Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
46/13.9TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA MELO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INCUMPRIMENTO
RECUSA FINAL DE EXONERAÇÃO
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DO FUNDÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 239.º, N.º 4, AL. C), 243.º, N.º 1, E 244.º, DO CIRE
Sumário: I – Havendo violação reiterada da obrigação de entrega de rendimentos sujeitos à cessão, não constitui justificação dos devedores a alegação de nem todas as despesas conseguirem ser documentadas.

II – A circunstância de não ter ocorrido revogação antecipada da exoneração não permitia que os devedores confiassem que a sua atuação não seria censurada a final e que beneficiariam, apesar das entregas omitidas, da concessão da exoneração, não resultando daí qualquer causa de inexigibilidade da obrigação.

III – O dever de entrega subsiste durante todo o período da cessão, sujeitando-se os devedores, em caso de incumprimento injustificado – a ascender ao valor global de € 15.291,99 –, com inerente prejuízo para os credores, que aqueles não podiam ignorar, à censura corresponde à recusa final de exoneração.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

AA e BB apresentaram-se à insolvência e requereram a exoneração do passivo restante. Por sentença proferida em 16.01.2013, foi declarada a sua insolvência.

Por despacho de 13.02.2014, foi admitida liminarmente a requerida exoneração do passivo restante e fixado para o sustento minimamente digno dos devedores a quantia correspondente a dois ordenados mínimos nacionais.

O processo de insolvência foi encerrado por despacho datado de 17.03.2014.

A cessão de vencimentos apenas se iniciou em abril de 2016, na sequência de pedido de adiamento do início do período de cessão, deduzido pelos devedores em 9.03.2016 e deferido por despacho de 08.06.2016.

Em 17.03.2017 vieram os devedores requerer a alteração do rendimento indisponível com fundamento no acréscimo de despesas de saúde, tendo sido deferido o requerido, por despacho de 09.05.2017, passando o rendimento indisponível a corresponder a dois ordenados mínimos nacionais, acrescidos de 200,00, com efeitos desde março de 2017, data do pedido.

Em 6.06.2017 o Sr. Fiduciário apresentou o relatório relativo ao 1º ano de cessão - abril de 2016 a março de 2017 -, onde fez constar que os devedores cederam à fidúcia a quantia de 14.033,72, mas deveriam ter entregue a quantia de 20.022,18, estando em falta a quantia de 5.988,46.

Em 15.04.2018, veio o Sr. Fiduciário apresentar o relatório relativo ao 2º ano de cessão - abril de 2017 a março de 2018 -, onde fez constar que os devedores cederam o valor de 12.934,46, mas deveriam ter cedido14.611,55, estando em falta 1.677,09.

Em 14.05.2018, o credor B..., SA apresentou requerimento, onde alegou ter tido conhecimento, através do relatório do Sr. AI que entre a entrega de rendimentos pelos insolventes e o valor que deveria ter sido entregue, existia um diferencial de 1.667,09€ e ter sido referido pelo Sr. Fiduciário que os insolventes invocaram ter deduzido diversas despesas extraordinárias, documentando-as, mas sem que tenham pedido a sua exclusão dos valores a entregar nos autos, sendo que desconhece as mesmas e ainda se são necessárias e  urgentes. Concluiu,  pedindo a notificação dos insolventes para entregar a quantia em falta à massa, dado não terem solicitado a sua exclusão dos valores a ceder, sob pena de cessação antecipada da exoneração do passivo restante.

Em 30.05.2018 os devedores foram notificados para pagar o valor em falta relativo ao 2º ano da cessão - 1.677,09.

            E em 11.06.2018 vieram os insolventes pedir o abatimento de despesas extras com a sua saúde ao rendimento disponível, tendo por despacho de 10.09.2018, sido julgada justificada a não entrega da quantia de 1.677,09, quantia em falta relativa ao 2º ano de cessão e os devedores alertados “para a conveniência de apresentar, de futuro (e caso se verifique tal situação novamente), requerimento onde deduzam tal pretensão antes do relatório a apresentar pelo Sr. Fiduciário de molde a evitar incidentes de incumprimento.”

Por despacho de 16.06.2019 (conclusão de 12.06.2019 – referência 31239449) foi ordenado, relativamente às despesas elencadas no documento 5, que acompanhava o relatório anual do 2º ano, a notificação dos devedores para apresentarem comprovativos das despesas em causa (visto que apenas apresentaram orçamentos) e ainda indicarem se ocorreu algum reembolso/comparticipação de algum sub-sistema de saúde ou seguro de saúde, no prazo de 10 dias.

Em 10.07.2019 foi proferido despacho concedendo aos devedores o prazo de 10 dias para a junção dos documentos em falta, tendo os devedores sido advertidos de que a  dispensa de entrega de rendimento disponível carecia de apreciação judicial - art. 239º, n.º 3, b), iii) do CIRE.

Em 06.08.2019 o Sr. Fiduciário remeteu aos autos o relatório relativo ao 3º ano de cessão- abril de 2018 a março de 2019 -, onde fez constar que os devedores cederam à fidúcia a quantia de11.881,00,  mas deveriam ter entregue a quantia de 16.560,28 . Com este relatório juntou pedido dos devedores para não entregar parte do montante disponível, a fim de ser realizada uma cirurgia, ficando por entregar 4.679,28.

Por despacho de   11.09.2019 foi ordenado que se insistisse com os  devedores pela junção dos comprovativos das despesas conforme determinado no despacho de fls. 641 (de 12/06/2019 – ref. 31239449), concedendo-se aos mesmos, para o efeito, o prazo de 10 dias e foi decidido, ainda, dispensar da cessão a quantia de  75,00 Euros de despesas de saúde, atendendo à justificação apresentada pelos devedores.

Em 25.09.2019, os devedores vieram informar que não iam juntar os documentos solicitados, relativos a intervenções cirúrgicas, pois que, por ora, estas não iriam ser realizadas.

            Em 18.02.2020 os devedores vieram pedir a exclusão do rendimento disponível da quantia de 1.300,00, ao abrigo do artº 239º, nº 3º, alínea b) iii) do CIRE,   montante necessário para custear uma cirurgia da devedora.

Em 21.02.2010, o Sr. Fiduciário informou nada ter a opor ao requerido pelos insolventes.

Em 9.03.2020 foi autorizada a exclusão do rendimento disponível da quantia de 1.300,00.

Em 19.06.2020 o Sr. Fiduciário juntou o relatório relativo ao 4º ano de cessão – abril de 2019 a março de 2020 -  onde fez constar que os devedores cederam a quantia de 11.409,63, mas deveriam ter cedido a quantia de 17.257,87, tendo o Sr. Fiduciário abatido ao montante não entregue no 4º ano, as despesas autorizadas pelo Tribunal de 1.375,00 (75,00 + 1.300,00), pelo que ficou por entregar a quantia de 4.473,24.

Em 13.05.2021 o Sr. Fiduciário juntou o relatório relativo ao 5º ano de cessão - abril de 2020 a março de 2021 -  com o mapa onde constam todos os valores que foram entregues pelos insolventes, ao longo dos 5 anos da fidúcia, e os valores que deveriam ter  cedido, considerando os seus rendimentos mensais  e o rendimento excluído da cessão, fazendo constar relativamente ao 5º ano de cessão que os devedores tinham cedido a quantia de 14.215,96 e deveriam ter entregue a quantia de 16.755,96 Euros, pelo que ficou por entregar a quantia de 2.540,00.

Em 27.05.2021, o credor I... veio dizer que tinha constatado pela análise do relatório apresentado pelo Sr. Fiduciário que nos anos 1, 3, 4 e 5 da cessão, os insolventes não tinham cedido a totalidade dos rendimentos a que estavam obrigados, pelo que requereu a sua notificação para cederem os valores em falta.

Em 28.05.2021 veio também o credor C..., S.A. requerer que os insolventes fossem notificados para proceder à regularização dos valores em falta.

Em 14.06.2021 os devedores juntaram requerimento com o seguinte teor, pugnando pela concessão da exoneração:

1. Os Requerentes entregaram à fidúcia mais de 66 mil euros o que, considerando o prazo

de cessão do rendimento disponível, perfaz uma entrega mensal de cerca de 1.100,00 € (Mil e cem euros.

2. Reconhecem que os mapas apresentados pelo Sr. Fiduciário correspondem aos valores

por si entregues, o que resulta numa quantia em falta por conta da cessão e que ascende a 17,000,00 € (cerca de dezassete mil euros).

3. E que as mesmas, apesar de em falta, não poderão determinar o indeferimento da exoneração do passivo restante.

4. Os Requerentes tudo fizeram para entregar as quantias do rendimento disponível, viveram com dois ordenados mínimos nacionais durante parte do período de cessão a que acresceu o valor mensal de 200,00 € a partir de Março de 2017, decisão proferida pelo Tribunal mas que ainda assim ficou aquém do Requerido pelos insolventes.

5. Sublinhe-se uma vez mais, entregaram mais de 1.100,00 € por cada mês de 5 penosos e longos anos, depois de uma insolvência dura consequência de avais prestados pelo insolvente marido que foi empresário a vida toda, viveu sempre de forma regrada e assumindo o bom cumprimento das suas obrigações mas que no período da crise de 2010,

viu o seu negócio ruir tendo sido o mesmo encerrado por declaração de falência.

6. A verdade é que acreditam e sempre acreditaram que iriam conseguir a exoneração do seu passivo restante sendo que esta insolvência, neste caso, nem se trata de um fresh start (os requerentes são pessoas de alguma idade, vivem agora das suas reformas de uma vida inteira de trabalho) mas sim da única forma de viverem o resto dos seus dias sem a carga emocional de terem responsabilidades em incumprimento e consequentes responsabilidades bancárias e outras entidades por liquidar, vencidas, sem fim à vista.

7. A sua expectativa foi, nos 5 anos de processo, obter a exoneração do passivo restante,

sempre acreditaram nisso e foi por isso que continuaram a fazer entregas avultadas de dinheiro mês após mês.

8. Desde o primeiro relatório do Sr. Fiduciário que dos Autos resulta que apesar de terem

existido entregas avultadas de dinheiro, encontravam-se montantes em falta na fidúcia.

9. Montantes que os insolventes explicaram, com despesas que muitas das vezes não é possível documentar e um valor de rendimento indisponível nitidamente insuficiente.

10. O mesmo será dizer que não estão verificados os pressupostos de indeferimento de exoneração do passivo restante, desde logo a existência de comportamento doloso nem tão pouco que esse comportamento tenha prejudicado gravemente os credores, e sobre esta última questão, veja-se os valores entregues os que ficaram por entregar e os valores

reclamados e reconhecidos no processo.

Para além disso sem prescindir,

11. Caso o Tribunal entenda que haverá motivo para indeferimento de exoneração do passivo restante por estarem verificados os pressupostos cumulativos desse indeferimento, importa analisar a lei sobre o momento e oportunidade dessa decisão.

12. Entendem os devedores que os factos que, segundo os credores nos Requerimentos que antecedem, poderiam inviabilizar a sua exoneração constam do processo desde o 1º relatório do Sr. Fiduciário junto aos Autos não sendo de mais referir novamente que esses relatórios foram submetidos aos credores todos os anos.

13. Ora, sobre isto debruça-se expressamente o art.º 243 n.º 2 do C.I.R.E no qual refere que tal pedido só pode ser submetido dentro do ano seguinte à data em que o Requerente teve ou poderia ter conhecimento dos fundamentos invocados, o que não ocorreu.

14. Efetivamente quer os devedores quer os credores eram notificados dos relatórios do

Sr. Fiduciário, não tendo nenhum deles ou o próprio Fiduciário requerido a cessação antecipada, situação que deixava os devedores completamente descansados até porque nunca mereceu reparo de qualquer credor da insolvência.

15. Não tendo sido levantada a questão, os valores em falta (ainda que justificados pelos

devedores) relativamente aos 4 primeiros anos não podem motivar o indeferimento da exoneração do passivo restante, sobre isso se refere, como se disse, o art.º 243 n.º 2 do C.I.R.E, sendo esta uma norma que, visivelmente, evoca o principio da segurança jurídica e as legítimas expectativas dos devedores neste caso concreto.

16. Pelo que, caso o Tribunal entenda existir motivos para indeferir a exoneração do passivo, deverá apenas considerar estar em falta o valor de cessão do rendimento disponível referente ao último ano de cessão.

Nestes termos e nos demais de Direito, entendem os devedores que deverá ser concedida a exoneração do passivo restante por não estarem verificados os requisitos cumulativos para o seu indeferimento. Caso assim não se entenda, por força do art.º 243 n.º 2 do C.I.R.E, deverá o Tribunal apreciar a decisão de indeferimento final, no pressuposto de reconhecer que o valor em falta referente aos 4 primeiros anos de cessão não pode ser considerado para efeitos de indeferimento, visto o que dispõe a norma atrás mencionada.”

            Foram ouvidos os insolventes, o Sr. Fiduciário e os credores reconhecidos nos termos e para os efeitos do disposto no art. 244.º/1 CIRE.

Os credores C..., S.A., D..., S.A. requereram a recusa da concessão da exoneração tendo em conta o elevado montante dos valores não entregues pelos insolventes.

Em 15.07.2021 foi proferido despacho ordenando a notificação dos insolventes  para no prazo de 10 dias cederem o valor do rendimento disponível que se encontrava em falta, com a advertência de que o incumprimento poderia importar a não concessão da exoneração.

Os devedores vieram informar que não dispunham de condições para pagar todo o valor em falta, mas que, com o recurso a  mútuo contraído junto de familiares, pretendiam pagar parte e insistiram para que lhes fosse concedida a exoneração.

Em 2.08.2021, o B..., SA. insistiu pela recusa da exoneração.

Em 20.08.2021 os devedores vieram informar que iam conseguir pagar o valor em falta relativo ao 5º ano da cessão – 2.388,99 -, mais alegando que sobre a conta bancária do insolvente recaiu uma penhora efetuada pela Autoridade Tributária.

O sr. Fiduciário pronunciou-se no sentido de ser concedida a exoneração do passivo restante, atento o esforço evidenciado pelos devedores e à justificação que apresentaram em 20.08.2021.

Os credores H..., SA e B..., SA. insistiram pela recusa.

Em 20.10.2021, foi  proferida decisão, concedendo a exoneração do passivo restante.

O credor C...   não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

A. Por sentença proferida em 16.01.2013, foram AA e BB declarados insolventes.

B. Em 13.02.2014, foi deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

C. O douto Tribunal a quo fixou “para o sustento digno dos devedores um montante equivalente a duas vezes o valor do salário mínimo nacional.

D. O processo foi encerrado em 17.03.2014, momento a partir do qual se iniciou o período de cessão.

E. Ora, apesar de notificado o despacho de encerramento, tanto na pessoa dos devedores como na pessoa do Il. Mandatário destes, assim como o despacho de 18.03.2015, que o confirmou, não tendo estes reagido aos mesmos, vieram estes requerer o adiamento do início da cessão, sob pena de não conseguirem repor os montantes já em atraso.

F. O adiamento do início da cessão foi admitido pelo Tribunal a quo, apesar da oposição da ora Requerente, tendo, pois, os insolventes, beneficiado de uma “nova” oportunidade e em prejuízo dos credores que veem a satisfação, ainda que parcial, dos seus créditos também esta adiada.

G. Entendeu, contudo, a ora Requerente acolher a decisão, aguardando, pois, pelo decurso da cessão.

H. Iniciou-se, assim, a cessão em abril de 2016.

I. Em 17.03.2017, vieram os devedores requerer a alteração do rendimento indisponível com fundamento no acréscimo das despesas de saúde.

J. Ora, tendo por base essas despesas, veio o douto Tribunal a quo admitir a alteração, passando aqueles a beneficiar do correspondente a 2 salários mínimos nacionais acrescidos de € 200,00, retroagindo até março de 2017, data do pedido.

K. Sucede que, terminado o 1.º ano de cessão, os devedores deveriam ter entregue € 20.222,18 e entregaram apenas € 14.033,72. Ficaram, assim, de repor a quantia de € 6.188,46.

L. No 2.º ano de cessão, voltam a agravar o incumprimento em mais € 1.677,09.

M. Foram, contudo, comprovadas despesas que, sem a oposição dos credores, foram admitidas e dispensadas pelo valor de € 1.677,09.

N. Ao 3.º ano de cessão, incumpriam com a quantia de € 4.679,28.

O. Para os devidos efeitos, foram juntos comprovativos da aquisição de medicamentos, que ascendia a € 75,00, do orçamento para uma cirurgia no valor de € 1.300,00.

P. Os credores não se opuseram, pelo que também esta foi admitida pelo douto Tribunal a quo.

Q. Foram estas dispensadas e subtraídas ao rendimento disponível a ceder durante o 4.º ano de cessão.

R. Ainda assim, o rendimento disponível acusava um saldo negativo de €5.818,24.

S. Chegados ao 5.º ano de cessão, agravaram o incumprimento em mais €T. Pelo que, teriam a regularizar € 17.850,98.

U. Notificados para a reposição do rendimento incumprido, vieram alegar que “entregaram mais de 1.100,00 € por cada mês de 5 penosos e longos anos”, que “A sua expectativa foi, nos 5 anos de processo, obter a exoneração do passivo restante, sempre acreditaram nisso e foi por isso que continuaram a fazer entregas avultadas de dinheiro mês após mês.”, e que mais nada cederam pois existem “despesas que muitas das vezes não é possível documentar”, “não estão verificados os pressupostos de indeferimento de exoneração do passivo restante, desde logo a existência de comportamento doloso nem tão pouco que esse comportamento tenha prejudicado gravemente os credores, e sobre esta última questão, veja-se os valores entregues os que ficaram por entregar e os valores reclamados e reconhecidos no processo.

V. A ora Requerente veio opor-se à exoneração definitiva não só porque foi incumprida a obrigação de cedência do rendimento disponível, de forma injustificada, mas também porque verificados, sem que dúvidas houvesse, os pressupostos de grave negligência e prejuízo aos credores da insolvência.

W. Por despacho datado de 20.10.2021 o Meritíssimo Juiz a quo concedeu aos Insolventes a Exoneração Definitiva do passivo restante, concluindo que apesar de nada indicar o motivo ou razão que levou ao incumprimento pelos devedores, estes não agiram com dolo ou grave negligência, tendo estes cedido consideráveis montantes, reforçando, pois, “a ideia de comprometimento dos devedores com o cumprimento das obrigações a que se encontravam adstritos.

X. Salvo o devido respeito, não poderá a Recorrente concordar com o teor da douta sentença proferida.

Senão vejamos,

Y. Nos termos do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE:

“Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:

(…)

c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;”

Z. Sucede que não entregaram.

AA. Pelo que, ao invés de cederam € 83.832,84 cederam apenas € 66.151,86.

BB.Ora, os insolventes não podiam desconhecer as obrigações a que se vincularam, tanto mais que o declararam expressamente – n.º 3 do artigo 236.º do CIRE.

CC. E, se assim o é, conheciam as consequências que daí proviriam.

DD. Pelo que, perante o incumprimento, vieram pedir a dispensa das despesas extraordinárias que surgiam.

EE. Certamente no pressuposto de reduzir o rendimento disponível que se encontrava em atraso.

FF. E, porque tinham expectativas de alcançar a exoneração definitiva, tendo sempre em vista a regularização do atraso.

GG. Em nenhum momento, à ora Requerente esteve a regularização em risco.

HH. Parece-nos também que nem aos próprios devedores!

II. Contudo, vêm estes alegar que o incumprimento da quantia de € 17.680,98 resultou de “despesas que muitas das vezes não é possível documentar e um valor de rendimento indisponível nitidamente insuficiente”.

JJ. Sucede que, estando em causa o benefício da exoneração do passivo restante, justificar o incumprimento da quantia de € 17.680,98 com despesas que não são possíveis de documentar parece-nos malicioso.

KK. Pelo que, e salvo o devido respeito, entende a ora Requerente tratar-se de um incumprimento gravemente negligente – senão doloso – já que, conhecida a obrigação de ceder o rendimento que ultrapassasse dois salários mínimos nacionais acrescido de € 200,00, não o fazendo conscientemente, e não o justificando ou comprovando, sabiam que causava prejuízo aos credores da insolvência.

LL. Entende ainda que as “entregas avultadas de dinheiro” não pode e não deve servir de argumento para que os devedores sejam exonerados das suas obrigações.

MM. Caso contrário, fica instalado o entendimento que o sacrifício dos devedores tenha sido exponencialmente maior que o sacrifício dos credores.

NN. Sublinhe-se que a exoneração do passivo restante é um instituto jurídico de exceção, através deste concede-se aos devedores o benefício de se libertarem de algumas das suas dívidas e, assim, reabilitarem-se economicamente, à custa do património dos credores.

OO. Pelo que só deva ser concedido aos devedores que tenham pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no que diz respeito às condições económicas e padrão de vida adotado por aqueles, e, pelo menos seja manifesto um mínimo esforço no cumprimento das obrigações exigidas por lei.

PP. Dever-se-á, igualmente, ponderar a proteção dos interesses dos credores.

QQ. Pois, há que alcançar o equilíbrio dos interesses tanto dos devedores como dos credores da insolvência.

RR. No caso em apreço, esse equilíbrio não foi salvaguardado.

SS. Conforme exposto pela ora Requerente junto do Tribunal a quo, o passivo dos devedores, no início do período de cessão e já terminada a liquidação, ascendia a € 284.989,96.

TT. Os insolventes cederam € 66.151,86. Ou seja, os credores apenas verão cerca de 20% das suas dívidas ressarcidas.

UU. Contudo, se tivessem cumprido com a cessão os credores poderiam receber cerca de 30%.

VV. Ou seja, chegado ao final dos 5 anos de cessão, os credores terão que perdoar 80% das dívidas ao invés de 70%.

WW. Pelo exposto, deverá tal decisão ser revogada, porquanto estão preenchidos os pressupostos para a recusa da exoneração definitiva.

Termos em que, Venerandos Senhores Juízes Desembargadores, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, assim, ser revogada a decisão proferida pelo tribunal a quo de concessão aos Devedores da Exoneração do Passivo restante.

Os devedores contra-alegaram, tendo formulado as seguintes conclusões:

            (…)

II – Objeto do recurso

Considerando que:

. o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,

. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu ato, em princípio delimitado pelo conteúdo do ato recorrido,

a questão a decidir é a seguinte:

.se estão (ou não) reunidos os pressupostos para recusar a exoneração do passivo restante aos apelados.

III – Fundamentação

A situação factual a considerar é pois a que resulta do relatório supra e dos pontos 1 a 5 dos factos dados como provados pela 1ª instância, com a retificação realçada a bold no ponto 5, e que são os seguintes:

1. Os devedores foram declarados insolventes por sentença proferida a 16/01/2013.

2. Por despacho de 13/02/2014, foi admitida liminarmente a requerida exoneração do passivo restante.

3. Por despacho de 28/11/2016, foi declarado o encerramento do processo.

4. Resulta das informações prestadas pelo Sr. Fiduciário nos autos que os devedores, no primeiro ano da cessão, cederam à fidúcia o valor de 14.033,72 Euros, no segundo ano da cessão, cederam o valor de 14.611,55 Euros, no terceiro ano, cederam o valor de 11.881,00 Euros, no quarto ano, cederam o valor de 11.409,63 Euros, no quinto ano, cederam o valor de 14.215,96 Euros, acrescido ainda do valor de 2.388,99 Euros, após notificação do Tribunal nos termos e  para os efeitos do artigo 244.º n.º 1 do CIRE.

5. Resulta ainda das informações prestadas pelo Sr. Fiduciário nos autos que os devedores deveriam ter entregue à fidúcia, no primeiro ano, o valor de 20.022,18 Euros, no segundo ano,  o valor de 14.611,55 Euros,  no terceiro ano, o valor de 16.560,28 Euros, no quarto ano, o valor de 17.257,87 Euros, mas como foram autorizadas despesas no valor de 1.375,00, o valor a entregar foi reduzido para 15.882,87[1] e, no quinto ano deveriam ter entregue o valor de 16.755,96 Euros.

Apreciando:

No seu recurso a apelante veio dizer que pretendia o “reexame da matéria de facto”, mas lidas as alegações e as conclusões, constata-se que a apelante não requer nem a alteração de qualquer ponto da matéria de facto constante da decisão recorrida, nem a introdução de novos pontos.

A matéria de facto a considerar é, assim, a que foi dada como provada pela 1ª instância, corrigida no ponto 5 pela Relação, dado o erro manifesto em face dos documentos juntos aos autos e a matéria que resulta do relatório que antecede.

                                                                       *

Decorrido o período de cessão, o juiz apenas pode recusar a exoneração do passivo restante nas três situações previstas no n.º 1 do art. 243º do CIRE (diploma a que pertencerão todas as disposições legais que venham a ser citadas sem a indicação da fonte), isto é, quando se prove que: a) o devedor dolosamente ou com grave negligência violou alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art. 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; b) se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do art. 238º, se apenas tiver sido conhecida pelo tribunal após o despacho inicial ou for de verificação superveniente; ou c) a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.

O ónus da prova dos factos integrativos dos fundamentos de recusa da exoneração, não recai sobre o devedor, ou seja, não é o devedor/insolvente que tem de provar factos dos quais decorra não se encontrarem preenchidos os fundamentos de recusa da exoneração, mas antes são o fiduciário e/ou os credores que, uma vez ouvidos no termo do período de cessão, sobre a concessão ou não da exoneração ao devedor (n.º 1 do art. 244º do CIRE), terão de alegar e provar factos demonstrativos do preenchimentos dos requisitos constitutivos dos fundamentos de recusa da exoneração ou, no silêncio destes, é o tribunal que terá de coligir elementos de prova que lhe permitam concluir pela prova do preenchimento desses requisitos constitutivos dos fundamentos de recusa da exoneração do passivo restante (cfr. se defende no Ac. do TRG de 11.05.2010. proc. 1565/14.5TTBGMR.G1, acessível em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados sem indicação da fonte).   Neste sentido se tem pronunciado a generalidade da jurisprudência[2]. E, quer em sede de cessação antecipada do procedimento de exoneração, quer em sede de decisão final da exoneração, não faria sentido sustentar posição divergente, colocando a cargo dos devedores o ónus da prova.

Foi dado como provado que :

.4. Resulta das informações prestadas pelo Sr. Fiduciário nos autos que os devedores, no primeiro ano da cessão, cederam à fidúcia o valor de 14.033,72 Euros, no segundo ano da cessão, cederam o valor de 14.611,55 Euros, no terceiro ano, cederam o valor de 11.881,00 Euros, no quarto ano, cederam o valor de 11.409,63 Euros, no quinto ano, cederam o valor de 14.215,96 Euros, acrescido ainda do valor de 2.388,99 Euros, após notificação do Tribunal nos para os efeitos do artigo 244.º n.º 1 do CIRE.

.5. Resulta ainda das informações prestadas pelo Sr. Fiduciário nos autos que os devedores deveriam ter entregue à fidúcia, no primeiro ano, o valor de 20.022,18 Euros, no segundo ano,  o valor de 14.611,55 Euros, mas como foram autorizadas despesas no montante de no terceiro ano, o valor de 16.560,28 Euros, no quarto ano, o valor de 17.257,87 Euros, mas como foram autorizadas despesas no valor de 1.375,00, o valor a entregar reduziu-se para 15.882,87 e, no quinto ano, o valor de 16.755,96 Euros.

           

Entre o montante que foi entregue e o que deveria ter sido entregue, verifica-se  uma diferença de 15.291,99 e não 16.667,35 como se fez constar na decisão recorrida[3]. Na sentença recorrida considerou-se que não obstante a diferença, não resultava dos autos que os devedores não a tenham entregue a título de dolo ou negligência e por isso concedeu-se a exoneração.

            Escreveu-se a propósito na decisão recorrida:

“Nesse sentido, se é manifesto estarmos perante um incumprimento dos devedores das obrigações que sobre si impendiam nos termos do artigo 239.º do CIRE e nomeadamente da alínea c) do n.º 4 do referido preceito, se é manifesto que tal incumprimento gera para os credores um prejuízo relevante, na medida do valor em falta, também se tem que aceitar que tal incumprimento, à luz dos elementos constantes dos autos, não se revela passível de ser qualificado como um comportamento doloso ou gravemente negligente, sendo certo que nada indica qual o motivo ou a razão que justificou o apontado incumprimento: se o peso dos encargos que os devedores suportam (notando-se, todavia, que, por despacho de 09/05/2017, o valor do rendimento indisponível dos devedores foi objeto de revisão e ainda que os devedores requereram e foram autorizados a excluir dos valores a ceder despesas que suportaram por conta de despesas médicas oportunamente comprovadas nos autos – cfr. despachos de 10/09/2018, 11/09/2019 e de 09/03/2020), se uma pura malícia dos devedores ou uma intenção de defraudarem aqueles credores (notando-se também aqui que, se foi esse o caso, também não foi requerida pelos credores a cessação antecipada da exoneração do passivo restante dentro do prazo do n.º 2 do artigo 243.º do CIRE).

Tudo sem esquecer os consideráveis montantes que os devedores foram cedendo ao longo do período de cessão, também eles a reforçar a ideia de comprometimento dos devedores com o cumprimento das obrigações a que se encontravam adstritos.

Nada nos autos é, pois, passível de revelar, sem mais, que a omissão dos devedores seja dolosa ou com grave negligência.

Entendemos, por conseguinte, para efeitos do artigo 244.º do CIRE, não ser aqui de recusar a exoneração do passivo restante. “

A apelante vem se insurgir porque: 

. no 1º ano os apelados deixaram de entregar 6.188,46[4];

. no 2º ano deixaram de entregar a quantia de 1.677,09[5], mas apresentaram despesas nesse valor que foram admitidas, não tendo havido oposição dos credores;

. no 3º ano deixaram de entregar 4.679,28; mas juntaram documentos comprovativos da aquisição de medicamentos no montante de 75,00 e um orçamento para uma cirurgia no valor de 1.300,00, despesas que foram admitidas pelo tribunal, não tendo os credores deduzido oposição:

. no 4º ano deixaram de entregar 5.818, 24[6];

. no quinto ano a quantia de 2.540,00; pelo que deixaram de entregar a quantia de 17.850,98. Esta quantia difere da quantia apurada pela Relação, designadamente porque a apelante não atendeu à quantia de 2.388,99 que os apelados vieram a pagar posteriormente, após o termo do 5º ano de  cessão, na sequência da notificação do Tribunal para liquidação do montante em falta, sob pena de poder vir a ser recusada a exoneração.

A quantia em dívida é, assim, no valor de 15.291,99, conforme já se referiu.

A apelante insurge-se porque os apelados notificados para reporem o rendimento incumprido vieram alegar que “entregaram mais de 1.100,00 € por cada mês de 5 penosos e longos anos”, e que “A sua expectativa foi, nos 5 anos de processo, obter a exoneração do passivo restante, sempre acreditaram nisso e foi por isso que continuaram a fazer entregas avultadas de dinheiro mês após mês.”, e que mais nada cederam pois existem “despesas que muitas das vezes não é possível documentar”, “não estão verificados os pressupostos de indeferimento de exoneração do passivo restante, desde logo a existência de comportamento doloso nem tão pouco que esse comportamento tenha prejudicado gravemente os credores, e sobre esta última questão, veja-se os valores entregues os que ficaram por entregar e os valores reclamados e reconhecidos no processo.

Em seu entender não se pode julgar que os apelantes não atuaram  com grave negligência, ao não procederem à entrega da quantia que deixaram de entregar, alegando como justificação que existem despesas que “não é possível documentar”, quando está em causa uma quantia elevada. Mais alegou que  no final do período de exoneração, os credores apenas viram satisfeito 20% do valor dos seus créditos, enquanto se os apelados tivessem entregue as quantias que deveriam ter entregue, teriam alcançado 30% de satisfação.

Os apelados nas suas contra-alegações insurgem-se contra a apelante porque omitiu no seu recurso as circunstâncias em que surgiram as dívidas dos apelados – avais prestados a duas empresas  que foram declaradas insolventes e que eram detidas pelo insolventes e que não pagaram, pelo que lhes foi exigido o pagamento. Mais alegaram que trabalharam a sua vida toda, empregaram, pagaram os seus impostos e os impostos dos seus colaboradores, assumiram importância no tecido empresarial português e contribuíram para a economia portuguesa. Mais alegaram que estão atualmente reformados, tendo o insolvente marido se reformado no decurso do processo de insolvência e em face do avultado valor que entregaram, do facto do rendimento disponível ser de valor diminuto, inicialmente correspondente a dois ordenados mínimos e posteriormente a dois ordenados mínimos, acrescidos de 200,00 euros, por força de questões de saúde da recorrida, e o valor da quantia que ficou por entregar, demonstra que os devedores adotaram um comportamento responsável que se coaduna com aquilo que é expectável  de quem pretende ser exonerado do seu passivo restante. Acresce que em seu entender, não se verifica também o requisito do prejuízo para os credores.

Como se afigura entendimento maioritário, para que seja recusada a exoneração do passivo restante, com base na violação da condição prevista no artº 239º, nº 4, al. c),  a não entrega ao fiduciário de parte dos rendimentos objeto de cessão, só por si não conduz ao preenchimento do requisito constante do nº 1, a), do art.º 243º do mesmo Código, sendo exigido que o devedor tenha atuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência (cfr. se defende no Ac. do TRE de 26.01.2017, proc . 978/12.1TBSTR.E1e no Ac. do STJ de 9.04.2019, proc. 279/13.8TBPCV.S2).

            Como se refere no Acórdão do TRC, de 03-06-2014,  747/11.6TBTNV-J.C1, “…na ausência de qualquer distinguo, é relevante qualquer modalidade de dolo.

O dolo comporta um elemento cognitivo e um elemento volitivo. O insolvente atua com dolo quando representa um facto que preenche a tipicidade dos deveres a que está adstrito durante o período da cessão, mesmo que não tenha consciência da ilicitude: o insolvente atua dolosamente desde que tenha a intenção de realizar, ainda que não diretamente, a violação de um daqueles deveres e, por isso, mesmo que não possua a consciência de que a sua conduta é contrária ao direito. O dolo é intenção – mas não é necessariamente intenção com conhecimento da antijuridicidade da conduta.

Além disso, o insolvente só atua dolosamente quando se decida pela atuação contrária ao direito. Se a violação do dever – v.g., de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – constitui intenção específica da conduta do insolvente, há dolo direto; se essa violação não é diretamente querida, mas é desejada como efeito necessário da conduta, o dolo é necessário; finalmente, se a violação não é diretamente desejada, mas é aceite como efeito eventual, mesmo que acessório, daquela conduta, há dolo eventual.”.

E a  propósito da mera culpa ou negligência, escreveu-se no Acórdão do STJ, de 09-06-2010, proc. 579/09.1YFLSB:

I - A negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objetivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente).

II - A negligência também pode assumir diferentes graus, em função da ilicitude e da culpa: será levíssima quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excecionalmente diligente teria observado; será leve quando o parâmetro atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria também incorrido.

III - Correspondendo a “negligência grosseira” à “culpa grave”, a sua verificação pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.

IV - A “negligência grosseira” deve ser apreciada em concreto – conferindo as condições do próprio sinistrado – e não com referência a um padrão abstrato de conduta.”

            Considerou-se também no Acórdão do TRG, de 11-10-2018, proc. 3695/12.9TBGMR.G1 que:

“a negligência grosseira corresponde à falta grave e indesculpável, que consiste na omissão dos deveres de cuidado, por não se ter usado daquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas, pelo que se exige um dever de prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo.

São estes comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé, cuja observância por parte do devedor é impeditiva de lhe ser reconhecida possibilidade de se libertar de alguma das suas dívidas, e assim, conseguir a reabilitação económica.”.

           

            O Tribunal, ao longo dos autos, foi advertindo os devedores da necessidade de pedirem autorização para a consideração de despesas extraordinárias, mencionando que os devedores não podiam, por sua iniciativa, deduzir ao montante que deveriam entregar à fidúcia, os montantes que poderiam ter necessitado para  fazer face a despesas imprevisíveis e que não foram tidos em conta quando foi estabelecido o montante indisponível (despacho de 10.09.2018 e de 10.07.2019). Os devedores que estão devidamente representados por advogado, sabiam, mais do que não fosse pelo alerta que lhes foi feito, da necessidade de pedirem essa autorização.

Os apelantes encontram-se reformados, auferindo, em conjunto, reformas no montante de cerca de 2.490,00 euros mensais/líquidos. Foi subtraída à cessão a quantia correspondente a dois salários mínimos inicialmente e a partir de março  de 2017 – início do 2º ano da cessão -  a quantia correspondente a dois salários mínimos, acrescida de  200,00 euros[7].

            Quando os requerentes solicitaram o aumento do rendimento a excluir da cessão, por força do aumento das despesas com saúde, foi-lhes concedido.

            E quando requereram a exclusão de outras despesas com a saúde, ao abrigo do artº 239, nº 3, alínea b) iii), também lhes foi autorizado.

            Ora, os apelantes não podiam desconhecer que não estavam a entregar a totalidade dos rendimentos sujeitos à cessão. E quando se pronunciaram sobre as razões da sua não entrega, alegaram que tiveram despesas que muitas das vezes não é possível documentar e que o valor do rendimento indisponível era nitidamente insuficiente.

            Ora, se o rendimento subtraído à cessão se estava a revelar insuficiente para fazer face às despesas, nada impedia os insolventes de requererem como tinha requerido anteriormente, o aumento do montante subtraído à cessão, o qual seria concedido, se comprovassem o aumento das despesas  em que fundamentavam o pedido de alteração.

            Também nada impedia os apelantes de requerer, tal como ocorreu com as despesas que foram ressalvadas por despacho judicial (1.677,09 + 75,00 + 1.300,00 ),  a exclusão de outras despesas necessárias para a salvaguarda da sua saúde, ao abrigo do artº 239º, nº 3, alínea b) iii).

            A quantia que em cada ano os apelantes deixaram de entregar (1º, 3º, 4º e 5º), tendo em conta o seu montante – 5.988,46 no 1º ano, 4.679,28 no 3º ano, 4.473,24 no 4º ano e 2.540,00 no 5º ano, não é uma despesa, atento o seu valor, que não se consiga documentar, inviabilizando o pedido da sua exclusão.

A violação  reiterada da obrigação da entrega da totalidade dos rendimentos sujeitos à cessão, não permite concluir que não há elementos para se considerar que o devedor agiu com dolo, na modalidade de dolo eventual, ou pelo menos com grave negligência.
De harmonia com regras da experiência e critérios sociais, os devedores não podiam  ignorar a sua vinculação ao dever de entregar o rendimento disponível, persistindo  nesse comportamento ao longo dos anos e sem que tenham apresentado qualquer justificação devidamente comprovada para o não ter feito. Não pode ser considerada justificação suficiente, a alegação de que nem todas as despesas conseguem ser documentadas.

Não se nos afigura que a causa da insolvência dos apelados – a prestação de avais às sociedades por si detidas – tenha qualquer influência em sede do preenchimento do elemento subjetivo.

A concessão da exoneração do passivo restante é uma medida excecional, permitindo aos devedores recomeçar uma vida nova, livres do passivo que sobre si pesava,  mas apenas desde que satisfeitos os condicionalismos legais.

Não se desconhece que os apelados tiveram certamente de fazer sacrifícios, ao longo do período de cessão e que fizeram também sacrifícios para pagar o montante que ainda entregaram no final dos 5 anos, embora insuficiente, na sequência da notificação para ceder o montante ainda em falta. Mas esse é o preço a pagar, salvaguardado sempre o seu sustento com dignidade, para no final do período de exoneração, iniciar um novo capítulo de vida liberto de dívidas (com exceção das que não são abrangidas pela exoneração, mencionadas no artº 245º, nº 2 do CIRE).

Os devedores vêm invocar que a recusa da exoneração não se pode fundamentar em factos ocorridos há mais de um ano, face ao que dispõe o artº 243º, nº 2 do CIRE, uma vez que os  credores, tiveram conhecimento das não entregas, face aos relatórios anuais do Sr. Fiduciário e não vieram requerer a cessação antecipada da cessão, fazendo assim crer aos insolventes que iriam beneficiar da exoneração, pelo que deverá prevalecer o princípio da confiança e ser concedida a exoneração.

A requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se ainda estiver em funções ou do sr. fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, pode ser requerida a cessação antecipada da exoneração, nas situações mencionadas nas alíneas a) a c) do nº 1 do artº 243º, designadamente quando o devedor tiver violado dolosamente ou com grave negligência alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, onde se inclui a obrigação de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão (artº 239º, nº 4, alínea c)). E estabelece o nº 2 do artº 243º que o requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo toda a prova.

O artº 244º que estatui sobre a decisão final de exoneração, decorrido integralmente o período da cessão, estabelece que a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.

A aplicação do disposto no artº 243º importará que na apreciação da conduta do devedor para efeitos da concessão final (ou não) da exoneração, não poderão ser valorados os factos sobre os quais decorreu mais de um ano, por violação do princípio da confiança, como defendem os apelados?

A proteção da boa fé é um dos princípios gerais que servem de fundamento ao ordenamento jurídico, expressamente consagrado no Código Civil – artº 227º. Um dos corolários do princípio da boa-fé consiste no princípio da proteção da confiança legítima, incorporando a boa-fé o valor ético da confiança. Contudo, a aplicação do princípio da proteção da confiança está dependente de vários pressupostos, desde logo, o que se prende com a necessidade de se ter de estar em face de uma confiança “legítima”, o que passa, em especial, pela sua adequação ao Direito.

A circunstância da conduta reiterada não ter sido censurada com a revogação antecipada da exoneração, não permitia que os apelados concluíssem que nenhuma censura merecia a sua atuação e que iriam, não obstante, beneficiar da concessão da exoneração.

No caso, a questão da cessação antecipada já tinha até sido colocada pelo credor B..., SA, após o relatório referente ao 2º ano de cessão, quando veio requerer a notificação dos insolventes para depositar a quantia relativa ao 2º ano de cessão, sob pena de cessação antecipada,  pelo que os apelados não podiam ter como certo que os credores não iriam reagir à falta dos pagamentos e requerer o pagamento integral das quantias em falta, sob pena de ser recusada a exoneração.  

A questão suscitada pelos apelantes poderá ser abordada por outra perspetiva – impossibilidade de fundar a recusa de exoneração em factos ocorridos há mais de um ano – questionando-se se não terá caducado o direito do credor de basear o seu pedido, nesses factos[8], não podendo assim a omissão do comportamento ativo, designadamente dos credores, ser relevada negativamente aquando da prolação da decisão final de exoneração?

Efetivamente, no âmbito da cessação antecipada do procedimento de exoneração, o decurso do prazo de um ano sobre a data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos factos suscetíveis de integrar a previsão normativa de alguma das referidas alíneas do nº 1 do art. 243º,  tem, como consequência, a impossibilidade do requerente poder requerer, com fundamento nesses factos, a  cessação antecipada do procedimento de exoneração, mas “não resultando daí qualquer causa (substantiva) de inexigibilidade do cumprimento da obrigação inobservada no período em causa, ou seja, no que ao caso importa, isso não significa que o devedor fique definitivamente desonerado do dever de entrega do rendimento disponível que nesse período temporal não entregou ao fiduciário. O dever de entrega subsiste durante todo o período da cessão (cfr. arts. 237º, al. d) e 239º, nºs 2 e 4) não podendo, pois, ver-se no facto de os credores e/ou o fiduciário não requererem a cessação antecipada qualquer causa legítima de justificação de não entrega do rendimento disponível em falta ou sequer de limitação dos montantes que a esse título deverão ser entregues ao fiduciário.

De contrário, sairia desvirtuada a finalidade do despacho final de exoneração a que se alude no art. 244º.

Na verdade, como já anteriormente se sublinhou, é no termo do período da cessão que o juiz (que, note-se, não pode oficiosamente recusar antecipadamente a exoneração - exceção feita à hipótese contemplada no nº 4 do art. 243º, isto é, no caso de estarem integralmente satisfeitos todos os créditos da insolvência ainda antes do decurso do prazo de cinco anos) irá ponderar, na presença dos elementos factuais disponíveis, se o devedor/insolvente é merecedor da concessão desse benefício por ter revelado, durante todo esse período, um comportamento demonstrativo de boa-fé, mormente cumprido diligentemente as obrigações que lhe foram impostas no despacho inicial” (cfr. se defende no Ac. do TRP de , processo 6127/10.3TBVFR.P2, de onde se retirou o texto transcrito).

            O facto de não ter sido pedida a cessação antecipada, no final de cada ano em que se verificou a falta de entrega, acabou por beneficiar o devedor concedendo-lhe pelo menos 5 anos, sem que o passivo restante lhe pudesse ser exigido e concedendo-lhe um período mais alargado para regularizar a sua situação. O facto de não ter sido pedida a cessação antecipada, não impede a recusa da concessão da exoneração pelos mesmos factos que a poderiam fundamentar. Como se referiu supra, a propósito da alegada violação do princípio da confiança, apesar da sua conduta reiterada não ter sido censurada com a cessação antecipada da exoneração, não lhe permitia concluir que nenhuma censura merecia a sua atuação.

            E tendo em conta o valor em causa, o valor dos créditos reclamados, o valor pago pelos insolventes, há que concluir que a omissão dos apelados prejudicou por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência, havendo nexo de causalidade entre a omissão dos apelados e o prejuízo causado aos credores, prejuízo que, aliás, é reconhecido na decisão recorrida. Se os insolventes tivessem liquidado  a totalidade da quantia em falta, teriam reforçado em mais 23% o montante cedido à fidúcia.

            Para que que esteja verificado o requisito do prejuízo, este não tem que prejudicar de forma relevante a satisfação dos credores da insolvência, como se exige que seja apto a prejudicar, para a revogação da decisão que concedeu a exoneração (artº 246º, nº 1). Nesta sede, tendo em conta que foi proferida uma decisão concedendo a exoneração, bem se compreende que se exija para a sua revogação o prejuízo relevante. O prejuízo é aferido face à totalidade dos credores e não um  a um, em função do valor que ficou por entregar e do montante que ficou por satisfazer na insolvência.

Deve assim ser recusada a exoneração do passivo restante, pois estão reunidos os requisitos exigidos pelo artº 243º, nº 1, alínea a), aplicável ex vi do artº 244º, nº 2, em conjugação com o disposto no artº 239º, nº 4, alínea c).

Sumário:

(…).

            IV - Decisão

            Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar procedente o recurso, e, em consequência, revogam o despacho recorrido, recusando a concessão do benefício da exoneração do passivo restante aos insolventes.

            Custas pelos apelados, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.

            Coimbra, 26 de abril de 2022




[1] Os mapas juntos com o relatório do 4º e 5º ano da cessão ilustram que relativamente ao 4º ano de cessão,  foi deduzida à importância que deveria ter sido entregue, a quantia de 1.375,00 euros, posteriormente autorizada ao abrigo do artº 239º, nº 3, alínea b) iii) do CIRE, sendo a matéria de facto omissa relativamente a tal facto que se impõe considerar.

[2] Entre outros, Acs. do STJ. de 09/04/2019, Proc. 279/13.8TBPCV.C1.S2; do TRG. de 30/01/2020, Proc. 644/13.TBVVD.G2; de 14/06/2018, Proc. 4706/15.1T8V.G1 e do TRP. de 14/07/2020, Proc. 6127/10.3TBVFR.P1.
[3] Na sentença recorrida refere-se o valor de 16.667,35, porque não foi descontada a importância de 1.375,00 que foi autorizada, permanecendo uma diferença de 36 cêntimos, certamente devido a erro na adição.
[4] O que se mostra incorreto, pois que o montante que deixou de ser entregue é no  montante de 5.988,46.
[5] Inicialmente apurou-se, relativamente ao 2º ano de cessão, um valor em falta de 1.677,09, mas como posteriormente foram autorizadas despesas de saúde nesse valor, deixou de constar nos relatórios seguintes a referência a qualquer quantia em falta no 2º ano, passando a ser mencionado que a importância entregue correspondia à que devia ter sido cedida.

[6] Da matéria de facto resulta o valor de 5.848,24, superior assim, em mais 30,00 à referida pela apelante, mas a este valor foi deduzida a quantia de 1.375,00, dedução  que a apelante efetuou no terceiro ano, mas que  o sr. fiduciário só deduziu no 4º ano.
[7] Valor do rendimento mínimo mensal em 2016: 535 euros; 2017: 557 euros; 2018: 580 euros; 2019: 600 euros; 2020: 635 euros e em 2021: 665 euros.
[8] O Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.