Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3860/10.3TJCBR-B.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: DECISÃO RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO
CASO JULGADO
INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE BENS
COMUNICABILIDADE DA DÍVIDA
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ... DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 825.º DO CPC DE 1961 E ARTIGO 41.º DO CPC EM VIGOR
Sumário: I – A decisão relativa à matéria de facto só constitui caso julgado no processo onde é proferida.

II - No inventário para separação de bens requerido pelo cônjuge do executado não é admissível a discussão sobre a natureza comum da dívida, quando a execução foi movida apenas contra um dos cônjuges. 

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

No âmbito de inventário aberto para separação de meações, AA veio reclamar contra a relação de bens, de acordo com o disposto no artº. 1348, nº. 6, do C.P.C., alegando que a verba nº. 10 deverá ser excluída por não pertencer ao património do casal.

Em síntese, aquela alega que o referido prédio é do seu pai, quem pretendia doá-lo a si; como o seu ex-cônjuge se enchera de dívidas, os seus pais abandonaram a ideia de concretizar a doação.

A Reclamante invocou a pendência da ação comum n.º 1712/16.....

Os outros interessados contestaram a pretensão, alegando que o prédio é do casal.

Admitida a tempestividade da reclamação pelo STJ, na sequência o Tribunal de primeira instância indeferiu a pretendida exclusão do prédio.

O mesmo Tribunal de 1ª instância também decidiu que, “da análise dos documentos juntos pelos exequentes na execução principal e dos credores, mormente o documento junto pela credora “J...” em 4-12-2013, somente subscritos pelo executado BB, não nos é permitido resolver a questão da verificação das dívidas, com segurança, no que concerne à requerente AA.


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Inconformada, a Reclamante recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

A) O presente recurso é interposto da sentença que homologou a partilha, porque esta é consequência de ilegalidades e decisões erradas tomadas ao longo do processo, dado que, nos termos legais, só da sentença final homologatória é possível recorrer com subida imediata, podendo, porém, suscitar-se todas as questões que foram incorrectamente decididas ao longo do processo de inventário.

B) A ora recorrente interpõe recurso do despacho de 13/2/2021, com a referência CITIUS 8444119, que indeferiu a reclamação apresentada pela ora recorrente contra a relação de bens e do despacho de 19/3/2021, com a referência CITIUS 84953106, que replicou a anterior decisão mantendo o indeferimento da reclamação contra a relação de bens e ordenando o aproveitamento do anterior processado.

C) Em 2 de Fevereiro de 2017, a ora recorrente reclamou contra a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, no sentido de ser eliminada a verba n°. 10 da relação de bens, que deveria ser excluída por não pertencer ao património do casal (que foi formado por ela e pelo Requerido/cabeça de casal) – Refª. 74367966.

D) Após incidências várias – recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, inicialmente não admitido, mas que depois foi admitido, por intervenção do Tribunal Constitucional e julgado procedente -, foi referido incidente julgado totalmente improcedente, sem que tenham sido produzidas as provas requeridas e apesar de os factos considerados provados numa sentença proferida pelo Tribunal da Comarca ... constituírem prova indiciária do bom fundamento da reclamação.

E) Havendo um prazo geral para a reclamação da relação de bens, prazo fixado no nº. 1 desse artº. 1348º. do C. Proc. Civil, pode ainda qualquer interessado, desde 1994, reclamar da relação de bens posteriormente, naturalmente desde que ainda não tenha sido realizada a partilha, como é o presente caso.

F) Por requerimento de 2/2/2017 (Refª. CITIUS 3047363), a ora recorrente reclamou da relação de bens, por entender que “dela faz parte indevidamente o prédio urbano relacionado sob o nº. ...0”, invocando para tanto a matéria de facto alegada na acção judicial proposta por CC…

G) (…)

H) (…)

I) (…)

J) (…)

K) (…)

L) (…) (Estes pontos (G a L) não foram transcritos porque são relativos à alegação da matéria de facto que no caso é desnecessária.)

M) Na sentença com trânsito em julgado proferida na Acção Comum n.º. 1712/16...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Cível ... – Juiz ..., já referida, face aos factos declarados provados, dúvidas não existem que foi CC (pai da ora requerente) quem construiu a casa, quer adquirindo o terreno onde a mesma veio a ser implantada, quer pagando a respectiva construção e embora fosse intenção doar esse prédio à filha, mas nunca o fez e a doação de imóveis tem obrigatoriamente de constar de escritura pública (artº. 947º. do C. Civil) e essa formalidade, porque exigida legalmente não pode ser substituída por qualquer outro meio de prova (artº. 363º., nº. 1 do C. Civil).

N) Acresce que, não obstante a posse considerada provada, o certo é que tanto o executado como a sua mulher, não deduziram reconvenção nos referidos autos, na qual pudessem provar a sua propriedade desse prédio, sempre dependente da invocação da usucapião.

O) Sendo a usucapião, uma forma de aquisição originária, porque “o usucapiente adquire o seu direito, não por causa do direito do proprietário anterior, mas apesar dele”, como bem refere A. SANTOS JUSTO, Direitos Reais, 7ª. Edição, Lisboa, Novembro de 2020, pág.205º. e segs., “à usucapião são aplicáveis certas regras relativas à prescrição, como as que se referem à suspensão, interrupção da prescrição e recusa do conhecimento oficioso pelo julgador” como resulta expressamente do artº. 1292º.

P) A regra mais relevante para o presente caso, é a da recusa do conhecimento oficioso pelo julgador, consagrada no artº. 303º. do C. Civil, onde a lei dispõe que “O tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público”, sendo indispensável “que haja uma manifestação de vontade por quem pode beneficiar da usucapião”.

Q) Nem a ora requerente, nem o seu marido alguma vez manifestaram essa intenção de invocar a usucapião, ou sequer moveram qualquer acção para o efeito, pelo que o prédio permanece na titularidade jurídica de CC e sua falecida mulher e, com a morte desta, na sua herança e não é nem nunca foi património comum do casal.

R) Também face aos factos referidos, não há qualquer dúvida de que os proprietários CC e sua falecida mulher autorizaram que a filha e o genro habitassem a casa que haviam construído em terreno seu, mas não está provado qualquer acto de inversão do título da posse que legitimasse a detenção da ora recorrente e seu marido como possuidores em nome próprio, pelo que não pode aceitar a ora recorrente que a sua detenção seja considerada como posse, pois não ocorre a inversão do título da posse prevista no artº. 1265º. do C. Civil. - Cfr. ainda artº. 1253º., al. b) do mesmo diploma legal.

S) É certo e seguro que com os factos considerados provados na sentença proferida na Acção Comum n.º. 1712/16...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Cível ... – Juiz ... não pode afirmar-se que o prédio seja da ora recorrente e do seu ex-marido, pois, como se demonstrou, não ocorreu qualquer forma de aquisição do mesmo, quer originária, quer derivada pela ora recorrente e seu ex-marido.

T) Nenhum argumento se pode extrair da inscrição matricial constante da matriz predial urbana da freguesia ..., Concelho ..., pois, por um lado, a matriz não dá, nem tira direito, sendo apenas a forma de o Estado cobrar os impostos prediais e por outro, como consta do facto 6 considerado provado onde se deu como assente que “quando a casa ficou concluída, a mesma foi participada em nome desta (a ora recorrente), tendo o novo prédio sido inscrito na matriz predial sob o art. ...26, da referida freguesia ..., com indicação de proveniência do art. ...9 e de ter sido ocupado em 16/1/1995, …”

U) Provada a aquisição por CC e sua falecida mulher, a construção da casa a expensas destes, a intenção de doar à filha esse prédio, que se não concretizou, surge, eventualmente como acto preparatório dessa doação, a inscrição do prédio em nome da ora recorrente e nada mais que isso, até porque o prédio em causa está registado a favor de CC e sua falecida mulher, hoje representada pela sua herança.

V) A decisão transitada em julgado que julgou improcedente uma determinada acção, apenas afirma que quem se arrogou proprietário não o será, com a causa de pedir invocada, podendo, porém, invocar nova causa de pedir para o mesmo pedido em nova acção. Esta é a teoria da substanciação.

W) No caso dos presentes autos, a sentença não reconheceu a propriedade do autor sobre aquele bem concreto, com aquela causa de pedir, mas não indicou quem era o proprietário, pelo que o despacho recorrido faz um salto lógico que a sentença não permite, sendo que, porque não define a titularidade do direito de propriedade sobre o bem que se pretende ver excluído da relação de bens, não tem essa sentença a virtualidade de ter autoridade de caso julgado, improcedendo o argumento do caso julgado que foi usado no sentido de aferir da falta de razão da ora recorrente.

X) Porém, a ora recorrente indicou prova testemunhal na sua reclamação a fim de provar o que alega e se havia lacunas deveria ter sido ouvida essa prova testemunhal, sendo que para a confirmação dos factos provados e da existência de posse ou mera tolerância é absolutamente essencial a audição das testemunhas arroladas.

Y) . Face ao exposto, tal prédio – relacionado sob o nº. 10 da relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal -, em procedência da reclamação apresentada pela ora requerente, tem que ser excluído dos bens a partilhar no presente inventário.

Z) Deve assim ser revogado o despacho sem data, mas inserido no sistema CITIUS em 13/2/2021, com a referência CITIUS 8444119, por ter violado, entre outros, o disposto nos artigos 947º., 1292º. e 303º., 1265º. e 1253º., al. b), todos do C. Civil, devendo também ser revogado o despacho, também sem data, mas inserido em 19/3/2021, no sistema CITIUS sob a referência 84953106, que ordenou o aproveitamento dos actos anteriormente praticados, sendo que, face à revogação do despacho inserido em 13/2/2021, tem de ser anulado todo o processado após esse despacho, por dele depender necessariamente.


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Também inconformada, a credora “J...” recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

I. Vem o presente recurso interposto da sentença datada de 12.11.2021, ref.ª citius 86772404, a qual homologou a partilha efetuada nos autos.

II. Nos termos legais só da sentença final homologatória é possível recorrer com subida imediata, podendo, contudo, suscitar-se todas as questões que foram incorretamente decididas ao longo do processo de inventário.

III. Pretende a Recorrente, com o presente recurso da sentença final, sindicar o despacho determinativo da forma à partilha, proferido em 23.05.2021 (ref.ª citius 85427560), concretamente na parte em que não considerou que a dívida à Recorrente, reclamada nestes autos, é comum do cabeça de casal BB e da Requerente AA.

IV. Dos presentes autos resulta que a Requerente AA está casada com o executado BB desde 17 de Junho de 1978, no regime da comunhão geral de bens, conforme assento de casamento junto aos autos em 19.05.2011 – ref.ª citius 985136.

V. Por requerimento datado de 08.10.2012 – ref.ª citius 1303004 -, a Requerente AA, notificada para pagar um preparo para despesas de 500,00 €, referiu que: “1 – Desde o início dos autos que a ora requerente e seu marido viram reduzir substancialmente os seus rendimentos na medida em que a atividade profissional do seu marido - que é comerciante e a quem a requerente ajuda sempre que as lides domésticas o permitem – teve uma quebra profunda, pondo quase em causa a subsistência do seu agregado familiar.

VI. O crédito reclamado pelo Instituto de Segurança Social, reclamado no apenso A contra o executado BB respeita a contribuições e quotizações em dívida referente ao período de 2006 e 2008 (aqui se encontrando o executado como entidade empregadora) e ainda às contribuições do regime dos trabalhadores independentes referentes ao período compreendido entre Fevereiro de 2006 a Fevereiro de 2008.

VII. A ora Recorrente, J...., por requerimento de 04.12.2013 – ref. ª citius 1698437 - reclamou e justificou o seu crédito, comprovando documentalmente, entre outros, que em 27.01.2010 instaurou contra o Interessado BB ação executiva para pagamento de quantia certa, através da qual reclamou o pagamento da quantia de 72.628,94 € (setenta e dois mil seiscentos e vinte e oito euros e noventa e quatro cêntimos), processo esse a que corresponde o n.º 381/10.... e que corre agora termos no Juízo de Execução ... do Tribunal Judicial da Comarca ....

VIII. Conforme resulta do título executivo no qual se baseou essa execução, na origem da dívida reclamada estão fornecimentos de mercadorias, mais precisamente artigos de calçado, pela Recorrente ao Interessado/Executado BB, tendo tais transações comerciais ocorrido até ao ano de 2006, atuando ambos na qualidade de comerciantes.

IX. É facto incontornável que a quantia reclamada nestes autos pela Recorrente deriva diretamente do exercício do comércio por parte do Interessado BB, e foi contraída num período em que se encontrava casado com a Interessada AA no regime da comunhão geral de bens.

X. Na conferência de Interessados realizada em 07.07.2017, a Requerente AA declarou não reconhecer as dívidas à Recorrente e ao Instituto da Segurança Social, alegando que não teve nada a ver com a origem das mesmas.

XI. Nessa mesma conferência foram os intervenientes notificados para se pronunciarem sobre a forma da partilha, nos termos e para os efeitos do disposto n.º 1 do art. 1373º do antigo CPC, após o que foi proferido o despacho datado de 03.11.2017 – ref.º citius 75820784 – que considerou a dívida à Recorrente da responsabilidade de ambos os cônjuges, nos termos da al. d) do n.º 1 do art. 1691º do CPC, aprovando-a quanto a ambos, com fundamento de que trata de “dívida contraída por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio”.

XII. Proferida a sentença homologatória de partilha, a Interessada AA recorreu da mesma, e julgado o recurso procedente ordenou-se a reapreciação da reclamação deduzida contra a relação de bens pela Interessada AA em 02.02.2017, e anulou-se parte do processado subsequente – vide despacho de 19.03.2021, ref.ª citius 84953106 -, entre o qual o despacho datado de 03.11.2017, que havia decidido que a dívida à Recorrente devia ser considerada comum ao casal BB e AA, nos termos do artº. 1691, nº. 1, al. d), do Código Civil, pois que

se trata de “dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio”.

XIII. Revogado o despacho de 03.11.2017, foram as partes novamente notificadas para, em 10 dias, ao abrigo do disposto no artigo 3, n.º 3, do antigo CPC, se pronunciarem quanto à decisão a tomar sobre a questão do PASSIVO, apenas aprovado, na conferência de interessados de 07.07.2017, pelo cabeça de casal e executado BB.

XIV. Após as partes se pronunciarem sobre a aprovação do passivo veio a ser proferido o despacho sindicado, datado de 23.05.2021 – ref.ª citius 85427560 – que ao invés de renovar a decisão de 03.11.2017 que havia sido revogada, e considerar a dívida à Recorrente comum ao casal BB e AA nos termos do artº. 1691, nº. 1, al. d), do Código Civil, decidiu dessa feita de forma totalmente oposta, considerando agora que “…não nos é permitido resolver a questão da verificação das dívidas com segurança no que concerne à requerente AA.”, e assim não aprovando a dívida à Recorrente como comum à requerente AA.

XV. Tal decisão é incompreensível, não se conseguindo aferir porque motivo o mesmo Tribunal que no despacho 03.11.2017 considerou a dívida comum a ambos os cônjuges nos termos do artº. 1691, nº. 1, al. d), do Código Civil, considerou posteriormente, e sem que tenha ocorrido qualquer facto novo e ulterior, ou a Requerente tenha ilidido tal presunção, que já não é permitido resolver a questão com segurança e não aprova a dívida quanto ao cônjuge.

XVI. O despacho recorrido coloca em causa a segurança e certeza jurídicas, pois temos num mesmo processo duas decisões diametralmente opostas (ainda que a primeira tenha sido, entretanto, revogada) proferidas pelo mesmo Meritíssimo Juiz com base nos mesmos factos, sendo tal contradição inexplicável ao cidadão comum.

XVII. De qualquer modo, com relevo para o objeto deste recurso, temos que na conferência realizada em 07.07.2021 o cabeça de casal e executado BB aprovou a dívida à Recorrente, e a Interessada AA declarou que não reconhece tal dívida alegando que nada teve nada a ver com a origem da mesma.

XVIII Dos autos resultam, com total segurança, que a Interessada AA está casada com o executado BB desde 17 de Junho de 1978, no regime da comunhão geral de bens.

XIX. No requerimento que apresentou em 08.10.2012, a AA, referiu expressamente que o seu marido é comerciante e que o ajuda sempre que as lides domésticas o permitem.

XX. O crédito reclamado pela Recorrente, conforme está documentalmente comprovado através do teor do título executivo que serviu de base à respetiva execução, teve origem em fornecimentos de mercadorias, mais precisamente artigos de calçado, pela Recorrente ao Interessado BB, tendo tais transações ocorrido até ao ano de 2006, atuando ambos (BB e Recorrente) na qualidade de comerciantes.

XXI. Conclui-se, com total segurança, que o crédito da Recorrente deriva diretamente do exercício do comércio por parte do Interessado BB, e foi contraído em período em que se encontrava caso com a Interessada AA no regime da comunhão geral de bens.

XXII. Ainda que a dívida à Recorrente se pudesse considerar DD de ambos os cônjuges nos termos de várias das alíneas do n.º 1 , e inclusive do n.º 2, do citado artigo, dúvidas não restam, pelo menos, e em face dos elementos documentais constantes dos autos, que a dívida é resultado da atividade comercial do Interessado BB, foi

contraída na constância do casamento celebrado sob o regime da comunhão geral de bens, presumindo-se por isso comum nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 1691 do CC.

XXIII. A Requerente AA não produziu qualquer prova suscetível de ilidir tal presunção, antes pelo contrário, confessou que auxiliava no exercício do comércio no requerimento datado de 08.10.2012,

XXIV. E resulta ainda dos autos, em especial do crédito reclamado pelo Instituto de Segurança Social, que este crédito respeita a contribuições e quotizações referentes ao período de 2006 e 2008, figurando o Interessado BB como entidade empregadora da sua esposa e Requerente AA.

XXV. Assim, contrariamente ao entendimento vertido no despacho recorrido a este respeito, de nada releva o facto do título executivo junto pela Recorrente ter sido assinado somente pelo Interessado BB e já não pela sua esposa e Interessada

AA, havendo nos autos elementos mais que suficientes para se decidir, com total segurança, como verificado e aprovado o crédito da Recorrente quanto à requerente AA.

XXVI. O despacho recorrido violou os artigos 1355º e 1356º, ambos do CPC, bem como o artigo 1691º, n.º 1, al. d), do Código Civil.

XXVII. Termos em que deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine ser da responsabilidade de ambos os cônjuges, BB e AA, a dívida à Recorrente, aprovando-a quanto a ambos e condenando-os no seu pagamento, determinando-se ainda a revogação de todos os atos subsequentes afetados por essa decisão, entre os quais a sentença homologatória de partilha.


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           Foram apresentadas contra-alegações, defendendo a Recorrida AA a decisão que rejeitou a comunicabilidade da dívida e a identificada credora a decisão de manutenção da verba nº 10.

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As questões a decidir são as seguintes:

Com prévio conhecimento da questão relativa à produção de prova, apurar da manutenção da verba nº 10.

A anulação do processado posterior à decisão que se pretende revogada.

A aprovação do crédito da “J...”, como dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges.


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Os factos considerados provados pelo Tribunal recorrido são os seguintes:

1. O processo executivo, de que estes autos são apenso, foi instaurado contra o executado BB.

2. Nesse processo executivo foram penhorados dois imóveis que correspondem às verbas nºs. 6 e 10, relacionadas neste apenso em 01-09-2011.

3. Por requerimento apresentado em 29 de abril de 2011, subscrito pelo I. mandatário Sr. Dr. EE, a Requerente AA, casada, comerciante, residente na Rua ..., ..., ..., ... ..., nos termos do art.º 825, n.º 5, do CPC, por apenso à execução principal, requereu Inventário para Separação de Meações, pedindo a separação de bens comuns do casal e se proceda à nomeação do cabeça de casal, a fim de o mesmo prestar juramento e declarações de cabeça de casal.

4. Em 1 de setembro de 2011, o cabeça de casal, BB, veio apresentar a relação de bens neste apenso, através de requerimento apresentado pelo supra aludido I. mandatário Sr. Dr. EE.

5. Descrevendo ainda como bem comum o imóvel sob a verba nº. 10 (cfr. fls. 35 a 38, deste processo).

6. A referida Requerente AA está casada com o executado BB desde 17 de Junho de 1978, no regime da comunhão geral de bens (v. fls. 29 e 30, deste processo).

7. Ambos residem na Rua ..., ..., ..., ..., que corresponde ao imóvel descrito sob a verba nº. 10, da relação de bens.

8. A Requerente AA, devidamente notificada para esse efeito no dia 9 de setembro de 2011, não apresentou qualquer reclamação à relação de bens, em específico quanto à natureza do bem comum da casa (descrita sob a verba n.º 10).

9. Na ata de conferência de interessados de 30 de Maio de 2012, pela requerente foi dito que pretendia exercer o direito de escolha nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 1406º do Código de Processo Civil, escolhendo os bens correspondentes às verbas nºs 7 (sete) e 10 (dez) para formarem a sua meação, sendo a do cabeça de casal formada pelos bens correspondentes às verbas nº 1 a 6 (um a seis), 8 e 9 (oito e nove).

10. Em 24 de Maio de 2016, a Requerente AA apresentou requerimento a solicitar a suspensão deste processo de acordo com o artº. 272, nº. 1, do CPC, visto que o seu pai, CC, instaurou no Juízo Central Cível ... uma ação comum, a solicitar que seja declarado ser ele o exclusivo proprietário da verba aqui relacionada sob o nº. 10, devendo ser cancelada a penhora concretizada no processo executivo principal.

11. Por decisão de 4-07-2016, foi decidido indeferir o pedido de causa prejudicial por carecer de fundamento legal, despacho esse que não foi objeto de recurso.

12. Em 2 de fevereiro de 2017, a Requerente AA reclama da relação de bens antes apresentada, pedindo a exclusão da verba n.º 10.

13. Por requerimento de 23 de fevereiro de 2017, o I. mandatário Dr. EE e seus colegas da mesma sociedade de advogados apresentaram renúncia ao mandato que lhes foi conferido pela procuração forense assinada pelo executado BB em 25 de fevereiro de 2010.

14. E tal renúncia foi, entre o mais, notificada ao executado BB.

15. No despacho de 18 de abril de 2017, que foi revogado, foi decidido indeferir a reclamação contra a relação de bens apresentada pela Requerente AA.

16. Na segunda parte desse despacho, que não foi alvo de recurso, ficou consignado o seguinte: “O despacho de 19-01-2017, proferido na parte final, não possui como finalidade conceder à Requerente novamente o direito a escolher os bens que deverão compor a sua meação, pelo que se indefere, sem prejuízo das partes, juntamente com os credores, se poderem entender em sede de conferência de interessados. Assim, tendo presente o valor dos bens comuns avaliados antecedentemente e de modo a permitir que tais bens sejam divididos de forma igualitária no que concerne à composição de cada meação – visto que a Requerente e o Requerido têm direito a METADE do valor dos bens comuns relacionados -, de harmonia com o disposto no artº. 1406, nº. 3, “in fine”, do CPC, decido FORMAR: - a MEACÇÃO 1, composta pelas verbas nºs. 1 a 9, no valor global de € 57.010,20 euros; - e a MEACÇÃO 2, composta pela verba nº. 10, no valor de € 142.014,00 euros, ficando a parte a quem for sorteada esta meação obrigada a pagar, a título de tornas, o montante de € 42.501,90 euros.

Para uma conferência de interessados com a finalidade de adjudicar as MEACÇÕES por meio de SORTEIO designo o dia 18 de maio de 2017, pelas 14:00 horas, no Palácio de Justiça de ....”

17. Por requerimento de 6 de julho de 2017, o executado BB juntou a este apenso procuração com poderes especiais a favor do mandatário Dr. FF.

18. O pai da Requerente AA, CC, através da ação n.º 1712/16.... instaurada em 2016 no Juízo Central Cível de ..., pediu que fosse declarado como exclusivo proprietário e possuidor do prédio penhorado no processo executivo principal, condenando-se todos os Réus a reconhecer tal direito.

19. Nessa ação n.º 1712/16.... foi realizada audiência de discussão e julgamento, culminando na sentença que decidiu julgar a ação totalmente improcedente, dando como provados factos importantes, a saber:

“9 – O imóvel inscrito na matriz sob o art. ...26 tem servido, desde a sua conclusão, como habitação dos réus AA e BB e respetivo agregado familiar (art. 30º da contestação da ré J...).

10 – São os réus AA e BB quem, desde pelo menos 16/1/1995, tem fruído de todas as suas utilidades do referido prédio, mormente habitando-o (arts. 31º e 32º da contestação da ré “J...” e art. 34º, da contestação dos réus GG, HH e II).

11–O que sucede desde, pelo menos, há 20 anos, de forma ininterrupta, à vista de todas as pessoas e sem a oposição de quem quer que seja (art. 34º da contestação dos réus e arts. 40º e 41º da contestação dos réus GG, HH e II).

12 – E com a convicção de que o mesmo lhes pertence (art. 35º da contestação da ré J... e art. 42º da contestação dos réus GG, HH e II).”.

20. Na parte decisória dessa ação n.º 1712/16...., foi decidido homologar a desistência do pedido relativamente aos réus JJ e mulher KK, julgando, consequentemente, extinto o direito que o autor pretendia fazer valer contra os mesmos;

21. E foi julgada improcedente a ação em relação aos demais réus identificados, entre os quais BB e mulher AA, absolvendo-os, em consequência, do pedido.

22. Tal aludida sentença transitou em julgado a 25 de junho de 2018.

23. A mencionada verba nº. 10 encontra-se matricialmente inscrita a favor da Requerente AA (cfr. fls. 49, deste processo).


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A manutenção da verba nº 10, com prévio conhecimento da questão relativa à produção de prova.

A Recorrente reclama da falta de produção da prova e com razão.

Com a ação referida no ponto 18 dos factos provados, não ocorre caso julgado quanto à propriedade do bem pelo casal destes autos. O caso julgado é limitado à declaração de que o pai da Recorrente não é o proprietário daquele bem.

Não é legal transpor para aqui os factos tidos por provados no anterior processo e dizer, como afirma o Tribunal recorrido, que “nenhuma prova mais se mostra necessária ser realizada (mormente a audição das testemunhas indicadas pela Requerente no seu requerimento), tendo em consideração a análise, discussão e julgamento feitos na ação n.º 1712/16...., com sentença já transitada em julgado”.

“Os fundamentos de facto não formam, por si só, caso julgado. Os factos dados como provados ou não provados no âmbito de determinada pretensão judicial não se assumem como uma verdade material absoluta, mas apenas com o sentido e alcance que têm nesse âmbito específico. Ademais, a consistência dos juízos de facto depende das contingências dos mecanismos da prova inerentes a cada processo a que respeitam, não sendo, por isso, tais juízos transponíveis, sem mais, para o âmbito de outra ação. (ver, com interesse, os acórdãos do STJ, de 9.6.2021, no proc. 543/18, e de 17.10.2017, no proc. 1204/12, em www.dgsi.pt.)

Apesar do assinalado a este respeito pelos credores HH e outros, o Tribunal recorrido não foi convidado a considerar (não considerou) o valor extraprocessual das provas produzidas no anterior processo, sendo certo, das provas pedidas aqui pelas partes, uma secção delas (CC, LL e MM) é a mesma (apenas seria nova a audição dos cônjuges deste inventário).

Conforme a norma consagrada no art. 421.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), os depoimentos já prestados perante as mesmas partes podem ser invocados no julgamento posterior, mas para que o Tribunal decida, em conjunto com as demais provas, sobre os factos, explicando a sua convicção, tudo nos termos do art.607, nº 4 e 5, do CPC. (Ver L. Freitas e outros, CPC anotado, vol.2º, 2ª edição, página 450.)

Ora, como facilmente se constata, o Tribunal recorrido não ajuizou sobre as provas pedidas, não as realizou, não considerou o valor extraprocessual das provas aqui indicadas, mas já produzidas no anterior processo, não decidiu e fundamentou essa decisão sobre os factos alegados, bastando-se com o que decidiu o Tribunal anterior, o que torna a sua decisão errada, devendo ser ordenado o julgamento dos factos.

Porém, a revogação da decisão recorrida e a imposição do julgamento dos factos não acarretará necessariamente a anulação de todo o processado posterior a tal decisão.

A este respeito, apesar de o referir, a Recorrente nada alega de concreto, parecendo-nos que a posterior decisão de manutenção ou não da verba 10 apenas terá consequências nos atos, a conferir depois, que dependam da sua contabilidade, sendo certo que tal verba já foi avaliada e considerada no equilíbrio das meações.


*

A aprovação do crédito da “J...”, como dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges.

Neste particular importa considerar os seguintes factos, os assinalados pelo Tribunal recorrido:

Em 4 de Dezembro de 2013, a credora “J...” veio justificar e reclamar créditos, alegando que em 27.01.2010, a Reclamante instaurou contra o Interessado BB ação executiva para pagamento de quantia certa, através da qual reclamou o pagamento da quantia de 72.628,94 € (setenta e dois mil seiscentos e vinte e oito euros e noventa e quatro cêntimos), com base em documento particular de “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento”, de 28-11-2006 - cfr. doc. 1, junto com esse requerimento.

Tal processo executivo corre termos sob o n.º 381/10.... pelo Juízo de Execução ... – Comarca ....

O processo executivo do qual estes autos constituem apenso foi instaurado contra o executado BB, e no âmbito do qual foram penhorados dois imóveis, que correspondem às verbas nºs. 6 e 10, relacionadas nos autos em 01.09.2011.

Nessa sequência, o cônjuge do Executado, AA, requereu o presente inventário para separação de meações.

A Requerente AA está casada com o executado BB desde 17 de junho de 1978, no regime da comunhão geral de bens, conforme assento de casamento junto aos autos em 19.05.2011.

Também é certo que, por requerimento datado de 08.10.2012, a Requerente AA, notificada para pagar um preparo para despesas de 500,00 €, referiu que: “1 – Desde o início dos autos que a ora requerente e seu marido viram reduzir substancialmente os seus rendimentos na medida em que a atividade profissional do seu marido - que é comerciante e a quem a requerente ajuda sempre que as lides domésticas o permitem – teve uma quebra profunda, pondo quase em causa a subsistência do seu agregado familiar.

Vejamos.

Conforme já assinalado pelo STJ, nestes autos:

“O regime aplicável a este inventário é aquele que resulta do anterior Código de Processo Civil;

“O exequente que dispuser de título apenas quanto a um dos cônjuges, mas pretenda executar bens comuns do casal, deve, ao nomear tais bens à penhora, pedir a citação do cônjuge do executado, para requerer a separação de bens, de tal sorte que se for apresentado pedido de separação de bens, cujo requerimento é autuado por apenso á execução, ou junta certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida, a execução fica suspensa até à partilha.

“O meio processual a usar com vista à separação judicial de bens é o processo de inventário com as especialidades dos arts. 1404º a 1408º do anterior Código de Processo Civil, isto é, um processo especial de inventário, aberto só ao cônjuge do executado, para descrição e partilha apenas dos bens comuns, com o efeito de suspender a execução até à partilha.

“Sem prejuízo das particularidades do processo de inventário com vista à separação judicial de bens, e em tudo o mais que seja compatível, observar-se-ão, nos termos do n.º 3 do art.º 1404º do Código de Processo Civil, as disposições referentes ao processo dito comum de inventário.

“O inventário para separação de meações destina-se à defesa dos interesses patrimoniais do cônjuge do executado, permitindo-lhe salvaguardar a sua meação nos bens comuns, correndo apenas entre os dois cônjuges, conquanto o credor exequente não possa deixar de ser equiparado a um “interessado”, relembrando-se que o inventário é caracterizado pelo princípio da universalidade, sendo o seu objetivo a partilha de todos os bens e direitos que integram essa comunhão, visando-se uma partilha igualitária, já que o inventário tem por finalidade distribuir fiel e equitativamente todo o apurado acervo.” (Fim da citação.)

No referido contexto, em que o incidente é decidido documentalmente (art.1406 do CPC anterior), sendo certo que o exequente acionou o título que dispunha, relativo apenas a um dos cônjuges, quando se dirige ao inventário para separação de meações, pedido pelo outro cônjuge, ele está limitado àquele título e não pode alargar a sua intervenção à discussão da comunicabilidade da dívida.

O exequente, na sua execução, nunca colocou tal questão (ver art.825 do anterior CPC e o 741 atual). Esse era o lugar próprio, no qual o incidente, regulado nos termos gerais, admite outras provas que não apenas a documental.

Por fim, aqui, a interessada não confessou a dívida, que não aprovou.

Pelo exposto, não merece censura a decisão recorrida que não alargou a aprovação do crédito à responsabilidade também de AA.


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Decisão.

Julga-se o recurso da credora “J...” improcedente e confirma-se a decisão recorrida que não alargou a aprovação do crédito à responsabilidade de AA.

Julga-se o recurso da Recorrente AA procedente e revoga-se a decisão recorrida de manutenção da verba 10, ordenando o julgamento dos factos alegados a respeito, conforme supra fundamentado.

           Custas pela Recorrente/Recorrida “J...”, vencida em ambos os casos.

Coimbra, 2022-04-05


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(...)