Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1655/10.3TBCBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: VALORAÇÃO DA PROVA
PROVA TESTEMUNHAL
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ONUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.101 CN, 116 CRP, 343, 1251, 1252, 1286 CC
Sumário: 1 - Alicerçando-se a convicção do juiz, essencialmente, nos depoimentos de certas testemunhas, ela só pode ser censurada – vg. porque a imediação permite uma apreciação ética do depoimento vedada pela gravação -, mesmo que contrariada por outros depoimentos, se se concluir pela ilogicidade/falsidade do verbalizado, ou se houver outra prova que inequivocamente o infirme.

2.- Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial, e independentemente do tempo decorrido para a sua instauração, o réu, sob pena de imediata e inelutável procedência da mesma, tem de provar a veracidade dos factos desta escritura, não podendo beneficiar da presunção do registo que já tenha feito com base na mesma.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

B (….) propôs contra  G (…),  ação declarativa, de condenação, sob aforma de processo comum ordinário.

Pediu:

- que se considere impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de doze de Novembro de dois mil e dez, referente à invocada aquisição pela Ré, por usucapião, do prédio por ele identificado.

- que declare nula, ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que a ré não possa, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação;

- que se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base na dita escritura aqui impugnada;

- que se declare que o prédio identificado no artigo 2.º desta petição pertence à herança aberta por óbito de (…), avó do Autor.

Alegou:

Os factos declarados pela ré na escritura de justificação ora impugnada não correspondem à verdade, porquanto tal prédio não veio à sua posse por doação verbal efetuada em 1985 por (…), não o possui em nome próprio, nem procedeu ao pagamento dos impostos.

Em 1985 já (…) tinha falecido há 6 anos, pelo que não podia aquela doar até porque o mesmo não lhe pertencia.

O prédio em causa fazia parte do património de (…), de quem foram únicas herdeiras as suas duas filhas: (…).

Este prédio foi, por acordo verbal celebrado entre as duas irmãs herdeiras, adjudicado a (…) razão pela qual não foi partilhado na escritura de partilhas que veio a ser celebrada. Mais tarde, por acordo entre todos os herdeiros de (…) foi o mesmo entregue à filha e herdeira (…), que dele passou a cuidar, como se fosse coisa sua. A partilha dos bens de (…) só não foi efetuada pelo facto de alguns dos herdeiros residirem por longos períodos no estrangeiro

A ré apenas está na posse de tal prédio porque foi autorizada pelo autor e pelos seus irmãos, que respeitaram a vontade da sua mãe, pessoa que tinha autorizado que a ré cultivasse tal terreno, que não tinha qualquer fonte de rendimentos.

Maria Judite, mãe do autor, permitiu tal utilização, sem exigir renda, com o compromisso de a ré abandonar o terreno quando assim lhe fosse pedido.

Contestou a ré.

 Alegando que a doação ocorreu em 1975 e não em 1985, como ficou a constar da escritura de justificação.

 A partir desse momento passou a praticar os atos de posse, de forma pública, pacífica e à vista de toda a gente, na convicção de exercer um direito próprio.

Tal prédio apenas não foi levado à partilha dos bens por morte de (….), porque esta já o tinha doado à ré.

 Antes dessa doação o prédio era cultivado pela ré, por o mesmo lhe ter sido arrendado pela respetiva proprietária.

Conclui pugnando pela improcedência da ação.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual se decidiu:

«Julgo a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência:

- declara-se impugnado o facto justificado na escritura mencionada em 1. dos factos provados, declarando-se que o prédio aí identificado não pertence, nem nunca pertenceu à ré e que são falsas as declarações prestadas e que constam de tal escritura de justificação notarial;

- ordena-se o cancelamento de todo ou qualquer ato ou registo que tenha sido feito com base em tal escritura de justificação notarial;

- declara-se que o prédio identificado em 1. pertence à herança aberta por óbito de (…)avó do autor.»

Inconformada recorreu a ré.

Por acórdão desta Relação foi declarada a legitimidade do autor e a sentença anulada, com base na não consideração de factualidade dada como assente; e  ordenada a prolação de nova decisão com consideração de tal acervo factual.

2.

Foi, de seguida, proferida nova sentença na qual foi decidido:

«julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência:

- declara-se impugnado o facto justificado na escritura mencionada em 1. dos factos provados, declarando-se que o prédio aí identificado não pertence, nem nunca pertenceu à ré e que são falsas as declarações prestadas e que constam de tal escritura de justificação notarial;

- ordena-se o cancelamento de todo ou qualquer acto ou registo que tenha sido feito com base em tal escritura de justificação notarial;

- declara-se que o prédio identificado em 1. pertence à herança aberta por óbito de (…), avó do autor.».

3.

Mais uma vez inconformada recorreu a ré.

Rematando as suas alegações ainda com mais conclusões do que as do recurso inicial, e ignorando que tendo a questão da legitimidade já sido decidida no acórdão precedente, as trinta e três primeiras conclusões, atinentes a esta matéria, eram inadmissíveis.

Pelo que apenas se consideram, as restantes, ainda e reiteradamente prolixas, descritivas e repetitivas do corpo alegatório, a saber:

(…)

Contra alegou o autor pugnando pala manutenção do decidido exatamente com os mesmos argumentos finais aduzidos no recurso anterior, a saber:

(….)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as remanescentes  do anterior recurso, a saber:

1ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª – (Im) procedência da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

Há que considerar que no nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607º nº 5º do CPC.

Perante o estatuído neste artigo pode concluir-se, por um lado, que a lei não considera o juiz como um autómato que se limita a aplicar critérios legais apriorísticos de valoração.

Mas, por outro lado, também não lhe permite julgar apenas pela impressão que as provas produzidas pelos litigantes produziram no seu espírito.

 Antes lhe exigindo que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

Na verdade prova livre não quer dizer prova arbitrária, caprichosa  ou irracional.

Antes querendo dizer prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, posto que em perfeita conformidade com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

5.1.2.

Por outro lado há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, dgsi.pt, p.03B3893.

 Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade  - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade, e, até, falibilidade.

Mas tal é inelutável e está ínsito nos próprios riscos decorrentes do simples facto de se viver em sociedade onde os conflitos de interesses e as contradições estão sempre, e por vezes exacerbadamente, presentes, havendo que conviver - se necessário até com laivos de algum estoicismo e abnegação - com esta inexorável álea de erro ou engano.

O que importa, é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, tendencialmente, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

 E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Por conseguinte: «Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela» - Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.1.3.

Finalmente urge ter presente que, como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

E, assim, querendo impor, em termos mais ou menos apriorísticos, a sua subjetiva convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem julga é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma concreta e discriminada análise objetiva, crítica, logica e racional da prova, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

 A qual, como é outrossim comummente aceite e já supra se mencionou, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.

Sendo que, repete-se, a intolerabilidade destas tem de ser demonstrada pelo recorrente através de uma concreta e dilucidada análise hermenêutica de todo o acervo probatório produzido ou, ao menos, no qual se fundamentou a resposta. – cfr. Ac. da RC de 29-02-2012, proc. nº 1324/09.7TBMGR.C1.

5.1.4.

No caso vertente a ré pugna para que não sejam dados como não provados os artºs  1º a 7º da BI e totalmente provados os pontos 9º a 15º.

Ou seja, a ré insurge-se contra a prova da  quase totalidade dos factos levados à BI, ou, numa outra perspetiva, contra a prova da tese/versão do autor e contra a não prova da sua versão.

(…)

Por conseguinte importa manter os factos apurados na 1ª instância.

5.1.5.

Factos estes que são os seguintes:

1. No dia doze de Novembro de dois mil e dez, no Cartório Notarial de M (...), em Coimbra, foi lavrada uma escritura pública de justificação, na qual declarou a ré que, com exclusão de outrem, é dona e legitima possuidora do prédio rústico – terra de semeadura com oliveiras, com área de três mil e oitocentos e setenta metros quadrados, sito em (...), inscrito na matriz sob o n.º 261. Declarou ainda a ré que este prédio veio à sua posse por doação verbal efectuada em mil novecentos e oitenta e cinco feita por (…). Mais declarou que após a dita doação passou a possuir o aludido prédio em nome próprio, cultivando-o e plantando árvores, tendo pago desde sempre os respectivos impostos, exercendo essa posse à vista de todos, sempre na convicção de exercer um direito próprio sobre coisa própria (doc. de fls. 16 e ss) – al. A.

2. Em oito de Março de mil novecentos e sessenta e cinco, faleceu (…), no estado de viúva de (….).

A qual não fez testamento ou qualquer outra disposição de sua última vontade, tendo deixado como suas únicas herdeiras duas filhas: (…) (escritura de habilitação de herdeiros junta a fls. 30 e ss) – al. B.

3. (…) faleceu em 5 de Abril de 1979, sem testamento ou qualquer outra disposição de sua última vontade, no estado de viúva de (…), tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros quatro filhos e uma neta, a saber: (…) (escritura de habilitação de herdeiros junta a fls. 30 e ss) – al. C.

4. (…) faleceu em 17 de Julho de 1991, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, no estado de viúva de (…), tendo deixado como seus únicos herdeiros três filhos, a saber: (…) (escritura de habilitação de herdeiros junta a fls. 37 e ss) – al. D.

5. No dia 22.7.1999 foi outorgada a escritura de partilha dos bens deixados por (…)e nos quatro bens que foram partilhados não consta o prédio identificado em A) (doc. De fls. 40 e ss) – al. E.

6. Sob o artº 261º da matriz predial rústica da freguesia de (...), em Coimbra, encontra-se descrito o prédio rústico de semeadura com 25 oliveiras, localizado no (...), o prédio tinha como titular inscrito (…) (doc. de fls. 53) – al. F.

7.

8. O prédio referido em A) fazia parte do património de (…) (artº 1º).

9. Por falecimento de (…) as filhas (…) acordaram verbalmente, entre si, a partilha dos bens herdados, tendo ficado a caber à filha (…), entre outros bens, com o prédio referido em A) (artº 2º).

10. E, por acordo entre os herdeiros de (…), foi esse prédio entregue à filha e herdeira (…) (artº 3º).

11. A qual ficou com esse prédio para si e começou a considerá-lo como se fosse seu, deles dispondo e usufruindo, como se fossem coisa sua (artº 4º).

12. E com autorização e permissão do autor e seus irmãos, respeitando a vontade de sua mãe, autorizou que a ré agricultasse o terreno, mediante a obrigação da ré abandonar o prédio e lhe entregar logo que lhe pedisse, o que a ré aceitou (artº 5º e 6º).

13. A ré reconheceu perante o autor que o prédio não era sua propriedade e que l entregaria quando lhe fosse exigido (artº 7º).

14. A ré passou a cultivar e plantar o prédio, dele colhendo os seus frutos, actos que praticou a partir de 1976/77, tendo ali edificado um barracão de madeira e em 2008 requerido à CMC de Coimbra autorização para a construção de uma cabine electrica, que lhe foi concedida (artº 10º, 12º).

15. A ré praticou os actos referidos em 10º e 11º desde tal data até ao presente, no contexto referido no artº 5º, à vista de todos e sem oposição de ninguém até que foi intentada a presente acção (artº 13º).

5.2.

Segunda questão.

A Julgadora decidiu, de jure, a causa, alicerçada no seguinte discurso argumentativo:

«…estamos perante uma acção de impugnação de escritura de justificação notarial intentado ao abrigo do disposto nos artºs 101º do Cód. do Notariado e 116º do Cód. Preg. Predial.

Sendo inquestionável que se trata de uma acção de simples apreciação negativa recai sobre a ré o ónus da prova sobre a propriedade justificada.

A escritura de justificação é um instrumento destinado a suprir a falta de documento bastante para a prova do direito do interessado na primeira inscrição no registo. A justificação, prescreve o n.º 1 do artigo 116.º do Cód. Preg. Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais (artigo 89º, nº 1, do Cód. Notariado)…

…permite harmonizar a situação jurídica com a registral e, assim, a publicitação dos direitos inerentes às coisas imóveis e a concretização dos interesses dos particulares …

Não significa isso que se trate de um acto translativo ou constitutivo do direito, porquanto o direito já deve e tem de estar constituído na esfera jurídica do justificante na data da justificação.

Apesar deste “meio legal de justificação não ter as necessárias garantias de correspondência com a realidade, sendo suficiente a declaração do interessado, confirmada pelos declarantes…decorrido o prazo de 30 dias previsto no artigo 101º do Cód. do Not., sem que a escritura de justificação notarial tenha sido impugnada, pode o justificante levar ao registo a inscrição …com base na escritura de justificação…

Porém, nos termos prescritos no artº 101º do Cód. Notariado qualquer interessado pode impugnar em juízo o facto justificado. Tal acção não se destina a formar a propriedade do autores mas apenas a impugnar, enquanto acção de apreciação negativa (artº 4º do CPC), o facto justificado, cabendo à ré o ónus da prova do direito que invocou na justificação notarial com vista ao futuro registo.

Competindo à ré a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga …não logrou a mesma faze-lo. A causa de aquisição é, no caso, a usucapião, que se encontra regulada nos arts. 1287º seg. e que pode ser definida como a constituição facultada ao possuidor do direito correspondente à sua posse, desde que esta assuma certas características e se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei…. Logo, para que possa julgar-se verificada a aquisição da propriedade (ou de outro direito real) por usucapião, é, pois, preciso demonstrar-se a posse em sentido técnico-jurídico definida pelos dois elementos tradicionais a que aludem os arts. 1251º e 1252º, nº2 – material (corpus, traduzido no exercício de poder de facto sobre o objecto) e psicológico (animus - intenção assim exteriorizada de exercício do direito correspondente).

No caso a ré apenas logrou provar que a partir de 1976/77 passou a cultivar e plantar o prédio justificado, dele colhendo os seus frutos, tendo ali edificado um barracão de madeira e requerido à CMC de Coimbra autorização para a construção de uma cabine electrica, que lhe foi concedida.

Praticou tais actos desde essa data até ao presente, à vista de todos e sem oposição de ninguém até que foi intentada a presente acção.

Mas fê-lo porque tinha autorização da mãe do autor, que permitiu que a ré o cultivasse, mediante a obrigação de o abandonar e lhe entregar logo que lhe fosse pedido.

Muito embora a ré tenha provado que usufrui do prédio desde 1976/77, cultivando-o, semeando-o e nele construindo um barracão, fá-lo porque lhe foi concedida autorização para o efeito, ou seja, como mera detentora ou possuidora precária.

…procederá o pedido de impugnação da escritura de justificação notarial.

A tal não obsta o teor dos factos que se encontram elencados em 5. e 6. da factualidade provada. Por um lado, tais factos, de per si, não conduzem a uma análise jurídica distinta, concretamente não correspondem à prática de actos de posse, cujo ónus de prova reacaia sobre a ré. Por outro lado, o relevo probatório de tais factos, que traduzem uma inscrição predial e uma escritura de partilhas, foi explicitado quando se respondeu à matéria de facto. Nesse momento ponderou-se se tais documentos obstavam a que se dessem como provados os actos de posse invocados pelo autor, tendo-se então concluído que tal não sucedia.

Visto o pedido de reconhecimento da propriedade que o autor formula, bem como o ónus da prova que sobre si recai, os factos provados demonstram à aquisição originária do domínio. O modo como os actos de posse foram praticados, o tempo em que se prolongaram e a intenção que lhes subjaz, levam-nos a concluir que o prédio justificado faz parte do património da herança aberta por óbito (…) (artºs 1287º e 1296º, ambos do Cód. Civil).»

Esta argumentação vislumbra-se acertada e curial, pelo que importa corroborá-la e reiterá-la.

Em seu abono, e quiçá ad abundantiam, apenas uma ou duas notas.

Estamos efetivamente perante uma ação de simples apreciação negativa, prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º - hoje 10º nº3 al. a) -  do CPC – cfr. Ac. do STJ de  13.09.2011, p. 1027/06.4TBSTR.E1.S1.

Pelo que aos réus competia a prova dos factos constitutivos invocados na escritura e alicerçantes do direito que nela  se arrogaram – artº 343º nº1 do CC.

Ademais «na ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, ainda que este esteja inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial» - AUJ n.º 1/2008, decorrente do Ac. do STJ de 04.12.2007, p. n.º 07A2464 in.dgsi.pt.

Esta jurisprudência foi reiterada por Jurisprudência posterior, sendo de notar que tal regime de prova aplica-se independentemente do tempo decorrido entre a escritura, o registo da aquisição e a propositura da ação, pois esta não está sujeita a qualquer prazo – Acs. do STJ de 27.01.2010, p. 2319/04.2TBGDM.P1.S1; de 07.04.2011 p. 569/04.0TCSNT.L1.S1 e de 15.06.1994, p. 085055; e Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião – Constituição originária de direitos através da posse, Almedina, 2008, p. 82.

Ora no caso vertente a ré não logrou provar os factos tendentes à usucapião, provando-se apenas a sua detenção precária ex vi de comodato.

Pelo que a pretensão do autor em ver impugnada a escritura de justificação e declarada a sua ineficácia, resultaria, desde logo, sem mais e inelutavelmente, da falta de cumprimento do ónus probatório por banda da demandada.

Mas mesmo que assim se não fosse ou se entendesse, verifica-se que o próprio autor cumpriu mais do que lhe competia, pois que fez prova da propriedade do imóvel e, até, na medida em que provou a mera detenção precária por banda da demandada, fez prova da falsidade das declarações constantes na escritura, pois que elas se reportaram a uma posse boa para usucapir que se provou inexistir.

Improcede o recurso.

6.

Sumariando.

I - Alicerçando-se a convicção do juiz, essencialmente, nos depoimentos de certas testemunhas, ela só pode ser censurada – vg. porque a imediação permite uma apreciação ética do depoimento vedada pela gravação -,   mesmo que contrariada por outros depoimentos, se se concluir pela ilogicidade/falsidade do verbalizado, ou se houver outra prova que inequivocamente o infirme.

II - Na ação de impugnação de escritura de justificação notarial, e independentemente do tempo decorrido para a sua instauração, o réu, sob pena de imediata e inelutável procedência da mesma, tem de provar a veracidade dos factos desta escritura, não podendo beneficiar da presunção do registo que já tenha feito com base na mesma.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2015.02.10.

Carlos Moreira ( Relator)

Anabela Luna de Carvalho

Moreira do Carmo