Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
73/05.0GTAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: SUSPENSÃO DA PENA
REVOGAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 05/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – ÍLHAVO – JUÍZO DE PEQUENA INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 56º, B) CPP, 379º, Nº 1 C) 495º CPP
Sumário: 1. Afastado o efeito automático que a condenação por crime doloso, no período de suspensão, tinha sobre a revogação da suspensão da pena [modelo vigente até ao Código Penal de 1995], o tribunal não pode precipitar uma decisão tão gravosa como é a reclusão prisional sem avaliar, em concreto, as circunstâncias em que ocorreu a prática do novo crime e a actual condição de vida do arguido, de forma a aquilatar se as finalidades que justificaram a suspensão da execução da pena ainda podem ser alcançadas, ou foram definitivamente desbaratadas.
2. Existe omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, nos casos de falta de apreciação concreta e de fundamentação específica da eventualidade de aplicação de uma pena substitutiva.
Decisão Texto Integral: A - Relatório:

         1. Nos Autos de Processo Sumário n.º 73/05.0GTAVR, do 3.º Juízo de Competência Criminal, do Tribunal Judicial de Aveiro, hoje Comarca do Baixo Vouga, Ílhavo – Juízo de Pequena Instância Criminal, foi proferido, em 13/6/2008, a fls. 130/131, despacho que revogou a suspensão da execução da pena aplicada nestes autos e, em consequência, foi ordenado que o arguido, P..., cumprisse a pena única de 1 ano de prisão em que fora condenado, no dia 25/2/2005 (fls. 14 e 15).

2. Inconformado com essa decisão, em 9/7/2008, recorreu o arguido, defendendo que a decisão proferida é nula, por omissão de pronúncia, extraindo da Motivação as seguintes conclusões:                                                         A) Nos autos de processo à margem, foi o arguido julgado e condenado, por sentença transitada em julgado em 14/3/2005, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, cujo período de suspensão a considerar de de 14/3/2005 a 14/3/2008;

B) Durante este período, foi julgado e condenado, no mesmo tipo de crime, praticado em 8/8/2005, no Processo n.º …/05.5GBSVV, que correu termos pelo Tribunal Judicial de Sever do Vouga, na pena de sete meses de prisão, já cumpridos. E foi ainda julgado e condenado pela prática de dois crimes referentes ao mesmo tipo legal, praticados em 29/5/2005 e em 4/6/2005, no Processo n.º …/05.8GAVZL, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vouzela, na pena de dezassete meses de prisão, suspensa por 3 anos e 9 meses;

C) Na medida em que os crimes em causa foram praticados no período de suspensão da execução da pena aplicada nos presentes autos, e depois de ouvido o arguido, foi revogada a suspensão da pena em que o arguido foi condenado (1 ano de prisão), determinando-se o seu cumprimento;

D) Ora, o arguido não concorda com a medida da pena que lhe foi aplicada;

E) A revogação da suspensão da execução da pena obedece, enquanto determina o cumprimento de uma pena de prisão, aos critérios legais do artigo 70.º, do C. Penal.

F) Assim, e por se tratar de uma questão de direito, deve referir os fundamentos da medida da pena a ser aplicada, nos termos do artigo 71.º, n.º 3, do C. Penal;

G) Ora, em conformidade com o artigo 70.º, do C. Penal, a escolha da pena deve ser feita, dando preferência à pena não privativa da liberdade, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição que se consubstanciam nos termos definidos no artigo 40.º, n.º 1, do C. Penal;

H) A aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – attigo 40.º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal;

I) Não foram tidas em conta as declarações do arguido relativamente à sua nova situação familiar, em clara violação do artigo 71.º, n.º 2, do C. Penal;

J) A ter sido considerada tal situação, permitiria a aplicação de uma outra pena não privativa da liberdade, cumprindo-se o preceituado no artigo 70.º;

K) Não se conforma o arguido que basta a verificação da factualidade prevista no artigo 56.º, n.º 1, al. c), do C. Penal, para afastar o dever de ponderação/verificação dos pressupostos da aplicação de uma pena substitutiva;

L) O tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a 3 anos, terá sempre de fundamentar especificamente quer a concessão quer a denegação da aplicação de uma pena substitutiva;

M) O tribunal foi completamente omisso na sua eventual opção por uma pena que não pusesse em causa a sociabilização do arguido, ou seja, a prestação de trabalho a favor da comunidade;

N) Ora, a não apreciação pelo tribunal a quo da eventual verificação dos pressupostos para aplicação de uma pena substitutiva traduz-se, em nosso entender, numa omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, logo, numa nulidade do despacho;

O) Na escolha da pena, deve ser dada preferência à pena não privativa da liberdade, devendo a sua pena ser substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade.                                                                                                            ****                                                          3. A Digna Magistrada do Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, em 22/3/2010, defendendo a improcedência do mesmo e apresentando as seguintes conclusões:                                                             1. A condenação pela prática de um crime no decurso do período de suspensão da execução da pena implica a revogação da suspensão se a a prática desse crime infirmar definitivamente o juízo de prognose favorável que esteve na base da referida suspensão;

2. No caso em apreço, o arguido, em pleno período de suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado, cometeu 3 crimes de idêntica natureza, ou seja, condução de veículo a motor sem habilitação legal, demonstrando, assim, que as finalidades pretendidas alcançar com tal suspensão não foram atingidas, tendo sido definitivamente comprometidas;

3. Assim sendo, deve o arguido cumprir a pena de prisão efectiva em que foi condenado nos presentes autos, um ano, não sendo possível substituir a referida pena de prisão por trabalho a favor da comunidade ou qualquer outra pena substitutiva, uma vez revogada a suspensão da execução da pena de prisão.

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         4. O recurso foi, em 23/3/2010, admitido.                                Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal da Relação de Coimbra, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, em 13/4/2010, emitiu douto parecer no qual defendeu a improcedência do recurso, tendo em conta, no essencial, que “o arguido tem mantido um comportamento de repetido desrespeito pelas elementares regras de convivência em sociedade, no que concerne à condução de veículos”.

         Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o respectivo direito de resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

                                                        ****

         B – O despacho ora em crise é o seguinte:

O arguido P... foi julgado e condenado, nos presentes autos, por sentença transitada em julgado em 14/3/2005, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 1 ano de prisão. Tal pena viu a sua execução suspensa por 3 anos.

Assim, o período de suspensão a considerar é de 14/3/2005 a 14/3/2008.

Entretanto, verificou-se – Cfr. fls. 56/62 – que o arguido foi julgado e condenado, por crime de condução sem habilitação legal, praticado em 8/8/2005, na pena de 7 meses de prisão – Processo Comum Singular n.º …/05.5GBSVV que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Sever do Vouga.

Verificou-se, também (fls. 94/110), que o arguido foi julgado e condenado, pela prática de dois crimes de condução sem habilitação legal, praticados em 29/5/2005 e 4/6/2005, na pena de 17 meses de prisão, suspensa por 3 anos e 9 meses – Processo Comum Singular n.º …/05.8GAVZL que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vouzela.

Os crimes em causa foram praticados no período da suspensão da execução da pena aplicada nos presentes autos.

Aqui cabe fazer referência à nova redacção do artigo 50.º, do C. Penal, em vigor desde 15/9/2007, e introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, na medida em que, por força do disposto no artigo 2.º, n.º 4, do C. Penal, deve o arguido beneficiar da aplicação do regime mais favorável.

Ora, considerando o disposto no artigo 50.º, n.º 5, do C. Penal, “O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão”.

O mesmo artigo do Código Penal, antes da aludida revisão, não estabelecia esta restrição, razão pela qual, na sentença proferida nos presentes autos, o período de suspensão ultrapassa largamente a duração da pena aplicada.

Em resumo, à luz do actual regime legal, a pena do arguido só poderia estar suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, isto é, entre 14/3/2005 e 14/3/2006.

Os crimes praticados pelo arguido foram-no em 8/8/2005, 29/5/2005 e 4/6/2005, pelo que não há que fazer qualquer comparação de regimes, pois, mesmo à luz do novo regime, o arguido praticou os ilícitos em causa no período de suspensão.

Atento o disposto no artigo 56.º, n.º 1, al. b), do C. Penal, e considerando que os crimes praticados posteriormente são relativos ao mesmo tipo legal de crime em causa nos presentes autos, tal revela que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto constantes da sentença proferida nos presentes autos não foram suficientes para afastar o arguido da prática de novos ilícitos.

Por outro lado, ouvido o arguido em declarações, não deu qualquer explicação que mitigasse a gravidade da violação das suas obrigações decorrentes do facto de se encontrar a decorrer o período de suspensão da execução da pena de prisão quando praticou os referidos crimes.

Finalmente, o relatório do IRS, a fls. 114, aponta para uma situação familiar, económica e laboral muito instável.

Nos termos do disposto no artigo 56.º, n.º 2, do C. Penal, revogo a suspensão da execução da pena em que o arguido foi condenado nos presentes autos, determinando o seu cumprimento.

Assim, deverá o arguido cumprir a pena de 1 ano de prisão.

Notifique.

Boletins ao Registo Criminal.    

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         C - Cumpre apreciar e decidir:

         De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

         São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

         A questão a apreciar é apenas a seguinte:

- Saber se existe omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, decorrente da falta de apreciação concreta e de fundamentação específica da eventualidade de aplicação de uma pena substitutiva.

                                                        ****

         Antes de apreciar a questão suscitada no recurso, impõe-se dizer algo sobre o instituto jurídico aqui em causa.

          Como todos sabem, a suspensão da execução da pena de prisão não representa um simples incidente, ou mesmo só uma modificação, da execução da pena, mas uma pena autónoma e, portanto, na sua acepção mais estrita e exigente, uma pena de substituição.

         Em bom rigor, esta pena constitui uma das opções, vinculativa para o julgador, quando se verifiquem os necessários pressupostos, que permite evitar a aplicação de uma pena de prisão efectiva, sendo verdade que esta surge sempre, no nosso ordenamento jurídico-penal, como a ultima ratio, reservada para os casos extremos em que a nenhuma das penas alternativas ou de substituição aplicáveis se reconheça aptidão para realizar as finalidades da punição.

         Em síntese, podemos afirmar, sem receio de errar, que a finalidade essencial visada pelo instituto da suspensão é a ressocialização do agente, na vertente da prevenção da reincidência.

                                                        ****

         A questão a decidir, em boa verdade, prende-se com a violação do artigo 56.º. do Código Penal, em concreto, no que diz respeito à sua alínea b).                                                                                                         Dispõe o artigo 56.º. do Código Penal:                                                       “1 - A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que no seu decurso o condenado:                                                                    a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social; ou                       b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.                                                                                                       2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado”.                                                                                                   Desde já, é de assentar que a revogação não é automática - No sentido da não revogação automática da suspensão, ver acórdão da Relação do Porto, de 11-01-2006 [Des. Isabel Pais Martins] processo 0544153, e acórdão da Relação de Coimbra, de 07.05.2003 [Des. João Trindade], processo 612/03, in www.dgsi.pt.                                                                                     Na verdade, estando em causa a privação da liberdade do arguido, o Tribunal deve ser cauteloso e ponderado antes de tomar qualquer decisão, impondo-se como a lei manda, ouvir sempre o arguido e proceder à recolha de prova.

         Afastado o efeito automático que a condenação por crime doloso, no período de suspensão, tinha sobre a revogação da suspensão da pena [modelo vigente até ao Código Penal de 1995], o tribunal não pode precipitar uma decisão tão gravosa como é a reclusão prisional sem avaliar, em concreto, as circunstâncias em que ocorreu a prática do novo crime e a actual condição de vida do arguido, de forma a aquilatar se as finalidades que justificaram a suspensão da execução da pena ainda podem ser alcançadas, ou foram definitivamente desbaratadas.         

São portanto, dois os pressupostos objectivos condicionadores da revogação da suspensão:                                                                                      a) o cometimento de novo crime;                                                        b) a revelação de que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, nem podem mais ser alcançadas.        

                                                        ****

É evidente que o primeiro pressuposto do artigo 56.º, nº 1, al. b), do C. Penal, se encontra presente nos autos.                                                                           No entanto, é necessário verificar se, na realidade, as finalidades que estiveram na base da suspensão ainda podem ser alcançadas.                              A suspensão da execução da pena de prisão tem o seu próprio conteúdo político-criminal.                                                                                           Com o instituto da suspensão da pena, a lei visa, não é demais relembrar, essencialmente, o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes – artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal: é a prognose favorável de socialização e de “prevenção da reincidência” que determina a suspensão da execução da pena, e só a demonstração da sua posterior negação ou dissipação poderá determinar a revogação da pena.                                                            

                Ora, as decisões judiciais devem ser fundamentadas – artigos 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.                                                                                                                                                        No caso concreto, entendemos que o despacho recorrido não cumpre, em substância, o dever de fundamentação pois não relaciona factos entre si e com a personalidade do arguido, nem avalia o impacto que as novas condenações tiveram sobre as finalidades que haviam justificado a suspensão da execução da pena.                                                                                        Está em causa saber – uma vez mais o dizemos – se os crimes cometidos contradizem as finalidades da suspensão, tornando-as inalcançáveis; ou seja, saber se a revogação é a única forma e a última [ultima ratio] de lograr a consecução das finalidades da punição.                                                                    A não revogação automática implica algo mais que uma simples notificação ao arguido para justificar o não cumprimento das obrigações que lhe foram impostas ou a formulação directa, em sede de auto de declarações, de meras perguntas sobre a sua situação familiar e profissional.                                                                                                     É necessário que o juiz reúna os elementos necessários para tomar uma decisão fundamentada: “tal constatação passa, necessariamente, pela indagação dos motivos que conduziram o condenado a delinquir novamente, indagação que, acentue-se, deve ser cuidada e rigorosa, atenta a ultima ratio da sanção penal que daí pode advir, temos por certo também que o tribunal pode e deve, em princípio, proceder oficiosamente às diligências necessárias tendo em vista a demonstração de que as finalidades que subjazem à suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, isto é, de que aquelas finalidades se encontram comprometidas” – acórdão da Relação de Coimbra de 30-04-2003 [Relator: Oliveira Mendes], Colectânea de Jurisprudência, Tomo II, p. 52.                                                                                                              

De facto, o artigo 495.º, do Código de Processo Penal, trata, de forma genérica, do apuramento das causas de revogação da pena de suspensão da execução da prisão [artigo 56.º, do Código Penal], englobando não só os casos de em que a suspensão está subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, como também dos casos em que vem acompanhada de regime de prova, ou em que a revogação pode resultar do cometimento de novo crime [ver Actas da Comissão Revisora do Código Penal de 1982, n.º 6, 8 e 14].                               

Assim sendo, a relação temporal entre a data da suspensão da execução da pena e a data em que foram praticados os novos factos, a relação entre os tipos de crime praticados, a verificação de especiais circunstâncias agravativas ou atenuativas, a gravidade e a forma de execução dos factos ou outras referências específicas da nova condenação podem justificar, em casos de vincada expressão e depois de confrontada a argumentação do arguido [caso a haja], a decisão de revogar ou não a suspensão da pena.                               

Mais, a conjugação dos elementos da condenação suspensa com os elementos que resultam da condenação posterior não é suficiente, só por si, para determinar se as finalidades da suspensão se acham definitivamente comprometidas, pelo que, o tribunal, oficiosamente, lançará mão de meios expeditos que lhe forneçam uma informação fidedigna sobre as condições em que foi cometido o novo crime e sobre a situação actual do arguido com vista a fundamentar a decisão.                                                                                                                                                    Ora, o despacho recorrido não contemplou estas preocupações, omitindo a apreciação crítica das condições que pressupõem a legitimação da decisão proferida.                                                                                                                 Na verdade, após a referência à disposição legal pertinente e ao facto de o arguido ter cometido, durante o período da suspensão da pena, outros crimes, a decisão refere apenas:                                                                        “Atento o disposto no artigo 56.º, n.º 1, al. b), do C. Penal, e considerando que os crimes praticados posteriormente são relativos ao mesmo tipo legal de crime em causa nos presentes autos, tal revela que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto constantes da sentença proferida nos presentes autos não foram suficientes para afastar o arguido da prática de novos ilícitos.

Por outro lado, ouvido o arguido em declarações, não deu qualquer explicação que mitigasse a gravidade da violação das suas obrigações decorrentes do facto de se encontrar a decorrer o período de suspensão da execução da pena de prisão quando praticou os referidos crimes.

Finalmente, o relatório do IRS, a fls. 114, aponta para uma situação familiar, económica e laboral muito instável.”

E, depois, conclui pela revogação da suspensão da execução da pena.                

Não há dúvida de que tribunal observou o contraditório, já que o arguido, em 27/5/2008, foi ouvido em declarações, conforme acta de fls. 127 e 128.

         Todavia, dessa acta, após ser referido que o arguido desejava prestar declarações, consta que aquele, confrontado com a sua situação processual, disse apenas o seguinte:

         “Que, efectivamente, foi condenado no Tribunal de Vouzela também por condução sem carta, mas que não tem qualquer outro pendente.

         Está a trabalhar como madeireiro, mas pretende ir trabalhar para a construção civil.

         Ganha mensalmente cerca de € 600,00.

         Vive com uma companheira que é doméstica e que tem uma filha de 6 anos de idade. Está actualmente grávida.

         Significa isto que o Tribunal não cuidou, como devia, de perguntar ao arguido o mais importante para o caso, ou seja, saber os motivos que estiveram na base da sua conduta reiterada de condução sem habilitação legal, durante um determinado período da sua vida (nada na acta aponta que este assunto tenha sido objecto das declarações).                                         Importava, sobremaneira, aquando da aludida tomada de declarações, perceber o quadro em que a recorrente voltou a delinquir, e averiguar a evolução das suas condições de vida até à altura, antes de assumir uma decisão sobre a revogação da suspensão da pena de prisão.

         Designadamente, teria sido fundamental ouvir o arguido explicar o motivo pelo qual praticou os crimes em causa num período bem curto – 12/2/2005 (presentes autos), 29/5/2005 e 4/6/2005 (comarca de Vouzela) e 8/8/2005 (comarca de Sever do Vouga).

         Além disso, teria sido essencial perceber qual o peso que a pena de 7 meses de prisão (processo da comarca de Sever do Vouga) teve na personalidade do arguido (a referida pena foi declarada extinta, pelo cumprimento, em 29/3/2007 – ver C.R.C., a fls. 121).

         Por outro lado, é preciso ter presente que, em 11/4/2007, foi proferida sentença (processo da comarca de Vouzela), na qual o arguido foi condenado a 17 meses de prisão, com execução suspensa por 3 anos e 9 meses, sendo certo que nada consta dos autos, desde então, em desabono do ora recorrente.

         Isto significa que ao arguido, pouco após ter saído de estabelecimento prisional, foi dada oportunidade de continuar em liberdade.                                                                                                        Há que haver coerência nas decisões judiciais.                           

O despacho recorrido não faz qualquer alusão ao acabado de descrever, não sendo entendido como revoga uma suspensão da execução da pena, omitindo que, na sequência de factos nos quais se fundamenta, já um tribunal decidira conceder uma oportunidade mais ao arguido, pouco tempo depois de ele ter abandonado a prisão.

         Acresce que, a decisão recorrida conclui que “o relatório do IRS, a fls. 114, aponta para uma situação familiar económica e laboral muito instável.

         Porém, do tal relatório, consta o seguinte:

         “P...encontra-se a residir com a mãe, na morada constante dos autos, em casa de um particular, de quem aquela cuida e que lhes cedeu alojamento.

         Tem trabalhado pontualmente como madeireiro, actividade que contudo não supre as suas necessidades.

         Dada a precária situação económica em que o arguido vive com a mãe, as suas expectativas de melhoria de vida prendem-se com a possibilidade de emigrar juntamente como o pai para França, país em que aquele trabalha há algum tempo.

         No meio social parece beneficiar actualmente de uma imagem positiva, nada nos tendo sido referido em seu desabono.

         Neste contexto, pensamos ser benéfico para o arguido poder acompanhar o progenitor para França, donde se prevê que chegue em Agosto próximo.

         Não se vislumbra algo de negativo neste relatório.                              O arguido trabalha, tem apoio familiar, tem uma imagem positiva. Por tudo isto, temos de concluir que o despacho recorrido olhou apenas ao tipo de ilícito cometido e à gravidade comum à reiteração criminosa, com recurso a uma fórmula tabelar de vocação universal, acabando, em resumo, por recuperar o efeito automático da condenação que o legislador definitivamente recusou.                                             Estamos, portanto, perante a preterição da “recolha de prova”, considerada como necessária, estabelecida pelo artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo, e a insuficiência de fundamentação individualizada do despacho.

         Trata-se de uma irregularidade processual —inobservância da lei processual não integrada no elenco das nulidades [artigos 118.º, n.º 1, 119.º, 120.º, do Código de Processo Penal] — que afecta o valor do acto praticado e, como tal, pode ser conhecida oficiosamente em sede de recurso [artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal] - ver, neste sentido,  acórdão da Relação de Évora, de 06.07.2004 [Des. Sénio Alves], processo 1270/04, em www.dgsi.pt.

                                                        ****

         Acresce a tudo isto uma circunstância que não pode ser escamoteada por este Tribunal da Relação.

         O despacho em crise foi proferido em 13/6/2008, ou seja, há quase dois anos.

         Por estranho que possa parecer, só em 23/3/2010, o recurso foi admitido.

         Tal decorreu, é certo, de actos processuais relativos à concessão de apoio judiciário ao ora recorrente que vieram atrasar a subida do processo para lá do razoável…

         Ora, se, mesmo que o processo tivesse subido a este tribunal superior logo após a interposição do recurso, já se justificaria, como vimos, a necessidade de nova recolha de prova, por maioria de razão, hoje, decorridos cerca de dois anos após a decisão recorrida, tal é imposto com maior acuidade.

         De facto, seria, no mínimo, insensato estar a decidir sobre a ida, ou não, de um arguido para a prisão, por força de uma revogação de suspensão da execução de uma pena, com base em factos recolhidos há mais de dois anos.

         Estamos perante um período considerável, justificando-se, pois, por isso, ainda mais, uma recolha de prova actualizada.

         Pelo exposto, fica prejudicado o conhecimento da questão suscitada no recurso.                                                                                                                                               ****

D - Decisão:

         Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em declarar irregular o despacho que revogou a suspensão da execução da pena, determinando-se, em consequência, que o tribunal recolhido proceda a nova recolha de prova tendente a averiguar se as finalidades que estavam na base da suspensão da execução da pena não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

         Sem custas.

                                                           ****
Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Coimbra, 26 de Maio de 2010

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                                   (José Eduardo Martins)

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                                                 (Isabel Valongo)