Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1473/10.9T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: DIREITO COMUNITÁRIO
OBRIGAÇÕES EXTRACONTRATUAIS
Data do Acordão: 01/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 4º, Nº 1 E 31º DO REGULAMENTO CE Nº 864/07 DE 11.7 – ROMA II, RELATIVO À LEI APLICÁVEL ÀS OBRIGAÇÕES EXTRACONTRATUAIS
Sumário: I – Consagra o Regulamento CE nº 864/07, de 11.7 – Roma II, como regra geral, ser a lex doci damni aplicável aos casos de responsabilidade extracontratual, determinando-se a lei aplicável com base no local onde ocorreu o dano, independentemente do país ou países onde possam ocorrer as consequências indirectas do mesmo. Como consta dos considerandos do Regulamento – (17) – em caso de danos não patrimoniais ou patrimoniais, o país onde os danos ocorrem deverá ser o país em que o dano tenha sido infligido, respectivamente à pessoa ou património.

II - Em 17.11.2011, pela 4ª secção do Tribunal de Justiça da União Europeia, num pedido de reenvio prejudicial formulado pela High Court of Justice (England & Wales), no processo C-412/10, que opunha Deo Antoine Homawoo v. GMF Assurances SA, em que a questão a apreciar respeitava ao âmbito de aplicação ratione temporis do Regulamento foi proferida decisão com o seguinte teor:

Os artigos 31° e 32° do Regulamento (CE) n° 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II»), lidos em conjugação com o artigo 297° TFUE, devem ser interpretados no sentido de que um órgão jurisdicional nacional deve aplicar este regulamento unicamente aos factos, geradores de danos, ocorridos a partir de 11 de Janeiro de 2009 e que a data de propositura da acção de indemnização ou a data da determinação da lei aplicável pelo órgão jurisdicional competente não são relevantes para efeitos da definição do âmbito de aplicação no tempo deste regulamento.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora intentou a presente acção declarativa com processo ordinário, pedindo a condenação das Rés a pagarem-lhe a quantia de € 198.459,47, sendo € 195.459,47 de capital, acrescido de juros de moras vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alega a ocorrência, em 27.8.2007, de um acidente de viação, em Espanha, entre um veículo sua propriedade e um veículo propriedade de uma sociedade espanhola, cuja responsabilidade civil emergente dos danos provocados pela sua circulação estava transferida para a 2ª Ré, representada em Portugal pela 1ª Ré.
Descrevendo o acidente, imputa a culpa na sua produção ao veículo de matrícula 1----FRG e alega que do mesmo lhe resultaram danos que enumera como o transporte do mesmo para Portugal, o custo da reparação dos estragos que aquele sofreu e os prejuízos que lhe advieram pela privação do seu uso.
Alega ainda que a 1ª Ré por carta de 19.9.07 comunicou-lhe que o veículo era irrecuperável, tendo em 27.11.07 declarado que não o repararia, apresentando como proposta de resolução do litígio o pagamento da quantia global de €.12.521,10.

As Rés contestaram, excepcionando a prescrição do direito à indemnização reclamado pela Autora, defendendo que, tendo as citações ocorrido em 20.8.2010 e 24.8.2010, respectivamente, e sendo aplicável a lei espanhola – art.º 1968º, n.º 2, do C. Civil Espanhol – aquele direito prescreveu decorrido um ano sobre a ocorrência do facto.
Excepcionam, ainda a ilegitimidade da 1ª Ré, alegando que se trata de uma pessoa jurídica distinta da 2ª Ré.
Impugnam ainda a versão do acidente apresentada pela Autora bem como a extensão dos danos reclamados.

A Autora replicou, alegando quanto à excepção da prescrição que a lei aplicável é a lei portuguesa, porquanto foi em Portugal que ocorreu grande parte dos danos por si sofridos em consequência do acidente, face à qual o seu direito não se encontra prescrito, defendendo também a legitimidade da 1ª Ré.

Na sequência de despacho judicial vieram as Rés juntar aos autos a lei espanhola, vindo a Autora a pronunciar-se pela aplicação ao caso em apreço do Regulamento CE 864/2007, de 11 de Julho, o qual, no seu entendimento, determina a aplicação da lei portuguesa à acção.

Veio a ser proferido saneador – sentença que, julgando aplicável o art.º 4, do Regulamento CE n.º 864/2007, de 11.7, julgou procedente a excepção da prescrição e, em consequência, absolveu as Rés do pedido formulado.
                                             *
Inconformada com a decisão a Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
...

As Rés apresentaram resposta, defendendo a confirmação da decisão recorrida.

1. O objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pela conclusões das alegações da Recorrente cumpre apreciar a seguinte questão:
O direito da Autora à indemnização pelos danos sofridos em consequência do acidente não se encontra prescrito?

2. Os factos
Com interesse para a decisão importa considerar os factos alegados pela Autora na sua p. inicial e acima sintetizados.
3. O direito aplicável
A Autora, invocando a ocorrência de um acidente de viação em Espanha entre um veículo pesado, sua propriedade, e outro também pesado, propriedade de uma sociedade espanhola, quer ser indemnizada pela Companhia Seguradora deste último veículo pelos seguintes danos:
- € 2.941,78 valor despendido pelo transporte do veículo para Portugal e ao custo de uma grua para reerguer o veículo;
- € 34.517,69 para a reparação do veículo;
- € 155.000,00 decorrentes da privação do uso do veículo, e
- € 3.000,00 a título de danos morais.
Fora de dúvidas que está a competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar o litígio que opõe a Autora às Rés, cumpre averiguar qual a lei aplicável.
A decisão recorrida entendeu ser de aplicar a lei espanhola em consequência do disposto no Regulamento CE n.º 864/07 de 11.7 – Roma II, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais.
Dispõe, este Regulamento no art.º 4º, n.º 1:
1- Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto licito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indirectas desse facto.
Consagra, assim, este Regulamento, como regra geral, ser a lex doci damni aplicável aos casos de responsabilidade extracontratual, determinando-se a lei aplicável com base no local onde ocorreu o dano, independentemente do país ou países onde possam ocorrer as consequências indirectas do mesmo. Como consta dos considerandos do Regulamento – (17) – em caso de danos não patrimoniais ou patrimoniais, o país onde os danos ocorrem deverá ser o país em que o dano tenha sido infligido, respectivamente à pessoa ou património.
A decisão recorrida, considerando que o Regulamento estava em vigor na data em que ocorreu o acidente de viação, em consequência do qual advieram para a Autora os danos reclamados nesta acção, aplicou ao caso a lei espanhola.
A data de entrada em vigor deste Regulamento foi objecto de discussão, entendendo-se que da leitura dos seus art.ºs 31º e 32º a mesma não resulta clara. Assim, o art.º 31º dispõe que o Regulamento é aplicável a factos danosos que ocorram após a sua entrada em vigor, sendo certo que a regra geral de entrada em vigor dos Regulamentos é a do 20º dia após a sua publicação – art.º 254º, n.º 1, do Tratado CE – a qual ocorreu em 31.7.2007, no JOUE, enquanto o art.º 32º dispõe que o Regulamento é aplicável a partir de 11.1.2009.
A harmonização do conteúdo do art.º 31º com o 32º deste Regulamento, com vista à determinação da sua entrada em vigor e consequente aplicabilidade, é questão que se tem colocado em vários Estados Membros [1].
Em 17.11.2011, pela 4ª secção do Tribunal de Justiça da União Europeia, num pedido de reenvio prejudicial formulado pela High Court of Justice (England & Wales), no processo C-412/10, que opunha Deo Antoine Homawoo v. GMF Assurances SA, em que a questão a apreciar respeitava ao âmbito de aplicação ratione temporis do Regulamento foi proferida decisão com o seguinte teor:
Os artigos 31.° e 32.° do Regulamento (CE) n.° 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II»), lidos em conjugação com o artigo 297.° TFUE, devem ser interpretados no sentido de que um órgão jurisdicional nacional deve aplicar este regulamento unicamente aos factos, geradores de danos, ocorridos a partir de 11 de Janeiro de 2009 e que a data de propositura da acção de indemnização ou a data da determinação da lei aplicável pelo órgão jurisdicional competente não são relevantes para efeitos da definição do âmbito de aplicação no tempo deste regulamento.  [2]
Nesse processo a questão colocada era, como se disse, a da aplicação temporal do Regulamento a um acidente de viação ocorrido em 29 de Agosto de 2007, encontrando-se em debate duas posições:
1ª - o art.º 31º não estabelece uma data de entrada em vigor, devendo a mesma ser determinada nos termos do art.º 254º, n.º 1, do Tratado CE, ou seja no 20º dia após a sua publicação o que determina a sua aplicação aos factos danosos ocorridos após 20.8.2007;
2ª – a entrada em vigor referida no art.º 31º remete para a data de aplicação estabelecida no art.º 32º, ou seja 11.1.2009, sendo, assim, o Regulamento aplicável apenas aos factos danosos ocorridos após 11.1.2009.
Considerando o entendimento do Tribunal de Justiça quanto à entrada em vigor do Regulamento Roma II, bem como a data do acidente em que a Autora foi interveniente, não é aquele Regulamento aplicável ao caso dos autos.
Há, assim, que determinar qual a lei aplicável com recurso à aplicação da norma de conflitos portuguesa, no caso o art.º 45º do C. Civil, o qual dispõe no n.º 1:
A responsabilidade extracontratual fundada, quer em acto ilícito, quer no risco ou em qualquer conduta lícita, é regulada pela lei do Estado onde decorreu a principal actividade causadora do prejuízo; em caso de responsabilidade por omissão é aplicável a lei do lugar onde o responsável deveria ter agido.
Da interpretação deste preceito decorre que a lei aplicável ao caso é também a lei espanhola, como lei do local onde decorreu a principal actividade causadora do prejuízo, ou seja, o acidente, lei esta – C. Civil Espanhol, art.º 10º, n.º 9 – que também determina que as obrigações não contratuais se regem pela lei do lugar onde tiver ocorrido o facto donde derivem.
Foi em Espanha que ocorreu o facto danoso – acidente – que, como consequência determinou a impossibilidade do veículo continuar a circular, a necessidade de recurso à grua para ser erguido e o seu transporte para Portugal.
Como se diz na decisão recorrida, o que aconteceu em Portugal foram as consequências indirectas daquele evento e, verdadeiramente nem todas elas, porque uma das despesas que a Autora suportou e cuja indemnização pretende foi o reboque com grua do veículo sinistrado realizado em Espanha e por uma empresa espanhola [3].
A lei espanhola, no que respeita ao direito de indemnização decorrente de responsabilidade civil extra contratual fixa o prazo de prescrição num ano a contar do evento e desde que o lesado tenha conhecimento do direito que lhe compete – art.º 1968º e 1902º do C. Civil Espanhol, os quais dispõem:
Artigo 1902º:
 Aquele que por acção ou omissão causar dano a outro, por via de culpa ou negligência, é obrigado a reparar o dano causado.
Artigo 1968º:
Prescrevem decorrido um ano:
1. A acção para recuperar ou reter a posse.
2. A acção para exigir a responsabilidade civil por injúria ou calúnia, e pelas obrigações resultantes da culpa ou negligência que se trata no artigo 1902º, desde que o lesado tenha conhecimento.
Ora, tendo o acidente ocorrido em 27 de Agosto de 2007, na data da propositura da acção – 18 de Agosto de 2010 – já tinha ocorrido a prescrição do direito à indemnização.
E mesmo que se considere que este prazo foi interrompido pelas missivas enviadas pela 1ª Ré ainda em 2007, nos termos do art.º 1973º do C. Civil Espanhol, o novo prazo de prescrição iniciado após essas cartas também já se encontrava ultrapassado à data da propositura desta acção.
Defende ainda a Recorrente a aplicação da lei portuguesa porque a 1.ª Ré, em sede de negociações extra-judiciais abdicou da aplicação da lei civil espanhola, ao remeter na carta enviada em 19 de Setembro de 2007, a solução para a lei civil portuguesa.
Da carta que a Ré enviou à Autora, apesar da referência a preceitos do C. Civil Português, não se pode retirar qualquer outra conclusão a não ser a de uma proposta contratual de transacção, não sendo possível entender-se a mesma como uma renúncia definitiva à aplicação da lei espanhola.
Face ao exposto, constata-se que o direito que a Autora pretende exercer se encontra efectivamente prescrito, pelo que é de confirmar a decisão recorrida, com fundamentação diferente.

 Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida, com diferente fundamentação.
Custas do recurso pela Recorrente.


Sílvia Pires (Relatora)
Henrique Antunes
Regina Rosa


[1] Ver, em Portugal, o Acórdão da Relação do Porto de 30.1.2011, relatado por Mendes Coelho, no processo n.º 545/10.4TJPRT.P1, em www.dgsi.pt.
[2] Acessível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:62010CJ0412:PT:NOT
[3] Desvalorizando também o local onde se registaram as consequências indirectas do facto danoso, leia-se Baptista Machado, em Lições de direito internacional privado, pág. 371-373, ed. de 1974, Atlântida Editora, e o Acórdão da Relação do Porto de 18-11-2010, relatado por José Ferraz, no processo n.º 1418/08.6TBLSD.P1, em www.dgsi.pt