Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
647/08.7TBCNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: PRESCRIÇÃO
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
CHEQUE EM BRANCO
TÍTULO EXECUTIVO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 07/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA COMP. MISTA E JUÍZOS CRIMINAIS DE COIMBRA - 2ª SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 458.º DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 46, Nº 1, ALÍNEA C) DO CPC; ARTIGOS 10.º DA LULL E 13.º DA LUC
Sumário: 1. Prescrita ou inoperante a obrigação cambiária incorporada num cheque, pode ainda o seu portador servir-se desse documento, agora como quirógrafo da obrigação de quem nele figura como seu sacador, desde que no requerimento executivo respectivo alegue a relação causal que motivou a assinatura deste e não esteja em jogo um negócio que exija forma mais solene.

2. Trata-se aqui de um mero ónus de alegação, pelo que é ao executado que, se for caso disso, cabe opôr-se, alegando e provando a inexistência dessa causa nos termos do artigo 458.º do C. Civil.

3. O cheque em branco ou incompleto - só assinado pelo sacador - é válido e pode circular, com ou sem pacto de preenchimento, sendo a sua posterior completude mera condição para que possa produzir todos os seus efeitos.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Na execução para pagamento de quantia certa com processo comum que lhe move A..veio o executado B...deduzir oposição nos seguintes termos:

Exequente e executado não se conhecem nem têm qualquer tipo de relação pessoal ou comercial; os dois cheques dados à execução foram entregues pelo executado e oponente, em branco e apenas por si assinados, não ao exequente, mas a C..., no âmbito de negócios que o oponente com este manteve, mas que terminaram em Fevereiro de 2008; nas datas apostas nos cheques – 24 e 29 de Abril de 2008 – já nada havia que legitimasse a entrega dos cheques por aquele C... ao ora exequente; além disso, este sabe que o cheque foi preenchido pelo mesmo C... e que o executado nada deve quer ao exequente quer a este último.

Remata com a procedência da oposição, fundada na inexistência de qualquer dívida do executado, declarando-se a inexequibilidade dos cheques.

Contestou o exequente sustentando uma versão radicalmente diversa.

Aduz que os cheques em causa titulam efectivamente apenas parte da devolução de múltiplas quantias por si emprestadas ao executado e ao aludido C... durante o período em que estes funcionaram como sociedade irregular e para qual solicitaram diversos empréstimos (ao exequente a outros), pois não dispunham de capital para os sinais necessários à outorga dos contratos-promessa de compra e venda de imóveis que celebravam (e em que depois transmitiam as correspondentes posições); de tal sorte que foi o executado quem assinou e preencheu os cheques dos autos, incluindo os respectivos montantes, para assim restituir as verbas mutuadas pelo exequente que atingiram o valor global de € 123.000,00 entre 2007 e 2008.

Termina, em consequência, com a improcedência da oposição.

Elaborada a base instrutória, e realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a oposição improcedente por não provada.

Inconformado, deste veredicto recorreu o executado-oponente, recurso admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos autos de oposição e com efeito meramente devolutivo.

Cumpre decidir.

                                                                                  *

São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância, sem qualquer espécie de impugnação:

1. A..instaurou execução contra B..., dando à execução dois cheques, no valor respectivamente de 65.000,00€ e 27.500,00€, datados de 24.04.2008 e 29.04.2008 e nos quais consta “à ordem de A..”, conforme documentos de fls. 7 a 10 do processo de execução, cujo teor e conteúdo se dá aqui por inteiramente reproduzido.

2. Os referidos cheques foram devolvidos na compensação do Banco de Portugal, pelo motivo de falta de provisão.

3. O executado apôs a sua assinatura nos referidos cheques.

4. Exequente e executado não se conhecem pessoalmente.

5. Entre o executado e o exequente não haviam relações pessoais.

6. Os cheques dados à execução foram apenas assinados pelo executado e inserem-se no âmbito dos negócios que o executado tinha com o Eng.

C....

7. O executado e o referido C... tinham uma sociedade irregular que comprava imóveis e depois os revendia, repartindo os lucros dessa actividade entre ambos.

8. O dinheiro inicial correspondente aos sinais dos vários contratos promessa, necessários ao desenvolvimento de tal actividade, advinha do referido C... e de diversos terceiros como o exequente.

9. Foi no âmbito desse negócio que o exequente soube da existência do executado.

10.Depois o executado devolveria aos que lhas emprestavam essas quantias emprestadas, entre os quais o ora exequente.

11.O exequente entregou ao executado várias quantias em dinheiro a título de empréstimo, valores esses que o executado deveria restituir.

12.O executado apôs nos cheques dados à execução a sua assinatura.

   *

A apelação.

As questões que se conseguem surpreender no enunciado conclusivo da alegação recursiva são unicamente as seguintes duas:

1º - A de saber se, sendo os títulos dados à execução, usados como quirógrafos e não como títulos cambiários, o exequente alegou a relação causal que está na base da respectiva emissão e assinatura pelo oponente (conc. 1ª a 5ª e 9ª até final);

2º - A de saber se na perspectiva adoptada na sentença de os cheques terem sido dados à execução como tal (como títulos cambiários) a ausência de pacto de preenchimento torna os mesmos inválidos (conclusões 6ª a 8ª):

 

Não houve resposta do apelado.

Sobre a inexequibilidade dos cheques enquanto quirógrafos da dívida.

Começa o apelante por aduzir que, apesar de ter optado por dar à execução os cheques como quirógrafos das obrigações de pagamento resultantes da sua assinatura, o exequente não alegou a imprescindível relação causal, pelo que os mesmos não disporiam da exequibilidade que lhes seria conferida pelo art.º 46, nº 1, alínea c) do CPC.

Que dizer?

É conhecida a posição jurisprudencial, ao que cremos hoje perfeitamente consolidada no STJ, que admite a sobrevivência do valor e efeito executivo da obrigação de quem promete pagar o valor de um determinado título cambiário, agora através do quirógrafo materialmente corporizado na letra, livrança ou cheque já prescrito, à luz da redacção que passou a vigorar para a alínea c) do nº1 do art.º 46 do CPC, redacção que desde o DL 226 de 2008 de 20/11 é a seguinte:

“1. À execução apenas podem servir de base:

a) (…);

b) (…);

c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega da coisa ou de prestação de facto;

(…).”

Perante esta nova sistemática dos tipos de títulos executivos, nada obsta, por conseguinte, a que, prescrito ou inválido por qualquer razão o direito de acção contra aquele que se considera devedor da letra, livrança ou o cheque, como principal obrigado no título cambiário, possa subsistir um outro título, este agora meramente assente na relação causal que subjazia à relação cambiária, contanto que, além do mais, se verifique o decisivo pressuposto de uma assinatura que importe “constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias (…)”.

Isto significa que, sem embargo de prescrição ou invalidade da letra, cheque ou livrança fundadas no regime decorrente da lei cambiária, ainda disporá o credor de título (ou, se se quiser, de um título remanescente) sempre que, à luz da lei, exceptuada aqui a disciplina específica dos títulos de crédito cambiários, se possa concluir que estão preenchidos os requisitos necessários para que se tenha por plasmado o reconhecimento de uma obrigação pecuniária de certo devedor para com esse credor.

Nesta senda, pode referir-se como sendo a orientação jurisprudencial mais consistente aquela de acordo com a qual, prescrita ou inoperante a obrigação cambiária, pode a letra, livrança ou o cheque, servir ainda de título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, desde que o exequente alegue no requerimento executivo, a relação causal e não esteja em jogo um negócio formal[1].

Trata-se aqui de dar expressão ao disposto no art.º 458, nº 1 do C. Civil, preceito que, no reconhecimento de uma dívida, dispensa o credor de provar a relação causal, mas não de a alegar[2].

Porém, a vontade de o exequente lançar mão de determinado documento que implique o reconhecimento de uma obrigação pecuniária para o devedor que também seja um título cambiário válido, igualmente com força executiva, carece de ser expressa e inequivocamente manifestada no próprio requerimento executivo. Existindo a possibilidade de sobreposição das duas naturezas, não pode ser o tribunal ou o executado a determinar o tipo de título que está a ser accionado: cambiário ou não cambiário. E nada dizendo o exequente sobre a relação causal, é óbvio que ao dar à execução cheques que são títulos cambiários válidos o que ele efectivamente visa é recorrer à disciplina cambiária do cheque, para se valer da literalidade, abstracção e autonomia que são próprias dos títulos cambiários, e que, como bem se compreende, podem tornar muito mais favorável a respectiva posição processual.

Sucede que in casu o exequente deu à execução dois cheques perfeitamente válidos à luz do regime cambiário respectivo, ou seja, da LUC.

Assim, não tinha a decisão recorrida que apreciar a sua exequibilidade como quirógrafos.

Pelo que a questão levantada improcede necessariamente.

Quanto à não prova do pacto de preenchimento.

Subsidiariamente, procura o apelante demonstrar que não tendo havido pacto de preenchimento dos cheques, os mesmos não seriam válidos também em função da disciplina cambiária em que a sua exequibilidade foi perspectiva na sentença.

Não podemos, todavia, concordar.

Qualquer título cambiário que se encontre incompleto no momento de ser passado pode vir a ser preenchido e ser válido, haja ou não contrato de preenchimento, seja este expresso ou tácito – art.ºs 10 da LULL e 13 da LUC.

O título pode circular ainda que só se considere eficaz depois de preenchido.

E aqui sempre há que distinguir entre pacto de preenchimento e convenção executiva.

O primeiro tem a haver com a definição substantiva da obrigação cambiária (montante, vencimento, lugar de pagamento, etc.) que se vai espelhar no título. O segundo respeita apenas à função da exequibilidade do título sobre a relação ou negócio fundamental que deu causa à relação cartular, à ligação daquela com o título, cujos contornos podem ser ajustados entre o emitente e o portador inicial.

Acontece que, quando se opôs, o apelante não alegou a ausência ou violação de um pacto de preenchimento nem sequer da convenção executiva.

Invocou, sim, a indevida utilização dos cheques pelo exequente dirigida ao seu locupletamento à custa do executado.

Locupletamento que adviria, deste modo, da inexistência de qualquer relação causal para a emissão dos cheques.

A defesa do oponente consubstanciou-se, assim, na ausência de qualquer negócio ou causa que tivesse fundado o saque e assinatura dos cheques, uma vez que, conforme alegou, estando apenas por si assinados, os mesmos teriam entrado na posse de C..., mas viriam a ser objecto de preenchimento e circulação injustificados, por aquele ou outrem (visto que nas datas respectivas nenhum relacionamento comercial subsistiria já como o respectivo tomador – cfr. os art.ºs 11º a 24º da respectiva oposição).

A excepção da falta de relação causal é incompatível com a da violação do pacto de preenchimento ou da convenção executiva, exactamente porque é a negação de qualquer pacto ou convenção prévio ou coetâneo da criação do título.

Tratando-se de excepção, como factualidade impeditiva do direito do exequente, era naturalmente ao executado oponente que cumpriria a sua prova (art.º 342, nº 2 do CC), isto é, a demonstração da falta de causa para os títulos.

Note-se que embora o exequente não se encontrasse numa relação imediata com o oponente (o portador inicial seria, na tese da oposição, o dito C...), foi por este também alegado (no art.º 21 da oposição) a má fé ou procedimento consciente em seu detrimento[3].

Só que, como se alcança das respostas negativas aos nºs 3 a 8 da base instrutória, esta matéria – que só ao oponente cabia provar – não ficou efectivamente demonstrada.

E até se dá a circunstância de, sem que a isso estivesse obrigado, o exequente ter chegado a fazer prova do circunstancialismo que potencia a origem ou relação de causal da emissão dos cheques em litígio – vejam-se as respostas aos nºs 9 a 13 da b.i. e o teor dos factos provados de 6 a 11, inclusive.

Com o insucesso da prova da inexistência de relação causal para os cheques soçobrou toda a defesa que fora deduzida pelo apelante.     

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Freitas Neto (Relator

Carlos Barreira

Barateiro Martins


[1] Cfr., entre outros, Acs do STJ de 10/7/08 (Nuno Cameira), Pº 08A1582, de 4/12/07 (Mário Cruz), Pº 07A3805, de 27/11/2007 (Santos Bernardino), Pº 07B3685, de 5/7/2007 (Fonseca Ramos), Pº 07ª1999 e de 22/5/2003 (Ferreira Girão), Pº 03B1281, todos in www.dgsi.pt.
[2] Pois aí se prescreve que “Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume, até prova em contrário.”
[3] Fora das relações imediatas o art.º 22 da LUC veda a oposição de excepções fundadas nas relações pessoais do demandado com outros portadores salvo o procedimento consciente em detrimento do devedor.