Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1275/12.8TBACB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: INSOLVÊNCIA
PRESSUPOSTO ESSENCIAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 05/28/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: N.º 1 DO ART.º 3.º DO CIRE
Sumário: I. Assegura a sua legitimidade activa para requerer a declaração de insolvência do devedor o credor que justifica, na petição inicial, a origem, natureza e montante do seu crédito (n.º 1 do art.º 20.º e art.º 25.º do CIRE);

II. Não se verifica a excepção dilatória da falta de interesse em agir quando o credor instaura processo, tendo em vista a declaração de insolvência do devedor, na pendência de acção executiva por si intentada, ainda que nesta não se encontre demonstrada a insuficiência dos bens penhorados para satisfazer o crédito do exequente, quando fundamenta o seu pedido no n.º 1 do art.º 3.º do CIRE, invocando a verificação de outros factos-índice de insolvência que não o previsto na al. f) do n.º 1 do art.º 20.º daquele diploma;

III. O n.º 1 do art.º 3.º do CIRE caracteriza o pressuposto substantivo essencial de cuja verificação depende o reconhecimento da situação de insolvência. Segundo o conceito básico aqui vertido, a situação de insolvência traduz-se na impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, das suas obrigações, sendo certo que apenas quando verificada em relação às vencidas fundamenta a apresentação do requerimento de insolvência por outro legitimado que não o próprio devedor.

IV. Esta impossibilidade, conceito mais exigente do que o mero incumprimento, não exige uma pluralidade de incumprimentos, nem tão pouco uma pluralidade de credores, pressupondo e traduzindo “a ideia de incapacidade económico-financeira do devedor, reportando-se portanto à falta de meios económicos, em particular numerário, ou à falta de meios financeiros da empresa para dar satisfação às obrigações vencidas”.

V. Acresce que do facto da pontualidade não vir agora referenciada no art.º 3.º, n.º 1 do CIRE, não resulta que tal requisito não continue a ser exigido, verificando-se a entrada em situação de insolvência a partir do momento em que o devedor comprovadamente não pode cumprir as obrigações vencidas, nem poderá fazê-lo num futuro próximo.

VI. Finalmente, conforme era já entendimento pacífico, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações vencidas, bastando para tanto que o devedor não se encontre em condições de satisfazer aquelas que, pelo seu significado no conjunto do passivo, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciem a sua incapacidade de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
No 2.º juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, A..., S.A. pessoa colectiva e número único de matrícula ..., com sede na ..., em Lisboa, veio intentar acção especial de insolvência contra B..., S.A., pessoa colectiva e número único de matrícula ..., com sede na ..., Alcobaça.
Alegou para tanto, e em síntese, ser credora da requerida pela quantia de € 338.951,86, por via da celebração de um contrato de mútuo (regularização), mediante o qual lhe emprestou a quantia de € 308.000,00, pelo prazo de 5 (cinco) anos, tendo-se a mutuária obrigado a reembolsar a quantia mutuada nos termos previstos no referido contrato.
Mais alegou que a primeira prestação do contrato não foi cumprida, nem qualquer outra das que se venceram posteriormente, vindo a requerente, em consequência, a instaurar contra a requerida, em 21.12.2011, acção executiva para pagamento de quantia certa, a qual corre termos pelo mesmo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça com o n.º 2734/11.5TBACB. Aqui foram penhorados vários imóveis, cujo valor, contudo, é manifestamente inferior aos montantes em dívida, tanto mais que existem outros credores.
Concluindo encontrar-se a requerida em situação de insuficiência patrimonial, sem meios próprios que lhe permitam liquidar os seus débitos, verificando-se a previsão das als. a) e b) do n.º 1 do art.º 20.º e 3.º, n.º 1 do CIRE, pede seja decretada a insolvência.
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Regularmente citada, a requerida deduziu oposição e, tendo-se defendido por excepção, invocou a falta de legitimidade da requerente, uma vez que os bens que garantem o seu crédito não se encontram excutidos, não havendo prova da sua insuficiência para satisfazer o crédito exequendo. A assim não ser entendido, sempre a instauração do presente processo seria prematura, o que consubstancia excepção dilatória de conhecimento oficioso, a determinar a absolvição da requerida da instância.
Em todo o caso, sendo o meio próprio para a requerente obter a satisfação do seu crédito a acção executiva em curso, falece o pressuposto do interesse em agir, excepção que caracteriza de peremptória, a determinar a absolvição da ré do pedido, nos termos do art.º 493.º, n.º 3 do CPC.
Em sede de impugnação, identifica os seus credores e montantes em dívida e, concluindo que os bens de que é proprietária excedem largamente o passivo, defende não se verificar fundamento para o decretamento da insolvência.
Por último, imputando conduta processual dolosa e imprópria à requerente, que deduziu pretensão infundamentada tendo, para além do mais, abusado do direito de acção, termina pedindo a condenação desta como litigante de má fé em multa, que reclama exemplar, e indemnização a seu favor, reclamando a este título o montante de € 74 600,00.
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Saneado o processo e julgada improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade activa, seguiram os autos para julgamento, após o que foi proferida sentença, que decretou a insolvência da requerida.
Inconformada, interpôs a requerida tempestivo recurso e, tendo apresentado as suas alegações, rematou-as com as seguintes conclusões:
“A- O banco recorrido avançou com o pedido de insolvência da requerida depois de ter avançado com uma acção executiva e de ter excedido em muito a penhora que ali lhe era permitida.
B- No dia imediato ao da elaboração do auto da penhora no processo executivo em causa, depois de, para além dos imóveis dados de hipoteca, terem sido penhorados outros de valor superior a € 2.000.000,00 (dois milhões de euros!), resolveu o banco requerente avançar com a presente acção.
C- Para que se reconheça a insuficiência dos bens dados em garantia, não basta a avaliação desses bens: é indispensável que eles tenham sido excutidos.
D- Só após tal execução, a acção executiva passa a prosseguir no mesmo processo contra o devedor, para completar liquidação do crédito insatisfeito.
E- No âmbito da execução comum n.º 2734/11.5TBACB, só depois de excutidos os oito imóveis dados de hipoteca ao banco ora recorrido e ali exequente é que este poderia nomear outros bens à penhora.
F- Se por via do disposto nos artigos 697.º do Código Civil e 835.º, n.º 1 do Código do Processo Civil, o exequente está inibido de nomear à penhora outros bens, para lá daqueles que lhe foram dados em garantia, enquanto os mesmos não forem excutidos, por argumento de maioria de razão está o mesmo exequente inibido de requerer ao tribunal a declaração de insolvência.
G- Lei que proíbe o menos também proíbe o mais.
H- Por interpretação “a contrario” do artigo 20.º, n.º 2 alínea e) do CIRE, o credor exequente, enquanto não for verificada no processo executivo a insuficiência dos bens penhoráveis do devedor, não pode vir ao tribunal pedir a declaração de insolvência do mesmo.
I- Sobretudo quando, por via da penhora abusiva de outros imóveis da recorrente e até de terceiros, que não apenas os admitidos pelo artigo 697.º do Código Civil, foram penhorados mais nove prédios muito valiosos àquela pertencentes.
J- Por via do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea e), do CIRE fica demonstrada a falta de legitimidade do recorrido para a presente causa.
K- E, ainda que se entenda não se tratar de uma questão de legitimidade, sempre estaremos perante uma prematuridade da acção.
L- Sempre a requerente careceria de interesse em agir na presente causa, uma vez que nos autos de execução comum n.º 2733/11.5TBACB dispunha de bens de valor mais do que suficiente para o efeito.
M- A falta de interesse em agir ou, de outro modo, a desnecessidade de recorrer ao presente procedimento, consiste numa completa ausência da necessidade justificada, razoável e fundada de recorrer ao processo.
N- Afirmar-se que “a última prestação de contas data de 19/10/2011, donde poderá concluir-se pela eventual cessação (da) actividade” constitui um sofisma.
O- Já a afirmação de que “verificou-se a inexistência de bens penhoráveis suficientes para pagamento do crédito do requerente, circunstância essa que foi apurada na competente acção executiva que o requerente oportunamente intentou contra a requerida, como ficará demonstrado”, constitui uma mentira.
P- O banco recorrido litiga de má-fé.
Q- O banco recorrido deduziu pretensão cuja falta de fundamento não poderia ignorar.
R- O banco requerente alterou a verdade dos factos e omitiu outros factos relevantes.
S- O banco requerente praticou uma omissão grave do dever de cooperação.
T- Fez do processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal.
U- O direito subjetivo é concedido para que seja útil para o próprio (função pessoal) ou para a sociedade (função social): não para que seja exercido de modo emulativo ou gratuitamente danoso.
V- Os direitos subjetivos são atribuídos aos titulares respetivos com um quadro teleológico e axiológico. Caso o titular ignore ou ultrapasse tal quadro, já não há direito “proprio sensu”. A sua atuação surge como ilegítima.
X- A atuação do banco recorrido foi inequivocamente dolosa.
Y- Se comportamentos processuais como os dos presentes autos são censuráveis, são ainda mais censuráveis e inaceitáveis quando vindos de um banco.
Z- Em vez de fazerem valer a sua consciência social e de cidadania, ao invés, caem sobre os devedores como autênticos abutres, lançando mão de todos os meios legais ao seu dispor.
AA- O tribunal “a quo” avaliou os imóveis supra referidos, propriedade da recorrente, em dois milhões e quinhentos e dez mil euros, quase o dobro do seu passivo, e nessa avaliação ainda ficaram alguns de fora (mais cinco prédios destinados a construção, sitos em ...).
AB- O tribunal “a quo” tinha de ter dado por provado que a requerida é proprietária de cinco prédios rústicos situados em área urbana da freguesia de ....
AC- A prova da propriedade de tais imóveis foi feita pela requerida ora recorrente pelo documento n.º 8 da oposição.
AD- Tal documento constitui prova plena da existência de tais bens.
AE- O juiz da causa deve interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes e fazer o exame crítico das provas que lhe cumpra conhecer.
AF- Nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CIRE “cessa o disposto nos números anteriores (ou seja, deixa de se considerar a pessoa colectiva em situação de insolvência) quando o activo seja manifestamente superior ao passivo”.
AG- A recorrida não é uma sociedade insolvente, por o seu activo ser manifestamente superior ao seu passivo.
AH- O tribunal “a quo” fez uma errada interpretação e aplicação da lei, decidindo contra o estabelecido no artigo 3.º, n.º 3 do CIRE.”
Concluindo terem sido violados os artigos, 3.º, n.º 3, 20.º, n.º 1 e 22.º do CIRE, 334.º, 371.º e 697.º do Código Civil e 2.º, n.º 2, 266.º-A, 456.º, n.º 1, 457.º, n.º 1, alíneas a) e b), 493.º, n.º 2 e 494.º, 495.º, 659.º, n.º 2 e n.º 3, 668.º, n.º 1, alínea d) e 835.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, pretende a revogação da sentença proferida.
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Contra alegou o banco requerente, pugnando naturalmente pela manutenção do julgado.
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 Assente que pelas conclusões se delimita o objecto do recurso (cfr. art.ºs 684 n.º 3 e 685.º-A do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
i. da ilegitimidade da requerente ou, quando assim não se entenda, da excepção dilatória da falta de interesse em agir (a tal excepção sendo de reconduzir a também invocada “prematuridade da acção”) (conclusões de A) a M);
ii. do erro de julgamento, por errada interpretação do art.º 3.º, n.º 3, 20.º, n.º 1 e 22.º do CIRE (conclusões AA) a AH);
iii. da má fé da requerente (conclusões N) a Z);
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A apelada suscitou, a título de questão prévia, a omissão de pagamento pela apelante da taxa de justiça devida, uma vez que esta, ao contrário do que invoca, não beneficia da isenção concedida pela al. u) do n.º 1 do art.º 4.º do RCP.
A este respeito cumpre lembrar que, apesar da sentença que decretou a insolvência da apelante não ter ainda transitado em julgado, ao recurso interposto foi atribuído o efeito meramente devolutivo, em conformidade com o que dispõe o art.º 14.º n.º 5 do CIRE. Deste modo, subsistindo a decisão proferida, se a recorrente sofre as desvantagens decorrentes do prosseguimento dos autos (ainda que com as limitações decorrentes do disposto no n.º 3 do art.º 40.º “ex vi” do n.º 3 do art.º 42.º aquele diploma), lícito é que se prevaleça de eventuais vantagens que decorram da atribuída qualidade de insolvente.
Atento o exposto, não tinha a apelante que proceder à liquidação da taxa de justiça, não assistindo portanto razão à apelada.
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i. Da ilegitimidade da requerente
O art.º 18.º do CIRE consagra um verdadeiro dever do devedor se apresentar à insolvência. Mas logo o n.º 1 do art.º 20.º (corpo), epigrafado de “Outros legitimados”, atribui legitimidade processual ou “ad causam” a “qualquer credor, ainda que condicional, [1] e qualquer que seja a natureza do seu crédito (…)”.
A propósito deste pressuposto, há quem entenda que o legislador condiciona a legitimidade do pedido de insolvência do devedor à verificação de algum dos factos elencados nas diversas alíneas deste n.º 1 do art.º 20.º, que funcionaria assim como condição necessária da legitimação das entidades ali previstas[2]. Tal exigência legal serviria o desiderato, para além do mais, de prevenir eventuais abusos por banda dos credores, evitando que sucumbissem à tentação de instaurar um processo de insolvência na mira de obterem mais rapidamente a satisfação do seu próprio crédito.
Não cremos, todavia, que tal posição seja a mais correcta. Com efeito, impondo o n.º 1 do art.º 25.º ao credor que justifique, na petição inicial, a origem, natureza e montante do seu crédito, não só fica assegurada a sua legitimidade para a causa, atento o disposto no n.º 1 do art.º 20.º, que nenhuma exigência adicional se nos afigura formular, como prevenidos ficam tais eventuais abusos, podendo sempre o devedor impugnar a existência e montante do crédito invocado, de modo a pôr em causa a legitimidade do requerente.[3]
Parece assim dever concluir-se que “A legitimidade processual activa não se pode confundir, nem cruzar, nem interligar com o estado de insolvência, pois é este estado que aquele processo (que se pretende iniciar) irá, numa primeira fase, determinar. Não faz portanto sentido querer aferir a legitimidade à luz de um conjunto de factos que indiciam o estado de insolvência e que são o objecto do pedido efectuado pelo legitimado”.[4]
Ora, no caso em apreço, a requerente indicou com precisão qual a origem do crédito reclamado -mútuo bancário- montante e garantias de que dispõe, de modo a justificar a sua qualidade de credora. Tais factos, por si alegados no requerimento inicial e à face dos quais se afere este pressuposto processual, não foram sequer impugnados. Daí que se confirme nesta sede a afirmada legitimidade da requerente, atenta a sua indiscutida qualidade de credora, em conformidade com o disposto nos art.ºs 20.º, n.º 1 e 25.º, ambos os preceitos do CIRE.
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Invocou ainda a apelante a excepção dilatória da falta de interesse em agir, o que decorreria da circunstância de se encontrar ainda pendente a execução instaurada pela requerente, sem excussão dos bens dados em garantia do crédito de que é titular e que se encontram penhorados, penhora que abrangeu outros bens de elevado valor, não só da requerida, como também de terceiros, donde ser prematura a instauração deste processo de insolvência.
O interesse em agir, a que apenas alguns reconhecem a natureza de pressuposto processual, vem sendo definido como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer seguir a acção. “Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse, por vago e remoto que seja; trata-se de algum intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir, por via judiciária, o bem que a ordem jurídica lhe reconhece.
 (…) O interesse em agir surge, pois, da necessidade em obter do processo a protecção do interesse substancial, pelo que pressupõe a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração ou, tanto quanto possível, integral satisfação”[5].
Partindo desta ideia de adequação, vem sendo entendido que “No uso dos meios processuais ao seu dispor, o autor, ou requerente, está sujeito aos princípios da “indispensabilidade do meio”, “proibição do excesso” e “proporcionalidade”, sob pena de, tendo embora legitimidade processual, se considerar que não demonstra interesse em agir”. [6]
No caso da insolvência, o interesse em agir, nesta perspectiva de pressuposto processual, e independentemente do seu enquadramento como pressuposto autónomo ou como dizendo ainda respeito à legitimidade, demandaria a existência de um “interesse na respectiva declaração”.
De volta ao caso dos autos, pretende a apelante que falece à requerente interesse em agir, uma vez que não está demonstrado que não venha a obter, na acção executiva instaurada, a satisfação do seu crédito. Vejamos se lhe assiste razão.
O que o requerente no processo de insolvência, seja ele qual for, pretende obter, é a declaração judicial da situação de insolvência, com o consequente desencadear dos mecanismos jurídicos adequados às necessidades especiais de tutela criados por aquela situação[7]. Por outro lado, embora seja inegável que, nos casos em que o requerente é um credor, o que este visa conseguir é, em primeira linha, a satisfação do seu crédito, a verdade é que a sua iniciativa desencadeia outro tipo de efeitos, realizando outros fins ou interesses que não apenas aquele de que é titular. O processo de insolvência prossegue também a protecção da economia, em particular dos agentes económicos que potencialmente podem agir no comércio jurídico com o insolvente, obstando ao perigo real do seu alastramento com base numa cadeia de incumprimentos.
No caso em apreço, a requerente é titular de um crédito de montante expressivo e, embora não esteja efectivamente demonstrado nos autos que não pudesse vir a obter a sua cabal satisfação no âmbito do processo executivo que promoveu contra a aqui requerida e outros obrigados, a verdade é que também não está demonstrado o contrário. Por outro lado, sendo conhecidos mais credores da requerida, também eles titulares de créditos relevantes, e tendo invocado outros factos indiciadores da situação de insolvência em que aquela se encontra, não pode deixar de se reconhecer à instituição bancária requerente interesse na instauração do processo de insolvência, como forma de abrir o processo de execução universal e cumprir as finalidades consagradas no art.º 1.º do CIRE.
Atento o exposto, não se verifica a excepção dilatória da falta do aludido pressuposto inominado, improcedendo, também nesta parte, o recurso interposto pela requerida.
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A recorrente pretende ainda ver modificada a matéria de facto, em ordem a ser dado como assente que é proprietária de cinco prédios rústicos situados em área urbana da freguesia de ..., uma vez que tal facto se acharia plenamente demonstrado pelo doc. junto com a oposição sob o n.º 8 -documento emitido pela AT e que é uma lista de todo o património imobiliário da requerida- o qual, para além do mais, não foi impugnado, não tendo merecido por banda do Tribunal qualquer atenção.
Convoca assim a apelante a intervenção deste Tribunal de recurso ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 712.º, preceito nos termos do qual “1 - A decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
(…) b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas”
Na previsão desta alínea cabe o desrespeito, pelo Tribunal “a quo” da força probatória plena de algum documento ou outro meio de prova com igual valor, caso em que, independentemente de impugnação, a alteração da matéria de facto poderia ser oficiosamente determinada.
Pretende a apelante que o documento a que fez referência foi indevidamente desconsiderado pela Mm.ª juíza “a quo” pelo que, fazendo prova plena do seu direito de propriedade sobre cinco prédios rústicos sitos na freguesia de ..., deveria tal facto ter sido dado como provado, convocando a intervenção deste Tribunal de recurso à luz da transcrita al. b) do n.º 1 do preceito. Vejamos, pois, se o elemento probatório indicado impõe a consideração como provado do alegado facto.
Na oposição a requerida tinha efectivamente alegado ser titular do direito de propriedade sobre um conjunto de cinco prédios rústicos situados em área urbana da freguesia de ..., aos quais atribuiu um valor de mercado superior a € 600 000,00 (vide art.º 68.º da oposição oferecida). Para prova do alegado juntou uma página do Portal das Finanças, impressa em 20 de Junho, atestando ser a requerida o sujeito passivo do imposto devido, enquanto titular inscrita de cinco prédios rústicos sitos na freguesia de ....
O aludido documento, é certo, não foi impugnado e, tendo embora o valor de documento autêntico, tudo se passando como se tivesse sido emitido pelo chefe de finanças competente[8], atento o disposto no art.º 371.º do Código Civil, o seu valor probatório encontra-se limitado aos factos atestados pela autoridade tributária no âmbito das suas atribuições ou competências. Ora, o que se verifica é que os Serviços de Finanças não se encontram vocacionados para atestar a titularidade do direito de propriedade, competência deferida às Conservatórias do Registo Predial (v. art.ºs 1.º, 2.º, 7.º e 19.º do CRP), pelo que o documento em causa não faz prova do invocado direito.
Deste modo, não se impondo a alteração da decisão, em ordem a ser aditado o aludido facto, improcede, nesta parte, o recurso interposto.
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II. Fundamentação
De facto
Não sendo caso de proceder à alteração dos factos que nos vêm da primeira instância, é a seguinte a factualidade a considerar:
A) A Requerida é uma sociedade anónima, com sede na ..., ..., cujo objecto social visa a promoção imobiliária, compra e revenda de prédios adquiridos para esse fim, construção, reconstrução de prédios, empreitadas de obras públicas, arrendamentos, gestão de condomínios, exploração de empreendimentos turísticos, planeamento de obras, projectos para a construção civil, sendo o conselho de administração composto por C..., na qualidade de presidente, e D...e E..., como vogais.
B) Em 06.07.2010, a Requerente celebrou com a Requerida um contrato de mútuo (regularização), mediante o qual emprestou a esta a quantia de € 308.000,00, pelo prazo de 5 (cinco) anos, tendo-se a Requerida obrigado a reembolsar a quantia mutuada nos termos previstos no referido contrato.
C) Em garantia do bom, integral e pontual pagamento das obrigações assumidas nos termos do vertente contrato, a Requerida constituiu a favor da Requerente, por escritura pública outorgada em 06.07.2010, hipotecas sobre os seguintes bens imóveis:
i) Prédio urbano sito em ... lote 1, freguesia de ...descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2210, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 2483;
ii) Prédio urbano sito em ... lote 2, freguesia de ...descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2211, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 2484;
iii) Prédio urbano sito em ... lote 3, freguesia de ...descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2212, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 2438;
iv) Prédio urbano sito em ... lote 4, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2213, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 2439;
v) Prédio urbano sito em ..., lote 5, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2214, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 2440;
vi) Prédio urbano sito em ..., lote 6, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2215, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 2441;
vii) Prédio urbano sito em ..., lote 7, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2216, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 2442;
viii) Prédio urbano sito em ..., lote 8, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2217, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 2443;
D) Como garantia do bom, integral e pontual pagamento das obrigações assumidas pela Requerida nos termos do contrato de mútuo em causa, a mesma subscreveu uma livrança em branco, a qual foi avalizada por C..., D...e E....
E) A Requerida não entregou à Requerente a quantia devida pela primeira prestação do contrato nem nenhuma das que se venceram posteriormente, pelo que esta preencheu a livrança, conforme expressa autorização da Requerida e dos Avalistas, livrança essa da qual é dona e legítima portadora.
F) Na data do seu vencimento (12.12.2011) a mencionada livrança foi apresentada a pagamento; no entanto não foi paga pela Requerida, nem por nenhum dos seus obrigados, naquela data nem posteriormente, apesar de interpelados para o efeito.
G) Atento o incumprimento, o Banco Requerente instaurou, em 21.12.2011, contra a aqui Requerida e os demais obrigados, uma acção executiva para pagamento de quantia certa, que corre os seus termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de ... com o n.º 2734/11.5TBACB.
H) Na acção referida, o Requerente peticionou, além do pagamento da quantia titulada na livrança - € 331.819,94 - os juros calculados à taxa legal de 4% desde a data do vencimento da articulada livrança até 21.12.2011, e respectivo imposto de selo sobre os mesmos, que totalizavam um montante de € 345,09.
I) Na acção mencionada, foram já penhorados, para além dos imóveis identificados na alínea C), os seguintes bens imóveis:
1) Prédio urbano, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 3684, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 6979;
2) Prédio misto, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1962, e inscrito na matriz predial urbana sob os art.º 3093, 3094 e na matriz predial rústica sob o art.º 187, Secção A1-A8;
3) Prédio misto, sito em ..., ...ou Buzina, Sitio da ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2991, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 8417 e na matriz predial rústica sob o art.º 3, Secção X;
4) Prédio urbano sito em ..., Lote 90, freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 4824, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 7997;
5) Prédio urbano sito em ..., Lote 91, freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 4825, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 7998;
6) Prédio urbano sito em ..., Lote 92, freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 4826, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 7999;
7) Prédio urbano sito em ..., Lote 93, freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 4827, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 8000;
8) Prédio urbano sito em ..., Lote 94, freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 4828, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 8001;
9) Prédio urbano sito em ..., Lote 106, freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 4840, e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 8013.
J) O imóvel indicado em 1) da al. anterior é propriedade dos avalistas D...e E..., e sobre o mesmo incidem duas hipotecas a favor do Barclays Bank, PLC -cujos montantes máximos assegurados são de € 534.484,90 e € 268.265,10, respectivamente- e, bem assim, uma penhora a favor do Banco Popular no montante de € 306.864,65.
L) Sobre os imóveis identificados de 4) a 9) da al. anterior incidem hipotecas a favor do Banco Comercial Português, S.A, cujo montante máximo assegurado por cada um dos imóveis é de € 1.376.300,00.
M) A Requerida é também proprietária da fracção autónoma designada pela letra “C”, correspondente ao rés-do-chão direito do prédio urbano sito na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1121, e com um valor patrimonial de € 11.380,07.
N) A Requerida não é titular de quaisquer veículos automóveis.
O) A última prestação de contas data de 19.10.2011.
P) O prédio descrito em 2) da alínea I), que se encontrava à data da penhora livre de ónus ou encargos, foi adquirido por compra pela requerida, pelo preço de quatrocentos mil euros, em 31 de Janeiro de 2008.
Q) O imóvel descrito em 3) da alínea I), que se encontrava à data da penhora livre de ónus ou encargos, foi adquirido por compra pela requerida em 27/02/2008, pelo preço de € 500.000,00 (quinhentos mil euros).
R) A requerida é proprietária de uma quinta situada em ..., Castelo Branco, composta por vários prédios rústicos, com a área de 30 hectares.
S) A requerida é proprietária de uma loja situada na zona nobre da marginal da vila da ....
T) Na acção executiva para pagamento de quantia certa, que corre os seus termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de ... com o n.º 2734/11.5TBACB, já foram reclamados créditos:
i) Pelo Banco Comercial Português, S.A., o montante de € 318.940,62, a ser pago pelo produto da venda dos prédios sobre os quais detém garantia hipotecária, e cujas responsabilidades se encontram vencidas desde 5-10-2011;
ii) Pelo Barclays Bank Plc, no montante de 594.767,13, a ser pago pelo produto da venda  do imóvel sobre o qual detém garantia hipotecária.
U) A requerida deve à Fazenda Nacional de IMT vencido em 25/02/2012, acrescido de juros, a quantia de € 46.320,87.
V) A quinta situada em ..., Castelo Branco vale cerca de € 200.000,00.
X) A loja situada na zona nobre da marginal da vila da ..., atendendo aos tempos difíceis que correm, tem um valor de mercado de € 150.000,00.
Z) Os oito prédios dados de hipoteca ao banco requerente têm um valor unitário de mercado de € 60.000,00 / 70.000,00.
AA) Cada um dos 6 (seis) lotes de terreno situados no ..., tem um valor de mercado de € 70.000,00.
AB) A requerida construiu sobre tais lotes duas moradias, encontrando-se uma negociada por € 200,000,00.
AC) Os dois imóveis descritos na Conservatória de Registo Predial da ... sob os nºs 1962 e 2991 da freguesia da ..., valem cerca de € 500.000,00.
AD) Os 5 (cinco) maiores credores da requerida são:
a) Banco Comercial Português;
b) Fazenda Pública;
c) ..., Lda.;
d) ..., Lda.;
e) ..., Lda..
                                                              *
De Direito
ii. do erro de julgamento, por errada interpretação do art.º 3.º, n.º 3, 20.º, n.º 1 e 22.º do CIRE.
A requerente instaurou a presente acção prevalecendo-se dos factos previstos nas als. a), b) e f) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, ou seja, invocando “factos ou situações cuja ocorrência objectiva pode, nos termos da lei, fundamentar o pedido.”[9]. Trata-se, conforme sem dissêndio vem sendo entendido, de factos-índice ou presuntivos, cuja verificação indicia ou revela uma potencial situação de insolvência “(…) tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, que é a pedra de toque do instituto”[10], assim facilitando ao requerente, quando se trate de um dos legitimados previstos no n.º 1 do art.º 20.º, a alegação e prova desse estado. Tal presunção, todavia, é uma presunção “iuris tantum”, cabendo ao devedor ilidir a presunção emergente do facto-índice, conforme resulta do disposto no n.º 3 do art.º 30.º do mesmo diploma legal.
Tendo instaurado acção executiva contra a requerida, visando obter a cobrança coerciva do crédito de que é titular, invocou a requerente a insuficiência do património apurado naquela acção para satisfazer cabalmente o crédito exequendo -facto-índice que integra a previsão da al. f) do n.º 1 do art.º 20.º, e que, efectivamente, não resultou demonstrado. Pelo contrário, o que decorre do elenco factual apurado é que o valor dos bens dados em garantia excede o montante do crédito exequendo (cf. als. C), G), H) e Z). Todavia, a par desse facto presuntivo, a requerente/apelada invocou ainda o incumprimento continuado e reiterado, por banda da devedora, das obrigações pecuniárias perante si assumidas e, bem assim, o elevado montante do passivo existente, decorrente da suspensão generalizada de pagamentos, fundamentos que se subsumem à previsão das als. a) e b) do preceito em análise.
Arredada a situação prevista na al. a), a situação de insolvência da sociedade requerida veio a ser reconhecida e declarada com fundamento no art.º 3.º, n.º 1 e al. b) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, face à constatação de que se encontrava impossibilitada de cumprir com pontualidade a generalidade das suas obrigações, facto presuntivo da situação de insolvência, não ilidido. Tendo sido este o fundamento invocado na decisão proferida, quaisquer considerandos sobre a indemonstrada insuficiência dos bens penhorados para satisfazer o crédito de que esta é titular são, neste contexto, perfeitamente irrelevantes[11].
Isto dito, vejamos se a decisão recorrida merece a censura que lhe é, pela apelante, endereçada.
Nos termos do art.º 3.º do CIRE:
“1. É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
2. As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.
3. Cessa o disposto no número anterior [12] quando o activo seja superior ao passivo, avaliado em conformidade com as seguintes regras (…)”
Caracteriza-se no n.º 1 deste preceito o pressuposto substantivo essencial de cuja verificação depende o reconhecimento da situação de insolvência.
Segundo o conceito básico aqui vertido, e que vinha já do CPEREF, a situação de insolvência traduz-se na impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, das suas obrigações, sendo certo que apenas quando verificada em relação às vencidas fundamenta a apresentação do requerimento de insolvência por outro legitimado que não o próprio devedor.
Esta impossibilidade, conceito mais exigente do que o mero incumprimento[13] -sendo todavia de reconhecer que a mora, a par do incumprimento definitivo, são as duas manifestações típicas do estado insolvente, sobretudo quando generalizados, tal como decorre da sua consagração como factos-índice da insolvência nas als. a) e b) do art.º 20.º- não exige uma pluralidade de incumprimentos, nem tão pouco uma pluralidade de credores, pressupondo e traduzindo “a ideia de incapacidade económico-financeira do devedor, reportando-se portanto à falta de meios económicos, em particular numerário, ou à falta de meios financeiros da empresa para dar satisfação às obrigações vencidas”[14]. A verificação desta situação de incapacidade de cumprir, consagrada genericamente no art.º 3.º como pressuposto objectivo da insolvência, exige uma avaliação do património do devedor, nomeadamente da existência de meios económicos ou financeiros suficientes para satisfazer as suas obrigações vencidas.
Acresce que do facto da pontualidade não vir agora referenciada no art.º 3.º, n.º 1 do CIRE, não resulta que tal requisito não continue a ser exigido. Com efeito, por um lado, é “(…) inerente à ideia do cumprimento a realização atempada das obrigações a cumprir, visto que só dessa forma se satisfaz, na plenitude, o interesse do credor e se concretiza integralmente o plano vinculativo a que o devedor está adstrito” e, por outro, “a menção legal à impossibilidade de cumprir obrigações vencidas -e, logo, exigíveis- é suficiente para justificar a necessidade da pontualidade na actuação do devedor”[15]. Neste contexto, não interessa que o devedor ainda possa cumprir num momento futuro qualquer e eventualmente num contexto de remodelação da dívida, verificando-se a entrada em situação de insolvência a partir do momento em que comprovadamente não pode cumprir as obrigações vencidas, nem poderá fazê-lo num futuro próximo. Deste modo, se os meros atrasos no pagamento não justificam a declaração de insolvência, também não se exige que a impossibilidade seja duradoura, só obstando à declaração de insolvência a falta transitória de liquidez recuperável a curto prazo[16].
Finalmente, conforme era já entendimento pacífico, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações vencidas, bastando para tanto que o devedor não se encontre em condições de satisfazer aquelas que, pelo seu significado no conjunto do passivo, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciem a sua incapacidade de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Por assim ser, parece que a autonomização da al. b) do art.º 20.º seria, em rigor, desnecessária, tanto mais que ao requerente cabe fazer a prova, não só do incumprimento de alguma ou algumas das obrigações, como ainda, no caso específico desta alínea, das circunstâncias reveladoras da situação de penúria generalizada do devedor. Certo é, porém, que feita a prova destes factos, sobre o devedor recai o ónus da prova da inexistência do facto que fundamenta o pedido ou da inexistência da sua situação de insolvência, de modo a ilidir a presunção emergente do facto-índice[17].
No caso que nos ocupa, e ao contrário do que parece ser o entendimento da apelante, o fundamento da declaração de insolvência foi, repete-se, a prova do facto índice previsto na al. b) do n.º 1 do art.º 20.º, revelador da sua incapacidade de cumprir as obrigações vencidas. E a verdade é que, considerando o seu volume, ascendendo a cerca de € 700 000,00 e, sobretudo, às circunstâncias do incumprimento -perdurando por mais de um ano em relação aos créditos das instituições bancárias suas credoras, sendo de destacar a circunstância de não ter pago uma única das prestações acordadas com a requerente[18], e mais de seis meses no caso do crédito de que é titular a Fazenda Nacional- não pode falar-se em situação transitória de falta de liquidez, que se apresenta assim como estrutural, tanto mais que o crédito proveniente de IMT é de apenas € 46 320,87, para não mencionar as dívidas alegadamente de pequeno valor aos demais credores identificados.
Ademais, tendo-se apurado que uma das duas moradias implantadas nos lotes referidos em AA) se encontra negociada por € 200 000,00, valor em todo o caso insuficiente para solver as obrigações vencidas, a verdade é que nada se apurou quanto ao momento de concretização desse negócio.
A verificação deste facto-índice é, em princípio, condição suficiente da declaração de insolvência, só podendo obstar ao decretamento da insolvência a sua ilisão pelo devedor, nos termos do n.º 3 do art.º 30.º, o que a apelante pretende ter feito através da demonstração de que o seu activo é superior ao passivo. Labora todavia num erro, conforme se irá demonstrar.
O art.º 3.º, n.º 2 do CIRE consagra uma situação de insolvência adicional relativa às pessoas colectivas e patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, de forma directa ou indirecta. Este tipo específico de devedor pode, deste modo, ser declarado insolvente, não só quando se verifique o pressuposto objectivo do n.º 1, mas também quando o seu passivo for manifestamente superior ao activo, avaliado segundo as normas contabilísticas aplicáveis[19].
O fundamento da superioridade manifesta do passivo em relação ao activo foi ainda erigido em facto índice, como se vê da primeira parte da al. h) do n.º 1 do art.º 20.º e, sendo este o fundamento do pedido do requerente, no caso do devedor fundar a oposição na sua solvência, deve então, quando estiver obrigado a escrituração, fazer a prova, através dela, devidamente organizada e regularizada, da capacidade de pagar. Todavia, “importa considerar que a simples exibição da escrita arrumada não é condição suficiente da prova da solvência.
(…) pode a escrita revelar um activo superior ao passivo e, no entanto, o devedor estar impossibilitado de cumprir as suas obrigações por não dispor de meios líquidos para o efeito”[20].
Face ao que se deixou referido, duas observações se impõem: a primeira é a de que fundamento da decretada insolvência foi o previsto no n.º 1 do art.º 3.º, fundado no facto índice consagrado na al. b) do n.º 1 do art.º 20.º, e não a superioridade manifesta do passivo em relação ao activo; depois, mesmo considerando, à luz dos factos provados, que o património da requerida tem valor superior ao do seu passivo -o que, em todo o caso, não foi evidenciado através da exibição da escrituração, conforme impõe o n.º 4 do art.º 30.º- tal facto não é idóneo a infirmar a conclusão de que não tem capacidade para cumprir as suas obrigações vencidas. Efectivamente, e conforme se faz notar na decisão recorrida, “a requerida não fez prova de que o seu património gere fluxos financeiros, o mesmo é dizer que o activo existente, para além de não ser líquido, não gera liquidez ou não a permite obter, de modo a possibilitar ao devedor o cumprimento pontual das suas obrigações, numa situação que se pode caracterizar como sendo de insuficiência do activo líquido perante o passivo exigível”.
Deste modo, porque da factualidade provada resulta demonstrado o pressuposto objectivo essencial consagrado no n.º 1 do art.º 3.º do CIRE, por força da verificação do facto-índice previsto na al. b) do n.º 1 do art.º 20.º do mesmo diploma legal, não ilidido, é de confirmar o decidido na sentença recorrida quanto à verificação do estado de insolvência da apelante.
                                                      *
iii. Finalmente, pretende a recorrente que a apelada usou de má fé e abusou do direito de acção, provocando-lhe danos, que pretende ver ressarcidos ao abrigo do disposto no art.º 457.º do CPC.
A propósito cabe esclarecer, antes de mais, que ao invés do reclamado pela apelante, não é rigoroso que a sentença recorrida não se tenha pronunciado sobre esta questão; pelo contrário, conforme deixou expressamente consignado, a Mm.ª juíza “a quo” considerou antes que a mesma se encontrava prejudicada face à verificação da situação de insolvência, que declarou, não padecendo assim do vício da omissão de pronúncia que lhe é assacado (cf. art.º 660.º, n.º 2 do CPC).
Acresce que quaisquer irregularidades praticadas no âmbito do processo executivo instaurado pela apelada contra a requerida também não relevam no âmbito destes autos.
Epigrafado de “Dedução de pedido infundado”, o art.º 22.º do CIRE regula especialmente as consequências da dedução infundada do pedido de insolvência, partindo do pressuposto básico de que tal conduta do requerente é susceptível de causar danos, conforme ocorrerá em regra.
No caso em apreço, confirmado o juízo de que a apelante se encontra em estado de insolvência, a pretensão ressarcitória que formula não tem acolhimento naquele dispositivo legal. Identicamente, quando se considere o conceito de má fé consagrado no art.º 456.º do CPC, também não se vê como imputar à apelada conduta processual susceptível de assim ser caracterizada. Com efeito, não tendo embora feito prova de quanto alegou no sentido dos bens penhorados no âmbito da acção executiva não serem suficientes para satisfazer o seu crédito, apontando mesmo em sentido contrário os valores apurados nestes autos, em bom rigor não ficou demonstrado, atendendo aos demais créditos reclamados e tendo em conta a actual conjuntura, que conseguisse integral pagamento no âmbito daquela acção.
Por outro lado, considerando que, para além dos bens que lhe haviam sido dados em garantia, a exequente logrou efectivar a penhora sobre outros prédios (o que ficou a dever-se à circunstância de ser portadora de uma livrança subscrita, não só pela sociedade aqui requerida como por outros obrigados, título que deu à execução), dois dos quais, no valor aqui apurado de cerca de € 500 000,00, se encontravam então desonerados, o prosseguimento daqueles autos de execução seria susceptível de, em princípio, permitir-lhe a satisfação do crédito de que é titular. Não obstante, verificada a situação de insolvência, nada obstava a que requeresse a sua declaração judicial, prosseguindo as legítimas finalidades consagradas no art.º 1.º do CIRE, nomeadamente a liquidação do património da requerida e sua repartição pelos credores, sem que se vislumbre qualquer uso abusivo de tal direito de acção, com o que improcedem as conclusões recursivas a propósito formuladas.
                                                         *
III Decisão
Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo da massa insolvente.  `

                                                   *

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida


[1] Enquanto titular de crédito que preencha a previsão do art.º 50.º
[2] Aparentemente neste sentido Catarina Serra, in “A Falência no quadro da tutela jurisdicional dos direitos de crédito”, Coimbra Editora 2009. A págs. 255 a autora refere que “A norma do art.º 20.º, n.º 1 do CIRE, cumpre ainda a função de enumerar os factos índice da insolvência. A verificação de, pelo menos, um deles, é condição indispensável para a iniciativa processual de todos os legitimados (excepto do devedor), porque permite presumir a insolvência, facilitando-lhes o ónus da prova”. No entanto, mais à frente (e de algum modo dando razão a Manuel Requicha Ferreira, no seu estudo “Estado de Insolvência”, incluído na colectânea “Direito da Insolvência, estudos”, Coimbra Editora 2011, com a coordenação de Pinto Duarte, quando advoga que os autores que sustentam que os factos índice são requisitos da legitimidade dos outros legitimados referidos no art.º 20.º, n.º 1, acabam por confundir os pressupostos subjectivos com o pressuposto objectivo único da insolvência), aquela autora parece dispensar tal condição, aí escrevendo que “(…) quando se trata de um credor, ele deve proceder à justificação do seu crédito, através da menção da origem, da natureza e do montante (art.º 25.º, n.º 1 do CIRE), e este acto representa já uma espécie de insinuação do crédito no processo que, de certa forma, introduz já a sua pretensão. Mas seria incorrecto reconduzi-lo ao poder executivo; o que se trata, simplesmente, é de o credor requerente justificar a sua legitimidade processual, de demonstrar a qualidade de credor, que é requisito do seu direito de acção judicial (cfr. art.º 20.º, n.º 1 do CIRE) (ob. cit., pág. 264, sendo nosso o destaque).
[3] Assim interpretamos a anotação feita por Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, vol. I, pág. 170, quando defendem não ser de negar ao devedor “a possibilidade de sustentar a oposição simplesmente na ocorrência de excepções dilatórias insupríveis, ou na inexistência dos créditos que o autor se arroga para fundamentar a sua legitimidade” (é nosso o destaque).
[4] Requicha Ferreira, estudo citado, pág. 339, e, neste sentido, aresto da Rel. do Porto de 14/9/2010, processo n.º 6401/09.1 TBVFR.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. II, págs. 251 e 253.
[6] Acórdão da Relação do Porto de 11/4/2005, proferido no âmbito do processo n.º 0551543, disponível em www.dgsi.pt.
[7] V. Catarina Serra, ob. cit., pág. 263.
[8] Atento o disposto na Portaria n.º 894/2004, de 22 de Julho.
[9] Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE anotado, vol. i, Quid Juris 2005, pág. 131.
[10] Ob. e loc. citados na nota anterior.
[11] À semelhança do que ocorre com a invocada ilegalidade, por excesso, da penhora efectuada, que, integrando eventual fundamento da oposição que à mesma os executados possam deduzir, não tem aqui qualquer pertinência. 
[12] E não “números anteriores, conforme habilmente, mas sem rigor, cita a apelante na sua conclusão AF).
[13] Segundo Ferrara, in “Il Fallimento”, citado por Requicha Ferreira, ob. cit., págs. 222/223 “O conceito de insolvência ilumina-se quando comparado com o conceito de inadimplemento. Este é um facto, aquele um estado, uma situação patrimonial. O inadimplemento consiste no facto de não cumprir, pelo que se refere a uma obrigação determinada e tem um alcance relativo ao credor singular que se mostra prejudicado.
A insolvência, por sua vez, tem um carácter geral, refere-se a todos os credores. É insolvente o que não está em situação de satisfazer regularmente as suas obrigações, e regularmente significa em conformidade com a regra, portanto prestando a “res debita” e no tempo devido. É insolvente não só o que pode pagar só a alguns, deixando insatisfeitos os outros credores, mas também o que pode pagar as suas obrigações parcialmente, ou então pode pagar integralmente, mas em data posterior ao vencimento”.
[14] Manuel Requicha Ferreira, ob. cit., págs. 228/229, e também Catarina Serra, “A Falência no quadro da tutela jurisdicional dos direitos de crédito”, págs. 227 e seguintes.
[15] Carvalho Fernandes, João Labareda, ob. cit., pág. 69.
[16] A este respeito, e acolhendo os ensinamentos colhidos da jurisprudência alemã, Requicha Ferreira remete para a regra dos 10% e das 3 semanas, segundo a qual o devedor não se presume insolvente se a sua incapacidade de cumprir for inferior a 10% do conjunto das suas responsabilidades durante um período de 3 semanas, tido por suficiente para que um credor, gozando de um mínimo de credibilidade creditícia, obtenha financiamento de terceiros para fazer face à sua situação de iliquidez (ob. cit., págs. 262 a 268).
[17] V., sobre este ponto específico, Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 133.
[18] O que não deixa de causar alguma perplexidade, posto que a concessão do empréstimo pressupõe obviamente uma avaliação rigorosa da capacidade da requerida cumprir os compromissos assumidos, tanto mais que foi já concedido em plena crise financeira mundial, com a queda vertiginosa do mercado imobiliário e consequente acentuada redução destes activos, o que a instituição bancária concedente não podia desconhecer e, consequentemente, tomar em consideração.
[19] Como adverte Menezes Leitão, in “Direito da Insolvência”, 2011, 3.ª Ed., pág. 85 “Estas entidades não deixam de estar igualmente sujeitos ao critério geral de definição de insolvência constante do art. 3.º, n.º 1, funcionando o critério do balanço previsto no art. 3.º, n.º 2, em alternativa, em ordem a facilitar o pedido de insolvência por parte dos credores destas entidades…”

[20] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 170.