Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
70/00.LIDSTR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: PENA SUSPENSA
REVOGAÇÃO
AUDIÊNCIA DO ARGUIDO
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TORRES NOVAS – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 61º, Nº 1, AL. B), 495º,2 DO CPP
Sumário: 1-Não se pode extrapolar indiscriminadamente da obrigação de audição do condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, para todos os casos em que está em causa a revogação da suspensão.
2- A exigência da parte final do nº 2 do art. 495º do CPP, reporta-se apenas às situações em que tenha operado o nº 1 do mesmo artigo e por referência ainda ao nº 4 do art. 51º, nº 4 do art. 52º e nº 2 do art. 53º, estes do Código Penal.
3 - Excepto nos casos referidos nos nºs 1 e 2 do art.º 495º do CPP, não há obstáculo legal à opção do arguido em, não
podendo estar presente, querer pronunciar-se por escrito.
4 - O incumprimento de condição de suspensão imposta com limite temporal inferior ao período de suspensão da pena não
deverá conduzir à imediata revogação da suspensão se não tiverem sido devidamente apuradas as razões que determinaram o
incumprimento e não for possível concluir com a necessária segurança pela existência de culpa do arguido nesse
incumprimento, reveladora da necessidade do cumprimento efectivo da pena de prisão.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:


Nos autos de processo comum que originaram o presente recurso em separado e que correm termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas, foi o arguido A... condenado pela autoria material de um crime p. p. pelos arts. 6º e 24º, nºs 1 e 2, do RGIFNA aprovado pelo DL nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, com referência aos arts. 26º, nº 1, 28º, nº 1, al. c) e 40º, nº 1, al. b), do Código do IVA e art. 30º, nº 2,do Código Penal, na pena de 20 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos sob condição de pagamento ao Estado do valor total do IVA liquidado que se encontra em dívida, no montante de € 162.885,85, acrescido dos legais acréscimos, designadamente, juros compensatórios liquidados, no valor de € 997,72, pagamento este a efectuar no prazo de 3 anos a contar do trânsito em julgado da sentença, devendo o arguido efectuar em cada ano o pagamento de 1/3 do valor total.
O arguido e ora recorrente não cumpriu essa condição, razão pela qual por despacho de 20/06/2008 veio a ser prorrogado o período de suspensão da execução da pena por mais um ano e meio, alterando-se, concomitantemente, os deveres da condição de suspensão, com imposição ao arguido da obrigação de no prazo de 6 meses proceder ao pagamento de 1/3 da quantia em dívida ao Estado, proceder ao pagamento de mais um 1/3 dessa quantia no ano seguinte e pagamento do 1/3 remanescente no ano subsequente.
Ante o ulterior incumprimento do dever de proceder ao primeiro daqueles pagamentos foi designada data para audiência do condenado com vista ao apuramento das razões do incumprimento.
O arguido faltou justificadamente a essa diligência, tendo a sua mandatária requerido que lhe fosse concedida a possibilidade de se pronunciar por escrito por se encontrar debilitado na sequência de intervenção cirúrgica a que se submetera, não se encontrando em condições de ser ouvido pessoalmente, requerimento esse que veio a ser deferido por força das razões invocadas.
O arguido pronunciou-se por escrito sobre as razões do não cumprimento da condição imposta para a suspensão.
Foi então proferido o despacho recorrido, que tem o seguinte teor:
Com o requerimento que agora juntou aos autos veio o arguido A... repetir os mesmos argumentos que já havia apresentado nos outros requerimentos que juntou anteriormente aos autos.
De acordo com a nossa perspectiva o estabelecimento da condição dos arguidos pagarem a prestação tributária em dívida e demais acréscimos para a suspensão da pena de prisão que lhes foi aplicada nos autos, não tem de estar dependente da verificação sobre se os mesmos têm condições económicas para proceder a esse pagamento.
Se o arguido tivesse começado a pagar em prestações o valor da divida a titulo de imposto ao Estado, que foi estabelecida como condição para a suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada quando transitou em julgado a decisão condenatória, ou seja há cerca de 3 anos, certamente que agora já teriam uma grande parte saldada, Deste modo, não se suscitaria a questão de não poder pagar aquele valor todo de uma vez, atenta a sua situação económica. Esse pagamento faseado não teria sido muito oneroso para o arguido. Se ele tivesse procedido ao pagamento de parte daquele valor durante o período de suspensão da pena de prisão que lhes foi aplicada, certamente que o Tribunal interpretaria tal facto como boa vontade da parte do arguido para cumprir a condição, procedendo ao pagamento da quantia a que está obrigado. Deste modo, o Tribunal consideraria que estariam reunidas condições para prorrogar o prazo de suspensão da pena de prisão e o consequente prazo para o arguido proceder ao pagamento da quantia em causa,
Ora, o que se vislumbra nos autos é uma total inércia por parte do arguido no cumprimento de tal condição. A pretexto de dificuldades económicas, o arguido demonstrou uma manifesta vontade de não proceder ao pagamento de qualquer parte da quantia em divida ao Estado e que constitui a condição para a suspensão da pena de prisão que lhes foi aplicada,
Ora, verifica-se que na sentença condenatória proferida nos autos e que já transitou em julgado, o arguido foi condenado na pena de 20 meses de prisão, que foi suspensa pelo prazo de 3 anos, com a condição de o arguido proceder ao pagamento ao Estado dos montantes ainda em dívida, no valor total de 162.885,85 euros, no prazo de 3 anos a contar do trânsito em julgado da decisão, que ocorreu em 14-7-2006.
Consequentemente, de forma alguma se poderá aceitar a pretensão do arguido de que o mesmo não pague qualquer daquele valor, e que se declare extinta a pena aplicada, e outro modo uma decisão judicial já transitada em julgado ficaria sem ser cumprida ou então ficaria totalmente desvirtuada. Para além disso, deixar-se-ia no arbítrio dos arguidos cumprir ou não cumprir as condições que lhe são impostas judicialmente para a suspensão da pena de prisão que lhe é aplicada,
Por outro lado, os eventuais encargos acrescidos que o arguido eventualmente tenha em resultado da sua doença terão de ser provados através de documentos que o arguido não apresentou, A mera prova testemunhal não serve para fazer prova da existência destes encargos acrescidos,
Por outro lado, resulta dos autos que a eventual doença que o arguido padeça não será incapacitante, na medida em que ele contínua a trabalhar e a ter uma fonte de rendimentos,
Acresce que o tribunal não considerou para efeito de prova o depoimento da testemunha arrolada pelo arguido, M..., na medida em que não considerou o mesmo minimamente convincente, Na verdade, pese embora ter referido estar em constante contacto com o mesmo, a testemunha desconhecia que o arguido estava a exercer uma actividade remunerada desde já há bastante tempo e para que empresa o mesmo trabalhava, Para além disso, a testemunha veio afirmar que a doença do arguido o impedia de contactar com clientes, Contudo, a actividade profissional actual do arguido passa precisamente com os contactos com clientes, na medida em que trabalha como comercial e vendedor para uma empresa.
Conforme referimos, nos presentes autos, o arguido A... foi condenado a pena de 20 meses de prisão pela prática de 1 crime de abuso de confiança fiscal, cuja execução ficou suspensa pelo período de 3 anos, com a condição de o arguido pagar a quantia referida supra.
Para além disso, o arguido ficou obrigado a proceder ao pagamento de 113 dessa quantia em cada um desses 3 anos. Ficou ainda o arguido obrigado a fazer prova de que cumpriu a condição, designadamente demonstrando que procedeu ao pagamento dos valores em causa dentro do prazo que tinha para o fazer. Deste modo, em cada ano deveria apresentar prova de ter procedido ao pagamento de 1/3 daquela quantia.
Deste modo, o arguido tinha o prazo até 14 de Julho de 2007, e até 14 de Julho de 2008, respectivamente, para proceder ao pagamento das duas primeiras prestações daquele valor em dívida ao Estado.
Decorreram esses prazos sem que o arguido A... fizesse prova nos presentes autos de ter cumprido essa condição da suspensão da execução da pena, designadamente procedendo ao pagamento do valor a que estava obrigado.
Pelo contrário, veio o arguido A... assumir no requerimento junto de fls. 1.499 e 1.500, que não tinha pago o valor que estava obrigado a pagar a título de condição para a suspensão, e que seria sua intenção não o fazer.
Em resposta foi proferido despacho a determinar a prorrogação do prazo de suspensão para o arguido cumprir a condição da mesma por mais um ano e meio, nos termos do artigo 55º, alínea d), do Código Penal. Determinou-se ainda que no prazo de 6 meses o arguido procedesse ao pagamento de 1/3 daquela quantia que tem em dívida ao Estado, que deveria ser pago no decurso do 1° ano do prazo original da suspensão da pena de prisão. Que no ano seguinte deverá pagar outro 1/3 da totalidade da quantia em divida ao Estado, que deveria ter pago no 2° ano do prazo original da suspensão. Finalmente no ano seguinte do novo prazo de suspensão deveria pagar o último 1/3 da totalidade da quantia, que deveria ter pago no 3° ano do prazo original da suspensão.
Contudo, decorrido esse prazo de seis meses o arguido A... continua sem proceder ao pagamento de qualquer quantia referente àqueles impostos em divida e que constitui a condição para a suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada nos autos, conforme se retira da informação prestada pela Repartição de Finanças de Torres Novas, e que se encontra junta de fls. 1.536 e 1.537.
Foi elaborado pela DGRS inquérito e relatório quanto à situação sócio-económica da arguida B... no Processo 417/00.0TBTNV. Esse relatório, de que foi junta aos autos certidão, também prestou informação quanto à situação socio-económica do arguido A..., na medida em que este reside com aquela em união de facto.
Resulta do relatório da DGRS e ainda da informação prestada pela Segurança Social que a companheira aufere mensalmente a quantia de cerca de 500 euros da sua actividade de leccionação de aulas para uma empresa ligada ao ensino de línguas. Contudo, resulta igualmente da informação prestada pela Segurança Social que a referida companheira é sócia e gerente do instituto de línguas em causa. Deste modo, resulta das regras da experiência comum que a mencionada companheira do arguido auferirá um rendimento superior àquele que declarou à segurança social, designadamente, pelo menos o de 1.000 euros. Para além disso, a companheira do arguido também dá explicações. É do conhecimento comum que o valor que é auferido pelas explicações não é declarado para a Segurança Social. Deste modo, não será possível conhecer o valor exacto auferido pela companheira da arguida em resultado dessas explicações através de informação a prestar pelas entidades públicas. Calcula-se, no entanto, que tal valor nunca seja inferior a 1.500 euros. Por sua vez, o arguido A... é vendedor de uma empresa francesa, tendo declarado auferir um vencimento mensal de cerca de 600 euros, ao qual acrescem as comissões pelos produtos de venda e que não serão inferiores a outros 600 euros.
Consequentemente, e conforme se deixou igualmente exposto em despachos anteriores, o arguido A... teve, desde a prolação da decisão condenatória nos presentes autos, ou seja há cerca de 4 anos, condições económicas para proceder ao pagamento, designadamente em prestações do valor dos impostos que se encontram em débito. Se o arguido tivesse começado a pagar há 4 anos, em prestações o valor da dívida a título de imposto ao Estado, que foi estabelecida como condição para a suspensão da pena de prisão que lhes foi aplicada quando transitou em julgado a decisão condenatório, certamente que agora já teria uma grande parte saldada. Deste modo, não se suscitaria a questão de não poder pagar aquele valor todo de uma vez, atenta a sua situação económica.
Esse pagamento faseado não teria sido muito oneroso para o arguido. Se ele tivesse procedido ao pagamento de parte daquele valor durante o período de suspensão da pena de prisão que lhes foi aplicada, certamente que o Tribunal interpretaria tal facto como boa vontade da parte do arguido para cumprir a condição, procedendo ao pagamento da quantia a que está obrigado. Deste modo, o Tribunal consideraria que estariam reunidas condições para prorrogar o prazo de suspensão da pena de prisão e o consequente prazo para os arguidos procederem ao pagamento da quantia em causa.
Ora, o que se vislumbra nos autos é uma total inércia por parte do arguido no cumprimento de tal condição. A pretexto de dificuldades económicas, o arguido demonstra uma manifesta vontade de não proceder ao pagamento de qualquer parte da quantia em divida ao Estado e que constitui a condição para a suspensão da pena de prisão que lhes foi aplicada.
Consequentemente, verifica-se que o arguido A... continua sem cumprir a condição para a suspensão da pena de prisão, na medida em que não veio juntar aos autos comprovativo de ter efectuado o depósito de qualquer quantia referente ao valor a que está obrigado a pagar e que corresponde àquela condição. Aliás resulta dos requerimentos apresentados pelo arguido A..., que é sua intenção não proceder a qualquer pagamento em absoluto.
Verifica-se assim que o arguido A... tem vindo a ignorar sistematicamente a condição que o tribunal lhe pôs para que o mesmo beneficiasse da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada por decisão entretanto transitada em julgado.
Deste modo, o não cumprimento pelo arguido A... da condição que lhe foi imposta para a suspensão da pena será culposo e indesculpável.
Consideramos assim que a atitude do arguido A... fez desaparecer o fundamento para que se mantenha a suspensão da execução daquela pena de prisão. De outro modo, deixarão de ter efeito útil os deveres que lhe foram estabelecidos como condição para a suspensão. Para além disso, a pena que lhe foi aplicada deixará igualmente de ter qualquer efeito útil.
Tendo em conta o comportamento exposto ter-se-á que concluir que o arguido A... infringiu de forma culposa, grosseira e reiteradamente os deveres que lhe haviam sido impostos. Consideramos, assim, que se encontra preenchido no caso concreto o pressuposto previsto no artigo 56º, nº1, alínea a), do Código Penal.
Consequentemente, o juízo de prognose favorável que motivou a suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido A... já não subsiste atento o reiterado incumprimento da condição que foi imposta para essa suspensão.
Por todo o exposto, determino a revogação da suspensão da execução da pena e prisão aplicada ao arguido A... e que havia sido determinada nos presentes autos.
Em conformidade, o arguido A... deverá cumprir, de forma efectiva, a pena de 20 meses de prisão em que foi condenado nos presentes autos.
Notifique.
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Após trânsito, passe mandados de condução do arguido A... ao Estabelecimento Prisional onde deverá cumprir a pena de 20 meses de prisão, que lhe foi aplicada nos autos e remeta os mesmos aos OPC`s competentes.

Inconformado com esta decisão dela interpôs recurso o condenado, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1ª - O ora recorrente foi condenado nos termos e condições que constam da douta sentença existente nos autos.
2ª - Tendo sido a pena aplicada ao arguido/recorrente suspensa na sua execução, pelo período de dois anos, sob condição de ser pago, ao Estado, os montantes em divida a título de impostos e demais encargos.
3º - Decorrido de um ano, após o terminus do período de suspensão da pena, o Tribunal recorrido prorrogou o prazo para o cumprimento da condição imposta, não se tendo pronunciado quanto ao prazo de suspensão da pena aplicada.
4º - O Tribunal decretou então que o Recorrente teria mais um ano para pagar a quantia em divida ao Estado, em doze prestações mensais e sucessivas de € 11.241,85, estipulando desde logo, que, em caso de incumprimento, estaria aquele a infringir, repetidamente, o dever imposto.
5º - Ao proferir tal decisão o Mmº Juiz a quo não podia ignorar que se o Recorrente não conseguiu liquidar o montante em dívida em 4 anos muito menos o iria lograr em 12 meses.
6º - E eis que chegámos à decisão em recurso atenta a óbvia incapacidade do Recorrente em líquida o valor em dívida.
7º - Cingindo-nos à decisão sob censura dir-se-á que a mesma é nula porquanto:
8º - Por um lado preteriu a condição imposta pelo art° 495° nº 2 do CPP que determina a prévia audição do arguido (inferindo-se da sua leitura que essa audição deve ser presencial e não através de notificação ao seu mandatário) ante o incumprimento das condições de suspensão;
9° - E por outro carece de fundamentação de facto.
10° - Na verdade o Mmº Juiz a quo não pode dizer, como o determina o art° 56° nº 1 al. a) que o Recorrente violou grosseira e repetidamente as condições da suspensão.
11° - O Recorrente deu conta aos autos das razões por que lhe era e é impossível cumprir com o determinado. Demonstrou qual o seu estado de saúde.
12° - Que o Mmº Juiz a quo ignorou partindo antes para a construção de um raciocínio baseado em relatórios feitos para outros processos, tendo ordenado a sua junção aos presentes autos, e referentes a quem não é parte nos presentes autos dele extraindo conclusões sem qualquer facto que as suporte.
13° - Pelo que, salvo o devido respeito, que muito é, tais ilações não passam de mera especulação!
14° - Ora uma decisão com repercussões tão profundas na esfera jurídica de um sujeito processual, in casu, o Recorrente, não pode assentar em premissas e conclusões livremente estabelecidas pelo julgador. São os factos que determinam as decisões.
15° - É pois a douta decisão nula por não ter sido ouvido o arguido e nula por ausência de fundamentação vício que se invoca com as legais consequências.
16° - Nesse sentido confr. Acr de Acórdão da Relação do Porto de 09/12/2004, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/12/2006 e Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/12/2008 e de 05/11/2008.
17º - Mas mais: tendo presente a data dos factos o Mmº Juiz a quo teria sempre de chamar à decisão a lei da Amnistia 29/99 e subsumir os factos àquele normativo devendo, também, como esta lho impõe, ouvir o arguido.
18° - O Mmº Juiz a quo, na sua, aliás, mui douta decisão tinha, forçosamente, de fazer a análise da lei 29/99 e aplicá-la ao caso concreto.
19° - Pelo que errou na aplicação do direito, a saber, a não curar de aplicar o princípio da norma mais favorável ao arguido, o que se invoca os devidos e legais efeitos.
20° - Por fim refira-se que as prestações de IVA em falta, cada uma de per si, não contabilizam valor superior, na sua maioria, a € 7.500,00.
21° - Ora por força da entrada em vigor da Lei do Orçamento para o ano de 2009, Lei 64-A/2008, que revogou o nº 6 do RGIT e alterou a redacção do seu nº 1, foram despenalizadas as condutas que envolvam quantitativos inferiores àquele montante.
22° - E apesar de a decisão que condenou o Recorrente já ter transitado em julgado isso não impediria que o Mmo Juiz a quo proferisse decisão fazendo cessar a execução da pena e os seus efeitos legais no que tange às condutas que se enquadrem dentro do citado normativo, como aliás lho impõe o art° 2°, nº 2 do C.P.
23° - Sem esquecer que a citada descriminalização se estende aos pedidos cíveis que hajam sido deduzidos com fundamento na conduta, então passível de sanção penal, pelo que a instância cível deve ser considerada extinta.
24° - Termos em que se pede se revogue a douta decisão e se substitua por outra que determine a prévia audição do arguido antes de ser proferida decisão sobre a revogação da suspensão da execução da pena; se assim se não entender então que a conduta do Recorrente seja, previamente enquadrada no âmbito da lei 29/99 e da Lei 64-A/2008, daí se extraindo as devidas ilações e consequências quanto ao enquadramento penal da conduta do arguido, após o que deve ser decidido o comportamento do arguido (incumprimento da condição de suspensão) como devidamente justificado e não culposo, e portanto sem lugar à revogação da suspensão.
25° - O Tribunal recorrido violou e/ou interpretou incorrectamente os artigos 2°,51°, nº3, 55°, 56°, 57°, todos do Código Penal; o artigo 119°, al. c), art° 410°, nº 2, al. a) e b) e art° 495° nº 2 do Código de Processo Penal; a Lei 29/99, artigos 1° e 6°, a Lei 64-A/2008, e o art. 105° do RGIT.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas, se pede se revogue a douta decisão e se substitua por outra que determine a prévia audição do Recorrente/arguido antes de ser proferida decisão sobre a revogação da suspensão da execução da pena; se assim se não entender, então que a conduta do Recorrente seja, previamente enquadrada no âmbito da lei 29/99 e da Lei 64-A/2008 e art. 1050 do RGIT, daí se extraindo as devidas ilações e consequências quanto ao enquadramento penal da conduta do Recorrente/arguido, após o que deve ser decidido que o comportamento do arguido (incumprimento da condição de suspensão) se mostra devidamente justificado e não culposo, e portanto sem lugar à revogação da suspensão.
Só assim se fazendo a costumada Justiça.

O M.P. respondeu, pugnando pelo parcial provimento do recurso de modo a serem averiguadas as circunstâncias concretas que permitam aferir do juízo de valor relativo à conduta do arguido.
O Mmº Juiz sustentou assumidamente o despacho recorrido.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer sustentando, para além do mais, que independentemente das questões suscitadas pelo recorrente o problema que fundamentalmente se coloca é o de saber se não tendo decorrido integralmente o período de suspensão fixado após prorrogação, será de decretar desde já a revogação da suspensão da execução da pena, pronunciando-se, a final, pela procedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente, as questões a decidir, decorrentes das conclusões do recurso, são as seguintes:
- Nulidade decorrente da preterição do dever de prévia audição do arguido antes da revogação da suspensão da execução da pena;
- Nulidade da decisão por falta de fundamentação;
- Aplicação do perdão previsto na Lei nº 29/99, de 12 de Maio;
- Descriminalização da conduta que determinou a condenação do arguido.
Acresce uma última questão, suscitada pelo M.P.:
- Estará demonstrado o grosseiro e reiterado incumprimento das condições impostas, a exigir a revogação da suspensão da execução da pena?

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Alega o recorrente a verificação de nulidade decorrente da preterição do dever de prévia audição antes da revogação da suspensão da execução da pena, sustentando que a audição deverá ser pessoal e presencial.
Vejamos então, num primeiro momento, em que condições admitiu o tribunal que o recorrente se pronunciasse por escrito, recapitulando e desenvolvendo o já referido em sede de relatório:

O recorrente foi notificado para comparecer em juízo no dia 14/04/2009 com vista à sua audição sobre as razões do incumprimento das obrigações que lhe foram impostas (notificação certificada a fls. 100 e 101). Faltou justificadamente a essa diligência (requerimento de justificação da falta, relatório médico e atestado a fls. 102/113), tendo a sua mandatária, que compareceu a esse acto, requerido que lhe fosse concedida a possibilidade de se pronunciar por escrito, por o requerente estar debilitado na sequência de intervenção cirúrgica a que se submetera, não se encontrando em condições de ser ouvido pelo tribunal. Atenta a posição então assumida pelo recorrente foi aquele requerimento deferido, tendo sido decidido não o ouvir na diligência designada para o efeito (ainda que tenha sido ouvida testemunha por ele arrolada) e conceder-lhe prazo para se pronunciar por escrito (acta certificada a fls. 115/116). O recorrente prevaleceu-se dessa decisão, tendo-se pronunciado por escrito. No entanto, confrontado com a decisão que veio a ser proferida e que não foi aquela que almejava, vem agora arguir a nulidade decorrente do facto de não ter sido ouvido presencialmente.

Será que efectivamente ocorre a nulidade arguida? Isto é, in casu era exigível a audição presencial do recorrente?
Alguma jurisprudência recente vem-se pronunciando no sentido da obrigatoriedade da audição presencial. Não a acompanhamos integralmente, por se nos afigurar que a economia do texto legal aponta para soluções diferenciadas consoante os casos.

Que o condenado tem que ser ouvido antes da decisão de revogação da suspensão é ponto que temos por assente, desde logo por imperativo legal que se prende directamente com os direitos de defesa que lhe assistem. Na verdade, o art. 61º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal, assegura ao arguido o direito de ser ouvido sempre que o tribunal deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, não havendo decisão judicial susceptível de o afectar mais gravemente do que aquela que o priva da sua liberdade. Não é, pois, concebível que uma decisão tão gravosa para o condenado em pena suspensa, como é a da revogação da suspensão da execução da pena ou mesmo a mera agravação da sua situação pessoal, decorrente da alteração das condições de suspensão, possa ser decidida sem que lhe seja facultada a possibilidade de expor as razões que conduziram ao incumprimento das condições que lhe foram impostas, ou mesmo de produzir prova que sustente as suas afirmações.

A questão que se coloca, porém, é a de saber se a audição tem que ser necessariamente presencial.
O recorrente procura descortinar argumento favorável na alteração que recaiu sobre o art. 495º, nº2, do CPP. Dispunha essa norma, na redacção imediatamente anterior à actual, que “o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério Público e audição do condenado”.
Com a alteração introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, o texto legal dispõe agora que “o tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão”.
Contrariamente ao pretendido pelo recorrente, não será a alteração da expressão «audição do condenado» para «ouvido o condenado» que sustenta e impõe a sua audição presencial, já que o sentido destas expressões é exactamente o mesmo. A lei inovou, é certo, mas apenas na medida em que impôs a audição do condenado «… na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão». A solução da quaestio colocada reside precisamente na relevância deste aditamento.
Diga-se desde já que extrapolar indiscriminadamente da obrigação de audição do condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão para todos os casos em que está em causa a revogação da suspensão traduz, quanto a nós, interpretação não consentida pelo texto legal, sabido que toda a interpretação pressupõe o recurso ao sentido útil da norma. Rege, a propósito, o art. 9º do Código Civil, que dispõe quanto à interpretação da lei:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação e sentido do alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
À luz do texto legal, qual é o sentido útil da norma de cuja interpretação cuidamos, com correspondência na letra da lei e que melhor se enquadra na unidade do sistema jurídico?
Se fosse necessário ouvir sempre presencialmente o condenado antes da alteração das condições da suspensão ou da sua revogação, a lei di-lo-ia pura e simplesmente. Contudo, não é isso que resulta do teor literal da norma, ainda que interpretada com muito boa vontade nesse sentido. Não é, pois, no argumento literal, que se poderá fundar a interpretação que questionamos.
O argumento de ordem sistemática, por seu turno, reforça a interpretação restritiva. Já vimos que a lei impõe sempre a audição do condenado antes da revogação da suspensão; e impõe-na também antes da alteração das condições da suspensão. Mas apenas se refere à audição presencial quando a suspensão da execução tenha sido subordinada a condições sujeitas a apoio e/ou fiscalização. Só quando se verifique esta última hipótese adquire sentido a imposição constante do nº 2 do art. 495º do CPP. Expliquemo-nos melhor:
O art. 495º, nº 1, do CPP dispõe que “quaisquer autoridades e serviços aos quais seja pedido apoio ao condenado no cumprimento dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostos comunicam ao tribunal a falta de cumprimento, por aquele, desses deveres, regras de conduta ou obrigações, para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 51º, nº 3 do artigo 52º e nos artigos 55º e 56º do Código Penal”. O art. 51º do Código Penal estatui sobre a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres e o respectivo nº 3 admite a respectiva modificação sempre que ocorram até ao temos do período de suspensão circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha conhecimento. O nº 4 do mesmo artigo prevê a possibilidade de o tribunal determinar que os serviços de reinserção social apoiem e fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos. Portanto, se tiver havido uma suspensão da pena de prisão subordinada a cumprimento de deveres e se o tribunal tiver determinado que os serviços de reinserção social (ou outros serviços – cfr. 1ª parte do nº 2 do art. 495º do CPP) apoiem e/ou fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos, a modificação dos deveres ou a revogação da pena exigem a prévia audição do condenado na presença do técnico que acompanhou e fiscalizou ou apoiou o respectivo cumprimento.
Não é por acaso que assim o dispõe a norma em questão. Repare-se que este evento processual apenas tem lugar se e quando o condenado não cumprir deveres que lhe foram impostos como condição de preservação da sua liberdade. A obrigatoriedade da audição do arguido antes da alteração dos deveres ou da revogação da suspensão não foi gizada para lhe permitir eximir-se a todo o custo à modificação ou agravamento dos deveres ou à revogação da suspensão, mas sim para lhe permitir esclarecer com transparência as razões que conduziram ao incumprimento. Claro que nesse momento importará garantir o contraditório (contraditório relativamente à promoção do M.P. para alteração dos deveres ou revogação da suspensão); mas importará também e sobretudo aferir do bem fundado da expectativa ou prognose em que assentou a decisão de suspensão da execução da pena, já que não está em causa apenas a liberdade do arguido, mas também a eficácia e credibilidade do sistema judicial e, em última instância, a própria realização da justiça (esta última a bastar-se com a manutenção do status quo, a exigir a alteração dos deveres ou a impor a prorrogação do período de suspensão ou mesmo a imediata revogação da suspensão da execução da pena, consoante a gravidade do incumprimento, a razoabilidade da justificação apresentada e os demais elementos apurados com relevo para a decisão). Equacionar a alteração das condições ou a revogação da suspensão significa, afinal, dar satisfação às exigências comunitárias de protecção dos bens jurídicos e garantir o funcionamento do elemento dissuasor. A presença do técnico que apoiou e fiscalizou o cumprimento dos deveres impostos funcionará como fiel das declarações do condenado, permitindo aferir da sua veracidade e facultando a aquisição de elementos preciosos para aquilatar da vontade e dedicação daquele no cumprimento dos deveres que lhe foram impostos. Justifica-se, pois, plenamente – e exige-se – uma audição do condenado não apenas presencial, mas em presença do técnico que apoiou e fiscalizou o cumprimento dos deveres que condicionaram a suspensão.
Contudo, como é sabido, a suspensão da execução da pena de prisão pode assumir uma de três modalidades: simples suspensão da execução da pena, suspensão sujeita a condições ou suspensão com regime de prova. Ora, se porventura a suspensão da execução da pena tiver sido uma suspensão tout court, não subordinada ao cumprimento de deveres, ou se mesmo tendo sido fixados deveres não tiver sido determinado o apoio no seu cumprimento, devendo a fiscalização ser efectuada pelo próprio tribunal em momento determinado, normalmente, no termo do prazo de suspensão – o caso típico da condição de pagamento de indemnização – não terá sentido a exigência da parte final do nº 2 do art. 495º do CPP, que se reporta apenas às situações em que tenha operado o nº 1 do mesmo artigo e por referência ainda ao nº 4 do art. 51º, nº 4 do art. 52º e nº 2 do art. 53º, estes do Código Penal.
Subsistirá nesse caso, ao menos, a obrigatoriedade da audição presencial, em termos tais que ouvido o condenado sem que o seja presencialmente, daí resulte nulidade insanável?
Não descortinamos argumento legal nesse sentido. Manifestamente, não resulta do art. 495º, nº 2, do CPP. E quanto a nós, também não resulta, contra o que já temos visto escrito, da al. c) do art. 119º, ainda do CPP, já que não se vê onde é que a lei exige a comparência do arguido. O que a lei exige – já o dissemos supra – é que o condenado seja ouvido. De resto, não é difícil descortinar situações em que a audição presencial será de todo impossível. Basta pensar na hipótese de o condenado não só não cumprir as condições da suspensão como violar gravemente os deveres que sobre si impendem, ausentando-se de seguida para local incerto. Considerar, numa tal situação, inviabilizada a revogação da suspensão da execução da pena de prisão por impossibilidade da audição presencial do condenado seria uma solução irrazoável, para não dizer absurda, e que o direito manifestamente não postula.
Mas há ainda um outro argumento, que quanto a nós é o que maior relevo assume: se o arguido pode ser julgado – e condenado – quando impossibilitado de comparecer em audiência por idade, doença grave ou residência no estrangeiro, sem a sua presença física no julgamento, representado pelo seu defensor, desde que o requeira ou que nisso consinta, e desde que o tribunal nisso não veja inconveniente (art. 334º do CPP) – e é em audiência que verdadeiramente se decide da sua liberdade – qual a razão teleológica, o princípio de funcionamento do sistema ou a garantia constitucional que obsta a uma audição não presencial do condenado para aferir das razões do incumprimento das condições subjacentes à suspensão da pena ou da revogação da suspensão, nomeadamente, quando aquele está impossibilitado de comparecer em razão de doença e ele próprio requer que lhe seja facultado pronunciar-se por escrito?
Foi exactamente o que sucedeu no caso vertente. O próprio condenado, notificado para comparecer a fim de se pronunciar pessoalmente sobre as razões do incumprimento das condições subjacentes à suspensão, invocou a sua impossibilidade de comparência em razão de doença e requereu pronunciar-se por escrito. Poderia ter requerido o adiamento da diligência para data ulterior, em função da sua situação pessoal. Optou, no entanto, por requerer pronunciar-se por escrito. Dadas as circunstâncias e visto tratar-se de requerimento do próprio interessado nesse sentido, assegurada que estava a sua prévia audição e produzida a prova que requereu (com excepção da inquirição de testemunha cuja notificação não foi lograda, sem que o condenado tenha requerido o que quer que fosse e sem que a tenha apresentado na data designada para inquirição), não havia obstáculo legal a que assim se procedesse. E nem se diga que o argumento colide com o facto de o referido requerimento ter sido formulado por mandatário e não pelo próprio, já que se por um lado é ao defensor que compete exercer os direitos que a lei reconhece ao arguido, salvo os que ela reservar pessoalmente a este, sempre poderia o arguido ter retirado eficácia ao acto realizado em seu nome pelo defensor, desde que o fizesse por declaração expressa anterior à decisão relativa a esse acto (cfr. art. 63º, nºs 1 e 2). A actuação do recorrente arguindo agora a nulidade insanável subjacente ao facto de não ter sido ouvido presencialmente (repita-se, porque assim o requereu) traduz um verdadeiro venire contra factum proprium, constituindo conduta processualmente censurável.
Claro que uma interpretação na linha das modernas tendências do direito processual penal, uma interpretação conforme à Constituição (no caso, não tanto conforme à sua letra, mas conforme ao seu espírito) e que não descure as imposições do ordenamento supra nacional assumidas e respeitadas pelo Estado Português, nomeadamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Declaração Europeia dos Direitos do Homem, tenderá a preferir a audição pessoal, entendida esta no sentido de presencial. Princípio com que, aliás, concordamos, salvaguardando no entanto não o admitirmos como regra absoluta, antes comportando as excepções que se justifiquem à luz de uma interpretação razoável do direito, como será o caso que agora tratamos.
Ou seja, e para concluir quanto a esta questão: não ocorre, pelas razões que se expuseram, a nulidade arguida.


Prossegue o recorrente sustentando a falta de fundamentação do despacho recorrido. Contudo, também quanto a este aspecto lhe não assiste razão. O despacho recorrido identificou com clareza as razões em que assentou a decisão assumida, pelo que, quando muito, poderia discutir-se a razoabilidade daquela fundamentação. Os vícios da falta ou insuficiência de fundamentação da decisão, manifestamente, não se verificam, dispensando o texto da decisão recorrida maiores comentários sobre o tema.


Também o argumento da necessidade de aplicação do perdão previsto no art. 1º, nº 1, da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, carece de sentido. O arguido foi condenado pela autoria de um crime continuado. Ora, a comissão do crime continuado é equiparada a uma só acção, que termina com a consumação do último acto que integra a continuação criminosa (de outro modo, estaríamos no domínio da pluriocasionalidade, e não no domínio do crime único). No caso vertente o último acto que integra a continuação reporta-se a data ulterior a 25 de Março de 1999. O mesmo é dizer que o crime se consumou em momento ulterior à data limite fixada na Lei nº 29/99 para a concessão do perdão (25 de Março de 1999), pelo que o recorrente não beneficia daquela medida de clemência.


Das questões suscitadas nas conclusões do recurso resta apreciar a invocada descriminalização da conduta do recorrente.
É verdade que a entrada em vigor da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, implicou alterações ao art. 105º, nº 1, do RGIT, em termos tais que o comportamento antes integrador de crime de abuso de confiança fiscal, quando propiciador de uma vantagem patrimonial não superior a € 7.500,00 passou a constituir mera contra-ordenação. Se é certo que muitas das condutas integradas na continuação criminosa em causa nestes autos proporcionaram vantagem patrimonial que não excedeu aquele montante, o que é facto é que quando ocorreu a descriminalização de tais condutas por força da entrada em vigor da lei nova, a sentença que condenou o recorrente já havia transitado há muito, pelo que só por via da reabertura da audiência a requerimento do condenado, nos termos do art. 371º-A do CPP, poderia ser equacionada a aplicação do novo regime legal. Ora, não consta dos autos que tenha sido requerida a reabertura da audiência e esta é matéria que, dado o seu enquadramento legal, não pode ser conhecida pelo Tribunal da Relação sem tal precedência, sob pena de eliminação de um grau de recurso.


Para além das questões já abordadas, suscitadas nas conclusões do recurso, uma última, para a qual alerta o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, directamente relacionado com a revogação da suspensão, deverá, pela sua relevância, ser apreciada. Em causa está, na verdade, a revogação da suspensão da execução da pena antes do termo do período de suspensão decorrente da respectiva prorrogação com base no incumprimento de condição imposta com limite temporal. Com efeito e tanto quanto decorre do despacho certificado a fls. 81, a sentença que condenou o arguido em pena suspensa transitou em julgado em 14/07/2006. Tendo a suspensão sido condicionada a um dever de pagamento fraccionado das quantias em dívida ao Estado, o tribunal recorrido, verificando o incumprimento das condições impostas, por falta de pagamento do montante que deveria ter sido satisfeito no decurso do primeiro ano de suspensão da execução da pena, decidiu prorrogar o prazo para o cumprimento da condição por mais um ano e meio e proceder à alteração dos deveres anteriormente impostos. Assim, na sequência deste despacho, datado de 20/06/2008, ficou o ora recorrente obrigado a proceder ao pagamento de 1/3 do montante total em dívida no prazo de 6 meses, a contar da notificação daquele despacho e ao pagamento de mais um terço em cada um dos dois anos subsequentes, até integral satisfação da quantia devida. O recorrente não demonstrou nos autos, uma vez mais, ter procedido ao pagamento de qualquer parcela da quantia que estava obrigado a satisfazer, tendo deixado de cumprir as condições de suspensão que lhe foram impostas e por essa razão foi revogada, por despacho de 2 de Julho de 2009, a suspensão da execução da pena.
Não há dúvida de que o comportamento que o recorrente vem assumindo não abona em seu favor, dificilmente se podendo admitir que estando empregado e não sendo a única pessoa do seu agregado familiar que trabalha, venha invocar a total impossibilidade de proceder a qualquer pagamento, ainda que parcial, do montante que condiciona a suspensão da execução da pena, tanto mais que do relatório constante dos autos (cfr. fls. 130) resulta que para além de um vencimento fixo o recorrente aufere comissões variáveis sobre os produtos que vende, que vem destinando ao pagamento de dívidas contraídas. O comportamento que os autos evidenciam indicia que o recorrente pretende pura e simplesmente eximir-se ao pagamento do montante a que está obrigado, escudando-se no argumento da impossibilidade de o satisfazer em função das suas condições pessoais. Se porventura o recorrente supõe que o facto de lhe ser difícil satisfazer a condição imposta é obstáculo bastante para a revogação da suspensão, engana-se redondamente, já que parte de um pressuposto errado. A satisfação da condição não tem que ser fácil – aliás, não o deverá ser, sob pena de se afirmar como inútil do ponto de vista da garantia de ressocialização – nem é de tolerar que o recorrente apenas a cumpra se isso se lhe não apresentar como penoso. Bem pelo contrário, a suspensão sujeita ao cumprimento de deveres, diversamente do que sucede com a suspensão “tout court”, significa que a gravidade da conduta que implicou a imposição da pena de prisão, não se bastando com uma mera suspensão da sua execução, está condicionada pelas exigências de reparação do mal causado com o crime e exige, para obviar à sua revogação, uma demonstração efectiva, a cargo do delinquente, do bem fundado do juízo de prognose favorável que conduziu à suspensão, traduzida no cumprimento, ou pelo menos, no cumprimento possível, dos deveres impostos.

De um ponto de vista meramente formal estariam já reunidas as condições para a revogação da suspensão, na medida em que o recorrente vem incumprindo reiteradamente e com total displicência as condições que lhe foram impostas. Contudo, embora o recorrente pareça pretender trilhar o caminho da imperiosa necessidade do cumprimento da pena – será esse, irremediavelmente, o desfecho final, caso persista a situação de total incumprimento e este se apresentar como culposo – a sua situação pessoal, a doença de que padece e o facto de não se encontrar ainda esgotado o prazo total da suspensão justificam uma renovação da advertência para as consequências do seu alheamento relativamente aos deveres que lhe foram impostos por sentença e ulteriormente alterados pela decisão que apreciou o respectivo incumprimento. Acresce, por outro lado, a necessidade de antes da revogação se proceder a uma mais detalhada análise da sua situação pessoal, já que está em causa o cumprimento efectivo de uma pena de prisão, sendo certo que o relatório em que se baseou o despacho recorrido (certificado a fls. 128/131 dos presentes autos) apenas reflexamente pondera a situação pessoal do recorrente, por ter sido elaborado para apreciação da situação pessoal da sua companheira, B....
A justiça de pendor humanista que se procura alcançar jamais poderá prescindir, no momento da revogação da suspensão da execução da pena, da necessária segurança no juízo de culpabilidade no incumprimento das condições que condicionam a suspensão, a pressupor uma decisão assente em elementos sólidos, que evidenciem a culpa no incumprimento das condições de suspensão e a imperiosidade do efectivo cumprimento da pena de prisão.
Em suma, e independentemente de se oferecer como altamente provável o futuro cumprimento efectivo da pena de prisão – constatação que se acentua uma vez mais para que o recorrente repense a sua conduta – haverá que revogar o despacho recorrido, por se apresentar (pelo menos por agora) como prematura a revogação da suspensão da execução da pena.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, ainda que por razões distintas das invocadas pelo recorrente, concede-se provimento ao recurso, revogando-se, consequentemente, a decisão recorrida.
Sem tributação.

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Coimbra, ____________
(texto processado pelo relator e
revisto por todos os signatários)




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(Jorge Miranda Jacob)




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(Maria Pilar de Oliveira)