Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
34764/12.4YIPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA INÊS MOURA
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
COMPETÊNCIA CONVENCIONAL
PACTO ATRIBUTIVO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 74, 100 CPC, 334, 405 CC
Sumário: 1. O artº 100 nº 2 do C.P.C. impõe que as partes ao estabelecerem a competência convencional do tribunal designem ou indiquem o critério para a determinação do tribunal que fica sendo o competente, sob pena da invalidade de tal cláusula.

2. O abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, implica a criação de uma situação objectiva de confiança, através de uma conduta de alguém que possa ser entendida como posição vinculante em relação à situação futura.

3. A A. não excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, ao intentar a acção no foro legalmente permitido, afastando o cumprimento de uma cláusula de competência convencional inválida, já que não está demonstrado que a mesma criou na R. uma expectativa sólida de que tal não aconteceria, ou que tivesse sido da sua responsabilidade a omissão do critério que determinou a invalidade de tal cláusula.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

O presente recurso é interposto no âmbito da acção declarativa de condenação que corre termos com a forma de processo ordinário, e que teve origem em requerimento de injunção intentado por E (…) Ldª contra a J (…), Ldª invocando aquela o incumprimento de contrato de subempreitada com ela celebrado e pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 30.449,70.

A R. veio deduzir oposição. Invoca a R. a incompetência do Tribunal do Fundão, em razão do território, tendo em conta a cláusula 14ª do contrato que está em litígio e que estabelece que: “Para a resolução de qualquer litígio do presente contrato é competente o foro de Coimbra.” Conclui que para a tramitação da acção é competente o Tribunal de Coimbra. Impugna ainda os factos alegados pela A. e pugna a final pela sua absolvição do pedido.

Em sede de despacho saneador o Exmº Juiz pronunciou-se sobre a excepção de incompetência relativa do tribunal, concluindo no sentido da sua improcedência e pela competência do Tribunal do Fundão para tramitar e decidir a acção. Considerou que, no caso, é permitida a convenção das partes a afastar as regras de competência em razão do território e a determinar o foro competente, mas considerou inválida a cláusula do contrato que a estipulou por não ter designado o critério que presidiu à determinação do tribunal aí estipulado como o competente, como é exigência do artº 100 nº 2 do C.P.C.

É com esta decisão que a R. não se conforma e vem interpor recurso de apelação da mesma, apresentando as seguintes conclusões:

1. A Ré ora Recorrente, veio suscitar a incompetência do Tribunal Judicial do Fundão para julgar o objecto da pretensão da Autora/Recorrida em virtude de, na cláusula 14ª do acordo celebrado a 15/01/2012 entre ambas, junto aos autos a fls. 15 a 17, denominado “Contrato de Subempreitada” terem estipulado que «Para resolução de qualquer litígio do presente contrato é competente o foro de Coimbra».

2. Tal questão veio a ser apreciada no douto despacho saneador proferido, tendo sido julgada improcedente.

3. Na fundamentação da sua decisão, o Tribunal “a quo” refere que, nos termos da actual redacção do artigo 74º, n.º 1 do CPC, após a entrada em vigor da Lei n.º 14/2006, aplicável ao caso em apreço (uma vez que estamos perante uma acção destinada ao cumprimento de obrigações contratualmente assumidas), e abstraindo a questão da existência do pacto de aforamento celebrado ínsito na referida cláusula, o tribunal competente para a apreciação desta causa seria o tribunal do domicílio da Ré (neste caso Coimbra) ou do tribunal do lugar onde a obrigação deveria ser cumprida.

4. Tratando-se de uma obrigação pecuniária, esta deveria ser cumprida, atento o disposto no artigo 774º do CPC, no lugar do domicílio do credor, ao tempo do cumprimento, ou seja, na comarca do Fundão.

5.  Assim, atento o disposto no artigo 74º, n.º 1 do CPC, o tribunal competente para julgar a presente acção seria o Tribunal de Coimbra ou o Tribunal do Fundão, à escolha do credor.

6.  Como seriam ambos os tribunais os competentes à luz da lei, procedeu então à apreciação da validade do pacto de aforamento celebrado entre as partes.

7.  Nos termos do disposto no artigo 100º, n.º 1, 1ª parte do CPC, as regras da competência dos tribunais em razão do território podem ser afastadas por convenção expressa, a não ser nos casos previstos no artigo 110º do mesmo diploma.

8.  Nos termos do disposto no artigo 110º, n.º 1, al. a) uma das causas a que se refere esse normativo são aquelas a que se refere a primeira parte do n.º 1 do artigo 74º do CPC.

9.  As partes ao terem determinado como competente, no pacto de aforamento celebrado, o Tribunal de Coimbra, afastaram “ab initio” qualquer direito de opção por parte de ambas, à luz da actual lei processual vigente, entre o domicílio do réu e o lugar em que deveria ser cumprida a obrigação aquando de uma eventual propositura de acção.

10.  Tal convenção assume estrutura contratual porque se traduz num acordo de vontades tributário do princípio da liberdade contratual que decorre do artigo 405º do Código Civil, nos limites da lei.

11.  Por isso, no que concerne aos requisitos de validade, incluindo o modo de formação da vontade dos outorgantes, é-lhes aplicável, o regime de direito substantivo vigente ao tempo da respectiva outorga.

12.  Para que tais convenções sejam válidas, nos termos do disposto no artigo 100º, n.º 2 do CPC, devem satisfazer os requisitos de forma do contrato, fonte da obrigação, contando que seja reduzido a escrito, devem designar as questões a que se referem e o critério da determinação do Tribunal que fica sendo competente.

13.  No que concerne à designação das questões abrangidas por tais convenções, de acordo com o disposto no artigo 100º, n.º 4º do CPC, pode fazer-se pela especificação do facto susceptível de as originar.

14.  Considerou o Tribunal “a quo” verificado o requisito de forma, uma vez que tal cláusula foi reduzida a escrito,

15.  E ainda verificado o segundo requisito uma vez que as questões a que se refere são todas sem excepção.

16.  Contudo, considerou não verificado o terceiro requisito uma vez que o clausulado não indica, menciona ou designa o critério que presidiu à determinação do Tribunal ali estipulado como competente,

17.  Pelo que concluiu que não se verificando todos os requisitos legais para a sua validade, entendeu que a cláusula convencional atributiva de competência territorial é inválida ou nula, e portanto não pode dela extrair-se qualquer efeito,

18.  Julgando, em consequência, improcedente a excepção de incompetência territorial arguida pela Ré ora Recorrente.

19.  Ora, salvo o devido respeito por melhor entendimento, não assiste razão ao Tribunal “a quo”,

20.  Já que se no pacto de competência os contraentes determinaram o Tribunal que julgará a causa, torna-se desnecessário que indiquem o critério que presidiu à respectiva determinação.

21.  Tendo a escolha do tribunal recaído sobre um dos que legalmente seria competente para julgar a acção, não se pode considerar que o critério que esteve na base da sua determinação tenha a ver com razões ou manifestações de mero capricho, oportunismo ou mera comodidade de ambas.

22.  Ao escolherem o Tribunal competente, as partes pretenderam assegurar a localização onde seriam dirimidos eventuais litígios decorrentes da sua execução por forma a, ab initio, poderem fazer uma estimativa dos custos que os mesmos comportariam.

23.  Se outra fosse a interpretação corre-se o risco de se verificar uma situação de verdadeiro abuso de direito (artigo 334º, n.º 1 do CPC), já que terá de se considerar existir venire contra factum proprio,

24.  pois a Autora, por acordo com a Ré, aqui Recorrente, aquando da celebração do contrato que consubstancia a causa de pedir da acção em apreço, aceitou fixar como competente para dirimir qualquer litígio eventualmente decorrente da execução do mesmo o foro de Coimbra

25.  e uma vez verificada a necessidade de intentar a respectiva acção judicial, não respeita o pacto de aforamento que celebrou e exerce o direito de opção que a lei lhe confere, ignorando por completo a sua existência.

26.  Pelo que terá de se considerar igualmente verificada a existência deste requisito, considerando-se válido e plenamente eficaz o pacto de aforamento celebrado.

27.  Face à sua validade, a infracção do pacto de aforamento gera incompetência relativa do Tribunal, porque por ele se atribui ao tribunal escolhido competência exclusiva – “a competência fundada na estipulação é tão obrigatória como a que deriva da lei” (artigo 100º, n.º 3 do CPC).

A A. não a apresentou contra-alegações.

II. Questões a decidir

Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas suas conclusões (artº 684 nº 3 e 685 A nº 1 do C.P.C.), salvo questões de conhecimento oficioso- artº 660 nº 2 in fine.

- da validade da cláusula convencional atributiva de competência territorial ao foro de Coimbra, afastando as regras gerais de determinação da competência do tribunal em razão do território;

- do abuso de direito da A. ao intentar a acção num tribunal que sabe não corresponder ao tribunal convencionado pelas partes.

III. Fundamentos de Facto

Os factos relevantes para a apreciação das questões a decidir são os que constam do relatório elaborado.

IV. Razões de Direito

- da validade da cláusula convencional atributiva de competência territorial ao foro de Coimbra, afastando as regras gerais de determinação da competência do tribunal em razão do território.

Não está em causa no presente recurso a questão de saber se as partes podiam ter afastado por convenção expressa a aplicação das regras de competência em razão do território. Na verdade, pelo Exmº Juiz “a quo” foi entendido que tal convenção é permitida, nos termos do disposto no artº 100 nº 1 do C.P.C. por não se enquadrar em nenhum dos casos previstos no artº 110 do C.P.C., numa decisão bem fundamentada e clara e que, nesta parte, não teve qualquer oposição.

Considerou, no entanto, a decisão sob recurso que a cláusula convencional que corporiza tal acordo não satisfez todos os requisitos legais previstos no artº 100 nº 2 do C.P.C., por não referir o critério de determinação do tribunal competente.

Vejamos se assim é.

O artº 100 do C.P.C., com a epígrafe “Competência convencional” prevê, no seu nº 1, a possibilidade de serem afastadas, por convenção expressa das partes, a aplicação das regras de competência em razão do território, desde que não estejam em causa as situações a que se refere o artº 110 do C.P.C.

O nº 2 do artº 100 dispõe sobre os requisitos que devem ser observados em tal acordo determinativo da competência do tribunal em razão do território e que são três:

- o acordo deve satisfazer os requisitos de forma do contrato fonte da obrigação, contanto que seja reduzido a escrito, nos termos do nº 4 do artigo anterior;

- deve designar as questões a que se refere;

- deve designar o critério de determinação do tribunal que fica sendo o competente.

Na decisão sob recurso foram considerados verificados os dois primeiros requisitos mencionados nesta norma: a exigência de forma escrita da cláusula convencional de estipulação da competência e as questões a que se refere. Nesta medida, não constituindo as mesmas objecto do recurso, por com elas não se prenderem as discordâncias da Recorrente, não se perderá tempo com a avaliação de tais questões.

A questão controvertida centra-se sim no terceiro requisito referido, na medida em que foi considerado que as partes não designaram o critério de determinação do tribunal que fica sendo o competente, concluindo, nessa medida, pela invalidade da cláusula que fixou a competência convencional.

O artº 14 do contrato de subempreitada celebrado entre as partes estabelece tão só que: “Para a resolução de qualquer litígio do presente contrato é competente o foro de Coimbra.”

Ora, é manifesto que as partes não designam ou indicam qualquer critério para a determinação do tribunal que fica sendo o competente.

Aliás a própria Recorrente o refere nas suas alegações, para concluir que: “no pacto de competência os contraentes determinaram o Tribunal que julgará a causa, tornando-se desnecessário que indiquem o critério que presidiu à respectiva determinação.”

Ou seja, na prática a Recorrente, admitindo que não indicou tal critério, considera desnecessário que se indique o mesmo, quando a lei diz expressamente, no artº 100 nº 2 do C.P.C., que tal critério deve ser indicado. Não se encontra por isso qualquer suporte no ponto de vista da Recorrente.

O artº 100 do C.P.C. permite às partes acordarem no foro que há-de resolver os litígios que entre elas surjam, mas impõe que, caso o pretendam, observem os requisitos que determinam a validade de tal convenção. Não é concedida, neste aspecto, inteira liberdade das partes.

Alega a Recorrente, a este respeito, que tendo as partes determinado o tribunal que julgará a causa, torna-se desnecessário que indiquem o critério que presidiu à respectiva determinação. Contudo, tal não tem qualquer acolhimento na lei, em concreto, na norma mencionada. Na verdade, o Recorrente pode ter tal indicação como desnecessária, mas não foi isso que o legislador considerou, ao estabelecer expressamente na norma em questão que as partes devem designar o critério de determinação do tribunal que fica sendo o competente.

O artº 100 do C.P.C. veio a sofrer alterações quer com o Decreto Lei 329-A/95 de 12 de Dezembro, quer com o Decreto Lei 180/096 de 25 de Setembro, tendo sido na sequência das mesmas que o legislador veio introduzir a necessidade de observância dos critérios previsto no nº 2 para a competência convencional.

Tal como é referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04/05/2004, in. www.dgsi.pt : “ Ao acrescentar mais esse requisito afigura-se-nos que foi preocupação deliberada do legislador que tais pactos ou convenções de competência - que retiram aos tribunais, que a priori estavam legalmente destinados a dirimir determinados conflitos, a competência para apreciar e julgar as respectivas acções - obedeçam objectivamente a razões sérias e razoavelmente compreensíveis à luz dos interesses em discussão, evitando-se, assim, que tal desvio à competência natural, e que está pré-estabelecida, dos nossos tribunais para julgar certas causas tenha somente a ver com razões ou manifestações de mero capricho, oportunismo ou de mera comodidade das partes.”

Invoca a Recorrente que a cláusula da escolha do tribunal não pode ver-se como caprichosa ou oportunista pelas partes, na medida em que o acordo das mesmas recaiu sobre um dos tribunais competentes, de acordo com o critério do artº 74 nº 1 do C.P.C. Contudo, isso trata-se de uma avaliação feita pela parte e que não tem que ser feita pelo tribunal. O nº 2 do artº 100 impõe para a validade da cláusula convencional que seja designado o critério que serve para a determinação do foro, dispensando a necessidade de se efectuar qualquer avaliação no sentido de averiguar se a escolha efectuada pelas partes é ou não oportunista.

Conclui-se por isso que, não tendo sido feita pelas partes a designação do critério de determinação do tribunal que fica sendo o competente, a cláusula convencional relativa à determinação do foro é inválida, por não respeitar as exigências do artº 100 nº 2 do C.P.C., não merecendo, nesta medida qualquer censura a decisão sob recurso.

- do abuso de direito da A. ao intentar a acção num tribunal que sabe não corresponder ao tribunal convencionado pelas partes.

Invoca a Recorrente uma situação de abuso de direito por parte da A., na modalidade de venire contra factum proprium, ao intentar a acção judicial num tribunal que sabe não ter correspondido ao acordo das partes quando da realização do contrato, não respeitando assim o pacto de aforamento e exercendo o direito de opção do tribunal na modalidade que a lei lhe confere.

É certo que esta é uma questão nova que não foi anteriormente suscitada pela Recorrente, nomeadamente quando invocou a excepção da incompetência do tribunal. De qualquer forma, sendo de conhecimento oficioso, a sua apreciação impõe-se ao tribunal, nos termos do disposto no artº 660 nº 2 do C.P.C.

O instituto do abuso de direito tem a sua previsão no artº 334 do C.Civil que estabelece que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. Está em causa o exercício anormal do direito em termos reprovados pela lei, ou seja, respeitando a estrutura formal do direito, mas violando a sua afectação substancial, funcional ou teleológica.

Não podemos, no entanto, esquecer que não é qualquer conduta que é susceptível de integrar o conceito de abuso de direito. O artº 334 nº 1 do C.Civil impõe que o titular do direito exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Dizem-nos a este propósito, com grande propriedade, Pires de Lima e Antunes Varela, in. Código Civil anotado, pág. 217, em anotação a este artº 334, o seguinte: “Exige-se, no entanto, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem pois fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (Teoria Geral das Obrigações, pág. 63). O Prof. Vaz Serra refere-se, igualmente, à “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” (Abuso do direito, no Bol. N.º 85, pág. 253).”

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2002, in. www.dgsi.pt refere a este propósito que: “ a teoria do abuso de direito serve, como se sabe, de válvula de segurança para casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação, geral e abstracta, de normas legais, obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado.”

Pressuposto do abuso de direito, na invocada modalidade do venire contra factum proprium é, sempre, uma situação objectiva de confiança – uma conduta de alguém que possa ser entendida como posição vinculante em relação à situação futura - e o investimento na confiança pela contraparte e boa fé desta, vd. neste sentido Ac. STJ de 11/3/99, in. CJ VII, 1º tomo, pág.154.

Razões de lealdade e confiança são inerentes ao princípio da boa fé, que se impõe, quer na negociação dos contratos, quer na sua execução, conforme dispõem, respectivamente o artº 227 e 762 nº 2 do C.Civil. Pressuposto do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, é então a criação de uma situação objectiva de confiança- uma conduta de alguém que lhe irá ser vinculativa no futuro, apresentando-se o exercício do direito como contraditório em face de conduta anterior.

Refere Baptista Machado, in. Obra Dispersa, vol. I, pág, 415 que o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico. É sempre necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis.”

No caso em presença, a confiança depositada pela Recorrente na circunstância de que, havendo um litígio emergente do contrato celebrado com a Recorrida, o mesmo seria dirimido no tribunal de Coimbra, não pode fundamentar-se apenas no acordo de vontades direcionado para o estabelecimento de tal cláusula de competência convencional inválida. Era necessário que a Recorrente tivesse demonstrado que essa confiança era justificada a partir de um comportamento da A. que de forma séria e consistente lhe tivesse criado a expectativa de que tal cláusula não seria por si afastada, apesar de inválida. Vd. neste sentido, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 08/06/2010, in. www.dgsi.pt

Neste caso não podemos dizer que a A. excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, ao intentar a acção no foro legalmente permitido, afastando o cumprimento de uma cláusula de competência convencional inválida, já que não está demonstrado que a mesma criou na Recorrente uma expectiva sólida de que tal não aconteceria.

Tal comportamento podia ter existido, por exemplo se a A. soubesse da invalidade de tal cláusula quando a mesma foi integrada no contrato e que a impôs ou aceitou incluí-la naqueles termos para mais tarde a afastar unilateralmente, com fundamento na invalidade que conhecia ou até se fosse da A. a responsabilidade pela invalidade da cláusula, pelo facto de não ter querido referir na mesma o critério determinativo da competência, conforme é exigência legal. Nada disto se provou ou foi sequer alegado pela R.

Nesta medida, resta concluir que os factos apurados não apontam de forma suficiente para a existência de um comportamento manifestamente desleal por parte da A. ou contrário à boa fé, nem integram uma situação de venire contra factum proprium, nada obstando a que a A. intente a acção num tribunal que é o competente face aos critérios legais, afastando uma cláusula convencional inválida. Os factos apurados não demonstram que o resultado da conduta da A. constitui, em si, uma clara injustiça.

Importa finalmente lembrar que, além do mais, o que a Recorrente pretende é prevalecer-se de uma cláusula ilegal, sendo certo que, na medida em que se trata de uma cláusula convencional- estipulada por acordo das partes- a própria Recorrente tem igualmente responsabilidade na sua invalidade. Ora, não deixaria de ser estranho que o instituto do abuso de direito permitisse à parte com responsabilidade na determinação de um cláusula inválida socorrer-se da mesma em seu benefício.

Por tudo quanto fica exposto, conclui-se que não pode falar-se de abuso de direito por parte da A. ao intentar a acção no foro de competência legal, preterindo o cumprimento de uma cláusula convencional inválida.

V. Sumário:

 1. O artº 100 nº 2 do C.P.C. impõe que as partes ao estabelecerem a competência convencional do tribunal designem ou indiquem o critério para a determinação do tribunal que fica sendo o competente, sob pena da invalidade de tal cláusula.

2. O abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, implica a criação de uma situação objectiva de confiança, através de uma conduta de alguém que possa ser entendida como posição vinculante em relação à situação futura.

3. A A. não excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, ao intentar a acção no foro legalmente permitido, afastando o cumprimento de uma cláusula de competência convencional inválida, já que não está demonstrado que a mesma criou na R. uma expectiva sólida de que tal não aconteceria, ou que tivesse sido da sua responsabilidade a omissão do critério que determinou a invalidade de tal cláusula.

 VI. Decisão:           

Em face do exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pela R., confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Notifique.

                                                           *

                                              

                                               Maria Inês Moura (relatora)

                                               Luís Cravo (1º adjunto)

                                               Maria José Guerra (2º adjunto)