Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
94/21.5T8OHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FEITAS NETO
Descritores: INVENTÁRIO
LEGITIMIDADE
HERDEIRO
MASSA INSOLVENTE
SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1085.º, N.º 1, DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL
ARTIGO 81.º, N.º 1, DO C.I.R.E.
Sumário: I) A massa insolvente do herdeiro para a qual foi apreendido o respectivo quinhão hereditário de uma determinada herança não tem legitimidade para requer inventário visando a partilha dessa herança.

II) Se for requerido o inventário por quem tenha legitimidade para o efeito, o herdeiro será processualmente substituído pela massa insolvente representada pelo administrador da insolvência.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

No Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Hospital, Comarca de Coimbra, veio a MASSA INSOVENTE DE J… requerer inventário para partilha da herança aberta por óbito de Isaura de Jesus Pais, alegando que por sentença já transitada foi declarada a insolvência de J… e mulher M…, tendo sido aí apreendido para a massa falida o quinhão hereditário que na aludida herança cabe ao aludido insolvente J…; dado que existem outros herdeiros, irmãos do insolvente, pretende a Requerente a partilha da herança em causa cujo acervo é composto por diversos bens móveis.

Por despacho de 20.07.2021 foi este requerimento indeferido por à Requerente faltar legitimidade processual parar requerer inventário uma vez não se poder considerar interessada directa na partilha da herança em causa.

Inconformada, recorreu a Requerente, recurso admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

Os únicos dados de facto a ter em conta são os elementos processuais constantes do relatório que antecede.

A apelação.

Nas conclusões com que encerra o recurso a apelante Massa Insolvente levanta como única questão a de saber se, ao invés do que foi entendido na decisão recorrida, é uma interessada directa na partilha do quinhão hereditário do insolvente, dado os poderes de administração e disposição dos bens de que o devedor fica privado se transferirem para o administrador da insolvência.

Não houve contra-alegações.

Apreciando.

É exacto que, como observa a apelante, o nº 1 do art.º 81 do CIRE estatui que “Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência”. Complementarmente, o nº 4 do mesmo artigo dispõe que “O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”.

Mas o que está em apreço no presente recurso é a possibilidade/legitimidade da massa insolvente de um determinado herdeiro requerer inventário para partilha da herança.

Ora afigura-se-nos que ela não ocorre.

Se não vejamos.

A legitimidade para requerer inventário e nele intervir como parte consta expressamente da previsão do art.º 1085, nº 1 do CPC, norma que a atribui a quem seja interessado directo na partilha. Neste conceito compreendem-se os herdeiros directamente beneficiados com a partilha, o cônjuge que seja igualmente meeiro (art.º 2101 do CC) e os interessados na elaboração da relação de bens a qua alude a al.ª b) do art.º 1082 do CPC. Porquanto visa apenas desencadear o processo que conduzirá ao acertamento dos bens ou valores que haverão de compor a quota ideal em que se traduz o quinhão hereditário de devedor, esta legitimidade não se confunde de modo algum com o exercício dos poderes de disposição e administração a que alude o já citado nº 1 do art.º 81 do CIRE. Na verdade, enquanto mero titular de um quinhão ou quota ideal, o herdeiro não administra ou dispõe de bens da herança certos e determinados até que se defina a concreta composição do seu quinhão.

No entanto, o quinhão hereditário é um direito com um valor patrimonial objectivo. Por isso, foi o quinhão do insolvente apreendido para a respectiva massa, com a finalidade primária de aí vir a ser vendido na fase da liquidação e o produto daí resultante reverter a favor dos credores. Esta finalidade – que, aliás, consta do art.º 1º do CIRE – é a única que importa à insolvência, sem prejuízo de a ela se poder sobrepor um eventual plano de insolvência aprovado e homologado nos termos da lei. Ou seja, não é essencial à satisfação dos credores da insolvência a concretização do quinhão hereditário do herdeiro insolvente em bens determinados através da partilha. De resto, se fosse permitido ao administrador da insolvência requerer a partilha durante a tramitação do processo de insolvência isso só serviria para retardar inutilmente a satisfação desses mesmos credores. Por estar orientado para a imediata satisfação dos créditos sobre a insolvência, o interesse da massa insolvente do herdeiro é, por conseguinte, diferente do interesse do herdeiro. Como é natural, este quer ver definida a composição concreta do respectivo quinhão, porquanto só então os bens ou valores provenientes dessa composição podem ser por ele fruídos, usados ou aproveitados sem prejuízo da sua alienação.

Daí que a massa insolvente do herdeiro não seja interessada directa ou sequer indirecta na partilha da herança.

Por força da distinção de interesses enunciada, os direitos da massa insolvente “recaem sobre o quinhão hereditário, não sobre o preenchimento do quinhão com determinados bens”[1], preenchimento no qual aquela massa não tem sequer uma real vantagem prática.

Isto não obsta à substituição processual do herdeiro insolvente em inventário requerido por quem tenha legitimidade para tanto. Em tal circunstância já a intervenção da massa insolvente através do administrador da insolvência – numa posição que a lei indevidamente qualifica de representação do devedor quando se trata de uma simples substituição processual ope legis [2] passa a ser imprescindível pelo facto de, com o inventário, estarem inexoravelmente em jogo “efeitos patrimoniais” que se repercutem na insolvência (nº 4 do art.º 81 do CIRE).

Em suma, a decisão recorrida não merece censura.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

                        Coimbra, 9 de Novembro de 2021

(…)

  

                                               (Freitas Neto – Relator)

                                               (Paulo Brandão)

                                               (Carlos Barreira)       


[1] Neste sentido v. a obra citada na sentença “O Novo Regime do Processo de Inventário e outras alterações na legislação processual civil”, M. Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego. A. Abrantes Geraldes e Pedro Torres, p. 33”.
[2] Em rigor, nos termos do art.º 258 do CC, a representação legal destina-se a produzir efeitos na esfera jurídica do representado o que é impossível com a respectiva declaração de insolvência.