Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
590/1999.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO
ENERGIA ELÉCTRICA
NATUREZA JURÍDICA
PRAZO DE CADUCIDADE
PREÇO
Data do Acordão: 03/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 890º, Nº1, DO C. CIV.; LEI Nº 23/96, DE 26/07
Sumário: I – O contrato de fornecimento de energia eléctrica é um contrato de compra e venda de coisa móvel (energia eléctrica), mediante o pagamento de um preço.

II – Todavia, neste tipo de contratos a determinação do preço a pagar é necessariamente feita em função da quantidade de energia consumida, a qual se desconhece no momento de subscrição do contrato – é, pois, contrato de compra e venda de coisa indeterminada (na sua medida ou quantidade).

III – Nessa medida, não são aplicáveis a tal tipo de contrato as normas relativas a uma compra e venda de coisa sujeita a contagem, pesagem e medição, nem o regime de caducidade próprio – artºs 887º, 888º, nº 2, e 890º, nº 1, do C. Civ..

IV – A generalidade da doutrina e da jurisprudência vem sustentando que a Lei nº 23/96, de 26/07, ao prescrever no nº 3 do seu artº 10º que “o disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão”, deixou inequivocamente de fora a média e a baixa tensão.

V – Para efeitos de facturação de energia, definiram-se os valores nominais de tensão em “baixa tensão” (igual ou inferior a 1kw), “média tensão” (superior a 1kw e igual ou inferior a 45kw) e “alta tensão” (superior a 45 kw e igual ou inferior a 110kw).

VI – Os prazos de prescrição e de caducidade de seis meses previstos nos nºs 1 e 2 do artº 10º da Lei nº 23/96 são de aplicar apenas aos utentes de “média” e de “baixa” tensão.

Decisão Texto Integral:          ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

         I- RELATÓRIO

         I.1- «CENEL – Electricidade do Centro, S.A.» intentou, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra «Cooperativa Agrícola dos ProdutoresA....SCRL», peticionando a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 11.732.364$00 referente ao fornecimento de energia eléctrica, acrescida de juros de mora vincendos desde a citação.

         Para tanto, alega essencialmente que: fornece continuadamente às instalações da ré sitas em Leiria, energia em alta tensão com a potência de 365,2 Kw; nessas instalações, em 26.2.96, foi instalado um contador de energia activa, marcando nessa ocasião o totalizador mecânico, 192 Kw; nesse tipo de contadores existe o totalizador mecânico e o processador estático multitarifas (P.E.M.) que traduzem a energia fornecida em Kw, sendo que as leituras que dão origem à facturação emitida mensalmente pela A., são as que constam no totalizador digital do processador estático multitarifa; em 26.11.98 uma brigada da A. ao analisar a equipa de medida existente nas instalações da ré, verificou que o P.E.M. se encontrava avariado, só funcionando e contando energia o totalizador mecânico, que marcava na ocasião, 471445 Kw; após exame laboratorial apurou-se que a sonda na parte electrónica apresentava um defeito de captação de impulsos que se repercutiu na contagem de energia que o totalizador digital foi apresentando ao longo do tempo; face a este defeito da sonda, o P.E.M. foi apresentando, desde a data da instalação do contador, um valor inferior de energia àquele que efectivamente era consumido pela ré; nestas circunstâncias, desde 26.2.96 até 26.11.98 foi sendo paga pela ré menos energia do que aquele que foi sendo efectivamente fornecida; em consequência da referida anomalia, não foram facturados pela A., na facturação emitida mensalmente, nem pagos pela ré, 200720 Kw, que a preços de 1998 ascende a 11.732.364$00 com IVA incluído à taxa de 5%; apesar de reconhecer a dívida reclamada e a necessidade do seu pagamento, a ré até hoje nada pagou.

         Contestou a ré, impugnando os factos alegados, sustentando que o totalizador digital sempre funcionou, nunca aceitou ou reconheceu a existência de qualquer anomalia e que, a existir o direito invocado pela A., ele caducou face ao disposto no nº1 do art.890º/C.C.  

         A A. respondeu, sustentando a inaplicabilidade à situação dos autos do disposto no referido art.890º.

No despacho saneador julgou-se improcedente a excepção da caducidade do direito da A., elaborou-se a selecção dos factos assentes e a dos levados à base instrutória.

         A ré recorreu do despacho saneador, recurso admitido como agravo, com subida diferida, e oportunamente minutado.

         I.2- O processo arrastou-se por alguns anos com exames periciais e laboratoriais, reclamações e diversas suspensões da instância, e finalmente, já neste século, realizou-se o julgamento em duas sessões, vindo a ser proferida sentença datada de 22.12.08 a julgar a acção totalmente procedente por provada.

         Novamente inconformada, apelou a ré.

         I.3- São as seguintes as conclusões (úteis) de cada um dos recursos:

Agravo

         1ª/ Considera a recorrente que o contrato de fornecimento de energia eléctrica se enquadra na disciplina legal dos arts.887º e segs. do C.C.;

         2ª/ A A. reclama o pagamento da diferença entre o preço da energia facturada e da energia consumida no período de 26.2.96 a 26.11.98 e a a acção deu entrada em juízo a 8.6.99;

         3ª/ Assim, considerando o disposto no art.890º/C.C., forçoso é concluir que o prazo de seis meses a que alude o referido preceito havia sido ultrapassado;

         4ª/ Pelo que deverá proceder a invocada excepção peremptória da caducidade do eventual direito da A.. 

         Apelação

         1ª/ A ré considera caducado o direito de acção da A., por força do disposto no nº2 do art.10º da Lei nº23/96, de 26.7;

         2ª/ O conceito de “alta tensão” que integra a previsão do nº3 do art.10º não é pacífica, havendo entendimentos que consideram que a “média tensão” está integrada na previsão desse artigo;

         3ª/Assim, considerando a data de propositura da acção, as diferenças de consumo peticionadas reportadas ao período de 26.2.96 a 26.11.98, e que a A. fornece à ré energia eléctrica em média tensão, teremos de concluir que o direito de acção da A. caducou.

I.4- Contra-alegou a A. nos dois recursos, sustentando o acerto das decisões impugnadas.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II - FUNDAMENTOS

Por não vir impugnada, nem haver lugar à sua alteração, dá-se como reproduzida a matéria de facto fixada na sentença recorrida (art.713º/6,C.P.C.).

Porque foi interposto recurso de agravo, primeiro, e depois recurso de apelação, iremos, antes de mais, apreciar aquele, nos termos do art.710º/1, C.P.C..

Recurso de agravo

A questão aqui colocada, é a de saber se se encontra extinto, por caducidade nos termos do art.890º/1, C.C., o direito da A. de exigir a diferença do preço da energia que não facturou, por defeito detectado no processador estático multitarifas colocado nas instalações da ré.

A ré/recorrente perspectivou a invocada excepção peremptória no âmbito do citado art.890º/1, onde se dispõe que “o direito ao recebimento da diferença de preço caduca dentro de seis meses ou um ano após a entrega da coisa, consoante esta for móvel ou imóvel”.

Na decisão impugnada julgou-se improcedente a excepção da caducidade, com fundamento na não aplicação das regras dos arts. 887º e segs. do C.C., por, na esteira de jurisprudência e doutrina que cita, o contrato de fornecimento de energia eléctrica, sendo um contrato de compra e venda, não tem por objecto coisa determinada.

E na verdade assim é.

Não se questiona que entre as partes foi celebrado um contrato de fornecimento de energia eléctrica, contrato que há-de ser juridicamente classificado como de compra e venda de coisa móvel (energia eléctrica), mediante o pagamento de um preço.

Todavia, neste tipo de contratos a determinação do preço a pagar é necessariamente feita em função da quantidade de energia consumida, a qual, obviamente, se desconhece no momento da subscrição do contrato. Assim, a identificação da coisa vendida não está feita no que respeita à sua quantidade, daí resultando que se está perante um contrato de compra e venda de coisa indeterminada (na sua medida ou quantidade) e não perante uma compra e venda de coisas sujeitas a contagem, pesagem e medição (arts.887º e 888º/2, C.C. para os quais se estabeleceu o regime da caducidade do referido art.890º/1). Acresce que o contrato em referência tem a natureza de um contrato unitário duradouro gerador de uma única relação obrigacional que perdura no tempo, enquanto que na venda de coisas determinadas a que alude o art.887º, um dos requisitos é a da entrega do objecto do contrato por uma só vez [1].

Por tudo isto, não pode integrar-se o contrato de fornecimento de energia eléctrica na hipótese tratada no art.887º, nem, consequentemente, no regime da caducidade do direito à diferença de preço consagrado no art.890º.

Dito isto, e sem necessidade de outras considerações, improcede o recurso de agravo, mantendo-se o despacho agravado.

Recurso de apelação

Na sentença apelada, e na certa por lapso, conheceu-se novamente da invocada excepção da caducidade, já apreciada no saneador se bem que por decisão não transitada.

Entendeu-se agora que não se verifica tal excepção nem o invocado art.890º, sendo aplicável o disposto no art.482º/C.C., ou seja, o prazo prescricional de três anos do direito à restituição por enriquecimento, que se julgou não ter decorrido.

Ora, como vimos, a ré considerou caduco, não prescrito - realidades distintas – o direito que a A. invoca nesta acção. Logo, não podia o tribunal conhecer ipso jure da extinção do direito por prescrição, que não foi invocada. Mas incidindo o recurso na parte que considerou não verificada a caducidade, iremos apreciá-lo.

A ré insiste em considerar caducado o direito de acção da A., assentando agora os seus argumentos na Lei nº23/96, de 26.7, entrada em vigor em 25.10.96, que regulou imperativamente certos aspectos da relação contratual estabelecida entre os utentes de serviços públicos essenciais e os respectivos fornecedores.

Acontece que a questão da caducidade suscitada no recurso, vem fundada no prazo consagrado no art10º/2 da referida Lei, quando na contestação a recorrente a perspectivou nos termos do art.890º. Daí que constitua matéria nova não submetida, portanto, à apreciação do tribunal recorrido, e cujo conhecimento nos está vedado por não ser do conhecimento oficioso.

Não obstante, e estando já decidido que não ocorreu a caducidade fundada no art.890º, sempre se dirá que, aplicando a referida lei à situação ajuizada (a acção foi proposta já na sua vigência), também não se verificou a caducidade do direito ao recebimento da diferença, por estar afastado o prazo do exercício desse direito previsto no nº2 do art.10º, por força do nº3.

Com efeito, a generalidade da doutrina e da jurisprudência vem sustentando que a Lei 23/96, ao prescrever no nº3 do art.10º que “o disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão”, deixou inequivocamente de fora a média e a baixa tensão.[2]

Para efeitos de facturação de energia, definiu-se os valores nominais de tensão em “baixa tensão” (igual ou inferior a 1Kw), “média tensão” (superior a 1Kw e igual ou inferior a 45Kw) e “alta tensão” (superior a 45Kw e igual ou inferior a 110Kw). Os prazos de prescrição e de caducidade de seis meses previstos nos nºs 1 e 2 do art.10º são de aplicar aos utentes de “média” e “baixa” tensão. Visou a Lei proteger os pequenos e médios consumidores de energia eléctrica e a estes corresponde o fornecimento em pequena e média tensão, respectivamente.

Ora, a recorrente adere à corrente jurisprudencial que se formou sobre esta temática, espraiando-se em longo articulado. Só que, ao defender a aplicabilidade ao caso da norma do nº2 do art.10º, partiu de um pressuposto errado: o de que a energia fornecida é em “média tensão”, como agora salienta, quando ficou provado que respeita a “alta tensão”.

Na verdade, deu-se logo como assente (al.B) dos factos assentes) que “A A., no exercício da sua actividade, forneceu e fornece continuadamente ás instalações da ré (…) energia em alta tensão, com a potência de 365,2 Kw”. Tal facto foi decalcado do art.2º da p.i., que a ré afirmou ser verdade (art.1º da contestação).

Portanto, mantendo-se inalterada a factualidade assente, não havendo motivo para a sua alteração nos termos do art.712º/1, C.P.C., nem isso foi requerido, enquadrada no âmbito da qualificação da potência de “alta tensão” o fornecimento energético efectuado à ré, há que concluir, de acordo com a delimitação negativa prevista no nº3 do art.10º, ser inaplicável à situação em apreço o prazo semestral do nº2 do mesmo preceito.

Não assiste, por conseguinte, razão à recorrente.

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III – DECISÃO

Acorda-se, pelo exposto, em negar provimento ao agravo e em julgar improcedente a apelação, confirmando-se as decisões impugnadas.

Custas pela ré.


[1]  A jurisprudência é unânime neste sentido. Cfr. Ac. R.P. de 29.4.93 (CJII/93-299), Ac.STJ de 10.11.93 (CJstjIII/93-114), Ac.STJ de 31.5.94 (CJstjII/94-123), AcSTJ de 30.1.97 (CJstjI/97-85), Ac.STJ de 27.10.98 (CJstjIII/98-87) e Ac.STJ de 6.12.01 (CJstjIII/01-135). Ainda, e na doutrina, P.Lima e A. Varela, «C.C. anotado», Vol.II, pág.184 
[2]  entre outros, os Acs. STJ de 12.7.01 (CJstjIII/01-35), de 29.4.04 (proc.04B869), de 30.9.08 (proc.08A2330), de 16.10.08 (proc.08A2610), e de 3.11.09 (proc.2262/05.3AZ). Também o Ac. desta Relação de 19.2.08 (apelação nº2465/06.8) mencionado pela recorrente nas alegações, e em que a aqui relatora interveio como adjunta.