Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
111/19.9PFCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DO ÁLCOOL
DETECÇÃO
ACTUALIDADE DA CONDUÇÃO
Data do Acordão: 05/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ART.º 152.º DO CE
Sumário: I – Assume a qualidade de condutor, relevante para a integração no conceito do artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada, e o preenchimento do tipo de crime de desobediência, previsto no n.º 3, sendo a sua condução actual, o cidadão que, conduzindo veículo na via pública, é mandado parar pela autoridade; o cidadão que, na mesma situação, não pára, sendo perseguido e interceptado; e o cidadão que foi interveniente em acidente de viação e ainda no local é fiscalizado pela autoridade.

II – Para além das hipóteses de condução actual assim elencadas, é também de considerar que o conceito se estende igualmente àquelas “situações em que as concretas circunstâncias tornam evidente e inequívoca a relação entre o agente e o facto, entre o cidadão fiscalizado e a condução, no fundo, num conceito próximo do da presunção de flagrante delito [na modalidade de ser o agente encontrado com objectos ou sinais que mostrem inequivocamente que o cometeu – artigo 256.º, n.º 2 do CPP]”.

III – No elenco de matéria que obrigatoriamente deve constar da sentença, o tribunal a quo não tomou posição sobre se a fiscalização pelos agentes da PSP se deu na hora indicada no n.º 1 da acusação pública, ou então que tempo mediou entre a chegada ao local/estacionamento, nos termos descritos no n.º 1 da sentença recorrida, e a intervenção dos elementos policiais, narrada no n.º 2, nem aduziu qualquer outra circunstância que, dentro dos limites do objecto do processo, servisse àquele propósito de ilustrar factualmente que sequência existiu entre um e o outro acto. O acto de abordagem dos agentes da PSP, relatado no n.º 2, por si só, não situado no tempo e desacompanhado de elementos circunstanciais que sequencialmente o relacionem com o que ficou assente no n.º 1, tanto pode significar que ocorreu em momento próximo, sem soluções de continuidade, como pode representar um evento distante que retira, assim, actualidade à condução realizada até ao estacionamento e, portanto, não assume a relevância típica suposta pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada.

Decisão Texto Integral:                         
Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório 

No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo Local Criminal de Coimbra - Juiz 3, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo especial sumário, do arguido FF, com os demais sinais dos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 152.º, n.os 1, alínea a), e 3 do Código da Estrada, 348.º, n.º 1, alínea a), e 69.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal.

Realizado o julgamento, o tribunal a quo proferiu sentença oral da qual ficou a constar em acta o dispositivo em que decidiu:

1. Condenar o arguido FF pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, al. a) e nº 3 do Código da Estrada e artigos 348º nº 1, al. a) e 69º nº 1 al. c) ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) meses de prisão, substituída na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de €10 (dez euros), o que perfaz o montante total de €600 (seiscentos euros). Vai ainda o arguido advertido de que se não pagar a multa, irá cumprir a pena de 2 meses de prisão.

2. Condenar o arguido FF na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, previsto pelo artigo 69º, nº 1, al. c) do Código Penal, pelo período de 6 (seis) meses”.


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Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido que, no termo da motivação, apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

(…)


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Admitido o recurso, a Digna Magistrada do Ministério Público apresentou resposta (…)

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Cumpre agora decidir.

(…)

III – Fundamentação 

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do CPP que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar[1], sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[2].

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, são as seguintes as questões a decidir:

(…)

A Relação irá ainda analisar oficiosamente a seguinte questão:

- Nulidade da sentença por falta de fundamentação quanto à decisão sobre a matéria de facto, no que concerne à indicação dos factos provados e não provados.


*

2. A sentença recorrida.

2.1. Na sentença proferida oralmente pela 1.ª instância, foram dados como provados os seguintes factos (tal como resulta da audição do registo gravado da audiência de julgamento, sendo a numeração nossa):

1.- No dia 30-08-2019, cerca das 5 horas da manhã, o arguido conduziu o veículo de matrícula (…), na Avenida (…), em Coimbra, tendo então estacionado o seu veículo inteiramente em cima do passeio, junto ao bar denominado “…”.

2.- O arguido preparava-se para iniciar a condução do seu veículo, quando foi surpreendido por agentes da PSP.

3.- Denotava sinais de embriaguez e os elementos da PSP pretendiam efectuar-lhe o teste de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado.

4.- Como assim, foi-lhe solicitado por diversas vezes que efectuasse o referido teste, tendo o arguido sido advertido pelo policia autuante e que a sua recusa o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.

5.- Porém, apesar de ter ingerido bebidas alcoólicas antes e até mesmo depois da condução do veículo automóvel de matrícula (…) e pretender iniciar a condução do mesmo, sabendo que por isso estava obrigado por lei a submeter-se ao teste, cuja realização lhe tinha sido ordenada por entidade competente e no exercício das suas funções, o arguido persistiu na sua conduta, recusando-se a ser submetido a qualquer prova para detecção de presença de álcool no sangue.

6.- Agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente da proibição e punição criminal da conduta.

(…)


*

2.2. Na sentença, a 1.ª instância fundamentou a convicção formada quanto à matéria de facto do seguinte modo (tal como resulta da audição do registo gravado da audiência de julgamento):

“Na sua motivação, o tribunal gizou-se no confronto e no conjunto dos elementos de prova produzidos e confrontados em audiência, à luz do princípio da livre valoração da prova, ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal, tendo ainda presentes as regras da lógica, do normal acontecer e da experiência. E sendo certo que o arguido referiu que, efectivamente, tinha estacionado o seu veículo carrinha Audi em cima do passeio, junto ao bar “….”, onde, cerca das 5 da madrugada, se dirigiu, na data dos factos. Referiu ainda que teria sido naquele bar que tinha ingerido bebidas alcoólicas, pelo que quando fora abordado pelos agentes da autoridade, entendera que a ordem para fazer o teste de alcoolemia era ilegítima e infundamentada. Mais admitiu e confessou ter tido para com eles uma postura jocosa, referindo-se e expressando-se em língua francesa, tudo isto apesar de, como referiu, ter sido, no passado, um elemento da polícia e, segundo o próprio, ter feito várias asneiras no passado, querendo com isto, ao que entendemos, referir alguma irreverência da sua postura, até perante a autoridade, circunstância essa que, referiu, estaria ultrapassada porquanto actualmente era pai de família, com quatro filhos menores a seu cargo. Alegou, portanto, ter estado cerca de duas horas no bar, a consumir bebidas alcoólicas e não haver motivo para ser abordado pela autoridade, no sentido de fazer o teste de alcoolemia.

Porém, estes factos foram desmentidos de forma credível, não só pelos agentes da autoridade como, sobretudo e muito especialmente, pela testemunha de defesa que o próprio arguido juntou. Efectivamente, a testemunha MF referiu que à hora que o arguido tinha entrado na “….” o bar já estava encerrado e que o arguido já vinha “bem aviado”, no sentido de que vinha com sinais exteriores óbvios de consumo de bebidas alcoólicas, que viu que o arguido tinha estacionado o carro à porta do bar, portanto, o arguido vinha a conduzir o veículo e vinha sob a influência de bebidas alcoólicas, em quantidades que naturalmente a testemunha e nós, em julgamento, não conseguimos apurar. Mais referiu que, passados minutos, o viu ou tinha visto mesmo entrar já de copo na mão, admitindo que o arguido também no bar pudesse ter consumido um gin ou uma cerveja. No entanto, esta testemunha referiu de forma bastante credível que não teria mediado mais de 20 minutos, nos máximos dos máximos, meia hora, entre a chegada do arguido e a chegada das autoridades. Não há dúvida nenhuma que esta testemunha se via estar a prestar um depoimento isento, era a pessoa a quem o arguido pretendia ir buscar para tomar pequeno-almoço e poderia ter sido também muito possivelmente por causa desta vontade de sair daquele local acompanhado por uma amiga, uma pessoa do sexo feminino, que o arguido também por isso procurou eximir-se à acção das autoridades. Ou não, enfim, os factos objectivos permanecem e a intencionalidade da conduta e a sua recusa após ter percebido que o faria incorrer em responsabilidade criminal, mantém-se.

O arguido quis, em nosso entender, fazer-se “desentendido”, dizendo ou pensando consigo próprio que o facto de, naquele minuto e segundo, não estar ao volante do seu veículo retirava às entidades policiais a legitimidade para lhe exigirem a realização do teste, o que efectivamente não é assim. Não é assim também porque as autoridades confirmaram, como para além de outra prova, que o carro estava a trabalhar, a música estava ligada, portanto, havia todos os indícios de que aquela condução não só tinha acabado de acontecer, como estava prestes a reiniciar-se, o arguido estava prestes a reiniciar a sua condução, e dúvidas não há também, pela forma como os senhores agentes da autoridade depuseram, que o arguido tinha hálito a álcool, tinha sinais exteriores de comportamento, de expressão verbal e corporal consentâneas com a ingestão de álcool e muito seguramente, como já havia referido a testemunha M, estes sinais eram compatíveis com uma ingestão prolongada do álcool durante algumas horas. Portanto, havia indícios vários que legitimavam as autoridades a supor que estavam perante um indivíduo que tinha acabado de conduzir sob alguma influência de álcool e que se preparava para novamente conduzir, ainda e sob uma porventura maior influência do álcool. No entanto, o arguido recusou, como o próprio confirmou em tribunal, fazer o referido teste, alegando de forma parcial, inverosímil e de forma contraditória com toda a prova que foi produzida, que tinha estado duas horas no bar a consumir bebidas alcoólicas, quando todos referem que efectivamente o bar estava fechado e não havia possibilidade de o arguido estar duas horas dentro do bar fechado, já com a música desligada, só com meia dúzia de pessoas, com o carro a trabalhar, cá fora, com a música ligada.

Esta percepção não é infirmada por qualquer outro elemento de prova. O facto de ter sido visto por uns, sentado em cima do capot, a mexer, com o carro a deslizar, não altera substancialmente esta percepção que o tribunal formou da globalidade dos factos. O arguido pode efectivamente ter estado em cima do capot e muito perto do capot, ter entrado para dentro do carro, para pôr a música mais alto, para pôr a música mais baixo, para tirar o maço de tabaco, ter feito um gesto no travão de mão e o carro ter descaído um pouco, como afirma uma das testemunhas, um dos agentes da autoridade, que vê o carro descair um pouco. Dúvidas não há que o arguido, efectivamente, tinha todos os sinais de ter ingerido bebidas alcoólicas, tinha todos os sinais e tinha conduzido o seu veículo automóvel e estacionado em pleno passeio, ocupando o passeio todo, de uma via de trânsito, passeio esse destinado evidentemente a apenas e só aos peões. O carro era uma carrinha Audi, de grandes dimensões, como foi aqui referido também pelos senhores agentes, estava a trabalhar, a música estava ligada, também por aqui se vê qual era o estado de alguma euforia do arguido, consentânea com o consumo de substâncias que podem influir na condução. E, portanto, os senhores agentes da autoridade fizeram o que tinham que fazer e o arguido devia efectivamente obediência à ordem que era absolutamente legítima.

Dúvidas não há que agiu de forma intencional, dolosa, directa, sabendo que estava a contrariar uma ordem policial e que incorria na prática de um crime de desobediência, circunstância que, de resto, já não era a primeira vez que fazia , sendo que não é despiciendo chamar à colação o despacho de 22 de Maio de 2015, proferido no âmbito do processo n.º (…), em que o arguido, mais uma vez conduzindo um veículo automóvel, terá sido alvo de uma operação de fiscalização, terá sido interceptado pelos elementos da PSP, negou ser o condutor do veículo, negou submeter-se à feitura do teste de alcoolemia, apesar de saber que o devia fazer, e depois acabou por aceitar a suspensão provisória do processo que lhe foi sugerida pelas autoridades judiciárias.

Para além disto e emprestando conforto a esta leitura dos factos e personalidade do arguido, está também, e finalmente, a condenação no âmbito de um processo comum colectivo, pela prática de um crime de insubordinação por desobediência e de incumprimento dos deveres de serviço, previsto e punido pelo Código Militar.

No mais, tivemos em consideração o depoimento do arguido e das demais testemunhas, no que diz respeito às suas condições pessoais. Pouco valorámos as declarações do pai do arguido, quando refere ter ido à polícia e ter ouvido alguém dizer que não, que o seu filho não estava a conduzir, porquanto o agente da autoridade que viu o pai do arguido na polícia também disse que não tinha apreciado o gesto, que o pai do arguido tinha ido vestido utilizando o seu uniforme de guarda prisional, parecendo com isto querer pressionar de algum modo os agentes da autoridade. E, no que concerne à troca de palavras tida entre os dois, fica a palavra de um e a palava do outro que pouco relevo tem nos demais contornos dos factos já supra referidos e supra apurados”.


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3. Apreciando.

 (…)


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3.4. As nulidades atinentes à fundamentação, invocadas no recurso, não merecem procedência, conforme atrás foi analisado em 3.1. e 3.3.

Acontece, todavia, que a fundamentação da sentença recorrida suscita uma outra nulidade que se impõe apreciar, desta feita a título oficioso.

Tal nulidade entronca na questão de direito que se revela essencial, e o próprio arguido também levanta no recurso, sobre se a ordem de sujeição a teste de pesquisa de álcool no sangue não foi legítima porque, quando lhe foi dada, não tinha a qualidade de condutor e, por conseguinte, a factualidade provada não integra a prática do crime de desobediência imputado na acusação.

Pois bem.

                                                            *

Em matéria de fundamentação no presente processo especial, o artigo 389.º-A, n.º 1, alíneas a), b) e c), do CPP preceitua que a sentença deve conter a indicação sumária dos factos provados e não provados (a qual pode ser feita por remissão para a acusação e contestação), acompanhada da indicação e exame crítico sucintos das provas [alínea a)]; a exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão [alínea b)] e, em caso de condenação, os fundamentos sucintos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada [alínea c)]. A sentença deve conter ainda o dispositivo, nos termos previstos nas alíneas a) a d) do n.º 3 do artigo 374.º, o qual é sempre ditado para a acta.

É sabido que o imperativo constitucional da fundamentação (artigo 205.º, n.º 1 da CRP) assume no processo penal uma função estruturante das garantias de defesa do arguido, uma vez que assegura o conhecimento das razões factuais e jurídicas por que foi tomada uma decisão e não outra, de modo a facultar a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos, revelando-se, assim, essencial para o exercício do direito ao recurso.[3]

Consequentemente, serve um propósito intraprocessual voltado para a reapreciação das decisões no âmbito do sistema recursório, permitindo ao tribunal superior conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico contido em tais decisões, para efectuar o seu próprio juízo, no âmbito da sindicância que lhe cumpre realizar.[4]

Na decisão sobre a matéria de facto, a exigida fundamentação impõe que a sentença contenha o enunciado dos factos provados e não provados.

Quanto ao âmbito material desse enunciado, e conforme já se adiantou em 3.2., diz-nos o artigo 339.º, n.º 4 do CPP que a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação, os factos alegados pela defesa e os factos que resultarem da prova produzida em audiência, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º (questão da culpabilidade) e 369.º (questão da determinação da sanção). Isto sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, como o próprio artigo 339.º, n.º 4 também ressalva, e levando ainda em linha de conta que a questão da culpabilidade, nos termos acima indicados, abrange a matéria factual alegada pela acusação e pela defesa e bem assim a que resultar da discussão da causa, relevante para saber, entre outros aspectos, se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido o praticou e actuou com culpa [artigo 368.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP].

E, realizada a discussão (na audiência de julgamento), as questões serão conhecidas e decididas na sentença, cuja estrutura é constituída pelos elementos atrás referidos, indicados no artigo 389.º-A, n.º 1, alíneas a), b), c) e d), do CPP.

No fundo, a enumeração dos factos provados e não provados a integrar a fundamentação que obrigatoriamente deve constar na sentença, em conformidade com os normativos citados, traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre toda a factualidade sujeita à sua apreciação e sobre a qual a decisão terá de incidir, incluindo a que, embora não fazendo da acusação e da contestação, tenha resultado da discussão da causa e reveste relevância para a decisão.

Daí que, como se sublinha no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 312/2012[5], a enumeração assuma também extrema importância como meio de evidenciar os factos que foram efectivamente considerados e apreciados pelo tribunal e sobre os quais recaiu um juízo de prova.

Temos, assim, que sobre o tribunal de julgamento recai o dever de se pronunciar, ainda que de forma sumária, sobre os factos aludidos e que, não o fazendo, estará a omitir aspectos considerados essenciais para a fundamentação da sentença, levando a que esta fique inquinada da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP.

Nulidade que deve ser arguida ou conhecida em recurso, sem prejuízo de o tribunal recorrido a suprir, antes de ordenar a remessa para o tribunal superior, conforme prevê o n.º 2 do citado artigo 379.º

Para além disso, o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a dela conhecer, em conformidade com o estabelecido naquele n.º 2 (“as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso”).[6]

                                                         *

Tal como atrás se referiu, a nulidade que se suscita oficiosamente entronca na questão de direito que se revela essencial, e o próprio arguido também invoca no recurso, sobre se a ordem de sujeição a teste de pesquisa de álcool no sangue não foi legítima porque, quando lhe foi dada, não tinha a qualidade de condutor e, por conseguinte, a factualidade provada não integra a prática do crime de desobediência imputado na acusação.

Neste contexto, o crime de desobediência, previsto no artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, é constituído pelos seguintes elementos típicos:

Quanto ao tipo objectivo,

- Que o agente falte à obediência devida a uma ordem ou mandado legítimos;

- Que a ordem ou mandado tenham sido regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente;

- A existência de cominação legal de desobediência para a recusa de cumprimento;

Quanto ao tipo subjectivo,

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades legalmente previstas (artigo 14.º do Código Penal).

Por sua vez, o artigo 152.º do Código da Estrada, na parte que importa agora considerar, estabelece que:

1. Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:

a) Os condutores;

b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito;

c) As pessoas que se propuserem iniciar a condução.

(…)

3. As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.

4. As pessoas referidas na alínea c) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são impedidas de iniciar a condução.

(…)

Resulta da norma acima citada que são três as categorias de cidadãos que estão sujeitos à submissão a provas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool: os condutores, os peões, quando intervenientes em acidente de viação, e qualquer pessoa que pretenda iniciar a condução.

Em relação a quem se propõe iniciar a condução, importa notar que o n.º 3 da norma não comina com desobediência a recusa de submissão às provas para detecção de álcool das pessoas que tenham a referida qualidade. Para estas, apenas se estabelece, no n.º 4, que serão impedidas de iniciar a condução.

Assim, no caso dos autos, a qualidade de condutor, prevista na alínea a), é aquela que assume relevância típica, uma vez que não está aqui em causa a situação de um peão interveniente em acidente de viação e, por outro lado, a recusa de quem se propôs iniciar a condução não é punida com crime de desobediência.

Ora, para que tal qualidade assuma significado para efeitos de preenchimento do tipo de crime, é necessário que se verifique actualidade da condução realizada. Trata-se de um requisito que visa, tão-só, fixar se a condução foi exercida sob a influência do álcool, afastando as situações em que, pelas circunstâncias concretas que nelas concorrem, não é possível, com razoabilidade, concluir que o cidadão fiscalizado pela autoridade policial conduziu, de facto, sob aquela influência.

Aqui se incluem, pois, as situações mencionadas no Acórdão desta Relação, de 16-12-2015[7], sendo, portanto, condução actual, a do cidadão que, conduzindo veículo na via pública, é mandado parar pela autoridade, a do cidadão que, na mesma situação, não pára, sendo perseguido e interceptado, e a do cidadão que foi interveniente em acidente de viação e ainda no local, é fiscalizado pela autoridade.

Para além das hipóteses assim elencadas, é também de considerar, como no Acórdão desta Relação, de 22-02-2017[8], que o conceito se estende igualmente àquelas situações em que as concretas circunstâncias tornam evidente e inequívoca a relação entre o agente e o facto, entre o cidadão fiscalizado e a condução, no fundo, num conceito próximo do da presunção de flagrante delito [na modalidade de ser o agente encontrado com objectos ou sinais que mostrem inequivocamente que o cometeu – cf. artigo 256.º, n.º 2 do CPP].

                                                       *

In casu, conforme resulta da audição do registo áudio da audiência de julgamento e se fez constar supra em 2.1., sob os n.os 1 a 6, o tribunal a quo apresentou um elenco de factos provados com eventual relevância típica que, no essencial, correspondem aos que haviam sido comunicados ao arguido em audiência de julgamento, a título de alteração não substancial da matéria descrita na acusação (cf. acta de fls.64 a 65).

Sucede que, analisados os factos constantes dos n.os 1 e 2 do referido elenco, tal como foram dados como assentes pelo tribunal a quo, constata-se que os mesmos não contêm todo o encadeamento cronológico que suporta a conclusão alcançada em sede de enquadramento jurídico-penal, de que a condução realizada pelo arguido tinha acabado de acontecer, quando foi surpreendido pelos agentes da PSP.

Isto sendo certo, repete-se, que a indicada factualidade de que o arguido se preparava para iniciar a condução, ainda que sob a influência do álcool, não reveste a relevância típica estatuída no artigo 152.º, n.º 3 do Código da Estrada, pelo que a matéria dada como provada no n.º 2 não permite, por si só, concluir que aquele foi autor do imputado crime de desobediência.

Do confronto da factualidade alegada na acusação que o Ministério Público deduziu nos presentes autos (cf. fls.25 a 27), com a que o tribunal a quo levou ao enunciado de factos provados e não provados da sentença recorrida, resulta que esta decisão omite a referência à hora em que o recorrente foi abordado pelos agentes da PSP que lhe propuseram efectuar o teste de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado, especificada no parágrafo primeiro daquele despacho acusatório, não lhe fazendo menção, nem nos factos provados, nem nos não provados, para além de que em lugar algum a reputou de irrelevante para a decisão da causa.

Isto quando no exame crítico da prova, transcrito supra em 2.2., o tribunal a quo, discorrendo extensamente sobre os eventos em julgamento, assinalou que a testemunha M referiu de forma bastante credível que, entre a chegada do arguido e a chegada das autoridades, não teriam mediado mais de 20 minutos, meia hora, no máximo.

Assinalou, ainda, que a percepção que formou a partir da globalidade da prova (percepção essa não infirmada por qualquer outro elemento de prova, que rebateu naquele exame crítico), foi a de que, quando foi abordado pela autoridade policial, a sua condução não só tinha acabado de acontecer, como estava prestes a reiniciar-se, que tinha acabado de conduzir e se preparava novamente para conduzir.

Realidade que, conquanto tivesse merecido ali destaque, não foi factualmente transposta para o elenco provado da sentença recorrida, dentro do que consentiam os limites do objecto do processo, definidos pela matéria narrada na acusação.

Ou seja, na sede própria, que é o elenco de matéria que obrigatoriamente deve constar da sentença, o tribunal a quo não tomou posição sobre se a fiscalização pelos agentes da PSP se deu na hora indicada no n.º 1 da acusação pública – pelas 5h20m – ou então que tempo mediou entre a chegada ao local/estacionamento, nos termos descritos no n.º 1 da sentença recorrida, e a intervenção dos elementos policiais, narrada no n.º 2, nem aduziu qualquer outra circunstância que, dentro dos limites do objecto do processo, servisse àquele propósito de ilustrar factualmente que sequência existiu entre um e o outro acto.

Com efeito, o acto de estacionar, indicado no n.º 1, pode traduzir uma imobilização mais ou menos duradoura do veículo (veja-se a definição do artigo 48.º, n.º 2 do Código da Estrada).

Por sua vez, o acto de abordagem dos agentes da PSP, relatado no n.º 2, por si só, não situado no tempo e desacompanhado de elementos circunstanciais que sequencialmente o relacionem com o que ficou assente no n.º 1, tanto pode significar que ocorreu em momento próximo, sem soluções de continuidade, como pode representar um evento distante que retira, assim, actualidade à condução realizada até ao estacionamento e, portanto, não assume a relevância típica suposta pelo artigo 158.º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada.

Tudo isto quando, no enquadramento jurídico-penal que efectuou na sentença recorrida, o tribunal a quo levou em linha de conta que “condutor é também aquele que se percebe, por todos os indícios, quem em tempo razoável acabou de exercer a sua condução”, tendo nessa sequência concluído que, dos factos provados nos autos, resultavam preenchidos os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do imputado crime de desobediência.

Ora, para assim concluir em sede de subsunção jurídico-penal não bastam as considerações de ordem factual que eventualmente constem referidas na motivação da decisão sobre a matéria de facto, destinada à indicação e exame crítico sucintos das provas, nos termos estabelecidos pelo artigo 389.º-A, n.º 1, alínea a), parte final, do CPP. Tais considerações não substituem o necessário enunciado sumário dos factos provados e não provados, pelo que, ainda que na aludida fundamentação o tribunal a quo se tenha debruçado sobre a sequência de acontecimentos, inclusive sob o ponto de vista cronológico, desde que o arguido estacionou no local indicado em 1, até que foi surpreendido pelos agentes da PSP, nos termos identificados em 2, aspecto que, de resto, relevou para o enquadramento jurídico-penal efectuado e para desfecho condenatório proferido, certo é que no elenco de matéria provada omitiu qualquer referência ao tempo e outro eventual circunstancialismo relevante que mediou entre a conduta relatada no n.º 1 e a abordagem policial narrada no n.º 2.

Sem esta tomada de posição sobre a apontada matéria, fica a Relação impossibilitada de aferir se a condução do arguido, descrita no n.os 1 e 2, foi actual e, por isso, justifica a solução jurídica acolhida na sentença que, ao considerar que a mesma assume relevância típica e fundamenta, assim, a condenação decretada.

Estamos, pois, perante nulidade decorrente da falta da 1.ª instância em se pronunciar sobre a factualidade referida, incluindo-a na enumeração provada (ou não provada) a que se refere o artigo 389.º-A, n.º 1, alínea a), do CPP (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 312/2012, atrás citado).

Ora, verificada a invalidade cominada no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), CPP, impõe-se determinar o seu suprimento pelo tribunal a quo, que deverá, assim, reformular a decisão, naturalmente elaborando-a agora por escrito, fazendo constar no seu elenco provado (ou não provado) a apontada matéria de facto omitida.

Nestas situações, não pode a Relação substituir-se ao tribunal a quo e proceder ao seu suprimento, pois se assim fizesse estaria a negar-se o único grau de recurso de que o arguido dispõe, violando-se o duplo grau de jurisdição exigido pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República.

                                                         *

Por fim, resta referir que, face à sua natureza e consequências, a verificação da nulidade acima apreciada prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso.

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III – Decisão

Pelo exposto, acordam as juízas da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em declarar nula a sentença recorrida por falta de fundamentação quanto aos aspectos acima indicados em 3.4. e, em consequência, determinam a sua substituição por outra sentença que proceda ao seu suprimento, nos termos enunciados.

Sem tributação.

Coimbra, 6 de Maio de 2020
(Elaborado pela primeira signatária, revisto e assinado electronicamente por ambas as signatárias – artigo 94.º, n.os 2 e 3 do CPP)

                                        

Helena Bolieiro (relatora)

Rosa Pinto (adjunta)


[1] Cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Portuguesa, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág.242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág.271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193.
[2] Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995.
  
  
[3] Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 147/00, de 21-03-2000, disponível na Internet em <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/>.
[4] Cf. Acórdão do STJ de 16-03-2005, proferido no processo n.º 05P662 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
[5] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 312/2012, de 20-06-2012, disponível na Internet em <http://www.tribunalconstitucional.pt>. Cf. ainda António Henriques Gaspar et al., Código de Processo Penal Comentado (anotação ao artigo 374.º, por António Jorge de Oliveira Mendes), 2.ª ed., Almedina, 2016, pág.1121.
[6] Neste sentido cf., Código de Processo Penal Comentado (anotação ao artigo 379.º, por António Jorge de Oliveira Mendes), pág.1133. Cf. ainda o Acórdão do STJ de 27-10-2010, proferido no processo n.º 70/07.0JBLSB.L1.S1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.

[7] Aresto proferido no proferido no processo n.º 55/15.3GBALD.C1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
[8] Acórdão que a ora relatora subscreveu como adjunta, proferido no processo n.º 85/16.8GTVIS.C1, disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.