Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
548/07.6TAAND-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: PENA DE MULTA
CONVERSÃO DA MULTA EM PRISÃO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
Data do Acordão: 04/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA, ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 61º CPP; 49º CP
Sumário: O juiz, antes de converter a multa não paga em prisão subsidiária, deve ouvir o arguido.
Decisão Texto Integral:
O arguido, PC…, recorre do despacho judicial, datado de 09.07.2010 (certificado a fls. 11 dos presentes autos de recurso com subida em separado) no qual, mediante promoção do MºPº, considerando que o arguido não procedeu ao pagamento e não requereu a substituição, não sendo viável a execução da pena de 65 dias de multa em que foi condenado nos autos [pela prática de um crime de desobediência p e p pelo art. 348º n.º1 b) do C. Penal] foi determinado o cumprimento de 43 dias de prisão subsidiária que correspondem à multa não cumprida, ordenando-se a emissão, após trânsito em julgado, de mandados de captura e condução à cadeia.
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Na motivação do recurso, formula as seguintes CONCLUSÕES:
O arguido não se encontra, física ou psicologicamente, em condições para cumprir uma pena de prisão.
No dia 29 de Outubro de 2009, foi internado de urgência do Hospital de ..., em consequência de uma queda em altura de 6 metros.
Foi diagnosticado ao arguido um fractura de corpo L1, uma fractura horizontal do sacro, fracturas de ambos os calcâneos, fractura do pilão tibial direito e outras feridas múltiplas.
Esteve internado desde o dia 30 de Outubro de 2009 até ao dia 25 de Novembro de 2009.
Desde o dia 25 de Novembro de 209 até hoje, o arguido encontra-se de baixa médica.
Não trabalhou como médico dentista, sua profissão, durante todo o anos de 2010, sendo ainda uma incógnita quando voltará a retomar a sua actividade profissional.
Deste modo e vivendo do seu trabalho, o arguido não actualmente qualquer fonte de rendimentos, sendo-lhe completamente impossível pagar a quantia devida.
O cumprimento da pena de prisão subsidiária porá em causa a reabilitação e recuperação física e psicológica do arguido.
O arguido requer que lhe seja possível prestar trabalho a favor da comunidade em substituição da multa em que foi condenado, ou, caso não seja esse o entendimento, lhe seja possível pagar a quantia devida em prestações entre os € 50,00 e os € 100,00 por mês.
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Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido sustentado que o recurso deve ser rejeitado por falda de indicação das normas tidas por violadas; ou, se assim não se entender, deve improceder porque a decisão recorrida procedeu a uma correcta aplicação do art. 49º do C. Penal.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer divergente da resposta apresentada em 1ª instância, pronunciando-se no sentido de que, nas circunstâncias concretas do caso, o arguido devia ter sido notificado pessoalmente, tendo em atenção a informação/sugestão do Defensor no sentido de que não teve ou tem qualquer contacto com o arguido, desconhecendo em absoluto a sua situação pessoal ou profissional.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
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O fundamento do despacho recorrido, para determinar o cumprimento da pena de prisão subsidiária, foi a circunstância de o arguido não ter requerido a substituição da multa por trabalho em favor da comunidade, nem logrado provar que o não pagamento da multa lhe não era imputável.

Prescreve o art.° 49º, n.º 1 do C.P.:
1. Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n. ° 1 do art. ° 41°;
Por outro lado, postula o art. 49º nº 3:
3. Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.

Na decisão em recurso, do deferimento da promoção do MºPº resultava, como consequência directa imediata, a emissão de mandados de captura e privação da liberdade do arguido.
Constituindo, pois, um acto que manifestamente o afecta num dos direitos fundamentais mais relevantes – o direito à liberdade.
Certo é que não se trata de acto relativamente ao qual a lei preveja, especificamente, a necessidade de notificação pessoal do arguido.
No entanto tal decorre dos preceitos comuns, numa interpretação conforme à Constituição e aos princípios gerais do Estado de Direito.
Com efeito a Constituição impõe o exercício do contraditório relativamente “a audiência de discussão e julgamento e actos instrutórios que a lei determinar” - art. 32º, n.º5.
Direito esse que se encontra atribuído de forma genérica, no Processo Penal, ao arguido, no art. 61º, n.º1, al. b) do CPP:
«1. O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e, salvas as excepções da lei, dos direitos de: (…)
b) ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte».
O direito de audiência constitui uma garantia de defesa decorrente do Estado de Direito democrático, implicando que a declaração do direito do caso penal concreto não seja apenas tarefa do tribunal (concepção “carismática” do processo) mas tenha de ser tarefa de todos, em função da posição processual que cada um assume.
Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1981, I, 157/158) refere que o direito de audiência é a expressão necessária do direito do cidadão à concessão de justiça, das exigências inscritas no Estado de Direito, do espírito do Processo como “comparticipação” de todos os interessados na criação da decisão; direito que deve ser assegurado perante quaisquer decisões, sejam do juiz ou de entidades instrutórias, nomeadamente o MºPº, sempre que aquelas atinjam directamente a esfera jurídica das pessoas.
Como refere o Ac. T C n.º 54/2006, de 24.01.2006, DR IIS de 19.01.2006, citando o Ac. do mesmo Tribunal n.º 132/92 publicado no DR II S de 24.07.1992 “uma concreta conformação processual só poderá ser recusada como violadora daquele princípio quando dever considerar-se infundamentada, desrazoável ou arbitrária; como ainda quando possa reputar-se substancialmente descriminatória à luz das finalidades do processo penal”.
Com interesse para o caso, para uma situação semelhante á dos autos – revogação da suspensão da execução da prisão, com a consequente emissão de mandados – o CPP prevê, de forma explícita e inequívoca, a audição do condenado – cfr. artigo 495º, n.º3 do CPP.
Por outro lado, no caso dos autos, as consequências para o arguido são idênticas às da previsão do citado art. 495º – a imediata privação da liberdade.
Ora, no caso dos autos, o arguido foi notificado - apenas - na pessoa do defensor nomeado nos autos.
Mas, recebida a notificação, o defensor informou, de imediato, nos autos que “não teve ou tem qualquer contacto com o arguido, desconhecendo em absoluto a sua situação pessoal ou profissional, mais referindo ainda que seria mais curial nova notificação esta directamente ao arguido, para que o mesmo pudesse, antes da emissão dos respectivos mandados de detenção, tomar conhecimento de tal e ter a possibilidade designadamente de proceder ao pagamento daquela”.
Não obstante tal informação, foi proferida de imediato a decisão recorrida, sem qualquer diligência no sentido de ouvir pessoalmente o arguido, determinando o cumprimento da prisão subsidiária e a emissão de mandados.
Quando a decisão recorrida foi proferida, era manifesto que o direito de defesa não estava ser exercido! Porque a pessoa notificada disse expressamente que não tinha contacto com o arguido.
Com efeito, constitui fundamento da relação subjacente ao mandato judicial – daí a notificação dos actos sempre ao advogado e só em alguns casos simultaneamente ao arguido – uma específica relação de confiança e proximidade com o defensor, a fim de este falar em nome do arguido, além do inerente apoio técnico-jurídico. Relação essa que, no caso, se mostrava afastada pela posição transmitida ao processo, de forma expressa, pelo defensor.
Perante a informação prestada nos autos pelo defensor do arguido é evidente que o defensor não tinha condições para exercer eficazmente a defesa do arguido.
Ora, tendo por referência os princípios do Estado de Direito, do due process, fair process, do exercício do efectivo direito de defesa, da proporcionalidade e adequação, afigura-se que foi violado o direito de defesa do arguido. Pois que, efectivamente, em termos práticos, não foi exercido o direito de defesa – o titular não foi ouvido e o defensor notificado em seu nome descartou a notificação, dando conhecimento nos autos.
Entende-se assim que a interpretação do art. 49º conforme aos aludidos princípios, não consente a interpretação de que, no caso, bastava a mera notificação ao defensor quando este veio dizer, ao processo, explicitamente, que não mantém qualquer contacto com o arguido. O exercício do direito de defesa impunha a realização de diligências no sentido da notificação pessoal do arguido.
Aliás, no caso, como resulta da documentação ora junta, relativa ao grave acidente que o arguido tinha sofrido, com internamento hospitalar e total incapacitação do arguido, sequelas que ainda se mantêm, a realização de diligências mínimas no sentido da notificação do arguido teriam permito, seguramente, justificar o não pagamento da multa, face à absoluta incapacitação do arguido.
Assim, em conclusão, concordando-se com o douto parecer, por preterição do direito de defesa do arguido, deve ser-lhe dada previamente a possibilidade efectiva de se pronunciar sobre a promoção do MºPº sobre o cumprimento da prisão subsidiária da multa.

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Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se revogar o despacho recorrido, determinando-se a sua substituição por outro que, antes de determinar o cumprimento da prisão subsidiária, ouça o arguido sobre as razões do não pagamento da multa, seguindo-se depois os ulteriores termos. -----
Sem tributação.

Belmiro Andrade (Relator)
Abílio Ramalho