Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5034/05.6TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: CRÉDITO DOCUMENTÁRIO
CARTA DE CRÉDITO
Data do Acordão: 05/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: REGRAS E USOS UNIFORMES RELATIVOS AOS CRÉDITOS DOCUMENTÁRIOS (RUU)
Sumário: I – O crédito documentário consiste num acordo de pagamento que se caracteriza por permitir ao credor de uma relação comercial, v.g. ao vendedor (beneficiário do crédito), resguardar-se dos riscos – v.g. os conexos com a situação patrimonial do devedor (v.g. a sua solvabilidade), que poderiam comprometer a cobrança do seu crédito.

II – A operação de crédito documentário é regulada pelas Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários (RUU), regras compiladas pela Câmara de Comércio Internacional, usualmente aceites no comércio jurídico internacional, nascidas em 1933 e objecto de revisões várias desde a sua primeira publicação.

III - Mediante o crédito documentário irrevogável, um banco (o banco emitente) agindo por mandato ou instruções do seu cliente (o ordenador do crédito), assume o compromisso firme, insusceptível de alteração ou cancelamento sem o acordo de todos os interessados, de realizar a favor do beneficiário a prestação constante da abertura de crédito, desde que este lhe apresente, no prazo e condições estabelecidas na carta de crédito, os documentos que aí se especificaram.

IV – A pedido ou com a prévia concordância do banco emitente, o crédito documentário irrevogável pode ser confirmado por um outro banco (o banco confirmador), que, com essa confirmação, assume, perante o beneficiário, o compromisso firme de realizar, a seu favor, a prestação constante da abertura de crédito.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório:

A) - 1) -A..., LDª”, com sede na ..., intentou, em 12/12/2005, no Tribunal Judicial de Viseu, acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra B..., S.A., com sede em ..., ..., Uruguai, C... Banco, S.A., com sede no Porto e Banco D..., S.A., com sede em, ..., Uruguai, peticionando o que ora se transcreve:

«…deve a presente acção ser julgada provada e procedente e, consequentemente:

a) a ré B...condenada a ver declarado o incumprimento do contrato de compra e venda da mercadoria por facto a si imputável constante da factura como doc. n.º 1 (junto à providência a apensar).

b) a ré condenada, em consequência, a ver declarada a resolução do contrato de compra e venda com todas as legais consequências.

c) o réu C..., s.a. condenado a ver declarado que o b/l - boletim de embarque - não é válido, estando em desconformidade com a lei e os termos do contrato de abertura de crédito, não estando assinado, nem procedendo da autoria da indicada transportadora msc,

d) os sinais da desconformidade do b/l em poder dos rr. bancos C... e D... são inequívocos e indiciadores da fraude e da actuação dolosa e da má-fé da beneficiária B...,

e) dada a manifesta falsidade do título do conhecimento de embarque (b/l) e o conhecimento efectivo do não embarque da mercadoria - objecto da carta de crédito - deve o banco C..., s.a. ser condenado a abster-se de efectuar qualquer pagamento à beneficiária, por dispor de prova que esta visou burlar os bancos e a autora, obtendo um enriquecimento ilegítimo e fazendo crer que a mercadoria fora expedida a bordo.

 f) os factos do comportamento da ré B...constituem fundamento de revogação do contrato de prestação de serviços e de abertura de crédito, outorgados entre a autora A... e o banco C..., s.a. constante do doc. n.º 2 junto à providência, revogação essa com justa causa nos termos do artigos 1170º e 432º e sgs. do código civil, o que se peticiona e se declare.

g) a revogação e resolução do contrato da alínea anterior tem efeito retroactivo, devendo o banco devolver e disponibilizar à autora a quantia de 29.700,00 € disponibilizada em conta bancária acrescida de juros à taxa comercial de 9.09% desde 27.09.2005 até integral pagamento.

h) deve igualmente o banco notificador D... recusar ou abster-se de efectuar o pagamento da quantia do crédito documentário à beneficiária pelos ditos factos e por igualmente estar vinculado às regras internacionais e ás condições do contrato sendo certo que se já efectuou o pagamento, a si apenas é imputável e vincula.

i) devem todos os réus ser condenados solidariamente a pagar à autora uma indemnização pelos danos patrimoniais (danos emergentes e lucros cessantes) aludidos em 53º e 54º desta p.i. a determinar em ulterior liquidação nos termos do art.º 661º do código de processo civil.

j) todos os réus condenados nas custas, condigna procuradoria e demais despesas.».

Alegou, para o efeito, que:

[…]

2) - Os réus C... e D..., contestando, negaram a responsabilidade que lhes imputara a Autora e pediram a improcedência da acção, tendo alegado, entre o mais:

[…]

3) - A Autora ofereceu réplica que terminou como na petição inicial.

4) - Foi proferido tabelar despacho saneador, procedeu-se à selecção dos factos que se consideravam já assentes e elaborou-se a base instrutória.

5) - Prosseguindo os autos os seus ulteriores termos, veio a ter lugar a audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova, após o que foi proferida sentença (em 24/05/2010) que, na parcial procedência da acção, declarando resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre a autora A..., LDª e a ré B..., S.A., por incumprimento imputável a esta última, absolveu-a dos demais pedidos, absolvendo, outrossim, os Bancos RR, C... e D..., de todos os pedidos que contra eles haviam sido formulados.

6) - Desta sentença recorreu a Autora, tendo o recurso sido admitido como Apelação, a subir imediatamente e com efeito meramente devolutivo.

B) - É esse recurso de Apelação que ora cumpre decidir e em cuja alegação a Recorrente oferece as seguintes conclusões:

[…]

C) - As Questões a resolver:

Em face do disposto nos art.ºs 684º, nº 3 e 4, 690º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660º, n.º 2, “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [2]).
Assim, as questões que cumpre solucionar no presente recurso são as de saber:
- Se é de proceder à alteração da matéria de facto que fundamentou a sentença recorrida;
- Se, em face da factualidade que se tenha como provada, a acção deve proceder.

II - Fundamentação:

A) Os factos.

[…]

2) - Tendo-se procedido à gravação dos depoimentos prestados na audiência, a decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre matéria de facto é susceptível de ser alterada pela Relação se for impugnada, nos termos do art.º 690.º-A, a decisão com base neles proferida - (alínea a) do n.º 1 do art.º 712.º do CPC).

[…]

Assim, a matéria de facto que se tem como provada é aquela que assim foi considerada na sentença da 1.ª Instância e que está discriminada em II - A) “supra”.

B) - O direito.

Excepcionado o pedido respeitante à resolução do contrato entre a Autora e a Ré B..., a acção soçobrou, porquanto, no entender do Mmo. Juiz do Tribunal “a quo”, além de a autora não haver provado o que alegara quanto à verificação dos danos a que respeitava a factualidade vertida nos quesitos 27º a 29º, se havia provado que a documentação, v.g., o Bill of lading (B/L), estava em aparente conformidade com os termos do contrato e com a lei, conforme fora verificado pelos RR C... ou D..., a quem não era exigível outras cautelas, não lhes estando vedado, assim, procederem ao pagamento do crédito documentário irrevogável.

Inalterada a decisão de facto emitida pelo Tribunal “a quo”, não se descortina que destino diferente possa ter, em face disso e do direito aplicável, a decisão de mérito proferida, já que a sentença recorrida, enunciando devidamente as questões a resolver, solucionou-as correctamente e com fundamentação adequada, merecendo a nossa concordância a decretada parcial improcedência da acção, com a absolvição dos RR., nos termos decididos.

Vejamos.

A Autora celebrou com a Ré B...um contrato de compra e venda mediante o qual comprou a esta 220 toneladas de carvão vegetal, pelo preço de € 29.700,00, quantia esta que acordaram ser paga mediante a emissão de uma carta de crédito documentário, irrevogável e confirmada, pagável a 150 dias da data do B/L (“Bill of lading”ou Conhecimento de Embarque).

Para execução do acordado, a autora solicitou a abertura desse crédito documentário junto do Réu C..., S.A., que a aceitou e emitiu a favor da beneficiária B...a carta de crédito n.º CDI - .../05, com data de 05.04.29 e com validade até 05.06.30, tendo o réu D..., A. Uruguay, S.A. aceite o encargo de confirmar a carta de crédito e de notificar a Beneficiária B...do pagamento.

Tendo-se provado que, em 4 de Maio de 2005, o réu D... adiantou à ré B...(beneficiária) o valor do crédito documentário aberto a pedido da Autora (ordenante), e estando provado, também, que a ré B...apresentou um B/L falsificado ao Banco por forma a receber o preço avalizado pela carta de crédito, fazendo crer nos bancos RR que a mercadoria fora expedida a bordo e assim induzindo em erro estes e a autora, a questão que se colocava era a de saber se o procedimento dos RR C... (banco emitente) e D... (banco confirmador), na medida em que não obstaram a tal pagamento, os responsabilizava perante a Autora.

O crédito documentário consiste num modo de pagamento que se caracteriza por permitir ao credor de uma relação comercial, v.g., ao vendedor (beneficiário do crédito), resguardar-se dos riscos - v.g, os conexos com a situação patrimonial do devedor (v.g, a sua solvabilidade), que poderiam comprometer a cobrança do seu crédito.

A operação de crédito documentário é regulada pelas Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários (RUU)[3], regras compiladas pela Câmara de Comércio Internacional, usualmente aceites no comércio jurídico internacional, nascidas em 1933 e objecto de revisões várias desde a sua primeira publicação (1951, 1962, 1974, 1983, 1993 e 2006), sendo que a versão aqui aplicável, face à data da operação de crédito documentário em causa, é aquela que é conhecida como RUU 500, ou UCP 500, em vigor desde 01 de Janeiro de 1994.[4]

Mediante o crédito documentário irrevogável, um banco (o banco emitente) agindo por mandato ou instruções do seu cliente (o ordenador do crédito), assume o compromisso firme, insusceptível de alteração ou cancelamento sem o acordo de todos os interessados, de realizar a favor do beneficiário a prestação constante da abertura de crédito, desde que este lhe apresente, no prazo e condições estabelecidas na carta de crédito, os documentos que aí se especificaram.

A pedido ou com a prévia concordância do banco emitente, o crédito documentário irrevogável pode ser confirmado por um outro banco (o banco confirmador), que, com essa confirmação, assume, perante o beneficiário, o compromisso firme de realizar, a seu favor, a prestação constante da abertura de crédito.

O pagamento diferido implica, para os bancos comprometidos (emitente e confirmador), a obrigação de pagar a quantia creditada ao beneficiário na data do vencimento estipulada na carta de crédito ou até essa data.

De acordo com as Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários, a operação de crédito documentário e o negócio que lhe está subjacente, v.g., a compra e venda internacional, são independentes e autónomas: Quer o banco emitente, quer o banco confirmador, não são partes nesse negócio subjacente, sendo estranhos às convenções a ele respeitantes (cfr. art.º 3º das RUU).[5]

A concessão de um crédito documentário com cláusula de irrevogabilidade[6] gera, pois, na esfera jurídica do banco emitente uma obrigação autónoma e independente, quer da relação subjacente ao crédito documentário, quer da relação entre o ordenante e o emitente do crédito, as quais não podem fundar excepções (v. g., incumprimento da compra e venda internacional subjacente) susceptíveis de afectar aquela obrigação, salvo na hipótese de fraude do beneficiário.[7]

Também o Banco confirmante, como resulta do acima dito, assume, com a emissão da confirmação ou da carta de confirmação, uma obrigação irrevogável e autónoma de cumprimento do crédito, que, embora paralela e com o mesmo conteúdo da obrigação do emitente, acresce a esta (Cfr. artigo 9.º das RUU).

É certo que, conforme afirma a Apelante, não obstante os limites à autonomia do crédito documentário irrevogável, tem-se entendido que os Bancos podem recusar o pagamento ao beneficiário em caso de fraude manifesta ou de abuso evidente. É que, em observância do adágio “fraus omnia corrumpit”, o princípio do formalismo, caracterizador da operação de concessão de crédito documentário, cede, por motivos de razoabilidade, em presença de fraude.

Só que, tirando os casos em que, em tempo oportuno, se detecta situação relativa ao negócio subjacente que revela inequívoca fraude - v.g., inexistência da mercadoria objecto da compra e venda -, para que os bancos recusem o pagamento com base em fraude (v.g., perpetrada pelo beneficiário do crédito), além de não bastar a remota suspeita de uma tal situação, a fraude deve, em princípio, evidenciar-se aos bancos através do exame dos documentos que lhes compete analisar no âmbito da concessão do crédito, não estando a seu cargo fazê-lo relativamente ao negócio subjacente.[8]

Note-se que ao banco não se impõe que se assegure da autenticidade dos documentos, devendo, tão só, examinar, com o cuidado razoável, da sua aparente conformidade com os termos e condições do crédito (cfr. art.º 13º, a), das RUU).

Subscreve-se, pois, o entendimento que o Apelado D... atribui a Carlos Costa Pina[9]: "A fraude (...) implica ainda, da parte do banco em causa, o conhecimento de que, apesar da aparente conformidade, sob ele se escondem factos que, se expressos, imporiam que os documentos fossem rejeitados.

(…) se o banco desconhecia tal facto [a existência de fraude] ou actuou diligentemente em ordem a averiguar da sua efectividade, sem que pudesse fundadamente contrariar a aparência de conformidade, então não lhe poderá ser oponível a mera situação de fraude objectiva.”.

Será, pois, nos termos que ficaram expostos, que o ordenante poderá demonstrar a negligência do Banco no exame dos documentos e responsabilizá-lo com fundamento na violação dos deveres contratuais a seu cargo, invocando, designadamente, o disposto nos art.ºs 7º, a), e 13º, a), das RUU 500.

Ora, no caso “sub judice” não se provando que os Bancos RR tivessem, previamente ao pagamento efectuado à beneficiária B..., conhecimento da existência de fraude por parte desta, provou-se ter sido confirmada a aludida conformidade, não sendo exigível, como diz o Mmo. Juiz do Tribunal “a quo”, que os Bancos RR tivessem tomado outras cautelas adicionais (cfr. pontos 28, 30, 32 e 35 da matéria de facto).

Concorda-se, pois, com o tribunal “a quo”, quando refere que não se pode concluir, como pretende a autora que, “pela simples inspecção do B/L se constata que não é válido e que está em aparente desconformidade com a lei e os termos do contrato, sendo motivo de recusa de pagamento”.

Aliás, a própria autora, sendo conhecedora do teor do B/L, só após as observações que foram feitas pelo representante em Portugal da MSC, reconheceu a situação que, então, em 8 Julho de 2005, veio comunicar à agência do Réu C..., em Viseu, pedindo a anulação do crédito (cfr. pontos 13 a 19 da matéria de facto).

Concluindo: A autora não logrou provar os pressupostos de que dependia o reconhecimento do direito que habilitaria a procedência dos pedidos de que os RR foram absolvidos, nada havendo a censurar, pois, à decisão do Tribunal “a quo”, que fez correcta interpretação das disposições legais pertinentes, não tendo infringido, designadamente, o disposto nos art.ºs 1170º e 432º do Código Civil e 7º, 13º, 14º e 15º, das RUU.

III - Decisão:

Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, mantendo a sentença recorrida.

Custas pela Apelante.


Falcão de Magalhães (Relator)
Regina Rosa
Artur Dias


[1] Código este aplicável na redacção anterior àquela que lhe foi introduzida pelo DL nº 303/2007, de 24/08.
[2] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ, ou os correspondentes sumários, citados sem referência de publicação.
[3] Ou “Uniform Customs and Practice for Documentary Credits” (UCP).
[4] As RUU 600, ou, UCP 600, resultaram de revisão aprovada em 25 de Outubro de 2006, que só em 1 de Julho de 2007 entrou em vigor.
[5] Cfr. Jorge R. Albornoz e Paula María All, “Crédito Documentario”, págs. 242 e 242.
[6] O crédito documentário revogável não apresenta interesse prático, face ao seu escassíssimo uso, tanto assim que deixou de estar previsto nas RUU 600.
[7] Cfr. Calvão da Silva, “Crédito Documentário e Conhecimento de Embarque”, na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano II (1994), Tomo I, pág. 20.
[8] Cfr. Acórdão do STJ de 17/04/1997, no BMJ nº 466, pág. 526 e ss..
[9] Citando "Créditos Documentários - as Regras e Usos Uniformes da Câmara de Comércio Internacional e a Prática Bancária”, Coimbra Editora, 2000, págs. 107 e 109.
[10] Processado e revisto pelo Relator.