Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2278/11.5TACBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CRIME COMETIDO ATRAVÉS DA IMPRENSA
DIRECTOR DE PUBLICAÇÃO PERIÓDICA
COMPARTICIPAÇÃO CRIMINOSA
OMISSÃO DOLOSA
VIOLAÇÃO DO DEVER DE GARANTE
INDIVISIBILIDADE DA QUEIXA
Data do Acordão: 02/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA INSTÂNCIA LOCAL DE GOUVEIA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 20.º, N.º 1, AL. A), E 31.º, N.º 3, DA LEI N.º 2/99, DE 13-01; ARTS. 10.º, 26.º E 27.º, DO CP; ARTIGO 115.º, N.º 3, DO CPP
Sumário: I - Nas publicações periódicas, o director, o director-adjunto, o subdirector ou quem concretamente os substitua, que não se oponha, através da acção adequada, à comissão de crime através da imprensa, podendo fazê-lo, não responde criminalmente, com o jornalista criador do escrito/imagem, no âmbito da comparticipação criminosa; a sua responsabilidade, por acto próprio, provém de omissão dolosa, por violação do dever de garante decorrente da obrigação de impedimento de publicação da notícia constitutiva de ilícito penal.

II - Inexistindo comparticipação criminosa, ao caso não é aplicável o disposto no artigo 115.º, n.º 3, do CP.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

1. No âmbito do processo comum (tribunal singular) que, sob o n.º 2278/11.5TACBR, corre termos na Secção de Competência Genérica - J1 -, da Instância Local de Gouveia, Comarca da Guarda, o Sr. Juiz proferiu, em 12 de Junho de 2015, a fls. 32/35 destes autos, decisão, sob a forma de despacho, em que, a final, em contrário da pretensão requerida A... , julgou não verificados os “pressupostos para extinção do procedimento criminal, por falta de queixa”.


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2. Discordando, o arguido  A... interpôs recurso, tendo formulado na motivação respectiva as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª - O recurso tem por objecto o despacho do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda que indeferiu o requerimento apresentado pelo ora Recorrente por julgar não verificados os pressupostos para extinção do procedimento criminal por falta de queixa.

2.ª - Segundo o referido despacho, os números 1 e 3 do artigo 31.º da Lei da Imprensa consagram duas incriminações autónomas, a dos autores do texto/notícia e daqueles que podiam ter obstando à sua publicação, quando podiam e deviam tê-lo evitado e não o fizeram.

3.ª - Nos termos do mesmo despacho, o Tribunal entendeu que está em causa a punibilidade por omissão, estando a cargo do director um dever de garante.

4.ª - Conclui, argumentando que, não estando em causa uma publicação não periódica, nunca a conduta do director poderia ser criminalmente sancionada, na medida em que essa incriminação assenta no pressuposto de estarmos perante uma publicação não periódica.

5.ª - Defende o Recorrente que tal entendimento não deve proceder, desde logo, porque os factos constitutivos da comparticipação do crime de difamação foram invocados pela Assistente, nomeadamente, no artigo 6.º do seu articulado, e constituem os elementos em que esta sustenta o seu pedido de indemnização civil.

6.ª - Pese embora o acima alegado, a verdade é que a queixa que deu origem aos presentes autos apenas foi intentada contra o jornalista A... e não contra o Director do jornal “x...”.

7.ª - Ora, dispõe o número 3 do artigo 115.º do Código Penal que “o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”.

8.ª - Isto porque, “Com o dispositivo do número 3, consagrou-se e generalizou-se o princípio da indivisibilidade das consequências do não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes do crime. Em matéria criminal não se pode escolher quem deve ser perseguido no caso de comparticipação; o que está em causa é o crime” (Código Penal anotado, Manuel Lopes Maia Gonçalves, p. 412, Almedina).

9.ª - Ora, embora o procedimento criminal não dependa de acusação particular quando a difamação tenha sido dirigida a uma das pessoas referidas na alínea l) do número 2 do artigo 132.º daquele Código, o artigo 188.º exige, mesmo nestes casos, se tenha de apresentar queixa.

10.ª - Quer isto dizer que, estando em causa uma situação de “crime praticado na imprensa”, tinha a Assistente obrigatoriamente de ter também apresentado queixa contra o Diretor e não apenas contra o jornalista que assinou o artigo, tal como tem sido entendido pela jurisprudência.

11.ª - Assim, salvo melhor opinião, uma vez que estamos perante um crime que depende de uma queixa prévia, não tendo esta sido apresentada contra o Diretor, aproveita ao Arguido.

12.ª - Por outro lado, refere o despacho “a quo” que «da leitura do artigo 31.º, n.º 3, da Lei da Imprensa resulta com evidência que o legislador faz depender a criminalização do Diretor e demais agentes aí previstos de vários pressupostos, dos quais destacamos: “no caso de publicações não periódicas”», acrescentado, posteriormente, que «desta feita, não sendo o caso dos autos uma publicação não periódica, não está em causa a eventual aplicação do n.º 3».

13.ª - Entende o ora Recorrente que tal entendimento não pode proceder, o qual resulta absolutamente contrário à lei, uma vez que a referência que é feita às publicações não periódicas apenas diz respeito à figura do editor, não relevando quanto ao diretor, ao diretor-adjunto, ao subdiretor ou quem concretamente os substitua. E é assim, na medida em que as publicações não periódicas não têm diretor, diretor-adjunto ou subdiretor.

Por tudo o supra exposto deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por decisão que ordene o imediato arquivamento dos autos, por falta dos pressupostos legais para o seu prosseguimento, nos termos do disposto no número 3 do artigo 115.º do Código Penal, assim se fazendo a costumada justiça.


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3. Em resposta, a demandada civil “B... , SA” manifestou-se no sentido do provimento do recurso.

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4. Diversamente, o Ministério Público e a assistente C... preconizam seja o recurso julgado improcedente, conclusivamente, nos termos infra reproduzidos:

A) Ministério Público:

1. O recorrente censura o juízo expendido pelo Mmº Juiz a quo tão-somente acerca da matéria de direito, no que concerne ao facto do princípio da indivisibilidade do direito de queixa.

2. Da leitura do preceito legal resulta que o legislador pretendeu, neste caso em concreto, em que se contrapõe o exercício da liberdade de imprensa, por uma lado, e a salvaguarda da reserva da vida privada, por outro, consagrar, em primeira linha, a responsabilidade - a autoria - do crime de ofensas de bens jurídicos alheios cometidos através da imprensa, ao autor do texto (n.º 1 do art.º 31.º da Lei de Imprensa).

3. Numa segunda linha responsabiliza aqueles que podendo obstar à sua publicação o não fizeram - director, o director-adjunto, o subdirector ou quem concretamente os substitua (n.º 3 do art.º 31 do referido diploma legal).

4. Nos termos do citado art.º 31.º da Lei de Imprensa, o director e o autor de um determinado escrito publicado na imprensa não são co-autores no sentido estrito do termo, pois que a um e a outro cabem penas diversas.

5. Não há, a nosso ver, em conformidade com a posição que já adoptamos nos presentes autos, uma responsabilidade criminal solidária/necessária. De facto o referido n.º 3 do art.º 31.º refere-se à punibilidade por omissão, dizendo que o director tem um dever de garante, pelo qual pode vir a ser responsabilizado se nada fizer, nos casos em que podia/devia agir.

6. Existindo um autor identificado, só este é autor do crime.

7. Assim, não estando em causa uma situação de co-autoria, mas antes de autoria singular, individual, de texto publicado em jornal, definida pela lei, não tem aplicação o princípio da indivisibilidade das consequências do não exercício tempestivo do direito de queixa.

8. O autor, definido pela lei como o único responsável pelo seu conteúdo, será sempre o subscritor do artigo.

Termos em que, e nos mais que V. Excelências suprirão, não se deverá dar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... , mantendo-se na íntegra a decisão recorrida, assim se fazendo justiça.

B) Assistente:

1. Do confronto entre o n.º 1 e o n.º 3 do artigo 31.º da Lei de Imprensa não decorre uma situação de comparticipação criminosa entre o autor do texto/notícia e - no que ao caso importa - o diretor, mas antes duas incriminações autónomas,

2. a que correspondem imputações e molduras penais distintas.

3. Do artigo 114.º, aplicável ex vi o artigo 117.º ambos do Código Penal, decorre que a apresentação de acusação particular contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes, pelo que nunca se poderia considerar, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 115.º do Código Penal, que não foi deduzida acusação particular também contra aquele.

Deve, pois, ser mantido o douto despacho recorrido, negando-se provimento ao recurso, como é de inteira justiça.


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5. Nesta Relação, tendo vista dos autos, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, sufragando a posição do MP em 1.ª instância, subscreveu parecer deste teor (segmento relevante):

«Efectivamente, também se nos afigura que, no caso dos autos, não estamos perante um caso de comparticipação criminosa (autor do escrito e director do jornal) e que não há que prestar obediência ao princípio da indivisibilidade (artigos 115.º e 116.º do Cód. Penal), pelo que não falta a condição de procedibilidade estatuída pelo art. 115.º, n.º 2, do Cód. Penal, não conduzindo à extinção do procedimento criminal.

Pelas razões expostas, concordamos com as conclusões da decisão recorrida e da resposta do MP, de fls. 50 a 55, sendo de parecer que deve ser mantido o despacho recorrido e negado provimento ao recurso interposto.

Aliás, o recurso acaba por redundar em recurso do despacho de pronúncia, o que a lei não permite, pelo que até deveria ser rejeitado»

Cumprido o art. 417.º, n.º 2 do CPP, apenas o arguido/recorrente exerceu o contraditório, reiterando a sua pretensão de revogação do despacho recorrido, a substituir por decisão que ordene o imediato arquivamento dos autos, em razão dos fundamentos já invocados no recurso.

Colhidos os vistos, o processo foi submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.


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II. Fundamentação

1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:  

Como decorre do n.º 1 do art. 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.

As conclusões apresentadas pela recorrente circunscrevem o recurso à questão de saber se existe fundamento para declaração de extinção do procedimento criminal, em função do princípio da indivisibilidade da queixa previsto no artigo 115.º, n.º 3, do Código Penal.


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2. Elementos processuais relevantes:

A) No dia de Novembro de 2011, foi apresentada, via oral, no DIAP de Coimbra, queixa, cujo conteúdo passamos a transcrever, nas passagens que importa ter em conta:

«(…) Compareceu C... , (…) cabo da GNR (…), a qual desejou apresentar queixa contra D... , jornalista do “ y... ”, e A... , jornalista do jornal “ x... ”, porquanto, quando se encontrava em exercício de funções no Posto da GNR de Vila Nova de Milfontes, (…) foi alvo da instauração de um processo disciplinar interno (…) na Corporação a que pertence, bem como foi constituída arguida no âmbito de um inquérito que correu seus termos na Comarca de Odemira, por suspeita da prática de crime de denegação de justiça.

Em 30-06-2011, a depoente foi notificada da decisão final de arquivamento do processo disciplinar por não se ter provado que esta tivesse praticado quaisquer dos factos de que era suspeita (…).

Acontece que, em 27-05-2011 e 18-05-2011, respectivamente, os denunciados haviam publicado notícia de que três militares do Posto Territorial da GNR de Vila Nova de Milfontes eram suspeitos de corrupção, por lesados que não se identificaram, referindo-se a “uma Cabo”.

O despacho liminar refere que a depoente era transferia preventivamente, não referindo onde quer que seja que era suspeita de corrupção.

Entende a depoente que foi vítima de difamação, desejando, assim, a instauração do respectivo procedimento criminal contra os denunciados.

(…)».

B) Tendo o arguido A... requerido a abertura de instrução, após realização do debate instrutório, foi proferida, em 04-07-2014, a decisão respectiva, que pronunciou o requerente e o arguido D...   pela prática, por cada um dos arguidos, na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. nos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 2, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal, e 31.º da Lei n.º 2/99, de 13-01.

C) Na fase de julgamento, o arguido A... requereu, com os fundamentos exarados a fls. 27/29 destes autos, o imediato arquivamento do processo, por falta dos pressupostos legais para o seu prosseguimento, nos termos do disposto no número 3 do artigo 115.º do Código Penal.

D) Exercido o contraditório, o Sr. Juiz proferiu, em 12-06-2015, o despacho (recorrido), que abaixo se transcreve:

«Pedido de declaração de extinção do procedimento criminal – folhas 1638 a 1643, 1644, 1645 e 1646.

O arguido A... peticiona que seja declarada a extinção do procedimento criminal instaurado contra os dois arguidos, porquanto, segundo defende, a queixa apresentada contra os mesmos devia tê-lo sido igualmente contra o Director do “ x... ” e, por maioria de razão (embora não o refira no seu requerimento), contra o Director do “ y... ”.

No essencial, alega que o artigo 31.º da Lei de Imprensa prevê uma situação de comparticipação entre o autor/criador do texto e o Director e que, por esse motivo, o não exercício tempestivo da queixa contra os dois comparticipantes aproveita aos demais quando estes não possam ser perseguidos sem queixa. Continua defendendo que o artigo 115.º, n.º 3, do Código Penal consagra o princípio da indivisibilidade da queixa.

O arguido D... aderiu à fundamentação do requerimento apresentado.

A assistente pugnou pela improcedência do requerido, alegando que se trata de crime público e que o citado artigo 31.º estatui incriminações autónomas e não uma situação de comparticipação.

O Ministério Público opõe-se ao requerido, defendendo igualmente que estamos perante incriminações autónomas e que a apresentação de queixa contra um agente é extensível quanto aos demais.


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Antecipando a conclusão, cremos, salvo melhor entendimento, que não assiste razão aos arguidos.

Da leitura conjunta do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 31.º da Lei de Imprensa resultam, quanto a nós, duas incriminações autónomas, como sejam, a dos autores do texto/notícia e a daqueles que podiam ter obstado à sua publicação, quando podiam e deviam tê-lo evitado e não o fizeram.

Em nosso entender, a responsabilidade penal do Director, como legalmente tipificada, não se assume como co-autoria ou cumplicidade, por não se verificar em tais situações uma actuação conjunta, determinada, querida por todos em igualdade de circunstâncias.

Não resulta da lei a previsão de que actuam todos de forma concertada na execução de um plano elaborado por todos. Por isso, a lei não consagra um tipo do ilícito de co-autoria ou cumplicidade.

Além disso, convém frisá-lo, a responsabilidade criminal do Director e demais agentes previstos no n.º 3 depende dos requisitos cumulativos aí enunciados.

Somos de considerar, portanto, que não pode falar-se de responsabilidade criminal solidária, sob pena de violação dos princípios elementares da legalidade e da tipicidade. A co-autoria e a cumplicidade aferem-se da aplicação das normas da doutrina geral do crime aos factos concretos, em conjunto com as normas especiais do tipo do ilícito, pelo que a responsabilidade criminal por crime cometido através da imprensa cabe, em regra, a quem for o autor do texto, sendo de afastar a co-autoria mediata ou moral, já que o facto, expresso na lei, de criar o texto ou imagem parece exigir a autoria material.

A epígrafe “autoria e comparticipação” não é bastante para se afirmar ou concluir que o mencionado artigo 31.º prevê uma situação de co-autoria ou de cumplicidade. O todo do normativo deve ser interpretado pelo seu teor e pelo seu enquadramento no ordenamento jurídico.

O normativo a que fizemos referência não se dirige à comparticipação criminosa, mas à punibilidade por omissão, fazendo recair sobre o Director um dever de garante, em consonância com o previsto no n.º 2 do artigo 10.º do Código Penal, estabelecendo para o agente/omitente uma moldura penal atenuada.

Mas importa dizer algo mais.

O n.º 3 tem a sua origem na necessidade de salvaguardar a responsabilização criminal nos casos de publicações não assinadas. Nessa circunstância, teríamos publicações difamatórias que acabariam impunes por mais difamatórias que fossem. Nasce, dessa forma, esse dever de garante de supervisão. Realidade absolutamente distinta da comparticipação.

O Director, como qualquer responsável por uma omissão imprópria, só pode ser punido quando, recaindo sobre ele o dever de agir, não tenha actuado (dolosamente – artigo 13.º do Código Penal), podendo tê-lo feito.

Posto isto, somos de considerar que, nos presentes autos, não há qualquer violação no exercício do direito de queixa e o mesmo é tempestivo, porquanto dirigido atempadamente quanto aos presumíveis autores dos factos em discussão.

De todo o modo, sempre se dirá o seguinte.

Da leitura do artigo 31.º, n.º 3, da Lei de Imprensa resulta com evidência que o legislador faz depender a criminalização do Director e demais agentes aí previstos de vários pressupostos, dos quais destacamos: “no caso de publicações não periódicas”.

Ora, por publicações periódicas devem entender-se as publicações em papel ou em meio electrónico que geralmente são publicadas em intervalos de tempo regulares, podendo ser diárias, semanais ou quinzenais, com carácter duradouro e contínuo.

É o caso do “ x... ” e do “ y... ” de tiragem diária e, portanto, excluídos do tipo do ilícito previsto no n.º 3.

Desta feita, não sendo o caso dos autos uma publicação não periódica, não está em causa a eventual aplicação do n.º 3. Não estando, não pode fazer-se valer um vício formal de uma queixa contra os arguidos neste processo por força de uma ilicitude criminal de terceiro que não se verifica no caso. Isto, quer se defenda que se tratam de incriminações autónomas ou de comparticipação.

Abrindo parênteses, cremos que este é mais um argumento para demonstrar que não consagrou aqui a lei qualquer previsão de comparticipação, pois que, se assim fosse, estaria a balizar a comparticipação só às publicações não periódicas. O que não faz sentido. Há uma punição por omissão específica e paralela à autoria do n.º 1.

Última nota.

A estrutura e o enquadramento da acusação pública e do pedido de indemnização civil são autónomas, pelo que não há que retirar qualquer conclusão sobre a validade formal da acusação pública por demanda de terceiros, não arguidos, no pedido de indemnização civil.

Pelo exposto, julgo não verificados os pressupostos para extinção do procedimento criminal por falta de queixa e indefiro o requerido.

Notifique».


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3. Antes de mais, pronunciar-nos-emos, de imediato, sobre a questão prévia suscitada no parecer acima (parcialmente) transcrito.

Na parte final dessa peça processual, de forma manifestamente sincopada, o Sr. Procurador-Geral Adjunto parece preconizar a rejeição do recurso; segundo alega, o mesmo redunda numa impugnação, pela mesma via, do despacho de pronúncia.

Não estamos de acordo.

O despacho de pronúncia não se pronunciou, a requerimento, ou oficiosamente, sobre a problemática depois - na fase de julgamento - suscitada pelo ora recorrente A... .
Envolvendo a questão a (eventual) extinção do procedimento criminal - por falta de pressupostos legais de procedibilidade e prosseguibilidade do processo, uma vez que, segundo invocação do recorrente, situando-nos perante caso de comparticipação criminosa, a queixa não foi apresentada contra todos os comparticipantes -, e sendo a natureza dos enunciados pressupostos simultaneamente processual e material ou substantiva - interferem no processo e, concomitantemente, condicionam a punição, a aplicação da pena, contendendo, por isso, directamente com os direitos dos arguidos -, pode ser suscitada e conhecida em qualquer fase do processo, salvo se, obviamente, existir trânsito em julgado formal sobre o tema, situação não verificada.

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4. Dispõe o artigo 31.º da Lei 2/99, de 13 de Janeiro, epigrafada de “Autoria e comparticipação”:

«1 - Sem prejuízo do disposto na lei penal, a autoria dos crimes cometidos através da imprensa cabe a quem tiver criado o texto ou a imagem cuja publicação constitua ofensa dos bens jurídicos protegidos pelas disposições incriminadoras.

2 - Nos casos de publicação não consentida, é autor do crime quem a tiver promovido.

3 - O director, o director-adjunto, o subdirector ou quem concretamente os substitua, assim como o editor, no caso de publicações não periódicas, que não se oponha, através da acção adequada, à comissão de crime através da imprensa, podendo fazê-lo, é punido com as penas cominadas nos correspondentes tipos legais, reduzidas de um terço nos seus limites.

4 - Tratando-se de declarações correctamente reproduzidas, prestadas por pessoas devidamente identificadas, só estas podem ser responsabilizadas, a menos que o seu teor constitua instigação à prática de um crime.

5 - O regime previsto no número anterior aplica-se igualmente em relação aos artigos de opinião, desde que o seu autor esteja devidamente identificado.

6 - (…)»

A jurisprudência dos nossos tribunais superiores não tem sido unânime na definição da estrutura e projecção normativa do artigo citado.

Embora reportado ao quadro referenciador dos crimes cometidos por meio de televisão, a que é aplicável o artigo 65.º da Lei n.º 32/2003, de 22 de Agosto, mas tendo toda a pertinência no preciso domínio da imprensa escrita - a estatuição dos n.ºs 3 e 4 daquela norma corresponde, com as necessárias adaptações, ao texto dos n.ºs 3 e 4 da Lei 2/99 -, está escrito na decisão sumária da Relação de Lisboa de 28-03-2007, proc. n.º 2761/2007-3, publicada in www.dgsi.pt:

«(…).

Uma vez que a mencionada Lei» - n.º 32/2003, então vigente, sem qualquer diferença de relevo, no quadro previsivo do artigo 60.º, n.º 2, em relação à descrição do artigo 65.º, n.º 3, da Lei 32/2003 - «não contém qualquer norma especial relativa à comparticipação criminosa, é aplicável aos crimes cometidos através da televisão o disposto nos artigos 26.º e 27.º do Código Penal.

Podem, por isso, ser responsabilizados pela prática de tais crimes ou seus autores, instigadores e cúmplices.

Entre os primeiros podem muito bem incluir-se os directores, na medida em que eles tenham violado dolosamente o dever de garante que o n.º 2 do artigo 60.º da então vigente Lei da Televisão sobre eles fazia impender.

Essa autoria, fundada numa omissão dolosa, em nada interfere com a co-autoria daqueles que tenham eventualmente assumido um comportamento activo. É uma responsabilidade por facto próprio e não por facto de outrem.

(…)».

Diversamente, ficou consignado no Ac. da Relação de Guimarães de 20-02-2009, proc. n.º 2399/08-1, também disponível em www.dgsi.pt:

«(…Ora, no caso presente resulta claramente do teor da queixa apresentada que constitui fls. 2 a 17, na qual aliás identifica claramente o Director do “N…Guimarães” (…) que o ofendido (…) quis descriminar a arguida como autora dos artigos em causa relativamente ao director do “N…Guimarães”.

E face ao preceituado nos arts. 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, al. a) e 31.º, todos da Lei de Imprensa, resulta claramente a responsabilidade criminal de quem dirige o jornal.

(…).

Fica assim claro que o ofendido (…) sempre teria que apresentar queixa não apenas contra a arguida mas também contra o director do jornal (…), pois que estamos em presença de uma situação clara de comparticipação».

Evidenciam estes dois acórdãos, paradigmáticos das duas posições normativas existentes na nossa jurisprudência - por isto foram expressamente referidos e citados - duas perspectivas antagónicas sobre a génese da responsabilidade do director no âmbito de normatividade prevista no n.º 3 da Lei 2/99.

Inclinamo-nos decisivamente para a tese argumentativa da decisão sumária proferida na Relação de Lisboa.

Para melhor compreensão dos motivos determinantes da nossa opção, faremos uma breve abordagem à anterior Lei de Imprensa (Decreto-Lei n.º 85-C/75, de 26 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.ºs 181/76, de 09-03, e 377/88, de 24-10, e das Leis n.ºs 15/95, de 25-05, e 8/96, de 14-03).

Nela, prescrevia o artigo 26.º, sob a epígrafe “Responsabilidade criminal”:

«1. Pelos crimes de abuso de liberdade de imprensa nas publicações unitárias são criminalmente responsáveis, sucessivamente:

a) o autor do escrito ou imagem, se for susceptível de responsabilidade e residir em Portugal, salvo nos casos de reprodução não consentida, nos quais responderá quem a tiver promovido;

b) O editor, se não for possível determinar quem é o autor ou se este não for susceptível de responsabilidade.

2. Nas publicações periódicas são criminalmente responsáveis, sucessivamente:

a) O autor do escrito ou imagem, se for susceptível de responsabilidade, salvo nos casos de reprodução não consentida, nos quais responderá quem a tiver promovido, e o director do periódico ou seu substituto legal, como cúmplice, se não provar que não conhecia o escrito ou imagem publicados ou não lhe foi possível impedir a publicação;

b) O director do periódico ou seu substituto legal, no caso de escritos ou imagens não assinados ou de o autor não ser susceptível de responsabilidade, se não se exonerar da responsabilidade na forma prevista na alínea anterior;

c) O responsável pela inserção, no caso de escritos ou imagens não assinados publicados sem conhecimento do director ou seu substituto legal ou quando a estes não for possível impedir a sua publicação.

3. Para efeitos de responsabilidade criminal, o director do periódico presume-se autor de todos os escritos não assinados e responderá como autor do crime, se não se exonerar da sua responsabilidade, pela forma prevista no número anterior.

4. Os directores de órgãos de comunicação social não podem ser criminalmente responsabilizados, tratando-se de textos de opinião, devidamente assinados como tal, e que não ofereçam dúvidas da identificação do seu autor.

5. Tratando-se de entrevistas, o jornalista que a tiver realizado e o director não podem ser criminalmente responsabilizados por afirmações produzidas pelo entrevistado, quando este esteja devidamente identificado.

6. (…);

7. (…).»

No âmbito desta Lei, e no estrito campo que, no contexto do recurso, visto o caso concreto submetido à nossa apreciação, importa ter em conta, o legislador foi expresso sobre a específica responsabilidade criminal atribuída ao director - ou seu substituto legal - de publicações periódicas: cúmplices, conforme alínea a) do n.º 2 do artigo 26.º.

Daí que, até ao advento da nova Lei de Imprensa, nenhum dissensão  jurisprudencial tivesse havido (pelo menos, não a conhecemos) neste domínio.

Contudo, como se vê pela simples leitura do artigo 31.º, n.º 3, da Lei de Imprensa hoje vigente, a responsabilidade penal do director, director-adjunto, subdirector ou de quem os substitua tem diferentes  parâmetros de conformação normativa.

Desde logo, impõe-se um reparo à decisão recorrida, na parte em que tem como inaplicável ao caso dos autos a referida disposição legal (n.º 3 do artigo 31.º), com o fundamento de o legislador ter subordinado a criminalização daquelas entidades à verificação de publicações não periódicas. O Sr. Juiz incorreu aqui em manifesto erro de direito, por indevida interpretação de lei. Adequadamente analisada, a norma responsabiliza o director e demais agentes previstos quando os textos ou imagens são inseridos em publicações periódicas - conforme artigo 11.º da mesma Lei, as editadas em série contínua, sem limite definido de duração, sob o mesmo título e abrangendo períodos de tempo determinados, que compreendem publicações diárias, semanais, quinzenais, mensais, bimensais, trimestrais, etc. -; circunscrevendo a responsabilidade do editor aos casos de publicações não periódicas ou unitárias (era esta a designação da anterior Lei),  bem definidas  no texto legal.

Então como se caracterizará, a partir da entrada em vigor da nova Lei, a responsabilidade das ditas individualidades?

Não como co-autores, em comparticipação com o(s) jornalista(s) criador(es) do texto ou da imagem.

Decisão conjunta (por acordo, tácito ou expresso, ou juntamente com outro ou outros) e execução também conjunta (tomar parte directa na sua execução) - cfr. artigo 26.º do Código Penal -, são pressupostos, necessários, da comparticipação criminosa, sob a forma de co-autoria, que, de todo, não vemos no quadro de intervenção normativa já acima delimitado.

Parafraseando, de novo, a decisão sumária proferida no processo n.º 2761/2007, a responsabilidade prevista no artigo 31.º, n.º 3, da Lei n.º 2/99, é uma responsabilidade por facto próprio das pessoas ali individualizadas, e não por facto de outrem, ou seja, do jornalista, no circunstancialismo elencado no n.º 1 da mesma norma. No mesmo sentido, referem Helena Leitão e Pacheco Ferreira, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, volume I, Universidade Católica Editora, em anotação ao artigo 31.º da Lei 2/99, pág. 535: «(…) Agora o autor do escrito/imagem é punido enquanto criador do texto/imagem publicado e o director é punido por não se opor à publicação, podendo fazê-lo. São responsabilidades autónomas».

Competindo ao director «orientar, superintender e determinar o conteúdo da publicação» - artigo 20.º, n.º 1, al. a), da Lei de imprensa -, a sua responsabilidade (por acto próprio) existirá nos casos em que não se oponha, através da acção adequada, à comissão de crime através da imprensa, podendo fazê-lo.

Consabidamente, sobre o director impende uma obrigação de impedir o cometimento de um crime por força de determinados deveres legalmente fixados, já acima referidos, que lhe incumbem por razão do seu cargo ou profissão, isto é, aquilo a que o artigo 10.º do Código Penal designa de “dever jurídico pessoal”. 

A responsabilidade do director advém, pois, de uma omissão dolosa, autónoma da autoria/co-autoria dos jornalistas geradores do texto/imagem, sempre que omita o dever de garante, legalmente imposto, traduzido na obrigação de impedimento de publicação da notícia constitutiva de crime (sustentando igual posição, Helena Leitão e Pacheco Ferreira, idem, mesma pág.).

A co-autoria, e bem assim a forma de comparticipação prevista no artigo 27.º do Código Penal, existirão, no amplexo de situações reguladas no artigo 31.º da Lei 2/99, apenas quando e se verificados os requisitos legalmente previstos de uma ou de outra dessas figuras jurídicas.

Posto o que precede, ao caso submetido à apreciação deste Tribunal da Relação, inexistindo comparticipação criminosa, não é aplicável o disposto no artigo 115.º, n.º 3, do Código Penal, devendo o processo prosseguir, para que os arguidos A... e D... sejam julgados pelo crime que lhes está imputado na pronúncia.

Uma nota final: é anódino o argumento vertido no ponto 5 das conclusões da motivação do recurso (“Defende o Recorrente que tal entendimento” - o do tribunal da 1.ª instância - “não deve proceder, desde logo, porque os factos constitutivos da comparticipação do crime de difamação foram invocados pela Assistente, nomeadamente, no artigo 6.º do seu articulado, e constituem os elementos em que esta sustenta o seu pedido de indemnização civil”), pela oportuna e correcta afirmação do Sr. Juiz do tribunal a quo, que reproduzimos: «A estrutura e o enquadramento da acusação pública e do pedido de indemnização civil são autónomas, pelo que não há que retirar qualquer conclusão sobre a validade formal da acusação pública» - e da queixa, acrescentamos - «por demanda de terceiros, não arguidos, no pedido de indemnização civil».

Em síntese conclusiva: nas publicações periódicas, o director, o director-adjunto, o subdirector ou quem concretamente os substitua, que não se oponha, através da acção adequada, à comissão de crime através da imprensa, podendo fazê-lo, não responde criminalmente, com o jornalista criador do escrito/imagem, no âmbito da comparticipação criminosa; a sua responsabilidade, por acto próprio, provém de omissão dolosa, por violação do dever de garante decorrente da obrigação de impedimento de publicação da notícia constitutiva de ilícito penal.


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III. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam na 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso do arguido A... , confirmando-se, na íntegra, o despacho recorrido.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs [artigo 513.º, n.º 1, 514.º, n.º 1, do CPP; artigo 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais e tabela anexa III].
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Coimbra, 3 de Fevereiro de 2016

(Processado e integralmente revisto pelo relator, o primeiro signatário)



(Alberto Mira)


(Elisa Sales)