Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
78434/16.4YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
ACTOS INCOMPATÍVEIS
PAGAMENTO
Data do Acordão: 11/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA, POMBAL, JUÍZO LOCAL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 312, 313, 314, 317 C) CC
Sumário: 1.- As prescrições presuntivas fundam-se na presunção de cumprimento, só podem ser ilididas por confissão do devedor originário, sendo que a confissão extrajudicial só releva se realizada por escrito, e uma das formas de se considerar confessada a dívida é a do devedor praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento, constituindo, por isso, presunções de “natureza intermédia”.

2.- São actos incompatíveis com a presunção de cumprimento, por exemplo, a impugnação por parte do devedor da existência, do montante, do vencimento ou de outras características da dívida, compensação ou outra forma de extinção da obrigação, que não o cumprimento, a gratuitidade dos serviços ou invocação da invalidade do contrato.

3.- A defesa do réu/devedor de que “ todos os serviços que foram contratados foram liquidados, nada devendo ao autor “ não configura um acto incompatível com a presunção de cumprimento.

Decisão Texto Integral:

  

          Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A (…), instaurou procedimento de injunção contra M (…) ambos já identificados nos autos, para cobrança da quantia de € 4.000,00 a título de capital, € 1.998,88 a título de juros de mora vencidos e ainda a quantia de € 400,00 a título de despesas, quantias alegadamente devidas a título de honorários pela prestação de serviços como advogado.

Após despacho nesse sentido veio o autor apresentar petição inicial aperfeiçoada alegando, em síntese, exercer a actividade profissional de advogado, tendo no exercício dessa actividade, prestado diversos serviços ao réu M (…) no âmbito do processo nº 731/1998 e apensos, que correu termos na 10ª Vara Cível do extinto Tribunal Judicial de Lisboa.

Mais alegou ter igualmente patrocinado a ex-mulher do requerido num processo de inventário, que correu termos sob o nº 95/1986 e apensos do extinto Tribunal do Trabalho da Figueira da Foz, tendo o autor assumido pagar os honorários referentes a tal processo.

O autor alegou ainda ter desempenhado tais mandatos nos períodos compreendidos entre 20/10/2000 e 31/12/2010.

E que que o réu ficou em dívida na quantia de € 4.000,00, referente ao pagamento parcial dos serviços referidos e ainda a quantia de € 400,00 de despesas que se devem, essencialmente, às deslocações nos supra referidos processos, bem como à dactilografia, capas do processo, fotocópias, telefone e fax.

O réu apresentou oposição invocando a ineptidão da petição inicial e alegou ainda que o autor, durante vários anos, prestou-lhe apoio jurídico e às empresas das quais este era sócio, gerente ou director e não saber a que factos dizem respeito o processo nº 731/1998 e apensos, designadamente se tal processo lhe diz respeito a título pessoal ou se se refere a alguma empresa ligada a si.

Mais afirmou que todos os serviços que foram contratados foram liquidados, nada sendo devido ao autor.

O réu alegou, ainda, relativamente ao processo 95/1986 e apensos, que a existir alguma divida, que desconhece, a responsabilidade quanto ao seu pagamento terá que ser assacada à sua ex-mulher, já que, nunca em momento algum, assumiu o pagamento de despesas e honorários daquele processo.

Mais sustentou que o autor alega que os serviços foram prestados até 31/12/2010, pelo que a existir o crédito e tendo o serviço terminado naquela data, já se encontraria o mesmo prescrito nos termos do artigo 317º alínea c) do Código Civil, prescrição que invocou.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais, com recurso à gravação dos depoimentos prestados, após o que foi proferida a sentença de fl.s 62 a 70, na qual se procedeu ao saneamento dos autos, se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e a final, se decidiu julgar a presente acção, improcedente, com a consequente absolvição do réu do pedido, ficando as custas a cargo do autor.

Inconformado com a mesma, dela interpôs recurso o autor, A (…), recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 88), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir, são as seguintes:

A. Se deve eliminar-se o item 5.º, dos factos dados como não provados, por patente contradição com o regime jurídico fixado no artigo 314.º, in fine, do Código Civil ou; como conclusivo e, por isso, considerar-se como não escrito e;

B. Se se verifica a prescrição presuntiva, invocada pelo réu.

É a seguinte a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida:

a) O autor dedica-se à advocacia, da qual faz a sua actividade profissional, principal e de carácter lucrativo, tendo o seu domicílio profissional em Pombal.

b) Correu termos no extinto 10º Juízo do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, sob o nº 731/1998, uma execução para pagamento de quantia certa instaurada por B (…)  contra M (…) e M (…), ali tendo sido peticionado o pagamento da quantia de cinco milhões oitocentos e setenta e oito mil setecentos e cinquenta e cinco escudos e juros de mora vincendos.

c) O autor, entre 20/10/2000 e 31/12/2010, representou o réu M (…), como advogado, no âmbito do processo nº 731/1998 e apensos, que correu termos na 10ª Vara Cível do extinto Tribunal Judicial de Lisboa.

d) O autor praticou os seguintes actos no processo nº 731/1998 e apensos:

a) Abertura de pasta e elaboração de procuração;

b) Análise da questão jurídica apresentada, tanto na vertente legal, doutrinal, como jurisprudencial;

c) Acompanhamento de todos os termos do processo ao longo do período supra referido;

d) 5 deslocações a Pombal- Lisboa / Lisboa-Pombal (350 Kms por cada deslocação), para consulta do processo e diligências;

e) Elaboração da petição de embargos;

f) Elaboração de diversos requerimentos;

g) Presença e actuação na diligência de julgamento, com diversas sessões;

h) 12 consultas.

e) O réu não entregou ao autor qualquer quantia para pagamento dos serviços prestados à sua ex-mulher.

*

Não se provou que:

1) O autor, entre 20/10/2000 e 31/12/2010, representou a ex-mulher do réu, como advogado, num processo de inventário, que correu termos sob o nº 95/1986 e apensos do extinto Tribunal do Trabalho da Figueira da Foz.

2) O autor praticou os seguintes actos no processo nº 95/1986 e apensos:

a) Abertura de pasta e elaboração de procuração;

b) Análise da questão jurídica apresentada, tanto na vertente legal, doutrinal, como jurisprudencial;

c) Acompanhamento de todos os termos do processo ao longo do período supra referido; d) 2 deslocações de Pombal-Figueira da Foz / Figueira da Foz-Pombal (100 Kms. por cada deslocação);

e) Elaboração de diversas peças processuais;

f) Presença e actuação em todas as diligências inerentes a um processo de inventário até à partilha;

g) 6 consultas no escritório, despendendo cerca de 4 horas.

3) O réu declarou ao autor assumir o pagamento dos honorários referentes ao processo nº 95/1986 e apensos e despesas.

4) O autor despendeu com os supra referidos processos, mais de 100 horas, ao longo dos mais de 10 anos de patrocínio e despendeu a quantia de € 400,00 com deslocações e com dactilografia, capas do processo, fotocópias, telefone e fax.

5) O réu não pagou a quantia de € 4.000,00, referente ao pagamento parcial dos serviços supra referidos e ainda a quantia de € 400,00 de despesas com deslocações feitas pelo requerente e com dactilografia, capas do processo, fotocópias, telefone e fax.

A. Se deve eliminar-se o item 5.º, dos factos dados como não provados, por patente contradição com o regime jurídico fixado no artigo 314.º, in fine, do Código Civil ou; como conclusivo e, por isso, considerar-se como não escrito.

O item em referência tem a seguinte redacção:

“5) O réu não pagou a quantia de € 4.000,00, referente ao pagamento parcial dos serviços supra referidos e ainda a quantia de € 400,00 de despesas com deslocações feitas pelo requerente e com dactilografia, capas do processo, fotocópias, telefone e fax.”

Defende o recorrente que assim não se pode considerar por oposição com o disposto no preceito em referência.

Refere-se este à prática de actos incompatíveis com a presunção de cumprimento, como forma de afastar a presunção de cumprimento.

O recorrente não alega qualquer fundamento probatório para que tal matéria seja dada como provada.

De resto, a provar-se o pagamento, nem sequer era necessário o recurso à alegação da prescrição presuntiva, pois que a assim ser, fora de dúvidas, estaria extinta, pelo pagamento, a peticionada obrigação.

Saber se o réu praticou actos incompatíveis com a presunção de cumprimento é a questão de fundo, a seguir analisada, bastando, no que a esta questão concerne, que o réu, nada alega, por referência aos elementos probatórios produzidos, que acarrete diferente resposta ao item em questão.

Também o teor do mesmo não se pode considerar como conclusivo, pois que a expressão “pagamento” faz parte do vocabulário corrente, não se vislumbrando que encerre uma conclusão jurídica.

Pelo que, quanto a esta questão, improcede o recurso.

B. Se se verifica a prescrição presuntiva, invocada pelo réu.

Como decorre do relatório que antecede, o réu defendeu-se, invocando a prescrição presuntiva, alegando não saber se os factos a que respeitavam os autos com o n.º 731/98, eram pessoais ou de alguma das empresas de que foi sócio e/ou gerente, para além de que todos os serviços contratados ao autor, na qualidade de advogado, foram pagos, nada devendo ao autor (cf. artigos 4.º a 8.º da oposição).

Defende o autor que a referida alegação se traduz na prática de acto incompatível com a presunção de cumprimento, pelo que, nos termos do disposto no artigo 314.º, in fine, do Código Civil, se tem de considerar como confessada a dívida, o que acarreta a que a referida prescrição se tenha como afastada.

Dispõe o artigo 317.º, al. c), do Código Civil que:

“Prescrevem no prazo de dois anos:

c) Os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes”.

Trata-se de uma prescrição presuntiva, as quais, conforme estatuído no artigo 312.º do Código Civil se fundam na presunção de cumprimento”, destinando-se a “proteger o devedor contra o risco de satisfazer duas vezes dívidas de que não é usual exigir recibo ou guardá-lo durante muito tempo” – cf. P.de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I. 3.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1982, a pág. 280.

Acrescentando-se no seu artigo 313.º que esta presunção só pode ser ilidida por confissão do devedor originário e que a confissão extrajudicial, só releva se realizada por escrito.

E, em conformidade com o artigo 314.º do mesmo Código, uma das formas de se considerar como confessada a dívida é a de o devedor praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento.

Constituem, por isso, estas presunções uma “natureza intermédia, que não são apenas presunções juris tantum, mas que não chegam a ser presunções iuris et iure” – cf. autores e ob. e loc, cit., em anotação ao referido artigo 313.

Ou, nos dizeres de Calvão da Silva, in RLJ, ano 138, a pág. 267, o disposto em tal preceito reforça “a natureza híbrida ou mista da prescrição presuntiva: não sendo apenas uma prescrição relativa ou presunção iuris tantum, ilidível por todo e qualquer meio de prova em geral admitido em direito (art. 350.º, n.º 2, do Código Civil), não chega todavia a ser presunção absoluta ou presunção iuris et iure, já que é ilidível por confissão judicial ou extrajudicial escrita do devedor, o único meio susceptível de provar o contrário, vale dizer, o único meio admitido ao credor para contrariar a presunção de cumprimento, demonstrando o não cumprimento.”.

Como acima já referido, nos termos do artigo 314.º do Código Civil:

“Considera-se confessada a dívida, se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento.”.

Como exemplo de actos incompatíveis com a presunção de cumprimento, P. de Lima e A. Varela, ob. cit., pág. 281, referem “ter o devedor negado a existência da dívida, ter discutido o seu montante, ter invocado uma compensação, ter invocado a gratuitidade dos serviços”.

Também Calvão da Silva, ob. cit., a pág.s 267/8, defende que atento a que se trata de prescrição que se funda na presunção de cumprimento ou pagamento pelo decurso do prazo breve, se compreenda “que prescrição presuntiva fique precludida em qualquer caso de defesa (do devedor) incompatível com a presunção de cumprimento”.

Exemplificando, considera como tal, a discussão, por parte do devedor, da existência, do montante, do vencimento ou de outras características da dívida; compensação ou outra forma de extinção da obrigação, que não o cumprimento; gratuitidade dos serviços ou invocação da invalidade do contrato.

Isto porque “impugnar os factos constitutivos do direito do credor, negando a sua existência, validade ou montante, é recusar a existência da correspondente obrigação de cumprir, em contradição com a presunção de cumprimento: esta pressupõe a existência do dever de pagamento de uma dívida, presumindo-se o seu pagamento pelo decurso do prazo, atenta a normalidade de dívidas cumpridas em prazo breve sem passagem e/ou guarda de recibo de quitação”.

Acrescentando a pág. 269 que:

“No caso de alegação de prescrição presuntiva, o devedor prova o cumprimento da sua dívida pela presunção legal (art. 312.º do Código Civil), na medida em que não ilidida pelo credor essa presunção mediante prova do não cumprimento apenas através de confissão do devedor (arts 313.º e 314.º do Código Civil).

É o que resulta inequivocamente do disposto no art. 350.º: o devedor, que tem a seu favor a presunção legal do cumprimento da dívida, escusa de provar positivamente esse facto, porque e na medida em que o mesmo está provado pela presunção legal … se não ilidida pelo credor mediante prova do contrário, a prova do não cumprimento ou não pagamento, em concretização da inversão do ónus da prova resultante da presunção legal (art. 344.º, n.º 1, do Código Civil)”.

(…)

“Ao Réu/Devedor cabe alegar, de modo expresso ou tácito, em conformidade com o art. 217.º do Código Civil, e provar que cumpriu – o que faz mediante a alegação da presunção legal de cumprimento pelo decurso do prazo, sem a qual a presunção não é conhecida pelo tribunal (art. 350.º do Código Civil).

Ao Autor/Credor incumbe impugnar esse facto e demonstrar o contrário, ou seja, o não cumprimento: a alegada prescrição presuntiva é afastada, não mediante a prova da dívida, mas sim através do não pagamento da dívida.”.

Traçado o quadro teórico em que nos movemos, vejamos, então, por reporte à factualidade assente, se o réu/devedor, praticou em juízo qualquer acto incompatível com a presunção de cumprimento.

Entende o recorrente que assim é, com o fundamento em que o réu não definiu, com clareza aceitar a realização dos serviços prestados, uma vez que declarou não saber se os factos a que respeitava o processo em que os mesmos foram prestados, lhe respeitavam pessoalmente ou a alguma empresa ligada a si e, todavia, que “todos os serviços que foram contratados foram liquidados, nada devendo ao autor”.

Esta alegação corresponde ao vertido nos artigos 4.º a 8.º da oposição, como acima já referido.

Salvo o devido respeito, não vislumbramos em que é que esta alegação é incompatível com a presunção de cumprimento.

Alega o réu/devedor – artigo 4.º da oposição – que o autor, durante vários anos, lhe prestou apoio jurídico, bem como às empresas de que foi sócio.

Está assente – alínea c) dos factos provados – que o autor deixou de representar o réu em 31 de Dezembro de 2010.

Está em causa um processo de 1998, pelo que é plausível que o réu/devedor não soubesse, não se recordasse do objecto do mesmo.

Por outro lado, o réu/devedor não alegou que os serviços em causa não foram prestados –aí sim, tratar-se-ia de acto incompatível com a presunção de cumprimento – mas tão só que desconhecia o objecto daqueles actos.

A que acrescentou que, ainda assim, “todos os serviços que foram contratados foram liquidados, nada devendo ao autor” – cf. artigo 8.º da oposição.

Ou seja, alega um facto que longe de constituir um acto incompatível com a presunção de cumprimento, até a reforça, reafirmando que, para além da presunção de cumprimento, efectivamente, cumpriu, através do pagamento, a obrigação que sobre si impendia, como sinalagma do contrato celebrado entre as ora partes.

Não se trata, pois, de impugnar a prestação de tais serviços, mas tão só de dizer que, para além destes terão existido outros e que, todos eles, incluindo os do processo em causa, já foram pagos (liquidados na expressão utilizada pelo devedor).

Assim, não se verifica a alegada prática de acto incompatível com a presunção de pagamento, em função do que não fica afastada a invocada excepção de prescrição presuntiva, a qual, por isso, é eficaz.

Esta posição é defendida no Acórdão do STJ, de 19 de Maio de 2010, Processo n.º 1380/07.2TBABT-A.E1.S1, disponível no respectivo sítio do itij, que versou, igualmente, sobre um caso, em que o devedor era demandado para pagamento de honorários a solicitador e em que alegou que os mesmos “já foram pagos”.

Não merece, pois, a decisão recorrida a censura que lhe assaca o recorrente, sendo, por isso, a mesma de manter.

Assim, também, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 13 de Novembro de 2018.

Arlindo Oliveira ( Relator )

Emídio Santos

Catarina Gonçalves