Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
122/17.9T8TND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: INTERNAMENTO COMPULSIVO
TRATAMENTO COMPULSIVO EM REGIME AMBULATÓRIO ARQUIVAMENTO
Data do Acordão: 10/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JC GENÉRICA DE TONDELA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1.º; 8.º ;12.º; 22.º; 26.º E 33.º, DA LEI 36/98, DE 24/7 (LEI DA SAÍDE MENTAL)
Sumário: I - O internamento compulsivo só pode ser determinado quando for a única forma de garantir a submissão a tratamento do internado e finda logo que cessem os fundamentos que lhe deram causa e sempre que possível o internamento é substituído por tratamento em regime ambulatório.

II - O internamento é substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório sempre que seja possível manter esse tratamento em liberdade, dependendo a substituição de expressa aceitação, por parte do internando, das condições fixadas pelo psiquiatra assistente para o tratamento em regime ambulatório.

III - O tratamento compulsivo em regime ambulatório justifica o prosseguimento dos autos, devendo o tribunal acompanhar o desenvolvimento e assegurar-se que a medida imposta restabeleceu o equilíbrio do cidadão portador de doença mental, cujo distúrbio mental justificou a intervenção do juiz, por forma a assegurar o exercício pleno dos seus direitos.

IV - Só assim haverá a efectiva protecção jurídica num problema que tem duas finalidades: curar o cidadão com doença mental e proteger a sociedade, enquanto se mantiverem os pressupostos nos autos.

Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
No processo supra identificado foi internado compulsivamente de urgência A... , nascido a 9/07/1957, filho de (...) e de (...) , residente na Rua (...) , Tondela, tendo sido decretado depois o seu internamento compulsivo por despacho judicial de 6/04/2017 (fls. 9), entretanto substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório, aceite pelo requerido a partir de 31/05/2017 (fls. 50 e 51) e consta de despacho judicial de 5/07/2017 (fls. 58), que considerando o consentimento do requerido para tratamento, ordenou o arquivamento dos autos.
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Do despacho que ordenou o arquivamento dos autos interpôs recurso o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:
«I. O internando A... em 31.05.2017, teve "alta clínica" e foi colocado em regime de tratamento compulsivo ambulatório, nos termos do artigo 33.º, da LSM l- cfr. fls. 50-51.
II. Despacho proferido nos presentes autos pelo Mmo. Juiz de Direito a fls. 58-59, que determinou o arquivamento dos autos.
III. Entende o Ministério Público que o tratamento compulsivo ambulatório só finda quando cessarem os respectivos pressupostos, sejam eles o de retomar o internamento compulsivo, seja o de findar tal tratamento por atingidos os inerentes fins médicos de saúde do submetido a tratamento involuntário.
IV. Só então é chegado o momento, faz sentido e é legalmente possível, o arquivamento dos autos por comprovada existência de causa justificativa da cessação do tratamento do obrigado.
V. O despacho em causa, determinando o arquivamento dos autos, violou o despacho o disposto nos artigos 33.°, 34.° e 35.° da Lei n.º 36/98 de 24.07 (LSM).
VI. Face ao exposto, deverá ser dado provimento ao recurso ora interposto e a decisão proferida nos autos ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos mesmos».
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Notificado o requerido, nos termos do art. 411.º, n.º 6, para efeitos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, respondeu no sentido de que nenhum reparo merece o despacho recorrido, uma vez que o arguido aceitou submeter-se a tratamento voluntário.
Nesta instância, os autos tiveram vista do Ex.ma Senhora Procuradora-geral Adjunta, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, o qual emitiu douto pugnando-se pela procedência do recurso.
Cumprido que foi o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, o requerido não respondeu.
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Importa atentar no teor do despacho recorrido:
«Os presentes autos tiveram início com o internamento compulsivo de urgência de A... , tendo sido decretado o seu internamento compulsivo por decisão proferida a fls. 10 dos autos, entretanto substituído por internamento compulsivo em regime ambulatório nos termos constantes da decisão de fls. 45 e seguintes, que declarou que o requerido aceitou o tratamento.
A defensora do requerido veio dizer que este aceitou o tratamento, fls. 52.
O Ministério Público a fls. 23 veio promover que se arquive o processo uma vez que cessaram os pressupostos do internamento compulsivo.
Importa apreciar e decidir.
Nos termos do artigo 12.° da LSM (1- O portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico pode ser internado em estabelecimento adequado. 2 - Pode ainda ser internado o portador de anomalia psíquica grave que não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado) depende da falta de consentimento do requerido.
Ora, tendo o requerido dado o seu consentimento, não se verificam os pressupostos para que mantenham os autos.
Por tudo o exposto declaro extintos os presentes autos e, consequentemente, determino o arquivamento dos presentes autos».
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II- O Direito
As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o
tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questão a decidir:
Apreciar se os autos em que foi decretado o internamento compulsivo, entretanto substituído por internamento compulsivo em regime ambulatório, aceite voluntariamente pelo requerido, devem ser arquivados ou devem continuar os seus trâmites.

Apreciando:
A Lei 36/98, de 24/7 ou Lei da Saíde Mental, diploma do qual farão parte os preceitos sem menção de origem, conforme dispõe o seu art. 1.º, estabelece os princípios gerais da política de saúde mental e regula o internamento compulsivo dos portadores de anomalia psíquica, designadamente das pessoas com doença mental. 
Os autos iniciaram-se com o internamento compulsivo urgente de A... , com o quadro clínico de Psicose Esquizofrénica Tipo Paranóide (Anomalia Psíquica Grave).
Tal diagnóstico consta da informação do médico psiquiatra do Centro Hospitalar Tondela /Viseu, de fls. 4, por se recusar a tratamento exigível pela doença de que padece, tonando-se assim heteroagressivo e desconfiado para a esposa e outras pessoas, ameaçando concretizar as agressões anunciadas, o que criou forte receio na esposa, a qual tentou abandonar a residência.
Dispõe o art. 12.º, n.º 1, que “o portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico pode ser internado em estabelecimento adequado”.
Por se verificarem os pressupostos do artigo 12.º, n.º 1, face ao receio eminente de o internando A... , portador de doença do foro psíquico, pôr em risco a integridade física da esposa e de outras pessoas e se agravar o seu estado de saúde, foi ordenado o seu internamento compulsivo de urgência, ao abrigo do disposto no art. 22.º.
O internamento compulsivo, uma vez cumpridos os prazos e formalidades legais, por se verificarem os pressupostos, dos art. 12.º, n.º 1 e 22.º, foi confirmado judicialmente, por decisão de
manutenção do internamento, de 6/04/2017, de acordo com o disposto no art. 26.º.
O internamento compulsivo, entretanto foi substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório, o qual veio a ser aceite pelo requerido a partir de 31/05/2017 (fls. 50 e 51).
Com o fundamento do requerido ter dado o seu consentimento, para tratamento em regime ambulatório, considerou o senhor juiz que deixaram de se verificar os pressupostos, que determinou o internamento compulsivo, determinando assim o arquivamento dos presentes autos.
Como princípio a observar nas medidas a adoptar, define-se no art. 2.º, n.º 1:
«A protecção da saúde mental efectiva-se através de medidas que contribuam para assegurar ou restabelecer o equilíbrio psíquico dos indivíduos, para favorecer o desenvolvimento das capacidades envolvidas na construção da personalidade e para promover a sua integração crítica no meio social em que vive».
Respeitando o princípio de que o internando só deve ser privado da sua liberdade no estritamente necessário para restabelecer o seu equilíbrio psíquico e se justifica como medida cautelar de proteger o perigo eminente de violação dos bens os bens jurídicos em causa, pois de acordo com o disposto no art. 8.º, n.º 1 e 3, o internamento compulsivo só pode ser determinado quando for a única forma de garantir a submissão a tratamento do internado e finda logo que cessem os fundamentos que lhe deram causa e sempre que possível o internamento é substituído por tratamento em regime ambulatório.
Dispõe por sua vez o art. 33.º, n.º 1 e 2, que o internamento é substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório sempre que seja possível manter esse tratamento em liberdade, dependendo a substituição de expressa aceitação, por parte do internando, das condições fixadas pelo psiquiatra assistente para o tratamento em regime ambulatório.
Porém, o facto de o internando ter dado o seu consentimento, para tratamento em regime ambulatório, não faz cessar a natureza do tratamento, continuar a ser compulsivo.
Só que o tratamento e cudados de saúde necessários que lhe eram ministrados em regime de internamento, passaram a ser ministrados em regime de liberdade, ou seja no seu meio social, em regime ambulatório, como preferencialmente aponta a Lei de Saúde mental, sempre que possível, uma vez verificados os requisitos, por terem diminuído as exigências cautelares que determinaram o internamento compulsivo urgente.
Por isso, não basta, a confirmação judicial do tribunal do internamento compulsivo e depois face à informação do relatório de avaliação clinico-psiquiátrica, da qual consta a evolução do internando, de 22/05/2017 (fls. 30) e a mera informação da médica psiquiátrica de que a partir de 31/05/2017, acompanhada do consentimento do internando (31/05/2017) a comunicar que o internamento compulsivo era substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório, para sem mais ordenar o arquivamento dos autos.
O tratamento compulsivo mantém-se em regime ambulatório, justificando-se o prosseguimento
dos autos, porque ainda se não cumpriu com eles o fim pretendido, isto é, o tribunal atenta a natureza dos autos deve acompanhar o desenvolvimento e assegurar-se que a medida imposta restabeleceu o equilíbrio do cidadão portador de doença mental, cujo distúrbio mental justificou a intervenção do juiz, por forma a assegurar o exercício pleno dos seus direitos, como decorre da aplicação da Lei da Saúde Mental.
A exigência de que os autos devem prosseguir, com o necessário acompanhamento dos autos pelo juiz, e sob a vigilância do Ministério Público, a quem compete proteger os incapazes e portadores de doença mental, retira-se do n.º 4, do art 33.º, ao referir que sempre que o portador da anomalia psíquica deixe de cumprir as condições estabelecidas, o psiquiatra assistente comunica o incumprimento ao tribunal competente, retomando-se o internamento.
Tal pressupõe que os autos se mantêm e com a mesma natureza, pois ainda não dirimiu o problema que tem em mãos, face à sua intervenção que lhe é exigível, dependendo o internamento compulsivo ou o tratamento compulsivo, em regime ambulatório, da exigências de tratamento até atingir o restabelecimento do equilíbrio psíquico portador de doença mental, caracterizada de “Psicose Esquizofrénica”.
Conforme dispõe o art. 34.º, o internamento só finda quando cessarem os pressupostos que lhe deram origem, ocorrendo a cessação, por alta dada pelo director clínico do estabelecimento, fundamentada em relatório de avaliação clínico-psiquiátrica do serviço de saúde onde decorreu o internamento, ou por decisão judicial, devendo a alta ser imediatamente comunicada ao tribunal competente. 
E na cessão dos pressupostos que lhe deram origem, deve ter-se em vista que ocorrem quando forem atingidos os fins pretendidos com o tratamento e cuidados médicos de saúde ministrados e impostos, independentemente do internando se manter em internamento compulsivo ou em tratamento compulsivo em regime ambulatório, em que foi convertido, e que pode ser revertível, retomando-se o internamento compulsivo.
Só assim haverá a efectiva protecção jurídica num problema que tem duas finalidades: curar o cidadão com doença metal e proteger a sociedade, enquanto se mantiverem os pressupostos nos autos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos e Convenção Europeia dos Direitos do Homem, reconhece que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos e reconhece que todos têm direito, designadamente à saúde, não podendo ser discriminados, em razão do seu grau de incapacidade física ou mental.
E o direito interno português faz eco desses princípios, com instrumentos jurídicos adequados à
protecção dos direitos e garantir meios processuais particularmente dirigidos à pessoa que sofre de doença mental, como acontece com a Lei de Saúde Mental, imbuída nesse mesmo espírito, tendo como guião, na sua filosofia de internamento e tratamento dos cidadãos portadores de doença mental: o equilíbrio psíquico; a integração crítica no meio social em que vive; prestação de cuidados a nível da comunidade; a inserção social; definição dos direitos e deveres do utente.
O direito substantivo e o direito processual neste domínio visam a protecção do cidadão com doença mental, apontando primordialmente para a devolução do doente à comunidade onde estão inseridos, logo que se restabeleça minimamente dos distúrbios de ordem psíquica de que foi afectado, que lhe permita a convivência em sociedade.
O requerido foi internado compulsivamente no dia 5/04/2017, devido á descompensação de Psicose Esquizofrénica de Tipo Paranóide (Anomalia Psíquica Grave) por haver perigo sério de atentar contra a integridade física da esposa e outras pessoas da sua convivência, conforme relatório de fls. 4.
Depois de confirmado judicialmente o internamento, foi elaborado o relatório de avaliação clinico-psiquiátrica, em 22/05/2017, do qual consta o seguinte com interesse para os autos:
«Encontra-se melhorado a nível comportamental, mantendo, no entanto, juízo crítico parcial para a sintomatologia e consequentes alterações de comportamento apresentados à data do internamento, nomeadamente fruto da presença de ideação delirante persecutória. Tal descompensação deve-se a rejeição do tratamento psiquiátrico que vinha realizando.
O quadro clínico apresentado é compatível com o diagnóstico de Psicose esquizofrénica, inscrita sob a rubrica F20.0 da 10.ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID.10) da organização Mundial de Saúde (OMS) a carecer de tratamento farmacológico continuado, seguimento e acompanhamento especializados.
Uma vez que não apresenta juízo crítico pleno e inequívoco para a doença de que padece e o necessário tratamento, somo de opinião que deverá manter-se o regime de tratamento compulsivo, por
ora em internamento».
Após a médica psiquiatra, do serviço de internamento, por ofício de 31/05/2017, informou que a partir desta data o internando passava a tratamento compulsivo em regime ambulatório.
Na sequência o senhor juiz limitou-se a ordenar o arquivamento dos autos, embora se justificasse o seu prosseguimento nos termos acima indicados.
Em conclusão: O internamento compulsivo visa essencialmente restabelecer o equilíbrio psíquico do cidadão, portador de doença mental, afectado de descompensação de Psicose Esquizofrénica de Tipo Paranóide (Anomalia Psíquica Grave), com perigo sério de atentar contra a integridade física da esposa e outras pessoas da sua convivência, em consequência de rejeição do tratamento psiquiátrico que vinha realizando.
O mesmo fim se tem em vista com a substituição por tratamento compulsivo em regime ambulatório, permanecendo ainda o risco de abandono, com eventual reversão das consequências inerentes.
Assim, o tribunal ao apreciar a medida proposta pelos peritos médicos, obtido o consentimento do requerido, deveria, prosseguir os autos, com aplicação do tratamento compulsivo em regime ambulatório, pelo período indispensável, até cessarem os pressupostos que o justificam, promovendo-se assim a transição para o regime de tratamento voluntário.
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III- Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes da 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, que ordenou o arquivamento dos autos, a qual deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento, visando a aplicação da medida de tratamento compulsivo em regime ambulatório, pelo tempo mínimo necessário, enquanto se mantiverem os pressupostos que o determinaram.
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Sem custas.
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NB: O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP. 
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Coimbra, 11 Outubro de 2017
 (Inácio Monteiro - Relator)
(Alice Santos - Adjunta)