Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
81/08.9GBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA
Data do Acordão: 05/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA MARINHA GRANDE - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 16º, N.ºS 2 E 3 E 32º, DO C. PENAL
Sumário: Na situação teórica do erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação o que está em causa é o facto de: «objectivamente, não se dão no caso os elementos justificadores exigidos, mas (subjectivamente) o agente supõe falsamente que eles se verificam».
É o que se verifica no caso da legítima defesa putativa.
Nestas situações, o tipo incriminador é dolosamente realizado pelo agente, mas este, porque aceita erroneamente elementos que a existirem excluiriam a ilicitude, actua sem culpa dolosa, não podendo por isso ser punido a título de dolo, mas eventualmente, apenas a título de negligência, se o respectivo tipo de ilícito possibilitar a previsão da punição por negligência. Trata-se de uma posição dogmática cujo reflexo normativo se encontra estabelecido no artigo 16º, n.ºs 2 e 3, do C. Penal.
Decisão Texto Integral: 1.Relatório: A) No âmbito do processo comum (tribunal colectivo) n.º 81/08.9GBMGR que corre termos no Tribunal Judicial da Marinha Grande, 3.º Juízo, ao arguido PS... foi imputada a prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º , n.ºs 1 e 2, do C. Penal.
O ISS, I.P. – CNP deduziu pedido de indemnização civil pedindo para ser reembolsado do pagamento das prestações por morte que efectuou aos filhos menores do falecido, no montante total de 14.230,18 euros, acrescido dos respectivos juros de mora legais, desde a data da notificação até integral e efectivo pagamento.
Em sede de audiência de julgamento, tal pedido foi ampliado para a quantia de 19.147,22 euros.
Pela assistente RN..., companheira da vítima, e por seus filhos menores, MS... e KL..., foi deduzido pedido civil pedindo para serem ressarcidos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com a morte de FF..., no valor global de 281.094, 63 euros, acrescidos de juros de mora desde a notificação até efectivo e integral pagamento.
Efectuada a audiência de julgamento, por acórdão de 24/6/2010, foi decidido o seguinte (com interesse para o presente recurso):
a) absolver o arguido PS...da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal;
b) condenar o arguido PS..., pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do C. Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão que se suspende na sua execução por igual período, nos termos do artigo 50.º, do C. Penal;
(…)
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Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 16/7/2010, o Ministério Público, defendendo que existe erro de julgamento na apreciação da matéria de facto, além de existir, por outro lado, contradição na fundamentação de facto e erro notório na apreciação da prova, acrescentando, ainda, que a conduta do arguido não pode ser enquadrada em sede de legítima defesa putativa, por insuficiência da matéria de facto, motivo pelo qual o arguido deve ser condenado como autor material de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º, do C. penal, ou, caso assim não se entenda, que seja ordenado o reenvio dos autos para novo julgamento, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. Ao dar como provado que o arguido representou que a vítima tinha consigo uma arma de fogo que se preparava para utilizar e que só disparou contra o ofendido por ter representado uma agressão iminente deste com a arma de fogo, temendo pela sua vida e da sua acompanhante, baseando-se fundamentalmente nas declarações do arguido, o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, tendo em conta as regras da experiência comum, porquanto, para além da versão daquele ser incongruente e inverosímil quanto a essa representação, dos restantes factos apurados não resulta que o ofendido estivesse na iminência de agredir o arguido ou a acompanhante, pelo que o colectivo na apreciação das provas infringiu o disposto no artigo 127.º, do CPP.
2. Existe contradição na fundamentação de facto, entre a agressão iminente representada pelo arguido e a restante matéria fáctica, mormente, não se deram como provados actos ou gestos intimidatórios por parte do ofendido, bem como de qualquer arma de fogo na posse deste que fizessem crer, seriamente, ao arguido que ia ser alvejado.
3. O acórdão recorrido padece, ainda, na sua fundamentação, de erro notório na apreciação da prova, porquanto, ao dar como provado que o arguido disparou um tiro na direcção da vítima (embora para o ombro – facto 36º -), prevendo que o seu disparo poderia provocar a morte (facto 76º) e que actuou sem se conformar com a produção desse resultado (facto 77º), nele se configuram duas realidades conclusivas inconciliáveis, tendo em conta as regras da experiência comum no que se reporta à utilização da arma de fogo como instrumento de agressão dos mais letais, que normalmente causa lesões fatais, mesmo quando o agressor procura zonas não vitais do corpo, risco esse que foi assumido pelo arguido ao disparar voluntariamente contra a vítima.
4. Ainda que se considere que o arguido apenas disparou por ter representado aquela agressão iminente da vítima com arma de fogo, tal erro não lhe é desculpável, porquanto o mesmo não é sustentado em actos objectivos praticados pela vítima e que pudessem ser razoavelmente interpretados por uma pessoa medianamente prudente de que a seguir à ameaça se seguisse inevitavelmente e de imediato a própria agressão ao arguido ou à sua acompanhante.
5. Ao apreciar e julgar a conduta do arguido num quadro de legítima defesa putativa, com recurso ao disposto no artigo 16.º, n.º2, do C. Penal, o tribunal a quo infringiu, por erro de interpretação, o disposto nesta disposição legal, pois a atitude do arguido não se fundou num erro objectivamente inevitável, por não se ter provado que naquelas circunstâncias o mesmo não tinha hipótese plausível de fuga e que para afastar aquele perigo não tinha outra alternativa que não fosse a de disparar contra a vítima.
6. Ao decidir assim, o tribunal a quo fê-lo, ainda, com insuficiente matéria de facto para o efeito, o que vicia, também, a fundamentação do acórdão, face ao disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.
7. Deve o acórdão recorrido ser alterado, expurgando-se do mesmo os factos relativos à representação do arguido da agressão iminente por parte da vítima e, dando-se como provado, em face dos meios de prova supra referidos, nomeadamente das declarações do próprio arguido, dos depoimentos das testemunhas HJ… e BC..., da reconstituição dos factos, do relatório de autópsia e da perícia de balística, que o arguido, ao disparar contra o ofendido FF…, previu que lhe poderia provocar a morte e que actuou conformando-se com a produção desse resultado e, consequentemente, condenar-se o arguido como autor material do crime de homicídio, p. e p. no artigo 131.º, do C. Penal.
8. Caso assim não se entenda, deverá ser ordenado o reenvio dos autos para novo julgamento, a fim de serem supridos os apontados vícios de fundamentação do acórdão recorrido e se harmonizar a matéria de facto.
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RN…, assistente e demandante cível, em 22/10/2010, veio aos autos, a fls. 930, manifestar a sua adesão ao recurso interposto pelo Ministério público, fazendo sua, com a devida vénia, a respectiva motivação.
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O arguido PS..., em 17/11/2010, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência total, apresentando as seguintes conclusões: 1. Bem decidiu o Colectivo ao decidir como decidiu.
2. A matéria de facto dada como provada resulta de uma avaliação criteriosa da prova produzida. 3. A versão dos factos descrita pelo arguido é perfeitamente plausível e é confirmada pelos depoimentos, não só da testemunha HJ..., designadamente na parte que retro se transcreve, como das restantes transcrições dos depoimentos quer do perito GL…, quer da testemunha DD..., bem como pelos relatórios periciais e respectivos esclarecimentos.
4. Inexiste qualquer erro de julgamento, designadamente contradição na fundamentação de facto ou erro na apreciação da prova.
5. O erro em que incorreu o arguido é-lhe desculpável e foi, inquestionavelmente, consequência do comportamento da vítima.
6. O arguido actuou em situação de erro sobre a existência de uma causa de exclusão da ilicitude, concretamente o arguido agiu na plena convicção de que estava a agir numa situação de legítima defesa, já que representou, e bem, dadas as circunstâncias, que estava perante uma agressão ilícita e iminente a ser perpetrada em si mesmo ou na pessoa que com ele se encontrava, estando esta agachada, aterrorizada e incapaz de se defender.
7. O arguido recorreu ao único meio adequado a repelir a agressão.
8. O comportamento do arguido é subsumível à previsão dos artigos 32.º e 16.º, do C. Penal. ****
O recurso foi, em 14/12/2010, admitido.
Já no Tribunal da Relação de Coimbra, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu, em 14/1/2011, douto parecer, no qual não acompanhou o recurso, salientando que(...) não vislumbramos do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, nenhum dos vícios apontados.Mais disse queInclinamo-nos, antes, para a tese do tribunal a quo, ao considerar que a matéria de facto provada evidencia que o arguido actuou erroneamente convencido da existência de uma situação de justificação, mais concretamente a legítima defesa.
Na esteira de Figueiredo Dias, trata-se de um erro sobre um estado de coisas que, a existir, exclui a ilicitude do facto, ou seja, uma situação putativa de justificação.
Ora, neste contexto, perante uma situação de legítima defesa putativa, fica sempre em aberto a possibilidade de punir o agente por facto negligente, nos termos do disposto no artigo 16.º, n.ºs 2 e 3, do C. Penal, quando se verifiquem os pressupostos do tipo negligente como, aliás, o fez – e, em nosso entendimento, bem, em face de todo o circunstancialismo – o tribunal recorrido.
Nesta conformidade, a condenação do arguido PS… pela prática de um crime de homicídio por negligência, nos termos atrás indicados, não nos suscita qualquer reparo, merecendo, por conseguinte, plena confirmação.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida (com relevo para o recurso):
“(…)
II – Factos provados: 1. No dia … 2008, cerca da 1h 50, o arguido encontrava-se no parque de estacionamento próximo do café existente na praia de ..., no lugar e freguesia de ..., ..., ao volante do seu veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Opel, modelo Corsa 2.Com este virado para a praia (oeste) 3. E de forma a ter o aludido café do seu lado esquerdo.
4. Havia chegado minutos antes 5. Acompanhado de HJ… .

6. Que ocupava o lugar ao lado do seu.
7. O local não tinha qualquer iluminação e a noite estava escura, 8. Na altura, não se encontravam, no local, quaisquer outras pessoas, 9. E o céu encontrava-se nublado.
10. De ambos, aproximou-se FF... 11. Que encostou, primeiro, a cara ao vidro da frente do lado do condutor (vulgo pára-brisas), procurando ver o que se passava no interior do veículo,
12. À semelhança do que era usual fazer a outros veículos estacionados.
13. Surpresa e assustada, HJ… deu um grito e gritou para FF… “sai daqui”, ao mesmo tempo que batia no vidro do carro.
14. Foi então que o arguido reparou no vulto que se aproximara.
15. Vendo-se surpreendido, FF...gritou para o arguido: “vou-te matar, vou-te dar um tiro, vou-te foder”.
16. Então, o arguido tentou pôr o carro em andamento, ligando a ignição, para sair do local, o que não conseguiu,
17. Altura em que FF..., continuando a proferir tais expressões, contornou o veículo pela traseira
18. E posicionou-se do lado direito da viatura, frente à porta do lado do passageiro.
19. Então, dado o facto de não ter conseguido pôr o veículo em funcionamento, o arguido saiu do mesmo, abrindo a porta do seu lado,
20. Ao mesmo tempo que municiava a arma que trazia consigo,
21. Uma pistola com o calibre 7,65mm, cor preta, marca Fabrique Nationale, modelo Browning, n.º 425 RN 50418, com carregador para 14 munições do mesmo calibre,
22. Pertença do Estado Português,
23. E que lhe estava atribuída para o uso exclusivo no exercício das suas funções de agente da PSP,
24. Funções que não exercia no momento,
25. Por cerca de duas horas antes ter terminado a prestação de trabalho.
26. O arguido colocou-se, então, em frente à porta do condutor,
27. E de frente para FF...que se encontrava posicionado junto à porta do passageiro, do outro lado do veículo.
28. Então, o arguido disse para FF..., em voz alta: “sou polícia, vai-te embora”.
29. Porém, o ofendido não só não saiu como continuou a proferir as expressões referidas em 15.
30. O carro do arguido é de cor branca,
31. E o ofendido vestia de preto.
32. Então, o arguido viu FF...a levantar os ombros e
33. Representando, face às expressões proferidas por este último e à sua postura ameaçadora, que a vítima tinha consigo uma arma de fogo que se preparava para utilizar,
34. Disparou três tiros,
35. Os dois primeiros para o ar,
36. E o terceiro para o ombro da vítima que sabia ser órgão não vital.
37. Então, FF..., que se manteve de pé, disse-lhe “deste-me um tiro”.
38. O arguido, sempre convencido que a vítima tinha uma arma de fogo consigo e que se preparava para disparar, entrou no veículo e
39. Conseguiu pôr este em andamento, dando a volta ao parque de estacionamento
40. Tendo posicionado o carro de forma que os faróis incidissem sobre o local onde se encontrava FF....
41. Na altura em que a viatura deu a volta, o arguido e a sua acompanhante sentiram um impacto forte na parte do lado direito do carro,
42. Tendo o arguido reforçado a sua convicção de que FF...tinha uma arma de fogo e havia disparado contra si.
43. O arguido, então, saiu do carro e municiou a arma, de novo,
44. Sempre temendo pela sua vida e pela vida da sua acompanhante,
45. Procurou FF..., mas
46. O mesmo já não se encontrava no local.
47. Vindo o arguido a encontrá-lo junto ao estrado de madeira existente à frente do café e identificado sob a letra B na representação gráfica junta a fls. 267,
48. Onde havia caído, na posição de decúbito dorsal e com a cabeça em cima do extremo sul do mesmo estrado.
49. A vítima disse-lhe, então, “que é que foste fazer, deste-me um tiro”,
50. Ao que o arguido lhe respondeu que iria providenciar de imediato pelo seu socorro.
51. A vítima, nessa altura, esvaía-se em sangue,
52. Ao mesmo tempo que procurava evitar a saída deste, colocando os seus dedos na zona do pescoço.
53. Acto contínuo, o arguido entrou dentro do seu veículo e tentou ligar do seu telemóvel, …, para o INEM
54. Porém, não conseguiu estabelecer ligação,
55. Tendo pedido à sua acompanhante que fosse ligando para o INEM enquanto saía com o carro do parque de estacionamento a fim de tentar obter rede que permitisse estabelecer a ligação telefónica
56. Tomou a direcção de ...
57. E já próximo do posto da GNR, pelas 2h 14m 27s, conseguiu obter ligação, solicitando intervenção da emergência médica,
58. Referindo o estado da vítima e indicando o local onde haviam ocorrido os factos.
59. A dita HJ... era, na altura, também portadora de telemóvel,
60. O arguido dirigiu-se, então, ao posto da GNR onde aguardou.
61. FF...permaneceu com vida até cerca das 2h 58,
62. Momento em que já se encontrava a ser socorrido pelos membros do INEM, e
63. Na sequência dos primeiros socorros prestados pelos Bombeiros Voluntários da ...
64. Que haviam chegado cerca das 2h 27,
65. Cerca de 11 minutos após lhes ter sido comunicada a ocorrência.
66. O projéctil referido em 36 atingiu FF...na base da face antero-lateral direita do pescoço, de baixo para cima e da frente para trás
67. E veio a sair a nível da metade inferior do ramo esquerdo da mandíbula,
68. Tendo-lhe provocado as lesões descritas no relatório de autópsia junto a fls. 290 e ss
69. As quais, algum tempo depois, e complicadas de aspiração e deglutição de sangue, vieram a determinar, directa e necessariamente, a morte.
70. O arguido apenas disparou os referidos projécteis por ter representado uma agressão iminente da vítima com arma de fogo, temendo pela sua vida e pela vida da sua acompanhante,
71. Fê-lo tomado de pânico e sem tomar a diligência devida, nomeadamente a verificação da efectiva existência de uma arma de fogo nas mãos da vítima,
72. As quais (mãos) nunca chegou a ver
73. E sem se assegurar se os disparos efectuados para o ar haviam produzido ou não o efeito por si pretendido de parar a agressão por si representada.
74. Apesar disso, e acto contínuo, efectuou um terceiro disparo na direcção do ombro da vítima
75 E que veio a atingir esta.
76. Prevendo que o seu disparo poderia provocar a morte,
77. Actuou, no entanto, sem se conformar com a produção desse resultado.
78. Sabia que apenas podia utilizar a referida arma no exercício das suas funções de agente da PSP.
79. Do posto da GNR ao local onde FF... foi atingido distam cerca de 3 KM
80. Distância suscepível de percurso de carro, à referida hora, entre 3 a 5 minutos.
81. O arguido colaborou com o Tribunal, esclarecendo os factos com a relevância para a descoberta da verdade.
82. Revelou sentido de auto-censura e
83. Mostrou-se, sinceramente, arrependido.
(…)
Factos não provados da acusação e dos pedidos cíveis:
(…)
- que o arguido tenha agido com o propósito de provocar a morte de FF...;
(…)
Motivação:
O Tribunal baseou a sua convicção, fundamentalmente, nas declarações do arguido, prestadas com emoção e mostrando que este sofreu forte abalo psicológico e emocional com a situação vivenciada, corroboradas, apenas com algumas diferenças de pormenor que em nada põem em causa aquelas, pelo depoimento da única testemunha presencial dos factos (também ela revelando forte emoção) e pelos relatórios periciais existentes nos autos, estes analisados de acordo com os critérios plasmados no artigo 163.º, do CPP.
O arguido descreveu os factos com pormenor, dizendo, em suma, o seguinte: (…)
Que efectuou os disparos sem se movimentar.
Referiu, então: “Há situações na vida em que há emoções que nós temos e que não conseguimos conter…o local, a voz do Sr. FF... a ameaçar…na altura, estava em julgamento um processo de tráfico em Leiria do qual eu tinha sido o mentor, eu tinha sido ouvido, 2 ou 3 semanas antes. Houve testemunhas que tinham sido ameaçadas. Perdi o controlo.”
Que nunca quis causar a morte.
Que nunca viu a arma na mão dele, mas pressentiu que ele a tinha, era de noite, à distância que ele não conseguia ver. Que apenas conseguia ver do peito para cima reflectido no tejadilho do carro.
(…)
HJ…, única testemunha presencial dos factos, referiu o seguinte: (…)
A testemunha mostrava-se emocionada e chorava, tendo a sua postura criado a convicção absoluta no Tribunal de que falava verdade, de acordo com a percepção que teve na altura e a sua sensibilidade, condicionada, ainda, pelo estado de pânico em que se encontrava – factores que explicam as pequenas divergências entre o seu depoimento e as declarações prestadas pelo arguido que não são, assim, no entender do Tribunal, de valorar.
AV…, médico-legista que fez a autópsia e o respectivo relatório e o esclareceu, referiu os ferimentos que a vítima apresentava que, embora não fossem em órgãos essenciais à vida, causaram uma hemorragia que conduziu à morte.
(…)
Que a bala atingiu, em primeiro lugar, o ombro, não penetrou aí e penetrou mais à frente, que o 1º impacto foi de raspão, que, face aos ferimentos, a vítima teria que estar de lado.
Conjugado o seu depoimento com o relatório de autópsia de fls. 290 a 299, mostra-se compatível com a versão dada pelo arguido de que teria atirado para o ombro da vítima.
(…)
Ainda consonantes com a descrição dos factos pelo arguido:
- relatório pericial de fls. 572 a 579, relativo à arma usada pelo arguido, (…);
- relatório pericial de fls. 697 a 701, cuja perícia visava “analisar o cone angular de ejecção dos invólucros”, (…).
(…)
Ainda se baseou o Tribunal quanto ao estado do tempo, distância do local ao Posto da GNR, local e estado em que foi encontrada a vítima, socorro que lhe foi prestado, hora do óbito, estado do arguido após se ter apresentado no Posto da GNR, nos seguintes depoimentos de pessoas que tinham conhecimento directo destes factos:
(…)
Subsunção Jurídica dos Factos:
O arguido vem acusado da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal.
(…)
Sem dúvida que a causa da morte de FF...foi a conduta do arguido ao disparar o projéctil que atingiu aquele e que lhe provocou lesões que foram a causa directa e necessária da morte.
Porém, face à factualidade dada como provada, coloca-se a questão de saber se o arguido terá ou não agido em erro sobre as circunstâncias de facto de uma causa de exclusão da ilicitude, qual seja a legítima defesa.
Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro – artigo 32.º, do C. Penal.
(…)
Ora, no caso dos autos, entendemos que o arguido representou uma agressão actual e ilícita da vítima, ao pensar (contra o que era a verdade dos factos) que a mesma era portadora de uma arma de fogo que se preparava para utilizar contra si.
Agiu, assim, em erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto, isto é, na situação da chamada “legítima defesa putativa”, o que, desde logo, exclui o dolo, subsistindo apenas a possibilidade de punição por negligência se esse erro resultar de uma falta de cuidado e de atenção do agente na apreciação da situação – artigo 16.º, n.º 3, do C. Penal.
Ora, ao visar o corpo da vítima, se bem que em zona considerada não letal, ao não aguardar que os disparos para o ar surtissem o seu efeito e continuando a disparar um terceiro tiro, ao não se certificar se efectivamente existia uma arma nas mãos da vítima, o que podia ter feito desde logo movimentando o seu corpo de forma a ter uma visão completa do corpo daquela (ou melhor, das suas mãos), omitiu o arguido um elementar dever de cuidado, e atingindo o ofendido veio a verificar-se a morte que apenas ao comportamento do arguido é devida.
Deve, portanto, o arguido ser condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do C. Penal.
Com efeito, um homem médio, com a categoria profissional e social do arguido (com as suas capacidades e conhecimentos), sendo agente da PSP, de compleição robusta, deveria ter agido de outro modo.
Ao omitir a diligência devida, foi o seu comportamento causa adequada e necessária do resultado, a morte da vítima.
E cometeu o arguido um crime de homicídio por negligência simples e não por negligência grosseira, prevista pelo artigo 137.º, n.º 2, do C. Penal.
Esta última disposição legal prevê a punição do agente quando a sua culpa é agravada pelo teor de imprevisão ou de falta de cuidados elementares, implicando uma especial intensidade da negligência não só ao nível da culpa como também ao nível do ilícito, sendo indispensável que se esteja perante uma acção particularmente perigosa e de um resultado de verificação altamente provável, devendo constatar-se que o autor, não omitindo a sua conduta, revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico-penal.
A negligência grosseira constitui assim uma forma qualificada de negligência, ligando-se à ideia de “culpa temerária”, podendo falar-se em negligência grosseira mesmo ao nível da negligência inconsciente.
A distinção da negligência consciente da negligência inconsciente obedece a um critério totalmente distinto daquele que permite distinguir a negligência grosseira da negligência simples. No primeiro caso, o critério distintivo assenta na previsão do(s) resultado(s), enquanto, no segundo caso, o critério prende-se com a intensidade da violação do dever objectivo de cuidado.
Ora, revertendo para a factualidade dada como provada, verifica-se que o arguido violou diversos objectivos de cuidado, mas que deve considerar-se também uma conjugação de culpas: não só a do arguido mas também a da vítima, cujo comportamento ameaçador despoletou a reacção do arguido, não tendo, no entanto, a existência desta qualquer efeito desresponsabilizador do agente.
Resulta assim que o arguido podia ter observado os deveres objectivos de cuidado violados, que estava em condições de os observar, dado que não resulta que padecesse de qualquer limitação intelectual ou volitiva.
Mais se verifica que o arguido, apesar do quadro de medo e exaltação de ânimos vivenciado, sabia que a violação dos deveres de cuidado que sobre si impendiam era legalmente proibida, tendo, portanto, consciência da ilicitude.
Por fim, apesar de a situação de facto se apresentar de tal forma que era exigível ao arguido a adopção de um comportamento conforme ao direito através da adopção de medidas objectivas de cuidado, apenas lhe pode ser imputada uma atitude pessoal de descuido e de leviandade e não uma atitude de completa indiferença ou contrariedade relativamente ao bem jurídico protegido.
Entendemos, portanto, que agiu com negligência consciente por necessariamente ter tido de representar que, ao usar disparos de arma de fogo contra o ofendido, poderia provocar a morte deste, atenta a capacidade letal daqueles instrumentos, não se tendo, no entanto, conformado com tal resultado.
Entendemos que já não é de imputar o seu comportamento a negligência grosseira por não ter havido aqui culpa temerária ou mesmo uma total omissão de precauções mais elementares, por não existir aqui patenteada uma personalidade particularmente censurável como o exige o disposto no n.º 2 do artigo 137.º, do C. Penal.
Assim, deverá o arguido ser condenado pela prática do crime previsto no artigo 137.º, n.º 1, do C. Penal, cuja pena é a de prisão até 3 anos ou pena de multa.
(…)”
****
III. Apreciação do Recurso:
O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.
Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais para se obter o reexame da matéria que foi sujeita à apreciação da decisão recorrida e não vias jurisdicionais para um novo julgamento.
As declarações oralmente prestadas em audiência foram documentadas em acta por referência aos respectivos suportes áudio, nos termos estipulados no artigo 363.º do C.P.P.
Deste modo, deverá conhecer este Tribunal de facto e de direito, de acordo com o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P. As questões a conhecer são as seguintes:
1 – Saber se há erro de julgamento, no que tange aos factos que se deram por provados nos pontos 33, 70, 77.
2 – Saber se o acórdão recorrido padece dos vícios a que alude o artigo 410.º, n.º 2, do CPP.
3 - Saber se o arguido agiu num quadro de legítima defesa putativa.
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1 e 2 – Da impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/vícios a que alude o artigo 410.º, n.º 2, do CPP:
Face ao modo como se encontra estruturado o recurso, entendemos por bem abordar em conjunto as duas primeiras questões suscitadas.
Vejamos.
Um recorrente pode pretender invocar vícios oficiosos do artigo 410º, do CPP, assim impugnando a matéria de facto dada como provada, ou pode pretender reapreciar a matéria dada como provada, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP. Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP. **** Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
**** Por sua vez, o erro de julgamento, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.P.: «3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c)-As provas que devem ser renovadas». A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Além disso, o n.º 4, do citado artigo 412.º contempla o seguinte:Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.Ora, no caso em apreço, o recorrente começa por referir que foram julgados incorrectamente os seguintes factos:
- o arguido representou, face às expressões ameaçadoras proferidas e à sua postura ameaçadora que a vítima tinha consigo uma arma de fogo e que se preparava para utilizar (facto 33º);
- o arguido apenas disparou os referidos projécteis por ter representado uma agressão iminente da vítima, com arma de fogo, temendo pela sua vida e pela vida da sua acompanhante (facto 70º);
- o arguido actuou, no entanto, sem se conformar com a produção desse resultado (morte, facto 77º).
Depois, enumera a seguinte prova gravada (surge transcrita no recurso):
- as declarações do arguido (cfr. sessão de 16/4/10, declarações gravadas em cd, entre as 10,07h e 10,57);
- o depoimento da testemunha HJ... (cfr. sessão de 16/4/2010, depoimento gravado em cd, entre as 15h e as 16,23h);
- o depoimento da testemunha BC..., cabo da GNR (cfr. sessão de 7/5/2010, depoimento gravado em cd, entre as 9,50h e as 10,08h)
Aqui chegados, e com base na prova apresentada, o recorrente afirma que é “incongruente que alguém que tenha por hábito espreitar casais como foi dito pela testemunha BC…, cabo da GNR, ameace as pessoas ou lhes faça gestos intimidatórios, como o que foi dito pelo arguido, de disparar uma arma de fogo, ou como disse a testemunha HJ… de abanar a viatura ou de se atirar contra esta”.
Mais acrescenta que “é, também, incongruente que o arguido se sentisse ameaçado ou na iminência de ser agredido quando, segundo as declarações do arguido e da acompanhante, a vítima, após estes terem gritado para sair dali e ir embora, contornou a viatura pela traseira, depois de passar pela porta do condutor e posicionou-se no lado oposto junto à porta do lado direito, sem que tivesse feito qualquer gesto intimidatório para com aqueles, para além de verbalizar ameaças dirigidas ao arguido para não sair do carro senão dava-lhe um tiro.
Cabe perguntar por que razão o arguido saiu da viatura empunhando logo a arma de fogo se a vítima, naquele momento, não ia agredi-los e, tudo o indicava, acabaria por se ir embora.
Disse o arguido, para justificar a sua atitude, que quis abandonar o local na viatura mas que o motor não pegou. Estranhamente, já pegou após ter disparado contra a vítima, sendo certo que esta explicação apenas decorre das suas declarações e já não do depoimento da testemunha HJ... a qual não corroborou nesta parte a versão do arguido.
Depois, não é crível que o arguido se sentisse na iminência de ser agredido quando é certo que entre ele e o alegado agressor havia um obstáculo, o veículo. Se aquele tivesse a intenção de o balear, certamente não teria contornado o veículo, indo colocar-se no lado direito, numa posição em que lhe era difícil alvejar o arguido, estando este do lado oposto.
Como é que alguém pode interpretar tal atitude como séria e iminente agressão?
Também não é crível que, mesmo depois de o arguido se ter identificado como agente policial, ter exibido a arma de fogo e disparar dois tiros para o ar, a vítima continuasse a ameaçá-lo e a dizer-lhe que lhe dava um tiro, por que razão? A intenção era a de os roubar? Não. Conheciam-se? Não. Era habitual a vítima andar armada e o arguido ter disso conhecimento? Também não.
Por último, é incongruente o arguido sentir-se amedrontado, temer pela sua vida e da sua acompanhante, ter entrado em pânico e, mesmo assim, pretender deter a vítima, como declarou.
Se bem notarmos, o recorrente limita-se a fazer uma apreciação subjectiva da prova apresentada, encontrando nesta, na sua perspectiva, apenas incongruências, não obstante a transcrição trazida aos autos, a fls. 900 a 906, da qual, adiantamos desde já, deveriam ter sido extraídas partes que justificassem a posição daquele, o que não se verificou.
Com efeito, não chega a indicar, em concreto, prova que imponha uma conclusão contrária à do Tribunal.
Bem se percebe, aliás, que não o tenha feito, já que as declarações do arguido e o depoimento da testemunha HJ... convergem, sem qualquer margem para dúvidas, no sentido que consta do acórdão recorrido.
Não pode ser esquecido que a situação ocorrida teve lugar apenas entre três pessoas, sendo certo que uma delas morreu, o que limita, em muito, a aquisição da prova.
Ora, o tribunal tem que julgar os factos com a prova existente e não especular sobre o que poderia ter acontecido com base em considerações que não apresentam nenhuma base naquilo que foi transmitido durante a audiência.
Note-se que a primeira incongruência apontada pelo recorrente vai, por completo, ao arrepio daquilo que foi trazido aos autos, ou seja, a conduta ameaçadora da vítima, nos momentos que precederam os disparos.
Por mais estranho que isso possa ser aos olhos do recorrente, o que é certo é que nada existe, em sede de prova, que o coloque em causa. O ser humano é bem imprevisível. O simples facto de alguém ser visto como um “espreita” não significa que, em dado momento, não assuma comportamentos violentos.
Além disso, com o maior respeito pela posição apresentada no recurso, é perfeitamente normal que uma pessoa se sinta ameaçada quando alguém lhe diz, de modo reiterado, que lhe vai dar um tiro, nas circunstâncias descritas nos autos. Nada tem de estranho, segundo os padrões normais próprios do homem médio, ficar assustado, tendo em conta os factos provados 1 a 18.
Por seu turno, não vislumbra este tribunal que o facto de haver uma viatura automóvel (obstáculo) entre o arguido e a vítima e o percurso seguido por esta pudessem ter sido entendidos como manifestações de que não iria surgir uma agressão a tiro. Prova disso mesmo é que o arguido disparou e atingiu FF....
Em resumo, nenhuma versão foi trazida aos autos a infirmar o que foi dito pelo arguido e pela testemunha HJ....
Não há, pois, erro de julgamento.
Assim sendo, não há que fazer qualquer alteração à matéria de facto.
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Avancemos, agora, para a análise dos restantes vícios apontados pelo recorrente (artigo 410.º, n.º 2, do CPP).
Em primeiro lugar, o recorrente considera que “existe contradição na fundamentação de facto, entre a agressão iminente representada pelo arguido e a restante matéria fáctica, mormente, não se deram como provados actos ou gestos intimidatórios por parte do ofendido, bem como de qualquer arma de fogo na posse deste que fizessem crer, seriamente, ao arguido que ia ser alvejado.
Como acima ficou expresso, estamos no âmbito de vícios que resultam do teor da própria decisão, ou seja, a ela intrínsecos.
Acontece que, ao ler a fundamentação de facto da decisão recorrida, não se encontra qualquer contradição.
O Tribunal foi bem claro na explicação do processo que formou a sua convicção, apoiando-se nas declarações do arguido, no depoimento da testemunha HJ... e nos relatórios periciais existentes nos autos.
Resulta dos indicados factores que o Tribunal assentou aquela no ambiente de medo criado pela vítima e que suscitou a reacção do arguido, sendo esta provocada pela representação de uma agressão iminente.
É evidente que o citado medo não foi originado por gestos ou pela posse de arma de fogo, mas sim pelas palavras ditas pela vítima antes de ser alvejada e pelos seus movimentos em redor do veículo automóvel. E isso é descrito de um modo escorreito.
Face ao exposto, não é de concluir que a fundamentação constante do acórdão conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Em segundo lugar, o recorrente entende que “o acórdão recorrido padece, ainda, na sua fundamentação, de erro notório na apreciação da prova, porquanto, ao dar como provado que o arguido disparou um tiro na direcção da vítima (embora para o ombro – facto 36º -), prevendo que o seu disparo poderia provocar a morte (facto 76º) e que actuou sem se conformar com a produção desse resultado (facto 77º), nele se configuram duas realidades conclusivas inconciliáveis, tendo em conta as regras da experiência comum no que se reporta à utilização da arma de fogo como instrumento de agressão dos mais letais, que normalmente causa lesões fatais, mesmo quando o agressor procura zonas não vitais do corpo, risco esse que foi assumido pelo arguido ao disparar voluntariamente contra a vítima.”
Relembre-se que está, aqui, em causa um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.
Desde logo, o Tribunal não decidiu contra aquilo que considerou provado ou não provado. Tal é inquestionável.
Por seu lado, o Tribunal não deu como provado o que não pode ter acontecido. A decisão não contende com as regras de experiência comum.
O recorrente parte do princípio de que “a conduta dolosa do arguido, consistente na conformação ou aceitação da morte como uma consequência possível da sua conduta, está, pois, provada a partir do instante em que dispara deliberada e voluntariamente, como se provou, contra a vítima, a uma curta distância – muito embora o colectivo não tenha apurado a distância aproximada – ocorrendo a agressão num sítio ermo, o que dificultava uma assistência médica em tempo útil como, aliás, se verificou.”, e, ainda, de que “alguém que dispara sobre outrem, nas circunstâncias em que o arguido o fez, só pode aceitar o risco das consequências que o seu acto pode causar, caso contrário não o faria (continuaria a disparar para o ar, por exemplo). E, assim sendo, tem-se por verificado o dolo indirecto ou eventual.
Concede-se, como não poderia deixar de ser, que a utilização de uma arma de fogo (disparo na direcção de uma pessoa) pode ter como resultado a morte de alguém. Todavia, isso não quer dizer, como bem é referido pelo arguido, a fls. 939, na sua resposta ao recurso, que quem efectua o disparo se conforma ou tenha intenção de a produzir, nomeadamente em casos como o dos autos, em que está provado que o arguido disparou “para o ombro da vítima que sabia ser órgão não vital” (artigo 36º dos factos provados).
Não há, assim, erro notório na apreciação da prova.
Em terceiro lugar, o recorrente defende que, ao decidir o tribunal a quo pela existência de legítima defesa putativa, fê-lo com insuficiente matéria de facto para o efeito.
Uma vez que este vício pressupõe uma análise sobre a terceira questão suscitada nos autos, relega-se para momento posterior o seu conhecimento.
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3 – Da legítima defesa putativa:
Ninguém discute que a causa da morte de FF...foi a conduta do arguido ao disparar projéctil que atingiu aquele e que lhe provocou lesões que foram a causa directa e necessária da morte.
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Todavia, resulta das disposições conjugadas dos artigos 31.º/1/2/a) e 32.º, ambos do C. Penal, que o facto criminalmente tipificado não é punível quando a sua ilicitude for excluída, designadamente se o facto for praticado em legítima defesa, isto é, como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente.
Estamos aqui em presença de uma das chamadas causas de justificação, por excluir a ilicitude do acto do agente que preencheu os elementos típicos objectivos e subjectivos de um crime.
No caso dos autos, estão verificados os vários pressupostos de que a lei penal faz depender a verificação de legítima defesa? Entendemos que não ficaram demonstrados, tendo em conta os factos dados como provados e como não provados.
O arguido, quando disparou, estava a ser efectivamente confrontado com uma agressão actual e ilícita?
Tal não ficou demonstrado.
Logo, não pode ser considerada a legítima defesa, nem, eventualmente, o excesso de legítima defesa, pois este pressupõe aquela – cfr. Ac. do S.T.J., de 9/7/1992, Processo n.º 42804.
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No entanto, é líquido, a nosso ver, que, por parte do arguido PS..., houve uma falsa representação dos pressupostos objectivos necessários à legítima defesa, no momento em que viu e ouviu FF..., nas proximidades da sua viatura.
Estamos, então, perante um caso de legítima defesa putativa, a que são aplicáveis os princípios gerais sobre o erro? – ver, neste sentido, Eduardo Correia, Direito Criminal, volume II, pág. 49.
Como todos sabem, na esteira da melhor doutrina, o erro sobre os pressupostos fácticos de uma causa justificativa deve considerar-se erro sobre a factualidade típica.
Não esqueçamos que o erro é o limite do dolo. E porque este é conhecimento ou representação dos elementos do facto que formam o tipo legal, daí resulta que o erro sobre um elemento constitutivo de um tipo legal de crime exclui o dolo. É este o princípio geral, que resulta da própria natureza do dolo, em matéria de erro sobre a factualidade típica.
Na situação teórica do erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação o que está em causa é, conforme refere Figueiredo Dias, o facto de: «objectivamente, não se dão no caso os elementos justificadores exigidos mas (subjectivamente) o agente supõe falsamente que eles se verificam» (Textos de Direito Penal, Lições ao 3.º ano da F.D.U.C., policopiado, 2001, p. 152). Nestas situações, o tipo incriminador é dolosamente realizado pelo agente, mas este, porque aceita erroneamente elementos que a existir excluiriam a ilicitude, actua sem culpa dolosa, não podendo por isso ser punido a título de dolo, mas eventualmente, apenas a título de negligência, se o respectivo tipo de ilícito possibilitar a previsão da punição por negligência. Trata-se de uma posição dogmática cujo reflexo normativo se encontra estabelecida no artigo 16º, n.º 2 e n.º 3, do C. Penal.
Consagra o citado artigo 16.º, do C. Penal:
«1. O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo.
2. O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
3. Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais
Ora, no caso dos autos, o arguido estava acompanhado por uma mulher, na escuridão da noite, num sítio ermo, distante da estrada, ao qual acabara de chegar, quando viu um indivíduo a caminhar junto do seu veículo, a repetir expressões ameaçadoras, o que o deixou perturbado, tendo procurado, através dos disparos que efectuou, proteger a sua vida e, também, sem dúvida, a da sua companheira, sendo certo que PS..., nas circunstâncias apuradas, reagiu contra um perigo imaginado (utilização de uma arma de fogo por parte de FF...) como susceptível de provocar graves consequências e que tornava indispensável a defesa usada, tanto mais que não era possível pedir auxílio a quem de direito.
Em resumo, encontram-se reunidos todos os requisitos da figura de legítima defesa putativa, como causa de exclusão prevista na lei (mesmo que errónea a suposição do arguido de que estava a ser agredido, se esse erro é irrelevante, nas circunstâncias do caso (circunstâncias de molde a consolidar aquela suposição).
O arguido agiu, pois, com animus defendendi e na errónea suposição de que se verificavam todos os pressupostos da legítima defesa, sendo o seu erro desculpável, verificando-se, portanto, um caso de exclusão do dolo. Da factualidade provada – e é essa que é relevante – resulta que a conduta de FF... não pode ter deixado de incutir no arguido uma dimensão de receio sobre si e a sua acompanhante. Para este tribunal, é líquido que qualquer homem médio, nas circunstâncias apuradas nos autos, sentiria medo ao ouvir um estranho afirmar “vou-te matar, vou-te dar um tiro, vou-te foder”, da mesma forma que tomaria a sério tais expressões.
Note-se que não estamos perante uma mera hipótese académica, mas sim a abordar uma situação real, ocorrida num período bem curto, no qual as pessoas envolvidas sentiram pânico.
Admite-se que o arguido podia ter optado por uma outra resposta às ameaças proferidas por FF..., através da observância de um outro comportamento (sem dúvida, omitiu elementar dever de cuidado, como salientado no acórdão, a propósito da prática do homicídio negligente), o certo é que, nos factos provados, existe referência factual à motivação do arguido, no momento em que disparou – artigos 70º e 71º. Assim sendo, estamos na presença de factualidade demonstrada que permite levar à conclusão que efectivamente o arguido «pensou» que FF...estava ali para o ameaçar, coagir ou matar e por isso a sua actuação estaria, ainda, no âmbito do direito de defesa. Por outras palavras, há factos provados que demonstram o «elemento subjectivamente relevante» de que o arguido supôs que estava, naquele momento, a ser objecto de uma ameaça (sobre si ou sobre a sua acompanhante).
Não é de atender, pois, à posição defendida pelo recorrente de que estamos na presença de um erro que não é objectivamente desculpável, por não se ter provado que, nas circunstâncias descritas, o arguido não tinha hipótese plausível de fuga e que para afastar aquele perigo não tinha outra alternativa que não fosse a de disparar contra a vítima.
O recorrente dá muita importância ao seguinte: a) não existia arma de fogo na posse da vítima; b) não existiu qualquer movimento intimidatório por parte de FF...; c) o arguido podia ter-se afastado do local, em vez de ter disparado.
Por seu turno, desvaloriza os seguintes factos provados: 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 27º, 28º, 29º, 33º, 70º e 71º.
Salvo sempre o devido respeito pela posição assumida pelo recorrente, nem sequer ficou provado que o arguido podia ter abandonado o local antes dos disparos (ver artigo 16º).
Além disso, o cerne da questão não está naquilo que consta das alíneas a) e b) acabadas de mencionar, mas sim, como já vimos, naquilo que o arguido imaginou que pudesse vir a acontecer.
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Analisada que está esta questão, voltemos à que, há pouco, ficou em aberto.
O recorrente argumenta que, no que tange à legítima defesa putativa, “a matéria de facto dada como provada é insuficiente para o sentido da decisão proferida pelo tribunal”.
Mais uma vez, entendemos que não assiste razão ao recorrente.
Na realidade, não vislumbra este tribunal como possa ser afirmado que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e que o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão.
Por um lado, a situação foi explicada por quem a podia explicar (arguido e testemunha HJ..., já que ninguém mais presenciou os factos relacionados com os disparos), foram levados em consideração relatórios periciais, assim como os respectivos esclarecimentos.
Por outro lado, os factos dados como provados servem, indiscutivelmente, para fundamentar a decisão de direito.
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Para terminar, deixemos, ainda, aqui expresso que nenhuma crítica merece o acórdão quanto à punição do arguido enquanto autor de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do C. Penal. Estando em causa um tipo negligente, importa ter em conta o que preceitua o art. 15.°, do Código Penal, pelo que, na senda da construção de Wessels na determinação do facto negligente através do desvalor de resultado e do desvalor da conduta, temos, como fundamento de tal tipo de ilícito, não só a causação do resultado, nos termos do art. 10.°, do Código Penal, mas ainda mais dois elementos, a saber: a lesão ao dever de cuidado objectivo e a imputação objectiva do resultado baseado no erro de conduta, orientada no sentido da finalidade de protecção das normas de cuidado. A negligência consiste na omissão de um dever objectivo de cuidado. Actua com negligência quem não procede “com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, para evitar a realização de um facto típico” (cf. art. 15.°, do Código Penal). A observância do dever objectivo de cuidado, a diligência devida, constitui o ponto de referência obrigatório do tipo de ilícito da infracção negligente, ou, por outras palavras, o núcleo deste tipo de ilícito consiste na divergência entre o comportamento do agente e aquele que havia de ter sido observado em razão do dever objectivo de cuidado a que o agente estava obrigado. O conceito de cuidado é, sem dúvida, objectivo e normativo. É objectivo, pois que, para o estabelecer importa ponderar do cuidado que é requerido numa perspectiva de interacção social relativamente ao comportamento em causa; o que supõe um juízo normativo, que resulta da comparação entre a conduta que devia ter adoptado um homem razoável e prudente na situação do autor e a conduta que foi observado. Este juízo normativo, conforme escreve Muñoz Conde, é integrado por dois elementos: um elemento intelectual, segundo o qual é necessária a consideração de todas as consequências da acção que, num juízo razoável (objectivo), eram de consideração previsível (previsibilidade objectiva); outro valorativo, segundo o qual só é contrária ao cuidado a conduta que vai além da medida socialmente adequada (risco permitido). Todavia não se pode afirmar que não interessa averiguar se, na situação concreta, tal cuidado foi aplicado ou podia ser aplicado pelo agente. Com efeito, a partir das contribuições de Engish, a doutrina tem distinguido entre o cuidado externo, objectivamente devido, e o cuidado interno, subjectivamente possível, ou seja, entre um dever objectivo de cuidado e outro subjectivo. E tal construção foi irrefutavelmente acolhida pelo nosso legislador quando no já citado art. 15.°, do Código Penal, se reporta às circunstâncias e à capacidade do agente. Aí pretende trazer-se à colação as ideias de previsibilidade, capacidade e evitabilidade, fulcrais na compreensão e análise da categoria da negligência, como forma de culpa, enquanto defeito de atitude interna, objecto de censura penal. Feita esta incursão doutrinária ao conceito de negligência, estamos melhor habilitados a responder à questão de fundo essencial que se tem de afrontar neste domínio e que é a seguinte: como se pode reconhecer se a violação do dever de cuidado, acompanhada da causação da morte de outrem, fundamenta ou não um homicídio negligente? Do atrás exposto, resulta passar a resposta a esta pergunta pela indagação sobre se o agente com o seu comportamento criou ou aumentou um risco proibido, que se materializou no resultado. Ora, da matéria de facto provada, resulta claro que o arguido não prestou a atenção que podia e devia, no momento imediatamente anterior aos disparos, de tal maneira que os efectuou, sem ter a certeza de que FF...detinha, também, uma arma de fogo. Agiu livre e conscientemente, não tomando, contudo, as necessárias cautelas, Verifica-se, assim, a violação do cuidado externo, objectivamente devido, e do cuidado interno, subjectivamente possível. ****
IV – DECISÃO:
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar, na íntegra, o acórdão recorrido.
Sem custas.
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José Eduardo Martins (Relator)
Isabel Valongo