Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
397/16.0GAMMV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA COSTA RIBEIRO
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
AUDIÇÃO PRESENCIAL DO CONDENADO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
TRÂNSITO EM JULGADO
CASO JULGADO
Data do Acordão: 03/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 32.º, N.º 5, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 61.º, N.º 1, 113.º, N.º 3, 11 E 12, 119.º A 123.º, 196.º, N.º 3, ALÍNEA C), E 495.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGOS 620.º E 628.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I - A revogação da suspensão da execução da pena de prisão exige a prévia audição do condenado, sob pena de nulidade insanável, só assim se garantindo o efectivo exercício do direito ao contraditório.

II - Quando o tribunal decide dispensar a audição presencial do condenado, depois de este não ter tomado posição face à notificação para se pronunciar sobre a revogação da suspensão da execução da pena e para comparecer em tribunal a fim de ser ouvido presencialmente, o que está a fazer é valorar o seu silêncio em face da faculdade que lhe foi concedida de exercer ou não o direito ao contraditório.

III - O caso julgado material significa que a sentença ou decisão sobre a relação material controvertida tem força obrigatória dentro do processo e fora dele e o caso julgado formal significa que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória no processo onde foi proferida.

IV - As nulidades processuais, quer necessitem de ser arguidas pelos interessados, quer sejam de conhecimento oficioso, ficam sanadas com o trânsito em julgado da decisão final: as primeiras sanam-se se não forem arguidas dentro dos prazos para tanto normativamente previstos; as segundas sanam-se com o termo do procedimento, ou seja, com o trânsito em julgado da decisão, jamais podem ser invocadas ou oficiosamente conhecidas quaisquer nulidades, mesmo aquelas que a lei qualifica de insanáveis.

V - Verificando-se a nulidade insanável depois do trânsito em julgado da sentença condenatória, os actos praticados ou omitidos e os actos subsequentes que deles dependam e que puderem ser afectados pela nulidade têm existência e/ou relevância jurídica, subsistindo enquanto, e se, a nulidade não for declarada.

Decisão Texto Integral:
Relatora: Alcina Ribeiro
1.º Adjunta: Cristina Pego Branco
2.º Adjunta: Maria Alexandra Guiné

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I. RELATÓRIO

1. Por sentença transitada em julgada em 28 de dezembro de 2017, foi AA condenado pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período sujeito a regime de prova e ao dever de proibição de contactos com a vitima, com excepção das questões que se relacionem com os filhos de ambos e, ainda, na condição de pagar à vitima a quantia de 2 500,00€.

2. Por decisão proferia em 29 de março de 2019, foi revogada a suspensão da execução da prisão do arguido, determinando o cumprimento da pena de um ano de prisão em que foi condenado, decisão essa que transitou em julgado no dia 8 de março de 2022.

3. Detido o arguido, na sequência dos mandados de detenção emitidos para cumprimento da pena de prisão, veio o condenado, arguir a nulidade do despacho que decretou a revogação da suspensão da execução da prisão, com fundamento na preterição do seu direito de audição e violação do principio do contraditório.

4. Por despacho proferido de 5 de dezembro de 2022 foi indeferida a nulidade inovada pelo Recorrente.

5. Notificado desta decisão, interpõe o condenado o presente recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

a) Foi o facto de o Recorrente se encontrar a trabalhar em Espanha que inviabilizou a sua notificação …

b) O Tribunal, antes de revogar a suspensão da pena, não ouviu pessoalmente o arguido acompanhado do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições de suspensão, como impõe o artº 495º, nº 2 do CPP.

c) Independentemente de se terem frustrado as tentativas do Tribunal para ouvir o arguido antes da revogação da suspensão da pena, estava impedido de o fazer sem a sua audição presencial, como impõe a norma processual atrás referida.

d) A não audição prévia do arguido do arguido, constitui uma nulidade insanável que é do conhecimento oficioso do Tribunal artº 119º, al. c) do CPP.

e) Acresce que a falta de audição prévia constitui uma clara violação do princípio do contraditório consagrado no artº 32º da Constituição.

f) O princípio do contraditório tem uma dimensão de garantia essencial da defesa e por isso não pode deixar de abranger todos os atos suscetíveis de afetar a posição do arguido no processo, nomeadamente neste caso concreto do despacho decisório que revoga a pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão, ao aplicar, por sua vez, a pena efetiva de prisão, equivale, em termos práticos e de relevância jurídica, à determinação de uma sentença.

g) Neste sentido, ver o Ac. do Tribunal Constitucional nº 491/2021 de 08/07 que julgou inconstitucional a norma interpretativamente extraída do artigo 495.º, n.º 2, e do artigo 119.º, ambos do Código de Processo Penal, que permite a revogação da suspensão da pena de prisão não sujeita a condições ou acompanhada de regime de prova, com dispensa de audição presencial do arguido/condenado e sem que lhe tenha sido previamente dada a oportunidade de sobre a mesma se pronunciar, por esta preterição redundar em mera irregularidade.

6. A Ex.ma Senhora Procuradora na primeira instância defende a manutenção da decisão recorrida …

7. Nesta Relação, o Digno Procurador – Geral Adjunto defende o não provimento do recurso.

II. A DECISÃO RECORRIDA

O despacho sindicado tem o seguinte teor:

«1. No âmbito dos presentes autos, por sentença proferida a 24-11-2017 e transitada em julgado a 28-12-2017, decidiu-se condenar o arguido «pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal, numa pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão;

7.2. Suspender a execução da pena de prisão fixada em 7.1 durante o período de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses:

 7.2.1. sujeita a regime de prova assente num plano de reinserção social a incidir nas vertentes mais convenientes para a ressocialização do arguido …

7.2.2. subordinada ao cumprimento pelo arguido do dever de pagar (ou garantir o pagamento por meio de caução idónea), dentro do prazo de suspensão, a indemnização de 2.500,00 Euros …

7.2.3. subordinada à observância pelo arguido da regra de conduta de proibição de contactos com a vítima, por qualquer meio, com excepção das questões que se relacionem com os filhos de ambos …)».

Posteriormente, por decisão de 29-03-2019, decidiu-se «revogar a suspensão da execução da pena de prisão e, em consequência, determinar o cumprimento efectivo da pena única de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão a que o arguido AA foi condenado nos presentes autos».

Após trânsito em julgado daquela decisão, foram emitidos mandados de detenção europeus para cumprimento daquela pena por parte do arguido, sendo que, na sequência do cumprimento daqueles mandados, por requerimento de 30-10-2022, veio o arguido «requerer a (…) anulação do despacho de revogação da suspensão da execução da pena dado nos presentes autos porque a sua prolação, sem audição prévia do arguido, constitui uma nulidade insanável ao abrigo da al. c) do artº 119º do CPP e com os efeitos que essa nulidade produz nos termos do nº 1 do artº 122º do CPP, como também porque o mesmo viola o principio do contraditório consagrado nos nºs 1 e 5 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa».

2. O artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal, determina que constitui nulidade insanável, a ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, a «ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência».

A nulidade insanável é, entre as formas de invalidade de actos processuais, a mais gravosa e, por isso, está reservada a situações de afronta a princípios fundamentais do processo penal português …

Ora, um dos princípios fundamentais do processo penal português é o princípio do contraditório, consagrando o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que «O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» e o n.º 6, que «A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em atos processuais, incluindo a audiência de julgamento».

Destes comandos derivam, desde logo, alguns dos direitos do arguido expressamente consagrados na lei ordinária, concretamente no artigo 61.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, entre os quais se encontra o direito a:

- estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito - alínea a);

- e a ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte – alínea b).

De harmonia com estes direitos, que, como se disse, são expressão do direito ao contraditório, princípio fundamental do nosso processo penal, constitui nulidade insanável a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.

De todo o modo, daqui não resulta ocorrer nulidade em todo e qualquer caso em que o arguido e/ou defensor não estão presentes numa diligência em que a lei prevê a sua presença …

No caso em apreço, após a homologação do PRS e da informação da DGRSP de que o arguido apenas teria ido a uma entrevista, foi tentado determinar o paradeiro do arguido para este cumprir o plano homologado, sendo que, perante o insucesso das diligências encetadas com esse fito, foi designada data para audição do arguido, nos termos do artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Nessa diligência, realizada a 28-02-2019, nem o defensor constituído, nem o arguido, apesar de regularmente notificados, comparecerem.

Com efeito, o arguido foi notificado para a morada indicada no termo de identidade e residência … pelo que se tem por notificado para estar presente naquela diligência, em conformidade com o estatuído nos artigos 113.º, n.º 3, e 196.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

Do mesmo modo, o defensor foi notificado da realização daquela diligência … nos termos do artigo 113.º, n.ºs 11 e 12, do Código de Processo Penal.

Perante isto, o Tribunal deu cumprimento ao artigo 67.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e nomeou defensor, na sequência do que o arguido foi representado pela Dr.ª BB.

Realizada a diligência, foi ainda notificado o defensor constituído pelo arguido da pronúncia do Ministério Público para exercer o contraditório (notificação de 13-03-2019), não tendo havido resposta.

Após, por despacho de 29-03-2019 foi, então, revogada a suspensão da execução da pena de prisão a que o arguido foi condenado. Naquele despacho, o Tribunal abordou, além do mais, a questão da revogação da suspensão quando o arguido, apesar de regulamente notificado, não comparece para tomada de declarações.

Ali se referiu que …

Significa isto que, nos despachos de 28-02-2019 e de 29-03-2019, o Tribunal já tomou posição sobre a possibilidade de revogar a suspensão da execução quando o arguido, regularmente notificado, opta por não comparecer à tomada de declarações prevista no artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que, implicitamente, corresponde a considerar que inexiste qualquer vício que obste àquela decisão, nomeadamente o da nulidade prevista no artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal.

Na verdade, a questão agora colocada pela defesa mais não é do que uma tentativa de pôr em causa um despacho do qual não recorreu e que, por isso, já transitou em julgado, com base num aspecto que, na verdade, já ali foi apreciado.

III. DO MÉRITO DO RECURSO

Vistas as conclusões do Recorrente, nenhuma dúvida subsiste que se insurge contra o facto de não ter sido ouvido presencialmente sobre a revogação da suspensão da pena em que foi condenado, questão apreciada no despacho datado de 29 de março de 2019, transitado em julgado em 8 de março de 2022.

Que dizer?

Aceita-se que o despacho sobre a revogação da suspensão da execução da pena de prisão exige a prévia audição do condenado, só, assim, se garantindo o efectivo exercício do direito ao contraditório, conforme artigos 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa; 61.º, n.º 1 e 495.º nº, 2 do Código do Código de Processo Penal.

Igualmente se aceita, na esteira do que vem sendo defendido pela jurisprudência, que a falta de audição prévia do arguido sobre os pressupostos de facto e de direito que determinam a revogação da suspensão da prisão integra a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal.

Assente que o arguido foi regularmente notificado para comparecer perante o juiz para ser ouvido e não compareceu, fulcral é saber se a decisão que dispensa a audição prévia do condenado depois de regularmente notificado para esse efeito e de revogação da suspensão da execução da pena, uma vez transitada em julgado, é impugnável por meio de reclamação.

E, sobre esta questão, a primeira nota a reter é a de que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 491/2021, de 8 de julho – que declarou inconstitucional a norma interpretativa extraída do artigo 495.º , n.º 2 e do artigo 119.º, ambos do Código de Processo Penal, que permite a revogação da pena de prisão não sujeita a condições ou acompanhada de regime de prova, com dispensa da audição presencial do arguido/condenado e sem que lhe tenha sido previamente dada a oportunidade de sobre a mesma se pronunciar, por esta preterição redundar em mera irregularidade – não tem aplicação nestes autos.

Com efeito, ao contrário da hipótese daquele Aresto, nos presentes autos o arguido foi regularmente notificado, não só para se pronunciar sobre a revogação da suspensão da execução da pena, como para comparecer em Tribunal a fim de ser ouvido presencialmente, só o não tendo sido, porque, apesar das notificações para o efeito, não compareceu, nem nada disse.

A segunda nota é a reter, é a de que o Tribunal recorrido apreciou expressa e fundadamente a conduta faltosa do arguido e dela retirou que era de dispensar a sua audição presencial, resolvendo a questão de saber se o condenado devia ou não ser ouvido pessoalmente sobre os factos e as razões da revogação da suspensão da execução da pena.

Não se trata de inobservância do direito de audição prévia do arguido ao despacho de revogação da suspensão da execução da pena, mas de valoração do silêncio do condenado diante a faculdade que lhe foi concedida de exercer ou não o direito ao contraditório.

O Tribunal recorrido, não se limitou a emitir uma declaração simples, genérica ou tabelar, como muitas vezes acontece, antes formulou um juízo explicito sobre a questão concreta, através de uma decisão fundamentada de facto e de direito, que, a considerar-se errada pelo Recorrente, sempre a podia impugnar por meio de recurso ou reclamação.

Reitere-se, que a questão de saber se o arguido devia ou não ser ouvido presencial do arguido os termos e para os efeitos do disposto no artigo 495.º n.º 2, do Código de Processo Penal fica resolvida pelo Tribunal com o despacho que dela conhece, despacho esse, impugnável por meio de recurso ou de reclamação nos termos gerais.

Se o condenado, notificado do despacho em causa, não interpuser o recurso ou não o interpuser tempestivamente, o despacho transita em julgado, impedindo seja sindicado pelo tribunal superior.

Foi o que sucedeu, no caso.

O arguido, notificado do despacho que dispensou a sua audição presencial e do despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão, só apresentou a Reclamação no dia 30 de outubro de 2022, quando já tinham decorrido os prazos fixados para o efeito (10 dias para as nulidades sanáveis e 30 dias para a interposição do recurso). 

De acordo com o disposto no artigo 628.º, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º, do Código de Processo Penal, a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.

«Pode definir-se o recurso como o meio processual destinado a provocar a reapreciação da sentença por forma a corrigir certas imperfeições que, pela sua importância, não consentem uma forma de remédio mais solene.

Trata-se, pois, do meio processual destinado a sujeitar a decisão judicial a uma nova apreciação jurisdicional por um tribunal superior.

O recurso representa um pedido de revisão da legalidade ou ilegalidade da decisão judicial, a fazer por órgão judicial diferente (superior hierarquicamente) em face de argumentos especiais feitos valer;

A reclamação representa um pedido de revisão do problema sobre que incidiu a decisão, a operar pelo mesmo órgão judicial e sobre a mesma situação em face da qual decidiu.

Os recursos (…) podem ser ordinários ou extraordinários, medindo-se a diferença essencialmente pelo não trânsito ou trânsito da decisão impugnada, respectivamente.

Podemos assim caracterizar os recursos ordinários como aqueles que se interpõem de decisões não transitada em julgado e os recursos extraordinários como os que se usam para combater decisões transitadas em julgado.

Dito de uma forma simples e abreviada, a decisão transita quando se torna firme, imutável, definitiva.

Contudo, a imutabilidade que resulta do trânsito em julgado não é uma imutabilidade absoluta, mas apenas relativa.

Com efeito, verificado o trânsito em julgado, a sentença – que por isso deixou de ser impugnável por via do recurso ordinário – pode, ainda, em certos casos, ser atacada por outra via, qual seja a do recurso extraordinário. Daí o faltar-lhe a imutabilidade absoluta, que apenas se atinge quando já não houver possibilidade de impugnação através dos meios previstos na lei.

Donde o dizer-se que, transitada em julgado a decisão sobre a relação material discutida no processo, ela ganha força obrigatória que só pode ser atacada pela via extraordinária e excepcional de impugnação» - Manuel Simas Santos e Manuel Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, pág. 20 a 22.

Quanto aos efeitos do caso julgado, distingue-se caso julgado material -  a sentença ou decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele [artigo 619.º, do Código de Processo Civil].  –  do caso julgado formal -  as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo [artigo 620.º do Código de Processo Civil].

A este propósito, lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Outubro de 2010 (www.dgsi.pt):

 (…) Como se referiu existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos. Por seu turno o caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial.

Na verdade, e conforme refere Castro Mendes, o caso julgado formal consubstancia-se na mera irrevogabilidade do acto, ou decisão judicial, que serve de base a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento, isto é, uma inalterabilidade da sentença por acto posterior no mesmo processo. No caso julgado formal (art. 672º do Cód. Proc. Civil), a decisão recai unicamente sobre a relação jurídica processual, sendo, por isso, a ideia de inalterabilidade relativa, devendo falar-se antes em estabilidade, coincidente com o fenómeno de simples preclusão.

Há, pois, caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati) (…).

O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.

Em processo penal o caso julgado formal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade - a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo -, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão.

No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual (…).

Para Damião da Cunha, os conceitos de «efeito de vinculação intraprocessual» e de «preclusão» - referidos ao âmbito intrínseco da actividade jurisdicional - querem significar que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no procedimento). Este raciocínio, adianta o mesmo Autor vale, não só em primeira instância, como em segunda ou terceira instância (embora o grau de vinculação dependa da especificidade teleológica de cada grau de recurso). E este mecanismo vale - ao menos num esquema geral - para qualquer tipo de decisão, independentemente do seu conteúdo, isto é, quer se trate de uma decisão de mérito, quer de uma decisão «processual».

Neste sentido, qualquer decisão que se dirige apenas às decisões de mérito contém um efeito de vinculação intra-processual. Do que se trata é, pois, e nesta medida, de um qualquer exercício de poderes públicos (em que incontestavelmente se insere a função jurisdicional) ter que percorrer um determinado iter formativo para que legitimamente se possa manifestar; assim o que está em causa é que, no exercício da função jurisdicional (repetindo, todavia, que não se trata de um problema exclusivo da função jurisdicional), uma determinada decisão sobre a culpabilidade, tomada por forma legítima (porque, supostamente, se percorreu um iter formativo) e incontestável (porque dela não se interpôs recurso), produza os seus efeitos: a) o efeito negativo, no sentido de não poder ser colocada novamente em «juízo»; e b) positivo, no sentido de que, no decorrer da actividade jurisdicional, as questões subsequentes que estejam numa relação de «conexão» não coloquem em causa o já decidido - ou seja, existe o dever de retirar as consequências jurídicas que decorrem da anterior decisão (…).».

Neste quadro legal, se conclui, que a decisão que indeferiu a audição presencial do arguido (e o subsequente despacho que revogou a suspensão da execução da pena) sedimentou-se com o trânsito em julgado - o condenado não o impugnou, atempadamente, quer por via do recurso, quer por via da arguição de nulidade – obstando a respetiva sindicância por parte deste tribunal.

Não se mostram violados princípios constitucionais, em especial, artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa mencionado pelo Recorrente.

A terceira e última nota diz respeito à questão de saber se, a verificar-se a alegada nulidade por omissão da audição presencial do condenado, nos termos e para efeitos do artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, esta pode arguida após o trânsito em julgado do despacho que revogou a suspensão da execução da pena.

Com o devido respeito pela opinião contrária, defendemos – na linha do que vem sendo decidido pela doutrina jurisprudência -  que as nulidades processuais, enquanto tais, quer necessitem de ser arguidas pelos interessados, quer sejam de conhecimento oficioso ficam sanadas com o trânsito em julgado da decisão final.

As primeiras, dependentes de arguição, sanam-se se não forem arguidas dentro dos prazos para tanto normativamente previstos; e as segundas, insanáveis, sanam-se com o termo do procedimento, ou seja, com o trânsito em julgado da decisão.

É o que resulta da referência às «nulidades insanáveis devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento» ínsita no corpo do artigo 119.º do Código de Processo Penal.

Neste sentido, pronunciaram-se, entre outros:

- Cavaleiro Ferreira [citado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de março de 1997 (CJ ano XXII, Tomo II, página 226].  

«Embora insanável nulidade absoluta precisa de ser declarada. Pode ser arguida ou declarada oficiosamente. O acto tem existência jurídica, embora defeituosa, e ainda que o vicio seja insanável; e consequentemente, a falta de anulação deixa-o subsistir. No processo, a nulidade absoluta é coberta pela impossibilidade, depois de findo aquele, de a fazer reviver, no seu todo ou parcialmente. A decisão judicial com trânsito em julgado não se anula, como não se declara a nulidade de actos dum processo que findou com decisão irrevogável.

Diferentemente se coloca o problema da inexistência jurídica. A anulação dum acto supõe a sua existência jurídica, há que declarar a sua nulidade. O acto pode, porém, não ter consistência jurídica, e enquanto inexistente não carece mesmo de ser objecto de anulação. Não se suprime o que não existe (…) um acto inexistente não é susceptível de produzir quaisquer efeitos, e é por isso, que não carece de ser anulado, nem o acto se refaz ou a inexistência é absorvida pelo trânsito em julgado; o acto jurisdicional inexistente nunca dá lugar ao caso julgado».      

- Germano Marques da Silva [Curso de Processo Penal II, página 75].

«A designação legal de nulidade insanável não é correta. Com efeito, a nulidade não pode ser declarada após a formação do caso julgado da decisão final que, neste aspecto, actua como meio de sanação. A declaração da nulidade insanável pode ter lugar em qualquer fase do procedimento, mas apenas enquanto a decisão final não transita em julgado. No processo, a nulidade absoluta é coberta pela impossibilidade, depois de findo aquele, de a fazer reviver, no seu todo ou parcialmente. A decisão judicial com trânsito em julgado não se anula, como se não declara a nulidade de actos de um processo que fundou com decisão irrevogável»

- Maia Gonçalves, [Código de Processo Penal Anotado, página 297]:

O acto que enferma de nulidade tem existência jurídica e por isso subsiste enquanto não for declarado nulo”, sendo certo, que não obstante a sua designação legal as nulidades insanáveis não podem ser oficiosamente conhecidas e declaradas após o trânsito em julgado da decisão final.

-Simas Santos, Leal Henriques e Borges Pinho, [Código de Processo Penal Anotado, anotação ao artigo 119.º]:

Terminado o procedimento, já não é possível proceder a tal declaração, ou seja, as nulidades, uma vez transitada em julgado a decisão final, ficam sem possibilidade de conhecimento.

- João Conde Correia [Contributo para a Análise da Inexistência das Nulidades Processuais Penais, página 116-117, 195]:

No direito processual os actos nulos só podem ser anulados até ao trânsito em julgado da decisão final. Com a formação do caso julgado, mesmo as nulidades arguíveis em qualquer estado do procedimento, incluindo os vícios da própria sentença, tornam-se insindicáveis. O valor da segurança jurídica acaba por sobrepor-se à justiça processual, inviabilizando qualquer modificação da sentença definitiva.

O termo de certo prazos, incluindo a formação de caso julgado – reflexo de um processo penal constituído por etapas sucessivas – traduz um importante     e diversificada barreira à propagação da invalidade e serve como travão ao sue caracter demolidor. Se o interessado não reagir atempadamente o acto fica consolidado.

Da Jurisprudência, salientamos:

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de fevereiro de 2010 [Processo n.º 21/07.2SULSB-E.S1, www.dgsi.pt]:

De todo o modo, mesmo as nulidades insanáveis, que a todo o tempo invalidam o acto em que foram praticadas e os actos subsequentes, ficam cobertas pelo trânsito em julgado da decisão, o que significa que, transitada em julgado a decisão, jamais podem ser invocadas ou oficiosamente conhecidas quaisquer nulidades, mesmo aquelas que a lei qualifica de insanáveis.

- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18 de abril de 2018 [Processo nº 13/11.7GARMZ.E1; https://vlex.pt/tags/insanaveis-nulidades-2599376]:

O conhecimento das invalidades processuais – mesmo as que configuram nulidades insanáveis – apenas pode ter lugar enquanto durar o processo, isto é, o procedimento que conduz até à decisão final não transitada em julgado.

 II - O trânsito em julgado da decisão final cobre todas as invalidades de todos os atos processuais até então praticados.

- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora 20 de dezembro de 2018 (Processo nº 739/09.5TBTVR-B.E1, em https://vlex.pt/vid/762672157):

Após o trânsito em julgado a decisão final condenatória já não podem ser invocadas, ou oficiosamente conhecidas, quaisquer nulidades do processado, mesmo que a lei processual penal as qualifique como nulidades insanáveis.

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de fevereiro de 2018 [Processo nº 90/07.5GDAND-H.P1, https://vlex.pt/tags/insanaveis-nulidades-2599376]:

O conhecimento das invalidades processuais, ainda que de nulidades insanáveis se trate, não pode ter lugar a todo o tempo, mas apenas enquanto durar o procedimento (corpo do artº 119º CPP), não podendo ser declaradas uma vez transitada em julgado a decisão final.

Esta linha de pensamento aplica-se, também, nos termos que seguem ao trânsito em julgado da sentença, nomeadamente, no que respeita ao incidente de revogação da suspensão da execução da pena.

Tem-se vindo a entender que, verificando-se a nulidade insanável depois do trânsito em julgado da sentença condenatória, os actos praticados ou omitidos e os actos subsequentes que deles dependam e que puderem ser afectados pela nulidade, têm existência e/ou relevância jurídica, pelo que subsistem enquanto – e se - a nulidade não for declarada. Por outro lado, tais nulidades devem ser suscitadas ou conhecidas oficiosamente até ao trânsito em julgado da decisão proferida [Acórdão do Tribunal desta Relação de 16 de junho de 2015, Relator: Orlando Gonçalves, www.dgsi.pt].

Assim, decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 10 de julho de 2008 (processo n.º 1156/08-2, Relator: Cruz Bucho, www.dgsi.pt].

«Tendo transitada em julgado a decisão que revogou a suspensão da execução da pena, a posterior arguição da nulidade de tal decisão reputa-se manifestamente intempestiva. (…)

Não obstante as nulidades insanáveis poderem ser oficiosamente declaradas “em qualquer fase do procedimento” (artigo 119º do CPP), a decisão judicial com trânsito em julgado, se não for ele própria nula, cobre a nulidade dos actos processuais até então praticados. (…)

O próprio Tribunal Constitucional já teve oportunidade de salientar que não é inconstitucional o artigo 119º quando interpretado no sentido de que as nulidades, qualquer que seja a sua natureza, ficam sanadas logo que se forme caso julgado, não mais podendo ser arguidas ou conhecidas oficiosamente (Ac. n.º 146/2001, de 28 de Março de 2001, proc.º n.º 757/00, DR. II série, de 22 de Maio também disponível in www.tribunalconstiucional.pt)».

Também, no já referenciado Acórdão do Tribunal desta Relação de 16 de junho de 2015 [Relator: Orlando Gonçalves, www.dgsi.pt], se sumariou:

Tendo transitado em julgado a decisão que revogou a suspensão da execução da pena de prisão, a nulidade a que atrás se fez referência [não tendo sido determinada a audição do arguido nos termos do art. 495.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, pode estar-se perante a nulidade insanável a que alude o art. 119º, al. c) do Cód. Processo Penal] não pode ser já declarada e, consequentemente, não se pode dar sem efeito aquela decisão, ao abrigo da qual o arguido cumpre a respectiva pena de prisão.

Tudo isto para dizer, que o trânsito em julgado da decisão que dispensou a audição presencial do arguido e que revogou a suspensão da execução da pena obstava à apreciação da arguida nulidade.

De qualquer forma, diga-se, os argumentos esgrimidos pela primeira instância para indeferir a nulidade suscitada pelo Recorrente, não foram, minimamente, colocados em crise pelo Recorrente, pelo que nenhuma censura merece o despacho recorrido.

***

Nenhuma destas soluções colide com o princípio constitucional das garantias de defesa, olvidando o recorrente, na sua argumentação, que dispôs de plena oportunidade para exercitar tais garantias no decurso do processo e que a Lei Fundamental concede relevância constitucional ao valor do caso julgado, de relevância material e não apenas formal

IV. DECISÃO

Do que precede, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação julgar não provido o Recurso interposto AA.

Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCS. (artigos 513º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Penal e artigo 8.º n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

Coimbra, 22 de março de 2023