Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
81/13.7GHCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 03/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.50.º DO CP
Sumário: I - A suspensão da pena assenta na formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido, ou seja, na formulação de um juízo de que ele não praticará novos crimes.

II - Na ponderação da personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias do mesmo, o tribunal terá que ter em mente que a suspensão da execução da pena de prisão apenas poderá ser aplicada se sustentar e viabilizar os desígnios de prevenção especial - apoiando e promovendo a reinserção social do condenado - e geral - na perspectiva em que a comunidade não encare a suspensão, como um sinal de impunidade.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Por sentença proferida nos autos supra identificados, decidiu o tribunal condenar o arguido A..., como autor de um crime de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos art.ºs 143.º, nº 1, 145º, n.º 1, alínea a e 2 e 132º, n.º 2, alínea h., todos do Código Penal, na pena de 20 (vinte) meses de prisão suspensa na sua execução e com sujeição a regime de prova com obrigatoriedade de frequência de consulta de alcoolismo pelo período que o médico entenda por conveniente e de forma articulada entre o hospital e a DGRSP.

Inconformado com o decidido, o Ministério Público interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

“1 ° O arguido A... foi condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada p. e p. nos artigos 143°, n° 1 e 145°, n° 1, al a) e 2 com referência ao art. 132°, n° 2, al h) todos do Código Penal na pena de 20 (vinte) meses de prisão suspensa por igual período sujeita a regime de prova com obrigatoriedade de frequência de consulta de alcoolismo.

2° O art. 50° do Código Penal exige para a aplicação do instituto da suspensão da pena que o tribunal faça (pelo aspecto positivo) um juízo de prognose favorável em relação ao arguido.

3° E este juízo de prognose, que é um julgamento vinculado, há-de assentar em factos provados relativos aos elementos expressamente indicados no n° 1 do art. 50° do Código Penal, ou seja, tal juízo é vinculado aos indicadores que a própria lei adianta e tem que basear-se nos factos provados;

4° Da matéria provada, a nosso ver, não resultam quaisquer factos que reportados à sua personalidade, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias em que o crime ocorreu, que permitam fazer um juízo de prognose favorável ao arguido - o qual, em rigor, nem sequer foi feito na douta sentença recorrida.

5° Quanto à personalidade do arguido, foi dado como provado que do relatório social para eventual determinação de sanção, que aqui se dá por reproduzido, com relevância consta "Arguido com um percurso de vida fortemente condicionado pela instabilidade familiar e pessoal, bem como pelo consumo precoce de bebidas alcoólicas e precariedade económica ...apresenta ausência de suporte familiar, solidão, problemática do alcoolismo, desemprego e tendência simplista e desadequada na percepção de algumas normas sociais, que em interacção, contribuem para uma maior vulnerabilidade e inadaptação social."

6° Quanto ao comportamento anterior provou-se que o arguido já foi condenado por oito vezes, a última das quais por crime de ofensas à integridade física simples e já em pena suspensa - sendo que, ao contrário do que parece ter entendido a Mm.ª Juiz nada é referido na lei que dê mais relevância ao comportamento posterior do que ao comportamento anterior.

7° Quanto às circunstâncias do crime uma vez que resulta dos factos provados que o arguido, segundo se nos afigura de forma absolutamente gratuita, num estabelecimento de café, desferiu um golpe com a navalha que empunhava na zona da barriga do ofendido. São pois muito graves os factos pelos quais o arguido foi condenado e são os mesmos reveladores da personalidade do arguido.

8° Os factos dados como provados não demonstram que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficientes as finalidades da punição, fazendo-o alterar o seu comportamento.

9° Assim, tendo o ilícito assumido carácter de gravidade e justificando-se que não sejam subestimadas as exigências de reprovação e de prevenção especial e geral, não se realizam de forma adequada as finalidades da punição, com a suspensão da execução da pena.

10° O arguido foi inclusive já condenado em pena suspensa, pena essa que o arguido entendeu desvalorizar, já que voltou a reincidir na conduta criminosa pelo que o cumprimento efectivo da pena de prisão é necessário e fundamental para que o arguido interiorize verdadeiramente o desvalor da sua conduta e não o volte a repetir. E, por outro lado, só assim se cumprirão os requisitos de prevenção geral, sendo que atendendo à gravidade dos factos, a suspensão da pena seria entendida pela sociedade como sinal de impunidade.

11°Deverá em conclusão, a nosso ver, ser revogada a douta sentença recorrida nesta parte, revogando-se a suspensão da pena aplicada em concreto e determinando-se a efectivação da pena de vinte meses de prisão, por violação do disposto no art. 50° do CP na sua aplicação à matéria de facto provada.”

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Não houve resposta.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência do recurso.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal Não houve resposta.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras)[[1]].

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” a quer se refere o artº 379º, nº 1, alínea c., do Código de Processo Penal, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entende-se por “questões” a resolver, as concretas controvérsias centrais a dirimir[[2]].
Questão a decidir: acerto da opção pela suspensão da execução da pena

Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):

“1. No dia 11 de Maio de 2013, pelas 22 horas e 20 minutos, o arguido chegou ao café (...), sito no (...), na Lardosa, nesta comarca.

2. No interior de tal café encontrava-se, de pé, ao balcão e perto da porta de entrada do estabelecimento, B....

3. O arguido passou então junto do B... e disse-lhe: "amanhã faço-te a folha", tendo prosseguido na direcção da casa de banho do estabelecimento.

4. Passado alguns minutos, o arguido dirige-se novamente para a porta do estabelecimento trazendo na mão uma navalha, com a lâmina em aço e cabo em plástico de cor preta, com o comprimento total de 16,5 cm., sendo 7 cm. de lâmina.

5. E ao passar junto do B... desfere neste um golpe com tal navalha na zona da barriga, saindo de imediato do estabelecimento.

6. Em consequência da conduta descrita o B... sofreu um ferida linear com 22 cm. de comprimento na região infra-umbilical e abdómen inferior direito, as quais importaram 15 dias de doença, com 10 dias de afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

7. O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que ao actuar da forma descrita ofendia o corpo e a saúde de C... e actuou querendo isso mesmo, utilizando para o efeito a navalha supra descrita que, atenta a zona do corpo atingida, é um meio particularmente perigoso.

8. O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei.

Mais se provou:

9. Que o arguido confessou a prática dos factos.

10. Que disse sentir-se mal com a sua conduta.

11. Encontra-se desempregado há cerca de 1 ano sendo que trabalha na agricultura.

12. Recebe de R.S.I. 158,00€ por mês.

13. Vive sozinho em casa emprestada pela qual nada paga.

14. Não tem filhos.

15. Tem a 3ª classe de escolaridade.

16. Admitiu ocasionalmente beber álcool em excesso.

17. Do relatório social para eventual determinação de sanção, que aqui se dá por reproduzido, com relevância consta:

“Arguido com um percurso de vida fortemente condicionando pela instabilidade familiar e pessoal, bem como pelo consumo precoce de bebidas alcoólicas e precariedade económica ...apresenta ausência de suporte familiar, solidão, problemática do alcoolismo, desemprego e tendência simplista e desadequada na percepção de algumas normas sociais, que em interação, contribuem para uma maior vulnerabilidade e inadaptação social."

18. Tem os seguintes antecedentes criminais:

a) Processo 50/09.1 GHCTB do 3° Juízo deste Tribunal, pelo crime de condução em estado de embriaguez, praticado em 21-03-2009, na pena de 110 dias de multa à taxa diária de 6,00€ e 7 meses de inibição de condução - a pena encontra-se extinta;

b) Processo 390/09.1TACTB do 1° Juízo deste Tribunal, pelo crime de condução sem habilitação, praticado em 22-03-2009, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5,00€ - a pena encontra-se extinta;

c) Processo 78/09.1 GCCTB do 1° Juízo deste Tribunal, pelos crimes de Ameaça e Injúria, praticados em 22-04-2009, na pena única de 90 dias de multa à taxa diária de 5,00€;

d) Processo 56/09.0GHCTB do 3° Juízo deste Tribunal, pelo crime de Detenção Ilegal de Arma, praticado em 21-03-2009, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de 5,50€;

e) Processo 145/09.1 GHCTB do 3° Juízo deste Tribunal, pelos crimes de condução sem habilitação e condução em estado de embriaguez, praticados em 09-07- 2009, na pena única de 120 dias de multa à taxa diária de 5,00€ e 6 meses de inibição de condução;

f) Processo 425/09.6TACTB do 3° Juízo deste Tribunal, pelo crime de Detenção Ilegal de Arma, praticado em 29-07-2008, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 5,00€ substituída por 120 horas de trabalho a favor da comunidade;

g) Processo 77/11.3GHCTB do 2° Juízo deste Tribunal, pelo crime de Injúria, praticado em 08-04-20011 na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 5,00;

h) Processo 17/11.0GHCTB do 2° Juízo deste Tribunal, pelo crime de Ofensa à Integridade Simples, praticado em 26-01-2011, na pena de 17 meses de prisão suspensa por igual período”

*+*+*+*

Entende o recorrente que o tribunal “a quo” decidiu mal ao suspender a execução da pena que aplicou ao arguido.

Não consideramos que lhe assista razão, até porque a pedra de toque do seu raciocínio assenta num equívoco (equívoco esse que poderá ter sido causado pelo facto do texto de sentença se mostrar pouco rigoroso quanto aos antecedentes criminais).

A suspensão da execução da pena é assim justificada na sentença recorrida:

“Impõe-se ponderar se tal pena deve ser suspensa.

Entendemos que sim uma vez que se nos afigura que fora do sistema prisional, com acompanhamento adequado, mormente do ponto de vista da reinserção social e do alcoolismo, pode o arguido melhor interiorizar o desvalor da sua conduta, a gravidade dos factos e tornar-se como se espera uma pessoa e um cidadão melhores.

Para a decisão da suspensão contribui ainda o facto da condenação pelo crime de Ofensas à Integridade Física Simples corresponder a factos praticados antes dos factos objecto dos presentes autos.

Face à postura assumida pelo arguido no julgamento estamos em querer que vá usufruir esta última oportunidade que lhe é dada de pagar, em liberdade, a sua dívida à sociedade.

Assim nos termos do art.º 50º do C. Penal, suspendo os 20 meses de prisão por igual período.

Entendo necessário contudo que a suspensão seja acompanhada de regime de prova nos termos do art.º 530 do C. Penal o qual passará obrigatoriamente pela frequência de consulta de alcoologia, pelo período que o médico entenda por conveniente e de forma articulada entre o Hospital e a D.G.R.S.P.”

Vejamos:

Diz-nos o art.º 50.º n.º 1 do Código Penal que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, ou seja, o que a lei visa com o instituto em termos de finalidade político-criminal “é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos — «metanóia» das concepções da vida e o mundo (…) ou como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, § 519), sendo certo que, como se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 1999, processo n.º 823/99 “não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas”.

Podemos dizer que a suspensão da pena assenta na formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido, ou seja, na formulação de um juízo de que ele não praticará novos crimes.

Temos assim que na ponderação da personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias do mesmo, o tribunal terá que ter em mente que a suspensão da execução da pena de prisão apenas poderá ser aplicada se sustentar e viabilizar os desígnios de prevenção especial — apoiando e promovendo a reinserção social do condenado — e geral — na perspectiva em que a comunidade não encare a suspensão, como um sinal de impunidade.

No caso “subjudice” estamos perante uma situação que poderemos considerar como se posicionando na fronteira entre a adequação e a inadequação da suspensão ou não suspensão da execução da pena.

Com efeito, se é verdade que em termos de personalidade o arguido se revela como uma pessoa refractária a uma convivência social de acordo com as regras do direito — a reiterada prática de crimes é disso reveladora —, se também é verdade que não ajuda na prognose positiva o facto de não ter uma vida minimamente estruturada — problemas de alcoolismo, ausência de suporte familiar, desemprego —, não é menos verdade que confessou os factos e que até ao momento em que foi condenado nestes autos ainda não lhe tinha sido aplicada qualquer pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução — o crime destes autos foi praticado em 11 de Maio de 2013 e a pena de 17 (dezassete) meses de prisão suspensa referente ao processo n.º 17/11.0GHCTB foi aplicada por sentença proferida em 28 de Maio de 2013, ou seja, o arguido praticou o crime destes autos num momento em que a suas anteriores condenações tinham sido apenas de multa.

Assim sendo, e uma vez que até à prática dos factos agora julgados o arguido ainda não tinha sido condenado em prisão (suspensa ou efectiva), consideramos que, ainda que no limite, a simples censura do facto e, muito especialmente, ameaça de tal pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, desde que acompanhada de regime de prova, tal como foi decidido em 1ª instância (artºs 50º, n.ºs 1, 2 e 5).

*

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso

*

Sem tributação.

*

Coimbra, 11 de Março de 2015

(Luis Ramos - relator)

(Olga Maurício - adjunta)


[1] Neste sentido, v.g., Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23 de Maio de 2012 (acessível inwww.dgsi.pt, tal como todos os demais arestos citados neste acórdão cuja acessibilidade não esteja localmente indicada).
[2]“(…) quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2011.