Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
380/12.5TXCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: PERDÃO DE PENA
Data do Acordão: 04/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 2.º E 10.º DA LEI N.º 9/2020, DE 10 DE ABRIL; ART. 13.º DA CRP
Sumário: I – O perdão de penas consagrado no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só é concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor daquele diploma legal, ficando, consequentemente, excluídos da medida de graça referida os condenados que não tenham ingressado em estabelecimento prisional.

II – Esta interpretação normativa não viola o princípio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:
I - Relatório

 1.1. Ministério Público veio interpor recurso do despacho proferido pelo Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, que julgou perdoada a pena aplicada no âmbito do processo no âmbito do processo nº 54/11.4GBMGR, nos termos do artº 2º, n.º 1, da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, declarando ainda consequentemente cessada a contumácia.

1.2. No recurso em apreciação, apresentou as seguintes conclusões:

1ª - O perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional;

2ª - O artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, de 6 de Abril, suspendeu todos os prazos para a prática de actos processuais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19;

3ª - Pelo que, enquanto durar a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, está suspensa toda a tramitação processual tendente à emissão e execução de mandados de captura na sequência de condenação transitada em julgado;

4ª - Desta forma se evitará que, durante esse mesmo período, ingressem no estabelecimento prisional novos reclusos, e assim se logrará garantir que não seja ocupado o espaço prisional deixado livre pela libertação dos reclusos abrangidos pelo perdão;

5ª - Restringir a aplicação do perdão previsto na Lei n.º 9/2020 aos condenados que se encontram já recluídos à data da entrada em vigor daquela mesma lei, excluindo os condenados ainda não recluídos, não viola o princípio da igualdade plasmado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa;

6ª – Ao perdoar a pena de prisão aplicada ao arguido A. no âmbito do Processo nº 54/11.4GBMGR, não estando este preso à data da entrada em vigor da Lei n. º 9/2020, o tribunal proferiu decisão ilegal, por violação no disposto no art. 2º, n.º 1, desse mesmo diploma legal.

  

 2.1.  Notificado o arguido, o mesmo não respondeu.

 

2.3. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público junto ao Tribunal da Relação emitiu parecer acompanhando integralmente o Ministério Público do tribunal a quo.


***

II –Fundamentação de Facto

Transcrição do despacho sob recurso:

A. foi condenado, por decisão transitada em julgado em 23/05/2012, no âmbito do processo nº 54/11.4GBMGR, na pena de 9 meses de prisão, a cumprir por dias livres, com a duração de 54 períodos, correspondentes a outros tantos fins-de-semana, pela prática de crime condução de veículo sem habilitação legal e condução perigosa.

O condenado iniciou o cumprimento da aludida pena em 13 de Outubro de 2012, tendo entretanto deixado de comparecer, faltando-lhe cumprir 32 períodos. Por decisão proferida em 31/03/2016 foi determinado o cumprimento da pena de prisão em contínuo, face ao verificado incumprimento.

Uma vez que não se mostrou possível a sua notificação da decisão proferida veio o mesmo a ser declarado contumaz.

De referir que no seguimento do defendido pelo Sr. Desembargador José Quaresma, em artigo publicado em e-book do CEJ, em edição actualizada em 22 de Abril de 2020, se considera que estão abrangidos no âmbito do perdão as situações que ainda sobejam de prisão por dias livres, “já que aqui, embora de forma intermitente, há verdadeiramente um estatuto de recluso e ocupação do meio prisional, com riscos inerentes e que por via do perdão a conceder se pretende evitar”.

Assim, julga-se a pena aplicada no âmbito do processo nº 54/11.4GBMGR  perdoada nos termos dos mencionados preceitos, mas sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente, caso em que, a pena aplicada a tal infracção, acrescerá à agora perdoada.

Por outro lado, determina-se a cessação da contumácia anteriormente declarada.

Cumpra-se o disposto no art. 337º, 6, in fine do Cód. Penal Penal.

Notifique.

 

III – Fundamentação de Direito

Apreciando e decidindo

a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série.

b) A questão a apreciar neste recurso, prende-se essencialmente em saber se o perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, deve ser aplicado apenas a condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor que sejam reclusos (ou seja, que se encontrem em cumprimento de pena efectiva no EP), excluindo os condenados que ainda não tenham essa qualidade, ou seja, que ainda não tenham ingressado fisicamente no estabelecimento prisional.

c) Antes de mais, convém recordar que já alguma jurisprudência apreciou a aplicação do perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, designadamente neste tribunal da Relação de Coimbra.

Da sua leitura resulta que existem essencialmente 2 posições; a primeira que entende  que o  perdão de penas, previsto no artigo 2º da Lei nº 9/2020 de 10/04, só é concedido a reclusos condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor daquele diploma legal, excluindo da sua aplicação os condenados que não tinham ingressado no estabelecimento prisional até ao  momento da entrada em vigor da lei (cfr. Ac. desta Rel. de Coimbra de 9-9-2020, processo n.º  178/20.7TXCBR-B.C1); e a segunda  que admite que o mesmo perdão pode ser igualmente aplicado a condenados que, no decurso da vigência daquela lei, venham a estar na situação de reclusão  - v.g., cfr.  Ac. desta Rel. de Coimbra de 30-9-2020, processo n.º 744/13.7TXCBR-P.C1., disponível em www.dgsi.pt, como todas as outras decisões citadas neste acórdão.

d) A segunda posição, no sentido de que o perdão previsto no artigo 2º da Lei nº 9/2020, verificados os demais pressupostos, se aplica não só aos que se encontravam já recluídos aquando da entrada em vigor daquela lei, como ainda aos que ingressem no E.P. enquanto se mantiver em vigor a mesma lei, pode ainda recolher-se do Ac. desta Relação de Coimbra de 7-10-2020, processo n.º 719/16.4TXPRT-F.C1, onde se lê (…)  Para tal conclusão, concorre desde logo a exposição de motivos da Proposta de Lei 23/XIV, que deu origem à Lei nº 9/2020, retirando-se da sua leitura que a preocupação do legislador foi a de conter a expansão da doença no meio prisional. E a partir do momento em que a vigência da Lei nº 9/2020 foi prorrogada após a nova redação introduzida ao artigo 10º da lei nº 9/2020, de 10/04, pela lei nº 16/2020, de 29/05), que se justifica pelo estado de permanência da pandemia, (…) tal conduz  a uma interpretação atualista (pois a Proposta do Governo parecia inicialmente apontar em tomada de medidas com um determinado limite temporal mais curto, mais imediato e bem delimitado no tempo) no sentido de que a mesma não só se aplicou e produziu efeitos imediatos quanto aos reclusos no momento da sua entrada em vigor, como será igualmente de aplicar a qualquer condenado com decisão transitada em julgado que adquira o estatuto de recluso durante a sua vigência, ou porque se apresentou (o condenado) voluntariamente no EP para cumprimento da pena de prisão ou porque foi detido e conduzido ao EP em consequência do cumprimento dos mandados de detenção para execução da pena (desde que se verifiquem os necessários requisitos substantivos exigidos) .

No mesmo sentido, escreveu-se  que, “…em termos sistemáticos, este artigo (o art 10º da referida Lei) inculca a ideia de que a lei não visou apenas ser dirigida para o imediato, a quem já era recluso, mas pretendeu contemplar situações de futuros reclusos, pois consagra que a vigência da “presente lei” só cessará quando acabar a situação excecional de “prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV2 e da doença COVID-19”, ideia que veio a ser reforçada através da lei nº 16/2020, de 29/05, que ao alterar o artigo 10º daquela lei veio afirmar que a mesma se mantinha em vigor, assim se afastando da doutrina e jurisprudências há muito existentes em sede de medidas de graça, precisamente porque atendeu “…às circunstâncias em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo que estamos a viver, sem paralelo com outros momentos em que foram publicadas leis de amnistia” - cfr. o já supra referido Ac. da Rel. de Coimbra de 30-9-2020, 744/13.7TXCBR-P.C1.

e) A esta argumentação pode ainda acrescentar-se que o n.º 7 do artigo 2.º da Lei 9/2020 de 10-4 (onde se refere a condição de recluso do beneficiário do perdão) remete apenas para o n.º 1 e 2, olvidando o n.º 3 onde consta a prisão subsidiária decorrente de conversão de penas de multa nos termos do artigo 49.º do Código Penal. E o n.º 5 de tal normativo diz que “relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão”, o que inculca a existência de penas principais que deverão ser perdoadas independentemente da situação de reclusão se for revogada a pena substitutiva no período de vigência da Lei 9/2020 de 10-4 e posteriormente à data de entrada em vigor desta Lei, uma vez que se tivesse sido intenção do legislador aplicar o perdão apenas a condenados reclusos, ao invés de ter dito, neste n.º 5, “se houver lugar à revogação ou suspensão” deveria ter dito “se tiver havido lugar à revogação ou suspensão” pois é pressuposto da reclusão ter existido, no passado, em momento anterior à entrada em vigor da Lei n.º 9/2020 uma revogação de pena substitutiva – cfr. alegações do Ministério Público, no Ac. da Rel. de Lisboa de 22-2-2021, processo n.º 784/16.4PHNST-A.L1-5.

f) Todavia, no caso em apreciação, estamos ainda perante uma terceira situação; sendo certo que o arguido se encontra condenado numa pena de prisão não superior a 2 anos, e por um dos crimes não excluídos do perdão, o mesmo não se encontra recluído.

E nestas circunstâncias - não reclusão do potencial beneficiário do perdão -  a posição unânime deste tribunal da Relação de Coimbra, vai no sentido da não aplicação do perdão, aqui se incluindo as decisões que aceitam a aplicação da Lei a outros condenados, que não apenas os que estavam já recluídos no momento da aplicação da lei.

A argumentação relativamente à não aplicação da mesma lei a condenados não recluídos, pode retirar-se do acórdão desta Relação de Coimbra, de 28-10-2020, proferido no processo n.º 109/20.4TXCBR-B.C1, que de seguida se transcreve parcialmente:

(…) Como se conclui no acórdão desta Relação de 30 de Setembro de 2020, relatora Des Maria José Nogueira “ o perdão só pode incidir sobre penas relativas a pessoas condenadas, por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor do Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, que no momento da sua aplicação se encontrem efetivamente recluídas.”, ou seja, em efectivo cumprimento de pena de prisão em estabelecimento prisional, o que resulta de uma interpretação gramatical, sistemática e teleológica Lei n.º 9/2020. (…).

O que merece a nossa concordância já que se trata de uma lei de carácter excepcional e temporário justificado pela existência de uma situação de infecção pandémica (vírus SARS-CoV-2) que conduziu à declaração do estado de emergência no país, pelo que não consente qualquer interpretação analógica ou extensiva. Com efeito, é entendimento uniforme e pacífico de que “as leis de amnistia (num sentido amplo, aqui incluindo as leis que consagram perdões de penas), como providências de excepção, devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem extensões nem restrições que nelas não venham expressas” (cf. Ac. STJ de 07-12-2000, proc. n.º 2748/2000 – 5.ª; SATJ, n.º 46, 45) - Cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português, anotado, 16.ª ed., pág. 439. Veja-se ainda a exposição de motivos da Proposta de Lei 23/XIV (que deu origem à Lei n.º 9/2020); a posição de Nuno Brandão, em estudo publicado na Revista Julgar - A libertação de reclusos em tempos de COVID-19, Um primeiro olhar sobre a Lei n.º 9/2020, de10/4», Julgar online, abril 2020, p. 6-7; a posição de Vítor Pereira Pinto, em estudo publicado no SIMP - O perdão previsto no art.º 2.º da Lei n.º 9/2020 – SIMP – Actualidade - de 13/04/2020 e a interpretação desta lei do perdão à luz do disposto no artigo 9º do Código Civil, no sentido de que “na interpretação da norma jurídica, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. E na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. - apud ac Rel Coimbra de 7 de Outubro de 2020, Des Luís Teixeira – Relator.

g) Em sentido semelhante, no acórdão ainda desta Relação de Coimbra, proferido em 28-10-2020 no processo n.º 87/20.6TXCBR-B.C1 28-10-2020, argumenta-se nos seguintes termos:

No elemento literal artigo 2º, nº 1 – o vocábulo recluso – mostra-se claro no seu significado. O recluso é aquele que está preso e não o que é susceptível de vir a ser preso.

     No elemento histórico, há que ponderar os precedentes legislativos em matéria de leis de clemência, reiterando-se que uma lei que disciplina o perdão de penas devido à conjuntura pandémica global não pode deixar de ser considerada como lei excepcional e temporária, com tudo o que isso implica, como já vimos, nos seus apertados limites.

Na interpretação lógico, racional ou teleológica e sistemática, adquirem especial relevância as circunstâncias em que a lei em causa surgiu - inserida numa panóplia de legislação diversificada visando responder à situação de emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID19 que tem provocado a vaga de pandemia a nível mundial - na tentativa de impedir o surto e a propagação da doença, designadamente, na população prisional, um dos grupos mais expostos ao contágio e alastramento do coronavírus devido ao funcionamento e características do sistema prisional.

A substituição da reclusão por medidas não preventivas da liberdade, temporárias, antecipatórias ou mesmos definitivas, afastando os condenados das prisões tornou-se, assim, uma exigência de salvaguarda dos calamitosos perigos dos surtos e disseminação do coronavírus em ambiente penitenciário.

É neste circunstancialismo que surge o Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, aprovado pela Lei nº 9/2020, de 10 de Abril, com o objectivo principal de conter a expansão da doença COVID-19 na população prisional, através da libertação dos reclusos que deixariam de estar expostos aos perigos acrescidos da disseminação da doença, ao mesmo tempo que se reduzia os riscos da contaminação dentro das prisões, por diminuição da respectiva lotação.

(…) Inferimos que, na Proposta de Lei do Governo (Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV, de 2 de abril de 2020)  o fundamento do perdão da pena, como aliás, a medida especial do indulto, o regime extraordinário de concessão de licença de saída e a antecipação da liberdade condicional, radicava na exigência da libertação dos condenados recluídos, salvaguardando, desta forma, o distanciamento físico entre as pessoas (uma das medidas sanitárias de prevenção da expansão da doença do coronavírus), impossível de concretizar nos estabelecimentos prisionais por inexistência de condições que evitassem a concentração dos reclusos. Pretende-se, assim, evitar um perigo efectivo de propagação por contágio do COVID19 do condenado recluso no estabelecimento prisional, o que não sucede com os condenados na pena de prisão por sentença em julgado em liberdade, pois enquanto o condenado estiver em liberdade não potencia o perigo de contágio no meio prisional. [Acórdão desta Relação de 30 de setembro de 2020 (Rel. Maria José Nogueira)]. Com tais medidas, cumprir-se-ia o dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito.

Libertação a que, todavia, o legislador pretendeu impor um limite: “sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade”. Daí as opções legislativas no que respeita quer às concretas penas a que deveria ser aplicado o perdão, nomeadamente no que respeita à efetiva medida da pena bem como aos demais requisitos substantivos enumerados na lei de exclusão dos crimes não abrangidos pelo perdão (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de outubro de 2020).

(…) A posição defendida pelo Tribunal a quo com base nos fundamentos que lhe subjazem não integra um acto de interpretação normativa, antes, parte dos constrangimentos práticos de aplicação da norma, para ampliar o âmbito de aplicação do preceito a situações não previstas pelo legislador, criando, assim, uma norma penal casuística, com violação dos princípios hermenêuticos e do princípio da legalidade, pilar do Direito Penal, constitucionalmente consagrado no artigo 29º, da Lei Fundamental (cf. Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos, Código Penal Anotado, Vol. I, Página 93).

h) Relativamente a uma possível violação do princípio constitucional da igualdade, remete-se para o que se escreveu no acórdão proferido no processo n.º 190/20.6TXCBR-B.C1, no qual foi relatora a adjunta neste processo:

(…) Como sublinha Maia Gonçalves ([1]) «as medidas de graça, como providências de excepção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas». No mesmo sentido, o Ac. do STJ (fixação de jurisprudência) de 25-10-2001 (proc. n.º 00P3209) - sendo excepcionais as normas que estabelecem perdões, não comportando, por isso mesmo, aplicação analógica (artigo 11.º do CC), nem admitindo interpretação extensiva ou restritiva, devem ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa, em que “não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo”. Sendo, assim, insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147.

Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo» - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185.

Como decidiu o Tribunal Constitucional (Ac. n.º 39/88, de 9 de Fev. - DR n.º 52/1988, Série I, de 03-03-1988):

«O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º.

Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados. O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»

Por sua vez, pode ler-se no Acórdão n.º 149/93, de 28 de Janeiro, do mesmo Tribunal, in www.tribunalconstitucional.pt: « Pode-se considerar que é já vasta e consolidada a jurisprudência constitucional sobre o sentido e o alcance do princípio da igualdade (cfr., entre outros, os Acórdãos nºs 39/88 - publicado no Diário da República, I Série, de 3 de Março de 1988 -, 157/88 - publicado no mesmo local e série, de 26 de Julho de 1988 -, 76/85, 142/85, 309/85 e 186/90, - todos publicados no Diário da República II Série, respectivamente, de 8 de Junho de 1985, de 7 de Setembro de 1985, de 11 de Abril de 1986 e de 12 de Setembro de 1990 -, 400/91 - publicado no Diário da República, I Série, de 15 de Novembro de 1992 e finalmente o Acórdão nº 226/92, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de 1992, neste último caso versando especificamente a temática do presente processo, cujo desenvolvimento, aliás, seguiremos no essencial.

Da assinalada jurisprudência decorre que, vistas as coisas na óptica da igualdade em sentido material, e enquanto princípio vinculador do próprio legislador, se exige que a lei dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e trate de forma distinta o que for dissemelhante. O princípio da igualdade não comporta, pois, uma proibição absoluta de discriminações no tratamento legal de uma dada matéria, mas tão somente que essas discriminações sejam arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante.

Neste contexto, citando o que se escreveu no Acórdão nº 400/91, "o princípio da igualdade funciona, pois, como um limite objectivo da discricionariedade legislativa, proibindo a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional, proíbe, em termos gerais, o arbítrio legislativo."»

i) Finalmente, como se escreveu no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 30-09-2020, proferido no proc. nº 47/20.0TXCBR-B.C1:

“Como justificar a aplicação do perdão ao arguido/condenado, cuja entrada no estabelecimento prisional poderá nunca vir a ocorrer? Que benefício para o propósito subjacente à adoção do regime de exceção decorre da aplicação, ao mesmo, do perdão? Indo mais além: mantendo-se o despacho em crise, admitindo agora, para efeito da aplicação da Lei n.º 9/2020, que a condição de recluso possa ocorrer até à cessação de vigência do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 (artigo 10.º), como explicar, com respeito pelos elementos teleológico e histórico, vindo o condenado a ser detido ou a apresentar-se – só a partir de então passando à reclusão - após cessada a vigência do regime excecional, o perdão já anteriormente concedido?

É aliás o caso em apreciação; Sendo desconhecido o paradeiro do arguido, tendo sido declarado contumaz, iria beneficiar o perdão sem que estivesse sequer iminente a sua detenção, usufruindo de um benefício que a Lei do Perdão não pretendia seguramente atribuir, atentos os fins a mesma que prossegue.

j) Em suma:

Como resulta dos arestos acima citados, é reconhecido pacificamente na nossa doutrina e jurisprudência, que as leis de amnistia e perdão não são susceptíveis de interpretação extensiva, e a Lei n.º 9/2020 reiteradamente alude à condição de reclusão como sendo objecto da sua aplicação.

A circunstância de a mesma não se aplicar aos arguidos ainda não recluídos (ainda que condenados em pena de prisão até 2 anos, transitada antes da entrada em vigor da mesma lei, por crimes não excluídos do seu âmbito de aplicação), não viola o princípio da igualdade - como resulta da decisão acima citada proferida no processo n.º 190/20.6TXCBR-B.C1, sustentando-se na doutrina e jurisprudência ali citadas.

k) Acrescenta-se, quanto a este ponto da invocada desigualdade que resulta da não aplicação da lei relativamente aos não reclusos, que também os arguidos condenados em pena de prisão, mas executada em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controle à distância (art 43º do Cód. Penal, aplicável precisamente a penas efectivas não superiores a 2 anos), não obstante estarem privados da liberdade, serão tratados de forma desigual relativamente aos arguidos recluídos, uma vez que não beneficiarão do perdão, tendo que cumprir integralmente, naquelas condições, a pena em que foram condenados.

Ou ainda, que relativamente a um recluso cuja decisão tenha transitado no dia seguinte à entrada em vigor da mesma lei, ainda que por motivos que não lhe são de todo imputáveis, mas sim em consequência da dinâmica do processo que conduziu à sua condenação, não beneficiará do perdão, sendo assim prejudicado relativamente a outro recluso cuja sentença condenatória tenha transitado apenas umas horas antes.

l)  É certo que em situações, como a do caso concreto, em que se verificam todos os  pressupostos para a concessão do perdão, apenas faltando o estatuto de “recluso”, parece pouco sensato exigir que o arguido seja detido e apresentado nessa qualidade no estabelecimento prisional, ou que ele aí se apresente voluntariamente, de molde a adquirir aquele estatuto, para que lhe possa ser aplicado o perdão, até porque essa detenção poderia – ela própria – potenciar ou permitir o contágio que a Lei n.º 9/2000 precisamente pretende acautelar.

Mas como se escreve no já citado acórdão desta Relação de 28-10-2020, essa questão “não integra um acto de interpretação normativa, antes, parte dos constrangimentos práticos de aplicação da norma, para ampliar o âmbito de aplicação do preceito a situações não previstas pelo legislador”.

A solução para essa questão será seguramente encontrada na prática judiciária, eventualmente em colaboração com os serviços prisionais, mormente no sentido de evitar o contacto do recluso com a restante população prisional, até que se assegure da incapacidade de contágio do novo recluso (como vimos, objectivo primordial pretendido com a referida Lei n.º 9/2000), sendo então - após a referida detenção - decidida a aplicação do eventual perdão, nos casos em que tal surja como admissível.

III – Dispositivo

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido que declarou perdoada a pena aplicada ao arguido A. no processo nº 54/11.4GBMGR, e declarou cessada a contumácia a que está sujeito.

Sem tributação.

Coimbra, 7 de Abril de 2021



João Novais (relator)

Elisa Sales (ajunta)


[1] - As medidas de graça no Código Penal e no projecto de revisão, RPCC, 1994, Fasc. 1, p. 10.