Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
81/09.1GCLSA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Data do Acordão: 04/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: 152º,Nº1 E 2DO CPP E 311º,Nº1,2 A) E 3 AL C) D CPP
Sumário: 1. Estando identificada a norma que tipifica o crime imputado e resultando claro da economia da acusação a inserção da conduta numa das suas alíneas, a rejeição da acusação por manifestamente infundada, carece de fundamento.
Decisão Texto Integral: 8

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra
O MºPº recorre do despacho proferido a fls. 71 do processo, certificado a fls. 3 do presente recurso, em que o Mº Juiz, com fundamento no disposto no art. 311º, n.º1, 2, al. a) e 3, c) do CPP, decidiu “rejeitar a acusação deduzida pelo MºPº, por falta de norma incriminadora completa”.
*
Na motivação são formuladas as seguintes CONCLUSÕES:
1- O art. 3llº, nº3, do C.P.P. define legalmente o conceito de “acusação manifestamente improcedente” para efeitos de rejeição da acusação no despacho de saneamento do processo logo que distribuídos e recebidos os autos no tribunal.
2- As situações nele (nº3) enunciadas são taxativas e correspondem todas a falhas processuais evidentes que manifestamente inviabilizam a procedência da acusação, atalhando-as a montante.
3 - A alínea e) desse normativo contempla expressamente a rejeição da acusação, considerando-a manifestamente infundada, quando nesta, além do mais, se não indiquem as disposições legais aplicáveis.
4 - Cremos que nela caberão todos os casos de omissão completa da indicação do tipo incriminador mas também, eventualmente, os casos de omissão parcial nessa indicação desde que essa omissão afecte de forma manifesta improcedência da acusação
5 - De todo o modo, in casu é inarredavel que o Ministério Publico indicou o tipo incriminador, apenas tendo omitido qual a concreta alínea do nº1 do art.152º do Código Penal que correspondia ao caso, muito embora tenha feito constar expressamente no texto da acusação o facto (arguido é casado com ...) que, desassombradamente, aponta para a integração da alínea a) desse nº1.
6 - Estamos, portanto, de facto e de forma inequívoca, perante um caso de uma omissão, parcial, na indicação da disposição legal aplicável, por lapso manifesto do Ministério Publico, que o Senhor Juiz poderia e deveria ter suprido,
7 - pois que não só não afecta deforma manifesta a procedência da acusação,
8 - como a sua supressão, nem sequer comporta uma alteração substancial dos factos descritos na acusação na medida em que, obviamente, não equivale a uma imputação ao arguido de um crime diverso nem a qualquer agravação do limite máximo da sanção aplicável (art. lº, al.f), do C.P.P.),
9 - e tão pouco corresponde a uma verdadeira alteração da qualificação jurídica constante da acusação (caso em que, ainda assim e desde que se esteja perante um erro provável da qualificação jurídica constante da acusação, reputados autores defendem a possibilidade de o juiz poder alterar tal qualificação desde que não importe uma alteração substancial dos factos).
10 - Trata-se, antes e tão só, de uma completação da qualificação jurídica constante na acusação do Ministério Púbico, consistente na reparação de um lapso manifesto nessa indicação que em nada afecta os direitos fundamentais do arguido, maxime o direito ao contraditório, nem tão pouco a procedência da acusação.
11 - O Meritíssimo Juízo ao decidir pela rejeição da acusação por manifestamente infundada, em virtude de na acusação deduzida pelo Ministério Publico este ter omitido qual a alínea do nº1 do art.3llº do G.P.P. que correspondia ao caso concreto, violou o disposto nos arts. 311º e 312º do C.P.P,
12 - devendo a decisão de que se recorre ser revogada e substituída por outra que receba a acusação e designe dia para julgamento do arguido Ricardo Luís Fernando Jacinto.
*
Não foi apresentada resposta.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex. Mo Procurador-Geral Adjunto manifesta a sua concordância com a fundamentação do recurso, emitindo parecer no sentido da sua procedência. Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
**

II.

O despacho recorrido é do seguinte teor:
“Da acusação constante dos autos apenas consta como norma incriminadora apenas o artigo 152º, n.º2 por referência ao n.º1 do CP.
Todavia, como resulta da leitura do n.º1 o mesmo é composto por várias alienas, não podendo o tribunal nesta fase suprir a falta.
Nestes termos, por falta de norma incriminadora completa, rejeito a acusação deduzida, remetendo os autos ao MºPº (art. 311º, n.º1, 2, al. a) e 3, c) do CPP).”

Sobre os elementos da acusação, estabelece o art.º 283º nº3 do Código de Processo Penal: A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) c) A indicação das disposições legais aplicáveis;

Por sua vez, sobre o recebimento da acusação em juízo, postula o artigo 311º do mesmo diploma:
1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 – Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
De rejeitar à acusação, se a considerar manifestamente infundada;
De não aceitar a aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do nº1 do artigo 284º e do nº4 do artigo 285º, respectivamente.
3 – Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
Quando não contenha a identificação do arguido;
Quando não contenha a narração dos factos;
Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
Se os factos não constituírem crime.

Na vigência da redacção originária do art. 311º do CPP suscitaram-se dúvidas sobre os poderes do juiz de julgamento, no despacho inicial, quando recebe o processo sem que tenha sido requerida a instrução – caso em que o J.I.C. goza de amplos poderes da apreciação dos indícios do crime acusado, mas não pode, por outro lado, intervir na fase de julgamento.
Quer porque a lei não apresentava qualquer esboço de definição do conceito de manifesta improcedência.
Quer porque na definição dos poderes de sindicância da acusação, pelo juiz de julgamento, na fase liminar, confluem princípios estruturantes do processo designadamente o da estrutura acusatória, de onde decorre a clara separação entre acusação e julgamento, entre a função de acusar e a de julgar, com incidência constitucional.
Com efeito é sabido que o nosso sistema penal consagra uma estrutura acusatória do processo, ou seja, o juiz tem de ser imparcial relativamente às posições assumidas pela acusação e pela defesa e, por isso, não pode nunca assumir a veste de acusador, ainda que indirectamente, provocando a acusação pelo Mº Pº ou definindo-lhe os termos – cfr. Germano M. Silva, Curso de Processo Penal, I, 58.
Assim, perante as dúvidas e questões de constitucionalidade do preceito que se vinham suscitando (cfr., em síntese, Maia Gonçalves, CPP Anotado, 16ª ed. em anotação ao citado art. 311º) na revisão operada pela Lei 59/98 de 25.08, o legislador tenha sentido a necessidade de aditar ao preceito o actual n.º 3, com a redacção supra reproduzida, que contém, precisamente, a definição do que o legislador considera manifesta improcedência, para efeito de rejeição da acusação.
Os casos de rejeição por manifesta improcedência são, pois, agora definidos taxativamente pelo n.º 3 do art. 311º.
As referidas previsões do n.º 3 do art. 311 têm correspondência nas alíneas do também reproduzido nº 3 do artigo 283º, que definem as nulidades da acusação.
Existindo uma íntima conexão entre os dois preceitos – nulidade da acusação de um lado, consequente rejeição do outro.
O art. 283º nº3 prevê, de forma genérica, as nulidades da acusação - as quais, na falta de preceito que as regule especificamente, deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.
Já o art. 311º nº3 prevê apenas os casos extremos (a rejeição liminar apenas se justifica em casos limite insusceptíveis de correcção sem prejudicar o direito de defesa fundamental), que, por isso o legislador de 1995 sentiu necessidade de definir, como de ameaça extrema aos princípios processuais penais com assento constitucional.
Configurando-a como um tipo de nulidade sui generis, extrema, insuperável ou insanável, ainda que susceptível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de permitir ao juiz de julgamento a intromissão na acusação, de forma a evitar um julgamento sem objecto fáctico e probatório [al. b) e segunda parte da al. c) - provas], sem acusado [al. a)], sem incriminação [al c)], ou sem objecto legal [al. d)].
Já o regime de qualquer outro vício da acusação (previsto no art. 283º ou eventualmente em outras disposições legais) terá que ser procurado, fora da previsão do n.º2, al. a) do art. 311º, por não coberto nem pela letra nem pelo espírito do referido preceito na perspectiva de inserção no direito de defesa e na estrutura acusatória do processo.
De facto, a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria uma gravíssima violação dos direitos de defesa do acusado, tornando inviável o exercício dos direitos consagrados no artigo 32º da Lei Fundamental.
Assim, o nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, ainda que o legislador não o diga de forma expressa, veio a consagrar um específico regime de nulidades da acusação que, face à gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na Constituição da República Portuguesa, são insuperáveis/insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.
Daí que a rejeição liminar apenas possa ter lugar naquelas situações típicas extremas e não relativamente a outros vícios de menor densidade.
No caso em apreço, como se viu, o tribunal recorrido não fundamenta a rejeição na total falta ou omissão de identificação da norma tipificadora da conduta descrita na acusação. Mas apenas por identificar nenhuma das várias alíneas do n.º 1 do art. 152º do CP.
O próprio despacho recorrido refere que a acusação identifica “(…) o artigo 152º, n.º2 por referência ao n.º1 do CP”.
Deixando claro que o crime imputado é punido pelo art. 152º, n.º2 do CP – com pena de prisão de seis meses a 5 anos – por referência ao n.º1 do mesmo artigo.
Por sua vez o n.º1 do preceito, expressamente invocado na acusação, define, no seu corpo, o recorte típico da conduta: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Ou seja, a acusação identifica a norma que define os elementos típicos da conduta imputada ao arguido e a pena, apenas faltando indicar uma das alíneas subordinadas ao descrito corpo do receito.
Essas alíneas, subordinadas ao descrito corpo do receito dizem: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) Pessoa com quem mantenha relação análoga à dos cônjuges; c) progenitor; d) pessoa particularmente indefesa.
Face à identificada norma que tipifica o crime de maus-tratos, permitindo ao arguido identificá-lo perfeitamente, tanto mais que a inserção numa das alienas decorre como evidente e unívoca face à descrição da matéria de facto efectuada na acusação, definido o tipo de crime por referência aos dois n.ºs em que se tem por subsumida a conduta, a omissão da alínea, pela sua singeleza, constitui um mero lapso que resulta óbvio do contexto da acusação.
Sem a “densidade” ou muito aquém das causas de rejeição liminar elencadas no n.º3 do art. 311º, designadamente a (total) falta de indicação das “disposições legais aplicáveis”.
Pode dizer-se que a identificação das disposições legais que tipificam o crime não é perfeita, mas não, seguramente, que não existe – crime previsto no n.º2 do art. 152º do Código Penal, com referência ao n.º1.
Acresce que a acusação constitui uma peça unitária, havendo que integrar o direito de defesa, bem como o âmbito da vinculação temática dos poderes do tribunal de julgamento que define, numa visão unitária e integrada de todo o seu conteúdo.
Sendo certo que na descrição dos factos resulta perfeitamente claro o suporte material da inscrição numa das várias alíneas do citado preceito - o casamento.
Referindo claramente a acusação, logo no seu início, que “o arguido é casado com” a ofendida.
Pelo que estando identifica a norma que tipifica o crime imputado e resultando claro da economia da acusação a inserção da conduta numa das suas alíneas, a rejeição liminar carece de fundamento.
**
III.
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e determinando a sua substituição por outro que dê seguimento aos termos do processo com especificação da alínea do preceito indicado na acusação. -----
Sem custas.