem 1682º A do código civil (CC) e seguintes, e como a dita verba nº 65 da relação de bens de fls. 503 é precisamente aquela casa de morada de família, construída por ambos os cônjuges, considero que a mesma é de manter essa mesma qualidade de “imóvel”, tal como está relacionada e nos seus precisos termos, considerando que in casu, tal casa não deve ser qualificada como de benfeitoria assim o afirma o dito doutrinador para o caso semelhante de construção de casa de morada em terreno alheio, quota 1407, posição com a qual concordamos.

                Situação diferente é a do terreno onde tal casa foi implantada e que é bem próprio do ex-cônjuge e ora CC, A….

                Ora, tal titularidade nunca foi posta em causa por ninguém e aliás por isso mesmo tal terreno é mencionado na dita verba nº 65.

                Portanto, vai é descrever-se o dito terreno como verba autónoma nº 65-A, devendo a Secção no local próprio, retirar da dita verba nº 65, a parte que descreve minuciosamente o dito prédio rústico e como bem próprio do referido CC.

                Deve ser-lhe atribuído o valor dado pela perícia de avaliação que consta dos autos e da qual nenhum dos ora interessados reclamou.

Esta verba autónoma não deverá ser aqui partilhada (todos sabem que aqui apenas se partilham bens comuns).

                Sucede que, aquele dos cônjuges que ficar com a casa, adquirirá por acessão, este terreno, pagando o seu justo valor, claro se não for a ficar com a casa o ora CC, que é o dono deste prédio, pois que quanto a ele não há qualquer acessão.

                Altere a relação de bens, a Secção em conformidade.

                Em execução desta decisão, a secretaria procedeu à descrição, designadamente, dos seguintes bens imóveis:

                - Verba nº 65 - Prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e 1º andar, que se destina a habitação, com a área aproximada de 240 m2, avaliada em 81 198,38 € e anexos, churrasqueira e garagem avaliados em 14 858,00 sito na Rua do …, avaliação total de – 96 056,38 €;

                - Verba nº 65-A – Prédio rústico (onde se encontram edificados os urbanos descritos na verba nº 65) com a área de 3 920 m2, inscrito sob o art.º matricial nº …, e que constitui bem próprio do cabeça-de-casal advindo por herança por óbito de sua mãe M…) avaliado em – 17 290,15 €.

                É, justamente, a decisão contida no despacho de 24 de Janeiro de 2014 – que determinou esta descrição - que o interessado A… impugna através do recurso ordinário de apelação.

                O recorrente – que pede, no recurso, a revogação daquela decisão e a sua substituição por douto despacho que determine a inclusão na relação de bens da construção urbana correspondente à casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar mas como benfeitoria/ ou direito de crédito do casal pela dita construção, pelo valor da avaliação, e se for o caso, inserção do correspondente valor como dívida do cabeça de casal ao dissolvido casal pelo correspondente e idêntico montante, mais se decidindo nesta instância, após estas questões iniciais, as questões seguintes como seja a eliminação do bem próprio ora inserido e descrito sob verba nº 65-A da relação de bens, eliminação da descrição dos anexos, churrasqueira e garagem indevidamente incluídos na verba nº 65, e as demais que se colocaram a título exclusivamente subsidiário, como seja o valor atribuído ao bem próprio do cabeça de casal, ordenando se necessário fosse o esclarecimento a realizar por parte do perito quanto à problemática identificada na motivação e conclusões – rematou a sua alegação com estas conclusões:

...

                Não foi oferecida resposta.

                2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

                Os factos que relevam para o conhecimento do objecto do recurso – relativos ao regime de bens sob que contraído o casamento do recorrente e da co-interessada, à construção, por ambos, do prédio urbano em prédio rústico pertença do primeiro e ao conteúdo da descrição destes bens – são os que o relatório documenta.

                3. Fundamentos.

                3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

                Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito objectivo do recurso pode ser limitado, pelo próprio recorrente, no requerimento de interposição ou, expressa ou tacitamente, nas conclusões da alegação (artº 635 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

                A realidade de facto subjacente à decisão impugnada – que não é objecto de controversão – é, nos seus traços essenciais, a seguinte: na constância do seu casamento, contraído segundo o regime de comunhão de adquiridos, os interessados directos na partilha – os ex-cônjuges – construíram, num prédio rústico que constitui bem próprio do cabeça-de-casal e recorrente, um prédio urbano – originariamente relacionado como bem comum. Todavia, a dado momento da instância, aqueles interessados, alegando a inexactidão daquela descrição, requereram, conjuntamente, à Sra. Juíza de Direito, a sua correcção, de modo aquele bem fosse descrito como benfeitoria, realizada em bem próprio do cabeça-de-casal, com o valor apurado pelo perito que procedeu à diligência de avaliação.

                No entanto, a Sra. Juíza de Direito, louvando-se na doutrina do Dr. Lopes Cardoso, com fundamento em que tal casa não deve qualificar-se como benfeitoria e que aquele dos cônjuges que ficar com a casa, adquirirá por acessão, este terreno, pagando o seu justo valor, manteve a descrição do prédio urbano como bem comum e ordenou a distracção da respectiva descrição da menção relativa ao prédio rústico em que se encontra implantado e ordenou a descrição autónoma deste último prédio – pelo valor encontrado pelo perito que procedeu à avaliação - como bem próprio do cabeça-de-casal. A secretaria em execução deste despacho inseriu no conteúdo da descrição do prédio urbano, os anexos, churrasqueira e garagem avaliados em 14 858,00.  

                Maneira que, tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e da alegação do recorrente, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se:

                a) A decisão impugnada se encontra ferida com o valor negativo da nulidade;

                b) O prédio urbano construído por ambos os interessados em prédio que constitui bem próprio do cabeça-de-casal deve permanecer descrito como bem comum ou antes como benfeitoria;

                c) Deve eliminar-se a verba nº 65-A, que contém a descrição do prédio no qual foi implantado o prédio urbano referido em b);

                d) Deve corrigir-se a descrição do bem referido em b), através da supressão da menção relativa aos anexos, churrasqueira e garagem;              

                e) Por último, subsidiariamente, deve corrigir-se o valor pelo qual a verba nº 65-A foi descrita;

                A resolução destes problemas vincula ao exame, ainda que leve, das causas de nulidade da decisão representadas pela falta de fundamentação e pelo excesso de pronúncia, do distinguo entre benfeitoria e acessão e, por último, do regime de bens sob que foi contraído o casamento dos interessados directos na partilha.

                3.2. Nulidade da decisão impugnada.

                O primeiro fundamento da impugnação consiste na nulidade da decisão recorrida. Valor negativo que, de harmonia com a alegação do recorrente, decorreria de uma dupla causa: a falta de fundamentação; o excesso de pronúncia.

                Toda e qualquer decisão do tribunal – despacho, sentença, acórdão – comporta, sempre, dois elementos essenciais: os fundamentos e a decisão. Os fundamentos incluem a matéria de facto relevante e o regime jurídico que lhe é aplicável; a decisão em sentido estrito contém a conclusão que se extrai da aplicação do direito aos factos.

                Uma das funções essenciais de toda e qualquer decisão judicial é convencer os interessados do bom fundamento da decisão. A exigência de motivação da decisão destina-se a permitir que o juiz ou juízes convençam os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz ou juízes devem passar de convencidos a convincentes.

                Compreende-se facilmente este dever de fundamentação, pois que os fundamentos da decisão constituem um momento essencial não só para a sua interpretação – mas também para o seu controlo pelas partes da acção e pelos tribunais de recurso[1].

                A motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível – como sucede na espécie sujeita - de garantia do direito ao recurso.

                A exigência de fundamentação decorre, pois, desde logo, da necessidade de controlar tanto a coerência interna como a correcção externa da decisão. A coerência ou justificação interna da decisão reporta-se à sua coerência com as respectivas premissas de facto e de direito, dado que a decisão não pode ser logicamente válida se não for coerente com aquelas premissas.

                A correcção ou justificação externa da decisão diz respeito à correcção da construção das suas premissas de facto e de direito: ainda que a decisão se mostre coerente com aquelas premissas e, por isso, seja logicamente válida, a decisão não pode ser correcta se aquelas premissas não tiverem sido obtidas correctamente.

                Todavia, o dever funcional de fundamentação não está orientado apenas para a garantia do controlo interno - partes e instâncias de recurso - do modo como o juiz exerceu os seus poderes. O cumprimento daquele dever é condição mesma de legitimação da decisão.

                Na motivação da decisão o juiz deve desenvolver uma argumentação justificativa da qual devem resultar as boas razões que fazem aceitar razoavelmente a decisão, numa base objectiva, não só para as partes, mas também – num plano mais geral – para toda a comunidade jurídica. Na motivação, o juiz deve demonstrar a consistência dos vários aspectos da decisão, que vão desde a determinação da verdade dos factos na base das provas, até à correcta interpretação e aplicação da norma que se assume como critério do julgamento. Da motivação deve resultar particularmente que a decisão foi tomada, em todos os seus aspectos, de facto e de direito, de maneira racional, seguindo critérios objectivos e controláveis de valoração, e, portanto, de forma imparcial[2]. Dito doutro modo: a decisão não deve ser só justa, legal e razoável em si mesma: o juiz está obrigado a demonstrar que o seu raciocínio é justo e legal, e isto só pode fazer-se emitindo opiniões racionais que revelem as premissas e inferências que podem ser aduzidas como bons e aceitáveis fundamentos da decisão[3].

                A fundamentação da decisão é, pois, essencial para o controlo da sua racionalidade. Pode mesmo dizer-se que esta racionalidade é uma função daquela fundamentação. E como a racionalidade da decisão só pode ser aferida pela sua fundamentação, esta fundamentação é constitutiva dessa mesma racionalidade.

                Por isso que as decisões sobre qualquer pedido controvertido ou sobre qualquer dúvida suscitada no processo serão sempre fundamentadas (artºs 208 nº 1 da Constituição da República Portuguesa, 154 nº 1 e 607 nº 4, 1ª parte, do CPC). A falta de motivação ou fundamentação verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. A nulidade decorre, portanto, da violação do dever de motivação ou fundamentação de decisões judiciais (artº 208 nº 1 da CRP e 154 nº 1 do CPC).

                Todavia, tem-se entendido que apenas a ausência ou a falta absoluta de motivação conduz à nulidade[4]: a fundamentação insuficiente ou deficiente, embora afecte o valor persuasivo da decisão, não constitui causa de nulidade.

                Em face deste enunciado, tem-se por certo que a decisão impugnada não se encontra ferida com o valor da nulidade, resultante da falta de fundamentação. Esta conclusão é, aliás, imposta pelo teor da alegação do recorrente, dado que este alega, para, por aquele fundamento, arguir a nulidade, não a falta de qualquer motivação - mas simplesmente a sua insuficiência. Realmente, em boa verdade não pode dizer-se que a decisão recorrida seja, no plano da fundamentação, particularmente pródiga ou loquaz. Mas também se não pode afirmar que não especifica ou individualiza, de forma suficiente, tanto os motivos de facto como as razões de direito que, na sua perspectiva, a justificam. No seu ver, a construção pelos dois cônjuges de um prédio urbano em prédio de um só deles não deve qualificar-se de benfeitoria, sendo antes aplicável o regime da acessão, conclusão que – parece - seria imposta, de um aspecto, pelo facto de aquele prédio constituir a casa de morada da família, e, de outro pela suma importância dessa casa.

                Em contrapartida, tem-se por certo que a decisão é nula – mas pela outra causa apontada pelo recorrente: o excesso de pronúncia.                              

Como corolário do princípio da disponibilidade objectiva, a decisão é nula quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (artºs 5 e 615 nº 1 d), 2ª parte). O excesso de pronúncia verifica-se quando o tribunal utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou condena ou absolve num pedido não formulado, bem como quando conhece de matéria alegada ou de pedido formulado em condições que está impedido de o fazer. O excesso de pronúncia pode ser parcial ou qualitativo, consoante o tribunal conheça de um pedido que é qualitativa ou quantitativamente diverso daquele que foi formulado. Este excesso de pronúncia parcial ou qualitativo – que se verifica quando o tribunal, mesmo utilizando os fundamentos admissíveis, condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, produz também a nulidade da sentença (artº 615 nº 1, e), do CPC).

                Os interessados directos na partilha pediram à Sra. Juíza de Direito uma só coisa: a correcção da descrição da verba nº 65 de modo a que o prédio urbano nela constante fosse descrito como benfeitoria. Portanto, uma de duas: a Sra. Juíza ou deferia o requerimento e mandava corrigir a descrição, nos termos requeridos por ambos os interessados; ou indeferia o requerimento, e mantinha a descrição do prédio, qua tale, como bem integrante do património comum. Todavia, a decisão recorrida foi mais longe: manteve a descrição do prédio urbano como bem comum – mas determinou a descrição autónoma, como bem próprio do cabeça-de-casal, do prédio em que aquela construção foi edificada, e fixou-lhe o valor que, para ele foi encontrado pela perícia. E a secretaria ainda foi mais além, ao inserir, na descrição relativa ao prédio urbano outras construções existentes no prédio em que foi implantado – bens que nem sequer foram relacionados.

                A conclusão a tirar é, seguramente, que a decisão recorrida condenou em objecto diverso do pedido, incorrendo, irremediavelmente por essa razão, no vício da nulidade substancial.

                Importa, pois, declarar tal nulidade e, dado que esta Relação julga segundo o modelo de substituição e dispõe de todos os elementos de prova julgados indispensáveis, proceder ao seu suprimento (artº 665 nº 1 do CPC).

                3.3. Benfeitoria e acessão.

                Segundo a definição legal, benfeitorias são todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa. São necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; são úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam todavia, o valor; por último, são voluptuárias, as benfeitorias que, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante (artº 216º, nºs 1 e 2 do Código Civil).

                De harmonia com este mesmo Código, dá-se a acessão quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que não lhe pertencia (artº 1325). A acessão pode ser natural ou industrial – conforme resulta da natureza ou da acção humana – e a última pode subdividir-se em mobiliária e imobiliária, consoante respeite apenas a coisas móveis ou envolva também imóvel; qualquer delas pode ainda ser considerada de boa ou má fé, conforme a posição em que esteja o possuidor, entendendo-se, neste contexto, por boa fé o desconhecimento pelo autor da obra do carácter alheio do terreno (artºs 1326 nºs 1 e 2 e 1340 nº 4 do Código Civil).

                No tocante à acessão industrial imobiliária – que pode, genericamente, definir-se como a união ou incorporação em prédios (imóveis) de coisas alheias por acção do homem - a lei trata sempre conjuntamente as hipóteses de obras, sementeiras ou plantações, estatuindo, para as diversas hipóteses, um regime particularmente complexo, dado que atende a quatro critérios: a titularidade do terreno; a titularidade dos materiais ou sementes; a boa ou má fé dos intervenientes; o valor relativo das coisas (artº 1339 do Código Civil).

                Assim, a incorporação feita em terreno alheio com materiais próprios, de boa fé, confere o direito à aquisição do conjunto ao titular da coisa mais valiosa, desde que pague ao outro o valor da coisa adquirida (artº 1340 nºs 1 e 3 do Código Civil). A incorporação, nas mesmas condições, mas feita de má fé, confere ao titular do terreno a faculdade alternativa de adquirir as coisas incorporadas, pelo valor fixado de acordo com as regras do enriquecimento sem causa ou de exigir que o terreno seja restituído ao seu estado primitivo, à custa do incorporador (artº 1341 do Código Civil).

                Especialmente espinhoso é o distinguo entre benfeitoria e acessão.

                Assim, alguma doutrina sustenta que a distinção entre acessão e benfeitoria assenta na finalidade e no regime jurídico de ambas as figuras: no caso de simples benfeitorias, atribuiu a lei, ao autor delas, um direito ao levantamento ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada, não, porém, um direito de propriedade sobre a coisa, já que a benfeitoria não se destina, senão, a conservar ou melhorar a coisa; no caso de acessão, diversamente, não se trata apenas de melhorar ou conservar uma coisa de outrem, mas construir uma coisa nova, mediante a alteração daquele em que a obra é feita, atribuindo, assim, a lei, em certas condições, ao autor da acessão, a propriedade da coisa[5].

                Outra, porém, é do parecer que a regra geral é a da acessão, sendo esta aplicável sempre que a coisa incorporada não seja qualificável de benfeitoria, designadamente, quando valha mais do que a outra coisa, quando modifique o destino económico do conjunto, ou quando não conserve nem melhore a coisa, nem sirva para recreio do benfeitorizante, antes correspondendo ao normal exercício do direito acedido; as benfeitorias seriam aplicáveis quando a lei expressamente o dissesse, como sucede, por exemplo, na locação ou no usufruto (artºs 1046 e 1138 do Código Civil)[6].

                Outra ainda é da opinião que a benfeitoria consiste no melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela; a aquisição por acessão é sempre subordinada à falta de um título que dê, de per si, a origem e a disciplina da situação criada. Assim, são acessões os melhoramentos feitos por qualquer terceiro não relacionado juridicamente com a coisa, podendo esse terceiro ser um simples detentor ocasional. As benfeitorias e a acessão constituem fenómenos paralelos, cujo distinguo assenta na existência de uma relação jurídica que vincule a pessoa à coisa beneficiada[7].

                É, justamente, esta última orientação que tem acolhido o favor da jurisprudência[8]. E é por aplicação deste último critério que a jurisprudência tem decidido, quase ne varietur, que a construção, pelos cônjuges, de um prédio urbano em terreno de um só deles, deve ser considerado uma benfeitoria e, como tal deve ser descrito, no inventário consequente à extinção, por divórcio, da comunhão de bens entre eles[9]. O cônjuge – faz-se notar - não pode considerar-se estranho à coisa nem de boa fé, e, portanto, o caso é, simplesmente, de benfeitorias realizadas na coisa, que atribui à comunhão conjugal um direito de crédito sobre o cônjuge proprietário.

                Este enunciado seria suficiente para mostrar o desacerto da decisão impugnada. Mas a conclusão da falta de bondade desta mesma decisão continua exacta - mesmo que se entenda que o caso deve ser enquadrado não à luz do conceito de benfeitoria mas de acessão.

                Realmente, a conclusão de que, na hipótese considerada, o prédio urbano construído por ambos os cônjuges, em terreno da propriedade só de um deles, não se integra no património conjugal comum, mesmo que – contra a orientação jurisprudencial quase unânime – o caso fosse de acessão, é irrecusavelmente imposta, pelo regime de bens sob que, no caso, se considera celebrado o casamento dos interessados directos na partilha.

                O casamento dos interessados directos na partilha – entretanto já dissolvido por divórcio – considera-se contraído segundo o regime de comunhão de adquiridos (artº 1717 do Código Civil). Neste regime de bens há – ou pode haver – bens próprios e bens comuns. No tocante à composição destas duas massas patrimoniais, resulta da lei que são bens próprios de cada um dos cônjuges, entre outros, os bens que estes levam para o casamento, os que lhe advierem por sucessão ou doação e os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior (artº 1722 nº 1 a) a c) do Código Civil).

                Mas constituem bens próprios de cada um dos cônjuges também os adquiridos por virtude da titularidade de bens próprios, que não possam considerar-se como frutos destes, sem prejuízo, todavia da compensação devida ao património comum (artº 1728 nº 1 do Código Civil). Estes últimos bens são próprios, por virtude da sua ligação, material ou jurídica com outros bens próprios do cônjuge, pelo que aquisição, por este cônjuge, não resulta de um direito anterior – mas de um direito, que posteriormente lhe é atribuído, com base na relação de conexão existente entre os novos bens e os bens de que ele já era titular. Uma tal relação de conexão entre os bens próprios originários e os bens adquiridos ex-vi legis, tem este resultado: a integração dos últimos no património próprio do cônjuge que, sob certo aspecto, pode considerar-se como uma expansão do direito de propriedade exclusiva desse cônjuge[10].

                Ora, um primeiro núcleo de bens que, por força da titularidade de bens próprios, a lei considera também bens próprios, é o proveniente de acessões – expressão, que neste contexto, compreende as várias modalidades que a acessão pode revestir (artº 1728 nº 2 a) do Código Civil). Mas se essa aquisição por uma dos cônjuges dos bens resultantes tive sido feita à custa do património conjugal ou se a acessão obrigar a indemnizar e a indemnização for paga à custa de bens comuns, o cônjuge beneficiado terá de compensar, adequadamente, o património conjugal comum.

                Quer dizer: mesmo que a construção, por ambos os cônjuges, de um prédio urbano em prédio de um só deles, se deva qualificar como acessão – como parece entender, de certo modo, a decisão impugnada - aquele prédio nunca adquiriria a qualidade de bem comum, dado que, por força de regra específica do regime de bens sobre que foi contraído o casamento dos interessados, o bem resultante da acessão reverteria sempre para o cônjuge proprietário do bem em que registou a intervenção – sem prejuízo, em qualquer caso, da compensação devida por esse cônjuge ao património comum ou ao outro cônjuge[11]. E só esta compensação – e não o imóvel - é que deve figurar no inventário para ser conferida como dívida do cônjuge proprietário ao património comum, se, como é o caso, a construção do imóvel tiver sido feita por ambos os cônjuges, portanto, à custa do de bens comuns (artº 1689 nº 1 do Código Civil).

                De outro aspecto, com a construção do prédio urbano – de harmonia com a máxima superfícies solo cedit - o solo perde toda e qualquer autonomia (artº 204 nº 2, 2ª parte, do Código Civil).

                Estas considerações são suficientes para demonstrar a inexactidão da decisão impugnada.

                3.4. Concretização.

                A decisão impugnada, do mesmo passo, recusou a correcção da descrição da verba nº 65 como benfeitoria – mantendo-a descrita como prédio urbano tout court e, correspondentemente, como bem comum, e de, outro, adicionou à relação de bens, o prédio rústico em que aquele prédio urbano foi construído.

                Pelas razões expostas – e de harmonia com o pedido formulado pelo recorrente no recurso – de um aspecto, o prédio urbano, construído por ambos os interessados, por não integrar qua tale, o património conjugal comum, deve descrever-se como benfeitoria, e de, outro, não há que descrever o prédio em que aquele outro foi edificado, dado que aquele bem, além de perder a sua autonomia, constitui um bem próprio do recorrente e não um bem comum que deva ser objecto da partilha e, em qualquer caso, que, essa descrição não foi pedida por qualquer dos interessados.

                Por último, a benfeitoria é constituída, unicamente, pelo prédio urbano construído pelos – então – cônjuges, pelo que não compreende outras construções já existentes no terreno em que aquele edifício foi implantado.     

                Dada a procedência do pedido deduzido, pelo apelante, no recurso, a título principal, está excluída a apreciação – que aliás sempre estaria prejudicada - do pedido que deduziu por via puramente subsidiária (artºs 554 nº 1 e 608 nº 2 do CPC).

                Síntese conclusiva:

                a) De harmonia com a orientação jurisprudencial prevalecente, o prédio urbano construído, pelos cônjuges, terreno de um só deles, deve ser considerado uma benfeitoria e como tal deve ser descrito no inventário consequente à extinção, por divórcio, da comunhão de bens entre eles;

                b) No regime de bens de comunhão de adquiridos considera-se bem próprio do cônjuge, por força da titularidade de bens próprios, o proveniente de acessões, sem prejuízo da compensação, devida pelo cônjuge proprietário, ao património conjugal comum ou ao outro cônjuge, conforme o caso.

                As custas do recurso serão satisfeitas pela parte que nele sucumbe: a co-interessada directa na partilha (artº 527 nºs 1 e 2 do CPC).

                4. Decisão.

                Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, declara-se a nulidade da decisão impugnada, revoga-se esta decisão e consequentemente, determina-se:

a) A supressão da verba nº 65-A; 

b) A descrição, sob a verba nº 65, como benfeitoria, pelo valor de € 81 198,38, do prédio urbano composto de rés-do-chão e 1º andar, que se destina a habitação, com a área aproximada de 240 m2, sito na Rua do … com a área de 3 920 m2, inscrito sob o art.º ...

                Custas do recurso pela interessada directa na partilha, I...                                                                                                     

                                                                                                                                                             14.05.13

Henrique Antunes (Relator)


[1] Ac. do STJ de 09.12.87, BMJ nº 372, pág. 369.
[2] Michele Tarufo, Páginas sobre justicia civil, Marcial Pons, 2009, pág. 53.
[3] Michele Tarufo, cit., págs. 36 e 37.
[4] Acs. da RP de 06.01.94, CJ, 94, I, pág. 197, e da RC de 03.11.94, CJ, 94, V, pág. 90.
[5] Vaz Serra, RLJ, Ano 108º, págs. 253 a 255 e 265 a 266.
[6] António Menezes Cordeiro, Direito Reais, Reprint, Lex, Lisboa, 1979, págs. 515 e 516. Para José Alberto Vieira - Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 686 – o regime das benfeitorias será aplicável sempre que a lei estabeleça essa solução. Diferentemente, Menezes Leitão – Direito Reais, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 239 e 240 – para quem o regime das benfeitorias, independentemente de a lei para ele remeter, deve ceder sempre que esteja em causa um situação de acessão, podendo, assim, esta ocorrer nos caos em que exista uma relação prévia com a coisa, a menos que a lei exclua a aplicação do seu regime, o que não sucede, no entanto, se a lei se limitar a regular o regime das benfeitorias. 
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 163.
[8] Entre muitos, os Acs. do STJ de 08.01.04, 08.02.96, 14.12.94, 25.02.87 e 18.01.03, www.dgsi.pt. Orientação que segundo informa José Alberto Vieira - Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 685 – constitui jurisprudência dominante, até hoje.
[9] Acs. do STJ de 24.03.90, 14.01.92, 10.01.93, 27.01.93, da RP de 25.10.93, da RL de 14.01.92 e 12.07.07, da RC de 15.02.11 e de 23.11.12, www.dgsi.pt, e da RL de 24.11.98, CJ, XVIII, V, pág. 121.
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume IV, 2ª edição, Coimbra Editora, 1992, pág. 433.
[11] Ac. da RL de 08.06.10, www.dgsi.pt. Concluindo, porém, pela aplicação da condictio ob causam finitam – e portanto, das regras do enriquecimento sine causa – no caso de atribuições patrimoniais por um dos cônjuges ao outro, na constância do casamento, que não revistam a natureza de doação, por a respectiva causa jurídica se extinguir com a dissolução do matrimónio, Menezes Leitão, O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, 1986, pág. 517 e nota 68.