Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
293/19.0T9PMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
TRÂNSITO EM JULGADO
CASO JULGADO MATERIAL
CASO JULGADO FORMAL
NE BIS IN IDEM
Data do Acordão: 10/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 311.º DO CPP; ARTS. 619.º E 620.º DO CPC; ART. 29.º, N.º 5, DA CRP
Sumário: I – Não havendo reacção do arguido ao despacho de rejeição da acusação prolatado em momento posterior ao descrito no 311.º do CPP, mas antes do da realização da audiência de discussão e julgamento, o trânsito em julgado que se formou torna esse acto processualmente válido e eficaz.

II – Todo o comportamento espácio-temporalmente determinado, traduzido num facto naturalístico concreto ou “pedaço de vida” de um indivíduo, que tenha sido já objecto de uma decisão, independentemente do “nomem iuris” que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído num determinado processo, fica abrangido pelo efeito de “caso julgado” ou, na ausência de julgamento propriamente dito, de “caso decidido”.

III - Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu de forma expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.

IV – Todavia, não assume caso julgado material uma decisão não conhecedora do mérito da causa, a qual rejeita - embora na fase processual indicada no ponto I -, porque manifestamente infundada – decorrência da falta de descrição de factos constituintes da condição objectiva de punibilidade prevista na al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT – a acusação pública.

V – Aquela decisão, porque não procede à apreciação do mérito da causa, apenas faz caso julgado formal, não obstando, assim, à reformulação, noutro processo, do despacho acusatório e à realização do subsequente julgamento.

Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, os Juízes na 5.ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra

I - Relatório

1 - No Processo Comum Singular n.° 293/19.0T9PMS do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Local Criminal de Porto de Mós, foram os arguidos L., S.A., EM LIQUIDAÇÃO, pessoa coletiva n.º (…), registada na Conservatória do Registo Comercial da (…), com o mesmo número, com sede social em Casal da (…), (…), e C., (…), submetidos a julgamento, pela prática, na forma consumada e continuada, em um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 6º, 7º, nº 1 e 3 e 107º, do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), com referência ao artigo 105º, nº 1, deste último diploma, bem como pelo artigo 30º, do Código Penal.

2. Realizado o julgamento, por sentença 15 de Dezembro de 2020, foi decidido (transcrição do dispositivo):

“a) responsabilizar a arguida L., S.A., EM LIQUIDAÇÃO pela prática, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 6º, 7º, nº1 e 3 e 107º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), com referência ao artigo 105º, nº 1, deste último diploma, bem como pelo artigo 30º, do Código Penal, na pena de trezentos dias de multa à taxa diária de cinco euros, o que perfaz a multa global de dois mil e quinhentos euros;

b) condenar o arguido C., pela prática, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 6º, 7º, nº1 e 3 e 107º, do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), com referência ao artigo 105º, nº 1, deste último diploma, bem como pelo artigo 30º, do Código Penal, na pena de cento e oitenta dias à razão diária de seis euros, perfazendo a multa global de mil e oitenta euros; e

c) (…).


*

     2 - Da referida sentença foi interposto recurso pelo arguido C., formulando as seguintes conclusões:

“(….).


*

3 - RECURSOS INTERCALARES - o recorrente cumpriu o estatuído no art. 412º, nº 5 do CPP.

3.1 - Foi ainda interposto recurso dos DESPACHOS PROFERIDOS pela juiz titular do processo a 5-11-2020 - CFR FLS 354 e 355 - formulando as seguintes conclusões:

“1. 1. Após o trânsito em julgado de uma decisão judicial que declarou extinto o procedimento criminal contra os arguidos e que ordenou o arquivamento do processo, não se afigura que o M.P. possa depois, abrir um novo processo de inquérito, contra as mesmas pessoas e pelos mesmos factos materiais de que naquele outro processo vinham acusada.

2. Permitir isso, seria permitir “ressuscitar” uma acusação e conferir uma prerrogativa ao M. P. que não tem paralelo quanto aos demais sujeitos processuais, seria a absoluta subversão do sistema processual penal.

3. Assim, é inaceitável que tendo a decisão que declarou extinto o procedimento criminal e que ordenou o arquivamento, transitado em julgado, possa depois, como se nada tivesse ocorrido e, neste caso, até com a aquiescência da M.mª juíza “a quo”, que aliás, até é a mesma que decidiu pela extinção do procedimento criminal naquele outro processo e ordenou o seu arquivamento, dizíamos, que se possa agora, permita-se-nos a expressão “ressuscitar o morto”.

4. Neste enquadramento, afigura-se, inclusivamente, que a M.mª Juiz “a quo” ao deferir o requerido pelo M.P. violou os princípios da isenção, objectividade e imparcialidade.

5. No caso concreto, a possibilidade de após dedução de uma acusação pública, na qual não consta a condição objectiva de punibilidade, se poder reformular essa peça processual, corrigi-la ou construir uma outra, seria sempre manifestamente violador do princípio do acusatório e das mais elementares garantias da defesa, sendo que, nem tal possibilidade de modo algum se harmonizaria com o espírito do sistema processual penal, assente nalguma forma de proteção das expectativas do arguido em face de uma acusação determinada e não sujeita a correções ou reformulações, neste caso, dando lugar à instauração de um novo processo crime em que os factos materiais, os arguidos e a responsabilidade criminal que lhes é imputada, são precisamente os mesmos.

6. Neste contexto, deve ser revogado o despacho que faz fls, e, consequentemente, perante a verificada extinção do procedimento criminal e arquivamento do processo, transitados em julgado, não pode o arguido ser de novo acusado pelo mesmo crime, pelos mesmos factos materiais, por via de um novo processo que propositadamente é aberto para “ressuscitar” aquele outro processo “morto”.

7. Neste sentido, num caso como o dos autos, afigura-se, como pugnamos, vedado deduzir nova acusação, aliás, neste caso, saída de num novo processo que foi “propositadamente construído”, para o efeito, pelo que, deve determinar-se, aliás, como foi requerido e aqui se renova, o arquivamento dos autos.

(…).

Nestes termos e nos demais de direito que V. Exªs doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, com todas as consequências legais daí decorrentes.

Assim, fazendo, farão v. Exªs, justiça.”

3.2 - Foi também interposto recurso pelo arguido dos despachos proferidos pela juiz titular do processo a 19-11-2020, a fls. 363 e a fls 366 - formulando as seguintes conclusões:

(…).

4 - Respostas aos recursos interpostos.

4.1 O Ministério Público respondeu aos recursos do arguido, concluindo:

4.1.1 - Resposta ao 1º recurso interlocutório

“1 - Recorre o Arguido invocando, em suma:

I. Da inadmissibilidade da sujeição do arguido julgamento após rejeição de acusação pública e II. (…).


***

Respondendo às questões suscitadas, diremos:

I. No que respeita à inadmissibilidade da sujeição do arguido julgamento após rejeição de acusação pública defende o arguido a impossibilidade de, após a dedução de uma acusação pública, na qual não consta a condição objectiva de punibilidade e que foi rejeitada por esse motivo, reformular essa peça processual, no qual aos arguidos é imputada responsabilidade criminal, pelos mesmos factos materiais, por tal constituir uma violação do princípio do acusatório e das demais garantias de defesa do arguido. Sobre esta questão diremos, a acusação que o Ministério Público primeiramente deduziu nos autos com o n.º 212/18.0T9PMS, não continha o elemento referente à condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança à segurança social, em concreto o contido no artigo 105.º n.º 4, al. b) do R.G.I.T., razão pela qual o Tribunal determinou a sua rejeição, por ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e 3, alínea b), Código de Processo Penal. Em face do exposto o Ministério Público requereu a extracção de certidão integral dos autos e deduziu nova acusação, incluindo a narração dos factos que estavam em falta no primeiro despacho acusatório, passando a descrever a matéria que integra a condição objectiva de punibilidade do imputado crime de abuso de confiança à segurança social, vindo assim suprir o vício de insuficiência, que serviu de fundamento ao despacho de rejeição referido. Em sede de saneamento dos presentes autos a M.ma Juiz do Tribunal a quo, conheceu da acusação do presente processo e não lhe encontrou qualquer vício e, por isso a recebeu, designando data para audiência de discussão e julgamento. Em nenhum momento o arguido se insurgiu quanto à tramitação dos autos que, pelo menos, desde a acusação no presente processo conhecia. Só em sede de audiência de discussão e julgamento se insurgiu que manteve até à data. No que a esta parte diz respeito, entendemos que o recurso é extemporâneo, pois, o despacho que recebeu a acusação data de 15-07-2020, tendo o arguido siso notificado por carta de 16-07-2020, tal como o Ilustre Mandatário. A prova de depósito do arguido data de 21-07-2020, pelo que os 30 dias para recorrer do despacho de recebimento da acusação terminariam em 30-09-2020, a que acresceriam 3 dias úteis durante os quais poderia praticar o acto pagando a respectiva multa processual. Assim entendemos porque tal despacho não é irrecorrível nos termos do artigo 311.º ou 400.º do Código de Processo Penal, nem consta no rol de nulidades insanáveis, contidas no artigo 119.º do mesmo diploma legal, nem há cominação especial com esta invalidade em qualquer preceito legal. Todavia o arguido só suscitou a questão em 05-11-2020 por requerimento e agora em sede de recurso, pelo que, a decisão se consolidou não o admitindo. Pelo que, não deverá ser conhecido nesta parte. Ainda que assim não se entenda sempre diremos que sobre tal requerimento se pronunciou a M.ma Juiz, não partilhando a sua posição recorreu o arguido C., sobescrita pela arguida sociedade. Ressalvando sempre o respeito devido pela opinião diversa, é nosso entendimento que, em casos como o dos presentes autos, em que o juízo de rejeição da primeira acusação teve por base a insuficiência da descrição dos factos, (no caso, ao atinentes à condição objectiva de punibilidade) que a tornaram, por isso, manifestamente infundada, se refere a uma deficiência de ordem formal (como pugnámos em sede de audiência de discussão e julgamento) e, como tal, pode e deve ser suprida pelo Ministério Público, formulando novo libelo acusatório, com dedução de nova acusação. Como dissemos naquela audiência, em tais situações, o despacho de rejeição da acusação manifestamente infundada não procedeu à apreciação do mérito da causa, antes versou sobre a existência de um vício da acusação – falta de narração dos factos – que apenas faz caso julgado formal, mas apenas quanto ao objecto apreciado, que não o mesmo que o da nova acusação porque esta supre a omissão de narração inicialmente detectada, de onde resulta que não há violação do caso julgado formal. Repetimos, nem há violação do caso julgado material, uma vez que, para que tal ocorra em processo penal, é necessário que a decisão tomada conheça do mérito da causa e, no caso concreto, não foi isto que aconteceu, pois, a decisão de rejeição apenas se debruçou sobre a falta de elementos que permitiam conhecer da existência de um crime, pronunciando-se assim exclusivamente sobre aspectos de natureza formal. Não houve decisão sobre o mérito da causa. Nem há identidade do objecto, pois, se há coincidência de arguidos, já não a há quanto ao objecto do processo, uma vez que, a primeira acusação continha factos que só por si não constituíam crime, sendo que, a segunda factos que podem constituir crime, caso se provem.

Pelo exposto voltamos a pugnar no sentido de que reformulação da acusação não constitui, nem violação de caso julgado – formal ou material –, nem violação do princípio ne bis in idem, ou do princípio do acusatório, pois o M.a Juiz não convidou o Ministério Público a aperfeiçoar a primeira acusação nem o arguido não foi julgado.

Por tudo o exposto, entendemos que nesta parte deverá o recurso do arguido improceder, nesta parte.

(…).

4.1.2 - Resposta ao 2º recurso interlocutório

(…).


*

4.1.3 Resposta do MP ao recurso interposto da sentença

(…).


*

5. Admitidos os recursos, foram os autos remetidos a este Tribunal.

*

6. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

“Analisados os fundamentos dos recursos, acompanhamos as respostas apresentadas pela Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido e, também, consideramos que as decisões impugnadas não merecem as críticas que lhes são assacadas.

Com vista à não repetição das argumentações aí expendidas apenas reforçaremos alguns aspectos mais relevantes.

A - Em recurso interlocutório, defende o arguido recorrente a inadmissibilidade da sujeição do arguido a julgamento após rejeição de acusação pública, ou seja, de após a dedução de uma acusação pública, na qual não consta a condição objectiva de punibilidade e que foi rejeitada por esse motivo, reformular essa peça processual, no qual aos arguidos é imputada responsabilidade criminal, pelos mesmos factos materiais, por tal constituir uma violação do princípio do acusatório e das demais garantias de defesa do arguido.

Na verdade, a acusação que o Ministério Público primeiramente deduziu nos autos com o n.º 212/18.0T9PMS, não continha o elemento referente à condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança à segurança social, em concreto o contido no artigo 105.º n.º 4, al. b) do R.G.I.T., razão pela qual o Tribunal determinou a sua rejeição, por ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e 3, alínea b), Código de Processo Penal.

Em face do exposto o Ministério Público requereu a extracção de certidão integral dos autos e deduziu nova acusação, incluindo a narração dos factos que estavam em falta no primeiro despacho acusatório, passando a descrever a matéria que integra a condição objectiva de punibilidade do imputado crime de abuso de confiança à segurança social, vindo assim suprir o vício de insuficiência, que serviu de fundamento ao despacho de rejeição referido.

Refere o recorrente que “é inaceitável que tendo a decisão que declarou extinto o procedimento criminal e que ordenou o arquivamento, transitado em julgado, possa depois, como se nada tivesse ocorrido e, neste caso, até com a aquiescência da M.mª juíza “a quo”, que aliás, até é a mesma que decidiu pela extinção do procedimento criminal naquele outro processo e ordenou o seu arquivamento, dizíamos, que se possa agora, permita-se-nos a expressão “ressuscitar o morto”.

Parece pretender invocar o disposto no art.º 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa que refere que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

Não lhe assiste, porém, razão.

Na verdade, conforme defende a doutrina mais abalizada, aquele princípio constitucional comporta duas dimensões: a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.

Do exposto decorre, pois, que o princípio ne bis in idem constitui um princípio constitucionalmente consagrado e simultaneamente um direito subjectivo destinado a proteger os cidadãos de julgamentos sucessivos pela prática do mesmo facto. Este direito abrange e abarca os julgamentos condenatórios quer absolutórios, sejam eles derivados de (algumas) razões processuais ou materiais. O que importa é que tenha recaído sobre a atuação do arguido uma valoração dos factos e da prova.

Conforme bem acentua o Ac. da Rel. de Lisboa de 28-11-2018, Relatora: Maria Perquilhas, in www.dgsi.pt “Se é um facto que a protecção do ne bis se inicia com a acusação, a proibição do in idem só se concretiza com a realização material do julgamento com transito em julgado. Ou seja, com o conhecimento dos factos, com valoração das respectivas provas, imputados ao arguido de forma definitiva. Na verdade, só neste momento fica exaurido o poder sancionatório do Estado relativamente ao arguido pela prática daqueles factos”.

No caso concreto, não existiu qualquer julgamento material realizado relativamente à pessoa do arguido recorrente no despacho judicial que determinou a rejeição da acusação por não conter o elemento referente à condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança à segurança social.

O que o ne bis in idem visa proteger é a potenciação de oportunidades de condenação e de esgotamento das capacidades de defesa do arguido, exigindo que se realize um juízo. Não sendo relevante, para este efeito, um qualquer juízo que seja realizado ao longo do processo.

O julgamento para este efeito implica, assim, o conhecimento dos factos através da valoração das provas e este não foi realizado relativamente ao arguido.

Traduzindo orientação largamente maioritária dos nossos Tribunais Superiores, com similitude com o caso em apreço, o Ac. da Rel. de Évora de 24-11-2020, Relator: Sérgio Corvacho in www.dgsi.pt refere que “É compatível com o princípio «ne bis in idem» a dedução de nova acusação depois da prolação de despacho de não pronúncia, motivado por deficiências formais da peça acusatória (falta de alegação de determinados factos), não sendo, nesta conformidade, ofendido o princípio constitucional do nº 5 do art. 29º da CRP”.

Face a todo o exposto, impõe-se concluir que não tendo o arguido sido submetido a julgamento material não se verifica qualquer violação do direito ne bis in idem, nem tão pouco do caso julgado, improcedendo o recurso interposto.

(…).

Pelo que somos de parecer que os recursos interpostos pelo arguido devem ser julgados improcedentes, confirmando-se a sentença recorrida.


*

7. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, tenho o arguido apresentado a seguinte resposta:

“(…) notificado nos termos e para os efeitos do art. 417º nº 2 do CPP, vem, em breve resposta, dizer o seguinte sobre o douto parecer do MP:

1. Quanto ao segmento A, como decorre do processo, a acusação pública que faz fls relativa ao Proc. 212/18.0T9PMS foi recebida pela juíza de julgamento pelos factos nelas descritos, com a qualificação jurídico-penal aí referida e foi designada data para a realização da audiência de julgamento, cfr despacho de fls.

2. Como decorre igualmente do processo, a fls foi proferido despacho que deu por extinto o procedimento criminal contra o arguido e foi ordenado o arquivamento do processo.

3. Como também decorre à saciedade dos autos, este despacho transitou em julgado.

4. Perante esta situação, de se poder reformular a acusação, como aconteceu in casu, configura-se manifestamente violar do princípio do acusatório e das mais elementares garantias da defesa. A correcção ou reformulação daquela peça processual, através da apresentação de uma nova peça, configura, em si mesmo, uma injustificada, desmedida, e intolerável compressão dos direitos fundamentais em ofensa ao estatuído no art. 18º nº 2 e 3 da CRP, a que acresce o facto de in casu ter sido proferido um despacho transitado em julgado a dar por extinto o procedimento criminal contra o arguido e a ordenar arquivamento do processo.

5. A possibilidade de após a apresentação de uma acusação pública que veio a ter o desfecho conhecido – extinção do procedimento criminal e arquivamento do processo – se poder repetir e ou reformular, de novo, um tal requerimento/acusação pública, configura-se violar das garantias de defesa do arguido. Não se configura como aceitável a possibilidade de se reformular ou corrigir uma acusação improcedente, com o consequente prosseguimento do processo. De facto, tal possibilidade de modo algum se harmoniza com o espírito do sistema processual penal, assente nalguma forma de protecção das expectativas do arguido em face de uma acusação determinada e não sujeita a correcções ou reformulações, cfr AC TRP 581/10.0GDSTS.P1.

(…).

Termos em pugnamos pela procedência do recurso.


*

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO


1. Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).

Assim,

A - 1º Recurso intercalar

Atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são as seguintes:

- Da inadmissibilidade da sujeição do arguido julgamento após rejeição de acusação pública;

(…).

B - 2º Recurso intercalar

(…).

C - As questões a decidir no recurso principal:

 (…).


*

Para a resolução das questões suscitadas, importa ter presente o que de relevante consta da sentença objecto do recurso principal. Assim:

FACTOS PROVADOS

1. A arguida L, S.A., Em Liquidação tem o número de pessoa coletiva (…), encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial da (…) sob o mesmo número, e tem o capital social de € 6.700.000,00 (seis milhões e setecentos mil euros), tendo sido registada em 26.02.1992.

2. A arguida L., S.A., Em Liquidação tem como objeto social o comércio, importação e exportação de máquinas e veículos novos e usados, aluguer de máquinas industriais, prestação de serviços de cobrança e atividades afins e consultoria financeira, tendo a sua sede social registada em Casal da (…), (…).

3. O arguido C., desde a data da constituição da Sociedade Arguida, assume as funções de gerente, de facto e de direito da mesma, sendo sócio da Sociedade Arguida desde a sua constituição, e atualmente, em face da sociedade arguida ter sido transformada e sociedade anónima, foi sempre o arguido C. quem ficou à frente dos destinos da mesma, sendo nomeado como presidente do conselho de administração da Sociedade, sendo quem sempre dirigiu e dirige as atividades da Arguida, nomeadamente, contratação de pessoal, direção de funcionários, representação da arguida sociedade perante terceiros, fornecedores e funcionários, pagamento de salários, entrega de recibos, retenção e entrega dos montantes retidos ao Instituto de Segurança Social, gerindo e controlando de facto a Sociedade.

4. A Sociedade Arguida vincula-se com a intervenção de um administrador, o arguido C..

5. Por sentença proferida em 27.11.2017 foi a Sociedade Arguida declarada insolvente, encontrando-se em liquidação.

6. A Sociedade Arguida, no âmbito da sua atividade, empregou trabalhadores que prestavam serviço sob as suas ordens e direção, por intermédio do arguido C., no estabelecimento localizado naquela sua sede, e a quem eram pagas mensalmente as correspondentes remunerações, depois de descontada e retida a percentagem relativa às contribuições de tais trabalhadores para a Segurança Social.

7. A Sociedade Arguida e o arguido C. sabiam que aquela estava obrigada no final de cada mês de prestação de trabalho efetivo, a liquidar o montante das contribuições mensais devidas pelos seus trabalhadores e gerentes às Instituições de Segurança Social, o que fizeram, assumindo-se a Primeira como mero substituto tributário e funcionando como um depositário das importâncias pagas pelos colaboradores, que lhes foram por essa retidas ou descontadas, com a obrigação de entregar tais nos cofres das Instituições de Segurança Social nos prazos regulados por lei, tendo o arguido C. perfeito conhecimento dessas essas obrigações contributivas e, consequentemente, que impedia sobre eles proceder a essas entregas e saber se eram ou não realizadas, e nos prazos legais.

8. O Arguido, entre os meses de Dezembro de 2015 a Julho de 2017, na qualidade de representante da Sociedade Arguida, e em seu nome, procedeu ao desconto mensal prévio nas remunerações salariais pagas aos seus trabalhadores e membros de órgãos sociais, do valor das cotizações devidas à Segurança Social melhor discriminadas no quadro constante do artigo 16.º da Acusação Pública, que aqui se dá por integralmente reproduzido, totalizando o montante de €48.865,07 (quarenta e oito mil oitocentos e sessenta e cinco euros e sete cêntimos).

9. Mas, em obediência a uma decisão tomada em momento anterior pelo Arguido, na qualidade de Administrador da Sociedade Arguida, nem a Arguida por intermédio de outrem, nem o Arguido procederam à entrega ao Instituto de Segurança Social daqueles valores liquidados, os quais foram efetivamente cobrados e descontado nos salários dos seus trabalhadores e membros de órgãos sociais, no prazo legalmente estipulado, nem nos noventa dias volvidos sobre essa data, nem, ainda, quando foram notificados pelo Instituto de Segurança Social para, em 30 dias, procederem ao pagamento dos montantes em falta, acrescida dos valores dos juros respetivos e da coima aplicável, nem até à presente data.

10. O Arguido, enquanto administrador da Sociedade, com poderes de facto e de direito sobre a sua administração, e a Arguida, sabiam que estavam obrigados em nome desta a liquidar os montantes das contribuições mensais devidas pelos seus trabalhadores e membros de órgãos sociais às Instituições de Segurança Social, e conscientemente não o fizeram, bem como sabiam que os referidos montantes pertenciam ao Instituto de Segurança Social.

11. Não obstante, o arguido C., na qualidade de administrador da Sociedade, atuando em representação da Sociedade Arguida e no interesse desta e no seu próprio interesse, decidiu não entregar esses montantes.

12. O arguido C. e, através deste, a Sociedade Arguida, após não terem entregue pela primeira vez os montantes destinados ao Instituto de Segurança Social e que haviam deduzido nas referidas remunerações, praticaram o mesmo tipo de conduta ao longo dos meses seguintes, atuando de forma essencialmente homogénea, renovando a resolução criminosa sempre que a ocasião se proporcionou, aproveitando sempre a oportunidade favorável à prática dos ilícitos descritos, nomeadamente, o facto de após a prática dos primeiros factos, a Arguida nunca ter sido alvo de qualquer fiscalização ou penalização, e por terem verificado que persistia a possibilidade de repetirem as suas condutas, sempre convencendo-se de que as suas atuações estavam a ser bem-sucedidas, o que motivou a reiteração da prática descrita, de forma homogénea, ao longo do período de tempo referido, entre os meses de dezembro de 2015 a julho de 2017.

13. Os Arguidos agiram de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

(…).


*

 - Motivação da decisão de facto

(…).


*

III - Decidindo:

III-1 - 1º RECURSO INTERLOCUTORIO

Os despachos recorridos (transcrição)
1.2 - 1º despacho - Fls. 354:

“A questão que estava subjacente, aquando este Tribunal recebeu a Acusação proferida nestes autos, e uma vez que foi este mesmo Tribunal que proferiu a decisão que pôs termo aos autos nº 212/18.0T9PMS dos quais foi extraída certidão que constitui o grosso deste processo, e se de facto este Tribunal recebeu a Acusação e, então, não suscitou a questão, nem conheceu dela é porque entendia nos termos que agora vai explicar:

Em primeiro lugar, a decisão proferida nos autos 212/18.0T9PMS foi e passo portanto a lê-la: “…não tendo sido de todo alegado, que os Arguidos, notificados para pagamento voluntário nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º4, alínea b) do R.G.I.T., não pagaram as quotizações em dívida, o que se reconduz à ausência de descrição de uma condição objetiva de punibilidade, e não havendo lugar, em sede de audiência de discussão e julgamento que se pudesse vir a realizar, à aplicação do disposto no artigo 358.º, nem o artigo 359.º do C.P.P., impõe-se a este Tribunal rejeitar, porque manifestamente infundada nos termos da alínea a) do n.º2 e alínea b) do n.º3 do citado artigo 311.º do Código de Processo Penal, a Acusação Pública deduzida pelo Ministério Público contra o arguido C. e a arguida L., S.A. – Em Liquidação, extinguindo-se, por conseguinte, o presente procedimento criminal, donde mais devém sem efeito a audiência de discussão e julgamento agendada para o próximo dia 01 de Outubro de 2019…”

Conforme bem anotou a Digna Magistrada do Ministério Público em promoção que antecede, o que sucedeu nos autos nº 212/18.0T9PMS, não foi um conhecimento de mérito da causa, um conhecimento da factualidade, a realização da audiência de discussão e julgamento e, por fim, a prolação de uma sentença.

Aqueles autos chegaram ao seu termo com um despacho que assumiu o caráter de decisão final do processo – que podia ter sido alvo de recurso, não foi e transitou em julgado –, pelo qual o Tribunal rejeitou a Acusação por ausência de factos que permitissem concluir que o que estava descrito era o crime, nomeadamente o crime de que os Arguidos vinham acusados; e, com tal, não se pode entender que se tenham formado um qualquer caso julgado material, porque se acredita que é nesta base que o Senhor Advogado hoje levanta esta questão, é a formação de uma espécie de caso julgado material e que estaríamos hoje a violar o princípio do ne bis in idem. A propósito, e apenas a título de exemplo, das considerações tecidas pelo Tribunal da Relação de Évora no Acórdão proferido em 2018, nomeadamente em 10 de Abril, no processo nº 155/09.6GBABF.E1 porque se adequam perfeitamente à situação: «O despacho que rejeita a acusação por manifesto improcedência somente em casos julgados formal na medida que não conhece o mérito da causa e apenas tem força obrigatória no processo e nos precisos termos em que foi elaborado, não há um caso julgado material, daqui decorre naturalmente que nada obsta a reformulação da acusação desde que o seu conteúdo material seja alterado com inclusão de factos pertinentes que conduziram à sua rejeição.

Esta formulação da acusação não constitui nem violação de caso julgado formal ou material nem violação do princípio do “Ne bis in idem”. Não é admissível considerar que uma decisão que rejeitou uma acusação logo não permitiu sequer que o processo chegasse à fase de julgamento, neste caso à audiência de discussão e julgamento, corresponde a julgamento por um crime a demérito interpretativo que a clareza do artigo 29º, nº 5 da Constituição da Republica Portuguesa não permitiria. Resta saber então o que fazer ao processo. Questão onde se surpreendem duas posições jurisprudenciais. A primeira há quem defenda que só se pode …ser caso julgado formal e que não ocorre a violação do princípio “Ne bis in idem” nunca existente e consequentemente o processo não deve ser arquivado e deve ser devolvido ao Ministério Publico para os fins tidos por convenientes. Uma segunda posição implica portanto que deve haver então um arquivamento dos autos (…)».

Ora, este Tribunal optou por arquivar aqueles autos e isto aqui não traz grande prejuízo para a questão que agora que se conhece. Mas, para que se perceba, há quem entenda que poderia devolver o processo ao Ministério Público que reformularia a acusação. Este Tribunal assumiu esta posição naquele processo, e o que o Ministério Público fez de seguida foi pedir uma certidão com base na qual com toda a prova que já tinha sido produzida deu uma nova Acusação toda ela narrando a factualidade pertinente. A única questão que Tribunal tinha de acautelar, e que acautelou, era verificar se, no entretanto, entre a ter sido arquivado este processo e ter proferida outra Acusação, teria havido prescrição do procedimento criminal e o Tribunal concluiu que não houve e por isso não há qualquer obstáculo a que se realize esta audiência de discussão e julgamento, que se conheça o mérito dos factos que venham alegados na acusação e, portanto, indefiro o requerido pelo Arguido. Notifique.”

Vejamos:

É certo que a anterior acusação não foi rejeitada aquando do saneamento do processo, pois a decisão proferida nos autos 212/18.0T9PMS é posterior à prolacção do despacho a designar data para julgamento. Certo é também que se o julgamento tivesse sido realizado a consequência da falta de notificação para pagamento voluntário nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do R.G.I.T., teria sido a absolvição.

Contudo, não houve reacção do arguido ao referido despacho de rejeição da acusação prolatado no referido processo 212/18.0T9PMS, pelo que tal decisão transitou em julgado.

Posto isto, importa tão só decidir se o julgamento dos factos constantes da nova acusação que o Ministério Público deduziu, agora com a nota do cumprimento da mencionada notificação, constitui violação de caso julgado e do princípio ne bis in idem.

Embora sem consagração expressa na lei processual penal, o instituto do caso julgado aplica-se ao processo penal, por força do princípio constitucional “ne bis in idem”, plasmado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

Em consequência de tal princípio constitucional, é interdito submeter os cidadãos a mais do que um processo, pela prática dos mesmos factos.

“À verificação da existência de caso julgado e, consequentemente, de violação do princípio ne bis in idem, a expressão “mesmo crime” não deve ser interpretada, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor, como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime.

Nos referidos termos, o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal, ou, dito de outro modo, todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados.” - nosso acordão de 09-03-2016.

No mesmo sentido acórdão da Relação de Coimbra de 09.06.2003: o «comportamento referenciado no «facto» como expressão da conduta penalmente punível é o acontecimento da vida que, enquanto dotado de unidade de sentido se submete à apreciação do tribunal.»

Note-se que a proibição de dupla perseguição penal do indivíduo abrange - para além do julgamento -, qualquer outro acto processual como o arquivamento do inquérito, a decisão de não pronúncia ou a declaração de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, prescrição do procedimento criminal ou desistência da queixa, desde que incluam uma assunção valorativa por parte do Estado, sobre determinado facto penal.

Por outro lado, importa ter presente que o efeito preclusivo do caso julgado diz respeito não apenas àquilo que foi efectivamente conhecido, mas também àquilo que podia ter sido apreciado no processo anterior e não foi. Em conformidade, todo o comportamento espácio-temporalmente determinado, traduzido num facto naturalístico concreto ou “pedaço de vida” de um indivíduo, que tenha sido já objecto de uma decisão, independentemente do “nomem iuris” que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, num determinado processo, fica abrangido pelo efeito de “caso julgado” ou, na ausência de julgamento propriamente dito, de “caso decidido”.

Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.”

Na verdade, convém atentar que “… o caso julgado tem uma função de garantia do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto - Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 1992, pág. 226. Ou, como assinala Eduardo Correia, «verdadeiramente, pois, o fundamento central do caso julgado radica numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões condenatórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto».

Assim, aquilo que devendo tê-lo sido, não se decidiu directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.”

A extensão do caso julgado obedece ao princípio de evitar a renovação de processos relativamente a factos que já poderiam ter sido apreciados judicialmente.

Do mesmo modo, como defende Maia Costa:

     «[O] despacho de arquivamento proferido nos termos do nº 1 que não seja impugnado pelas formas indicadas, (objecto de requerimento de abertura de instrução, intervenção hierárquica ou reabertura, nos termos previstos nos artigos 277.º a 279.º e 286.º e ss., do Código de Processo Penal) ou que seja confirmado, “consolida-se” na ordem jurídica, não podendo em caso algum ser “reaberto”».

     (…)

     «[T]rata-se não propriamente de “caso julgado”, que se reporta exclusivamente a decisões de natureza jurisdicional (…) mas de um instituto paralelo, o “caso decidido”, que igualmente se manifesta no art. 282º, nº3, e que visa, afinal, salvaguardar o princípio constitucional “non bis in idem” (art. 29º, nº 5, da Constituição)». - cfr neste sentido acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23.02.2016. Note-se que o dito “caso decidido” operou uma apreciação jurídica dos concretos factos que originaram os processos de inquérito.

Revertendo aos autos, cumpre desde logo assinalar que não há caso julgado material porque a decisão tomada no processo 212/18.0T9PMS não conheceu do mérito da causa, já que apenas afirmou que a acusação não tinha condições para ser aceite em fase de julgamento, pois omitia a descrição de uma condição objectiva de punibilidade, o que não permitia conhecer da existência de um crime.

Não houve decisão sobre o mérito da causa e só o caso julgado que a pressupõe – caso julgado material – teria força dentro do processo e fora dele.

“Se é certo que o caso julgado material em processo penal impede a prolação de nova decisão que seja idêntica quanto à identidade do arguido e quanto ao objecto do processo, não é menos verdade que na presente situação a identidade apenas existe em relação ao arguido, uma vez que, no que concerne ao objecto do processo, varia entre factos que não constituem crime – os da primeira acusação deduzida – e factos que podem constituir crime, constantes da acusação reformulada …”- Ac Rel Coimbra de 13 de Janeiro de 2021.

Daqui decorre, como consequência natural, que a reformulação da acusação não constitui, nem violação de caso julgado – formal ou material –, nem violação do princípio ne bis in idem.

No mesmo sentido, Ac Rel Évora de 10-04-2018, relator Des Gomes de Sousa “O despacho que rejeita a acusação por manifesta improcedência somente forma caso julgado formal (artigo 620º, n. 1 do C.P.C.), na medida em que não conhece do mérito da causa e apenas tem força obrigatória no processo e nos precisos termos em que foi lavrado. Isto é, não existe caso julgado material.

Em tais situações, o despacho de rejeição da acusação manifestamente infundada que, como já foi dito, não procede à apreciação do mérito da causa, apenas faz caso julgado formal (cfr Ac STJ de 24-05-2006) e não tem efeito extintivo do procedimento criminal.

Concluindo, a reformulação do despacho acusatório efectuada na presente situação não constitui violação de caso julgado material, nem do princípio ne bis in idem, nada obstando à realização do julgamento.

Não ocorre pois violação do art 18º da CRP.

Termos em que improcede este recurso interlocutório.

1.3 - 2º despacho - Fls. 358:

(…).


*

III-2 - 2º RECURSO INTERLOCUTORIO

(…).

*

2.2 - 2º despacho recorrido - fls 366

(…).

III-3 RECURSO DA SENTENÇA

(…).

IV DISPOSITIVO

Termos em que acordam os Juízes na 5.ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento aos recursos interlocutórios e ao recurso principal, e em consequência manter a sentença recorrida na íntegra.

Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 5 (cinco) UC.


*

Coimbra, 13 de Outubro de 2021

Texto processado e integralmente revisto pela relatora

Isabel Valongo (relatora)

Jorge França (adjunto)