Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
212/11.1T2AVR-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
INSOLVÊNCIA
ACÇÃO
VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
PRAZO
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA, JUÍZO DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 146º Nº 2 AL.B) DO CIRE, NA REDACÇÃO DA LEI Nº 16/2012, DE 20 DE ABRIL
Sumário: I. O prazo previsto na al. b) do n.º 2 do art.º 146.º do CIRE, na redacção introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, é aplicável às acções instauradas após a sua entrada em vigor, ainda que o trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência tenha ocorrido no domínio da versão anterior, sendo computado nos termos do n.º 1 do art.º 297.º do CC.

II. A referida norma, assim interpretada, não padece de inconstitucionalidade.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
Na Comarca do Baixo Vouga, juízo de comércio de Aveiro,
A... e mulher, B..., casados sob o regime de comunhão de adquiridos, residentes no (...), em Sever do Vouga, vieram, ao abrigo do disposto no art.º 146.º do CIRE e por apenso aos autos de insolvência em que é insolvente C..., Lda., instaurar acção especial de verificação ulterior de créditos contra:
- Massa insolvente da sociedade C..., Lda.;
- Os credores da massa insolvente da mencionada sociedade, representados pelo Sr. Administrador da Insolvência;
- Insolvente “ C..., Lda.”, tendo em vista o reconhecimento do crédito de que são titulares, no montante de € 361 500,00 (trezentos de sessenta e um mil e quinhentos euros), e sua consequente graduação no lugar que lhe competir.
Em fundamento alegaram, em síntese, terem celebrado com a insolvente C..., imobiliária e construções, Lda., contrato de permuta formalizado por escritura pública outorgada em 20 de Maio de 2004, nos termos do qual transferiram para esta o direito de propriedade do prédio urbano, composto de casa e logradouro, sito na (...), freguesia e concelho de Sever do Vouga, inscrito na matriz sob o artigo (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sever do Vouga sob o número (...), tendo-se esta obrigado a ceder aos demandantes, em contrapartida, diversas fracções autónomas a constituir no edifício cuja construção iria levar a cabo no prédio permutado e cujo valor foi então fixado em € 361 500,00.
No cumprimento do identificado contrato os AA procederam à entrega à sociedade C..., Lda. do prédio permutado, tendo esta, a partir de então, agido como sua proprietária, realizando todas as diligências necessárias à execução do projecto de arquitectura previamente aprovado na Câmara Municipal de Sever do Vouga e assim concluir o empreendimento projectado. Em contrapartida, e apesar dos trabalhos não se encontrarem concluídos, a mesma sociedade entregou aos AA as chaves das fracções que, nos termos do aludido negócio, lhes caberiam, o que ocorreu em Janeiro de 2008, passando estes, a partir de então, a comportar-se como donos, procedendo à colocação, a expensas suas, dos equipamentos em falta.
Sucede que, tendo a sociedade C..., Lda. sido declarada insolvente por sentença proferida em 31/1/2012 e transitada em julgado em 7/3/2012, o prédio urbano permutado foi alvo de apreensão nos respectivos autos de insolvência. À data da declaração de insolvência o empreendimento não se encontrava ainda executado, faltando cerca de 10% da obra para que esta pudesse ser considerada concluída, e, consequentemente, pudessem ser obtidas as respectivas licenças administrativas finais tendo em vista, nomeadamente, a constituição da propriedade horizontal do edifício e a emissão das licenças de utilização para cada uma das facções.
Atenta a declaração de insolvência, verifica-se incumprimento do negócio celebrado com os autores, os quais, concluem, são deste modo credores da sociedade insolvente do valor fixado ao prédio, ou seja, 361.500,00 € (trezentos e sessenta e um mil e quinhentos euros), que agora reclamam, acrescidos dos respectivos juros de mora desde a data da declaração de insolvência.
Mais alegaram que na sentença que decretou a insolvência da “ C..., Lda.” foi fixado o prazo de 30 (trinta) dias para a reclamação de créditos, o qual já decorreu sem que os demandantes dele tivessem tomado atempado conhecimento. Daí a propositura da presente acção de verificação ulterior de créditos, à qual deverá ser aplicado o Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, com a última alteração legislativa publicada pelo Decreto-Lei 185/2009, de 12 de Agosto.
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Citados os RR, contestou a credora C..., tendo invocado, para o que aqui releva, a intempestividade da acção proposta, por lhe ser aplicável o prazo estabelecido na al. b) do n.º 2 do art.º 146.º do CIRE, na redacção introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, conforme decorre do disposto no art.º 297.º do Código Civil.
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Os AA responderam à excepção invocada, pugnando pela sua improcedência, após o que foi proferido despacho que, no conhecimento da mesma, julgou caducado o direito dos AA, absolvendo os RR do pedido formulado.
Irresignados, apelaram os AA da decisão proferida e, tendo apresentado as suas alegações, remataram-nas com as seguintes conclusões:
1.ª- A sentença de declaração de insolvência proferida nos presentes autos transitou em julgado em 07/03/2012, no âmbito do Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, com as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei 185/2009, de 18 de Agosto, tendo sido nessa altura que se constituiu na esfera jurídica nos Autores o direito de reclamação do seu crédito.
2.ª- Na esteira do Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, com as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei 185/2009, de 18 de Agosto, o prazo de caducidade da acção de verificação ulterior de créditos era de 1 (um) ano.
3.ª- Com o devido respeito, tendo no caso sub judice o trânsito em julgado ocorrido na vigência do Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, com as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei 185/2009, de 18 de Agosto, também terá de se entender, salvo o devido respeito por opinião contrária, que é no âmbito da mesma legislação que se constituiu o direito de os Autores, e qualquer outro credor da sociedade insolvente, no prazo de um ano intentarem a acção de verificação ulterior dos seus créditos.
4.ª- Estando aqui em causa um prazo de caducidade, dúvidas não restam que estamos perante uma questão de direito substantivo, e não meramente perante uma questão de direito adjectivo ou processual – tendo vindo a ser esse o entendimento unânime, quer da jurisprudência, quer da doutrina –, ao contrário do que foi decido pelo tribunal “a quo”.
Senão vejamos,
5.ª- O trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência proferida nos presentes autos constituiu na esfera jurídica dos ora recorrentes uma situação ou posição jurídica de garantia, gerada no âmbito do Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, com as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei 185/2009, de 18 de Agosto, relativamente a qual os ora recorrentes, ou qualquer cidadão, têm, e sempre tiveram, a legítima expectativa de não serem perturbados pelos novos preceitos jurídicos.
6.ª- Ora, no nosso modesto entendimento, e salvo o devido respeito por opinião contrária, com o trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência foi criado na esfera jurídica dos Autores um direito subjectivo, ou seja, um “poder conferido pela ordem jurídica a um sujeito para tutela de um seu interesse juridicamente relevante, isto é, merecedor de tutela de direito.”
7.ª- Assim, a questão prende-se em saber se a nova normação jurídica, entenda-se, a Lei 16/2012, de 29 de Abril, “tocou de forma desproporcionada, desadequada e desnecessariamente dimensões importantes nos direitos fundamentais, ou se o legislador teve o cuidado de prever uma disposição transitória justa para as situações em causa.”
8.ª- Se atentarmos ao facto de o escopo do processo de insolvência ser a protecção dos credores, não é indiferente o exercício de um direito subjectivo como aquele que se gera na esfera jurídica dos ora recorrentes, e dos demais cidadãos, mormente a reclamação dos seus créditos, pois é precisamente para assegurar o exercício desse direito que o processo de insolvência existe.
9.ª- Desta feita, não podem os Autores conformar-se com a decisão proferida, por a mesma, no nosso entender, e com o devido respeito, que é muito, ser violadora do mais elementar e primordial direito no âmbito do processo de insolvência, sem o respeito do qual se verifica um completo esvaziamento do seu desígnio.
10.ª- É verdade que a nova lei, a Lei 16/2012, de 29 de Abril, não consagra uma disposição transitória, mas tal facto, atento o que fica dito, e ainda o princípio constitucional da protecção da confiança e da segurança jurídica, elementos essenciais do princípio do estado de direito, é violador da lei constitucional, violando os mencionados princípios constitucionais.
11.ª- Acresce que também é violado, no nosso entendimento, o princípio da igualdade, porquanto não gera a mesma igualdade entre credores, ou seja, direitos que foram adquiridos por todos os credores da sociedade insolvente à luz de uma determinada lei (entenda-se Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, com as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei 185/2009, de 18 de Agosto), têm que ser respeitados pelas novas leis que venham a substituí-la, sob pena de todos adquirirem o mesmo direito na vigência de uma lei, mas nem todos o podem exercer da mesma maneira em virtude do surgimento de uma nova lei.
12.ª- Somos do entender que por imperativo de justiça, no caso aqui em apreço, e porque se trata de processo pendente à data da entrada da nova lei, e estando ainda em causa uma questão de direito substantivo (exercício de um direito subjectivo), e ainda o propósito do próprio processo de insolvência (defesa dos interesses dos credores), que se deveria ter considerado aplicável o Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, com as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei 185/2009, de 18 de Agosto, sendo aplicável, consequentemente, o prazo de 1 (um) ano para o exercício do direito de propor a acção de verificação ulterior de créditos.
13.ª- Respeitando-se, assim, os princípios constitucionais de proibição da retroactividade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, o princípio da igualdade e ainda o princípio da segurança e protecção jurídica.
14.ª- Pelo que fica exposto entendemos que andou mal o tribunal “a quo”, com o devido respeito por opinião contrária, pois ao decidir como decidiu atropelou um direito adquirido pelos Autores no âmbito do Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, com as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei 185/2009, de 18 de Agosto, legislação em vigor à data de declaração de insolvência nos presentes autos.
15.ª- Tendo o direito dos Autores sido adquirido no âmbito de uma legislação e em sede de um processo pendente à data da entrada em vigor da nova lei, esta nova lei, não tendo qualquer disposição transitória que regula a sua aplicação no tempo, não pode ser aplicada a situações jurídicas das quais resultaram direitos e que por sua vez produzem os seus efeitos jurídicos, sob pena de, ao fazê-lo, estar a violar um dos princípios basilares de direito constitucional, designadamente o princípio da proibição da retroactividade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias.
16.ª- Sendo que somos do entendimento, com o devido respeito que é muito, que o tribunal “a quo” ao decidir como decidiu violou um direito constituído e adquirido pelos ora recorrentes, e ao aplicar a nova lei a direitos já anteriormente constituídos, aplicou a nova lei retroactivamente.
17.ª- Acresce que, a aplicação da nova lei (Lei 16/2012, de 29 de Abril) operada pelo tribunal “a quo” é modificativa e até mesmo extintiva da situação jurídica gerada para os ora recorrentes no âmbito da legislação anterior (Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, com as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei 185/2009, de 18 de Agosto, e em vigor à data da declaração de insolvência).
18.ª- Pelo que aplicou retroactivamente a nova lei, pois fez retroagir os efeitos do novo diploma a direitos que se formaram na vigência da lei antiga, o que é constitucionalmente proibido porque violador de direitos adquiridos, e violador de normas substantivas do artigo 12.º, n.º 1 do Código de Civil.
19.ª- O Tribunal “a quo” ignorou completamente o direito que está aqui em causa, bem como o escopo do próprio processo de insolência, ignorando a questão substantiva do caso “sub judice”, atropelando o direito substantivo dos ora recorrentes que se gerou no seio de uma legislação anterior e que devia ter sido respeitada, e não o foi.
20.ª- Realçamos que a Jurisprudência do Tribunal Constitucional vem entendendo que o Estado de direito democrático postula “uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”, razão pela qual “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm que respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá que ser entendida como não consentida pela lei básica”. – sublinhado e bold nosso.
21.ª- Na mesma esteira dispõe ainda a mesma jurisprudência que “Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrente do princípio do estado de Direito Democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a licitude (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas, as realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam “tocadas” relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. VI – Um tal equilíbrio será posto em causa nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, na relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico, que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos, impor-se-á que actue o princípio da protecção e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de Direito Democrático por forma a que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança que todos têm de respeitar.” – sublinhado e bold nosso.
22.ª- Destarte, e atenta a jurisprudência supra mencionada, consideramos que o entendimento legal extraído da decisão ora em crise de fazer retroagir os efeitos jurídicos da Lei 16/2012, de 29 de Abril, modificando o exercício de um direito adquirido pelos ora recorrentes no âmbito do Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, com as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei 185/2009, de 18 de Agosto, ofende, de modo ostensivamente inaceitável e intolerável, claramente o princípio da confiança jurídica e da confiança dos cidadãos e da comunidade que hão-de poder depositar na ordem jurídica que os rege ao tempo em que o processo de insolvência inicia os seus trâmites processuais nos tribunais.
23.ª- A aplicação retroactiva da nova lei (Lei 16/2012, de 29 de Abril) nos termos supra expostos, produz assim, no nosso modesto entendimento, e com o devido respeito por opinião diversa, uma alteração jurídica anteriormente constituída, inadmissível, intolerável, arbitrária e demasiado onerosa para o qual os recorrentes ou a comunidade não podiam contar, tanto mais que quer a doutrina, quer a jurisprudência, sustentam ser ilegal tal interpretação retroactiva da lei, e que foi seguida na decisão ora recorrida.
24.ª- No nosso entender o legislador da nova lei (Lei 16/2012, de 29 de Abril) deveria ter consagrado um regime transitório disciplinando de forma proporcionada, adequada e necessária as situações, posições ou relações jurídicas relacionadas com a lei nova e com a lei antiga.
25.ª- Não existindo essa previsão legal, como não existe na nova lei em apreço, somos do entendimento de ser de se aplicar o artigo 12.º, n.º 1 do Código Civil, porquanto estamos em face de uma questão substantiva como melhor se deixou descrito e explicitado supra.
26.ª- Consagra o artigo 12.º, n.º 1 do Código Civil que “A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina regular.” – sublinhado nosso.
27.ª- Este preceito legal estabelece o princípio geral em direito civil, cujo principal objectivo é proteger os direitos e efeitos que se hajam constituído no âmbito da lei antiga, e que não pode ser simplesmente ignorado sob pena de completo atropelo de um dos princípios basilares do nosso sistema jurídico.
28.ª- Por outras palavras, do referido preceito legal resulta o princípio da não retroactividade da lei, o qual tem como escopo a regência da lei ad futurum respeitando os factos passados, não atingindo situações que se devem considerar consumadas.
29.ª- Nos presentes autos, dúvidas não restam de que estamos perante uma situação jurídica consumada, porquanto à data do trânsito em julgado da sentença de insolvência encontrava-se em vigor o Decreto-Lei 185/2009, de 12/08, no âmbito do qual se gera o direito dos ora recorrentes proporem a acção de verificação ulterior de créditos, tendo para o efeito o prazo de um ano, sendo este um prazo de caducidade, sendo esta (caducidade) uma figura de direito substantivo.
30.ª- Direito substantivo que se constituiu na esfera jurídica dos credores, e que simplesmente não pode ser atropelado ou ignorado mediante a aplicação retroactiva de uma nova lei, sob pena de completa desvirtulização do processo de insolvência e dos seus princípios basilares.
Com os aludidos fundamentos, pretende a revogação da decisão proferida e sua substituição por outra que tome em consideração o alegado.
Contra alegou a credora C..., pugnando pela manutenção do decidido.
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Assente que pelas conclusões se define e delimita o objecto do recurso, são questões a decidir:
i. determinar a natureza do prazo consagrado no art.º 146.º, n.º 1, al. b) do CIRE e decidir se a decisão apelada violou, por indevida inaplicação, o art.º 12.º do Código Civil;
ii. indagar se o entendimento perfilhado na decisão apelada, considerando ser aplicável a lei nova aos processos pendentes, efectuando-se a contagem do prazo nos termos do art.º 297.º do Código Civil, se revela violador dos princípios constitucionais da igualdade, da proibição da aplicação retroactiva das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, a par dos princípios da confiança e da segurança jurídicas, e ainda do acesso ao direito.
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II Fundamentação
De facto
Tal como considerado na decisão apelada, à questão a decidir importam os seguintes factos:
1. A presente acção de verificação ulterior de créditos foi intentada através de petição inicial remetida a juízo a 4/3/2013.
2. A sentença que declarou a insolvência de C..., Lda. foi proferida a 31/1/2012 e transitou em julgado a 7/3/2012.
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De Direito
i. Tendo presente os factos supra elencados, a questão colocada nos autos prende-se com a aplicabilidade aos processos pendentes do novo prazo introduzido pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, com início de vigência no dia 20 de Maio (cf. art.º 6.º) e seu modo de contagem.
“Prima facie”, cumpre precisar que, contrariamente àquilo que, sem rigor, os apelantes afirmam, não tomou a Mm.ª juíza posição expressa quanto à natureza -adjectiva ou substantiva do prazo aqui em causa- antes procedendo à aplicação do disposto no art.º 297.º do Código Civil, por se tratar de disposição que especificamente regulamenta a questão da contagem dos prazos, sem distinção, no caso de sucessão de leis. E tendo para nós que ao prazo consagrado no art.º 146.º, n.º 2, al. b) do CIRE se aplicam as regras atinentes à caducidade (cf. art.º 298.º, n.º 2), é aplicável à sua contagem o sobredito preceito[1].
De acordo com o citado art.º 146.º, n.º 2, al. b) do CIRE, na redacção em vigor à data da declaração de insolvência, a acção de verificação ulterior de créditos poderia ser intentada no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença declarativa da insolvência, ressalvados os casos de constituição superveniente do crédito. O referido prazo, mercê das alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2012, de 20-4, em vigor desde o dia 20 de Maio, foi reduzido para seis meses.
Adquirido nos autos que o legislador de 2012 não estabeleceu quaisquer regras transitórias, defendem os apelantes que ao caso é de aplicar o princípio geral consagrado no art.º 12.º, o que obstaria à aplicação da lei nova.
Nos termos do convocado preceito legal, a lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular (vide n.º 1). Estão aqui em causa os simples factos e, quanto a eles, na falta de disposição contrária, a lei só se aplica aos factos futuros, ou seja, aqueles que se verificam após a sua entrada em vigor. Diversa é a previsão do n.º 2, aqui se contemplando as relações jurídicas emergentes desses factos, caso em que a lei nova se aplica, não só às relações jurídicas constituídas na sua vigência, mas ainda àquelas que, constituídas em data anterior, se mantenham à data da entrada em vigor da lei nova, isto no pressuposto de que ao seu conteúdo é indiferente o facto que esteve na sua origem[2].
Mau grado a existência de um assim proclamado princípio geral no domínio da aplicação das leis no tempo, afigura-se que o mesmo não sobreleva sobre o regime consagrado no art.º 297.º, disposição legal que rege especificamente para as situações em que se verifica alteração de prazos, e que nos termos abrangentes do seu n.º 1 estatui que “A lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir de entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar”.
Face ao assim preceituado, no caso da lei nova consagrar um prazo mais curto, é este o aplicável, contando-se da data da sua entrada em vigor, e só assim não sucederá se o prazo mais longo previsto na lei cessante terminar primeiro, caso em que será este o prazo relevante.
Aplicando o regime aqui consagrado ao caso dos autos temos que, pela aplicação da lei em vigor à data do trânsito da sentença que decretou a insolvência da sociedade ré, o prazo de 1 ano completava-se no dia 7 de Março de 2013, ao passo que pela aplicação da lei nova tal prazo findou em 20 de Novembro de 2012, donde ser este o aplicável. E, tal como se considerou na decisão apelada, não vemos razão para que a citada disposição legal não seja aplicável ao caso dos autos, uma vez que, como se disse, rege directamente sobre a alteração dos prazos em caso de sucessão de leis, havendo que se considerar lex specialis face ao art. 12.º.
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ii. Assim tendo concluído pela aplicabilidade do novo prazo, computado nos termos do art.º 297.º do CC, nos termos e com os efeitos antecedentemente expostos, cabe agora decidir se será de recusar a aplicação da lei nova ao caso em apreço, por daí resultar intolerável infracção dos princípios constitucionalmente consagrados da igualdade, proibição da aplicação retroactiva das leis que restringem direitos, liberdades e garantias, acesso ao direito e ainda da segurança e protecção jurídicas, conforme invocam os apelantes, sem prejuízo de se terem dispensado de identificar quais os preceitos constitucionais que assim teriam resultado afectados.
Antes de mais, uma precisão se impõe fazer. Os apelantes insistem no argumento de que o direito a reclamar o crédito se constituiu na sua esfera jurídica com a sentença que declarou a insolvência da devedora[3], pelo que a lei nova nunca lhes poderia ser aplicável retroactivamente. Sucede, porém, que a lei nova, tendo estabelecido um prazo diferente -mais curto, é certo- para o exercício do direito, não incidiu propriamente sobre a sua existência ou conteúdo, que se mantêm.
Por outro lado, a opção pela imediata aplicação da lei encontra justificação na particular natureza do processo de insolvência, especificidade naturalmente consagrada tendo em atenção os interesses em jogo. Com efeito, cabe relembrar que no processo insolvencial estão em causa, não só os interesses conflituantes do insolvente e seus credores, mas também dos credores entre si, não devendo ainda ignorar-se o interesse dos terceiros em geral na normal prossecução da sua actividade económica, sem a perturbação causada por operações falimentares. Da ponderação destes diversos interesses resulta o carácter primordial do factor tempo, sendo a celeridade do procedimento falimentar uma preocupação sempre presente no espírito do legislador, cujas opções são norteadas pelo objectivo de conferir a maior eficácia possível a um processo que se dirige essencialmente à satisfação dos interesses dos credores - mas, dizemos nós, de todos os credores.
Manifestação e concretização da referida preocupação é, sem dúvida, a atribuição de carácter urgente ao processo de insolvência (que é também atributo do novo processo especial de revitalização) expressa no art.º 9.º do CIRE, nesse âmbito se inscrevendo igualmente a redução do prazo previsto para a acção a instaurar tendo em vista a verificação ulterior de créditos, agora fixado em 6 meses, nos termos da al. b) do n.º 2 do art.º 146.º do CIRE, na redacção introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.
Não se tendo ainda pronunciado especificamente sobre a constitucionalidade deste preceito, quando interpretado no sentido de ser aplicável o prazo nele previsto às acções instauradas após a sua entrada em vigor mas em que a sentença que decretou a insolvência foi proferida em data anterior, não deixou o TC de recusar um juízo de inconstitucionalidade sobre a norma contida na alínea b) do n.º 2 do artigo 146.º do CIRE, na redacção anterior àquela que se encontra agora em vigor, na interpretação segundo a qual o prazo de caducidade da acção de verificação ulterior de créditos é sempre de um ano a partir da data do trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência, independentemente da data em que o credor comum dela tenha tido efectivo conhecimento (Acórdão n.º 8/2012, de 11/1/2012, proferido no processo n.º 217/13, 3.ª secção, publicado no DR III série de 8 de Maio de 2012). Determinante desta avaliação foi também a consideração da garantia constitucional do património e a obrigação, dela decorrente para o legislador ordinário, de disponibilizar aos credores instrumentos jurídicos eficientes para realização dos seus créditos, pelo que, visando a norma a máxima realização possível de todos os créditos (e não a satisfação de certos e determinados créditos), ela se encontrava justificada, e portanto, não merecia censura.
Dando ainda primazia às já apontadas razões de justificada celeridade, o mesmo TC, no acórdão n.º 248/2012, não julgou inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 8.º do CIRE, na parte em que proíbe a suspensão da instância nos casos previstos no n.º 1 do artigo 279.º do CPC.
As referidas decisões, proferidas embora a propósito de interpretações normativas diversas daquela de que nos ocupamos, ilustram uma tendência persistente por parte da jurisprudência do TC no sentido de atender às razões de celeridade que ditaram opções do legislador infra constitucional, envolvendo o reconhecimento de que o processo insolvencial exige um procedimento célere, tendo em vista a rápida estabilização dos créditos sobre a insolvência (de cujo reconhecimento por sentença depende o respectivo pagamento – cf. art.º 173.º), como forma de proteger os interesses de todos os credores, ponderação que terá sido igualmente determinante na decisão do legislador de encurtar o prazo de que aqui se cura e optar pela sua imediata aplicação.
Todavia, vindo o TC a acolher como fundamento do juízo de não inconstitucionalidade das normas analisadas os referidos princípios informadores do processo de insolvência, questão que, neste domínio, se pode colocar, é saber se a imediata aplicação da lei nova constitui um desvio não tolerável face aos interesses que se pretendem salvaguardar, por violação do princípio da proporcionalidade, uma vez que, por mais atendíveis que sejam as invocadas razões de celeridade, elas não podem conduzir à denegação de outros direitos com tutela constitucional, nomeadamente o direito de acesso ao direito e aos tribunais, também invocado pelos recorrentes quando alegam que o entendimento perfilhado na decisão apelada os impediu de exercer o seu direito de crédito. Vejamos:
A celeridade processual constitui, também ela, uma dimensão do direito de acesso aos tribunais (cf. art.º 20.º, n.º 5 da CRP), pelo que a imposição de um prazo razoável para o exercício do direito de acção é uma exigência constitucional.
Por outro lado, e ponderando as soluções adoptadas pelo legislador infra constitucional no que respeita aos direitos dos credores no processo de insolvência, a verdade é que, tendo previsto a fixação na sentença de um prazo para a reclamação de créditos (cf. art.ºs 36.º, n.º 1, al. j) do CIRE), não deixou de prever igualmente a notificação dos credores nos termos do art.º 37.º, e ainda a consagração de uma derradeira oportunidade para fazerem valer os seus créditos mediante a interposição das acções a que se reporta o art.º 148.º, tendo agora fixado para o efeito o prazo de 6 meses contado do trânsito da sentença que decretou a insolvência, o qual não pode deixar de ser considerado razoável. E se a este novo prazo é de reconhecer tal atributo, não é a circunstância de se aplicar mesmo aos casos em que a sentença foi proferida em data anterior (só assim não ocorrerá se o prazo em curso findar primeiro) que lhe retira essa qualidade, não se vendo que a sua aplicação faça recair sobre o credor reclamante um ónus excessivo ou desproporcionado, que não possa sem grande esforço ser cumprido, antes se afigurando precisamente o contrário. Dir-se-á que os reclamantes contavam com o prazo de 1 ano para procederem à instauração da acção mas a verdade é que, não a tendo instaurado anteriormente, após a entrada em vigor da nova lei não poderiam razoavelmente contar com prazo superior ao nela consagrado.
Acresce que, conforme vem sendo entendido pelo TC, é de reconhecer ao legislador ordinário uma certa margem de discricionariedade na opção pelas soluções que se adeqúem aos fins prosseguidos tendo em conta os interesses em presença, desde que, e é este o ponto, não inviabilizem o exercício do direito. A este propósito, ponderou-se no citado acórdão n.º 8/2012 do TC que “A possibilidade eficiente de satisfação dos direitos de crédito levou o legislador a prever a Ação de verificação ulterior de créditos, a intentar em apenso ao processo de insolvência mas uma vez já findo o prazo designado para as reclamações. Nenhuma norma constitucional obrigava o legislador a prever este específico meio processual, e a pô-lo à disposição dos credores. No âmbito da sua liberdade de conformação, o legislador escolheu fazê-lo, tendo em mente que o seu objectivo precípuo era — precisamente em obediência à ordem objectiva de regulação que a Constituição lhe endereça no artigo 62.º — “a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores.” No entanto, e porque esse objectivo precípuo não consistia na satisfação de certos e determinados créditos mas na máxima realização possível de todos eles, de modo a garantir a fluidez do tráfego jurídico, o legislador estabeleceu também limites à possibilidade de verificações tardias de créditos, não reclamados durante o prazo geral. Essa limitação traduziu-se no prazo de caducidade da “acção de verificação ulterior de créditos”, que a alínea b) do n.º 2 do artigo 146.º do CIRE consagra. Face à garantia constitucional do património, e à obrigação objectiva, que dela decorre, para o legislador ordinário, de pôr à disposição dos credores instrumentos jurídicos eficientes que permitam a realização dos seus créditos, nenhuma censura merece esta solução legislativa. Ela é justificada pelo facto de a regulação do processo de insolvência dever ser razoavelmente ordenada, não apenas em ordem à máxima realização possível de todos os créditos, mas também em ordem à máxima celeridade possível da tramitação processual, de forma a garantir a fluidez do tráfego.
Nada permite concluir que esse regime acarrete, para os seus destinatários, ónus excessivos, que, não podendo razoavelmente ser cumpridos, tragam consigo medidas desproporcionadamente lesivas de quaisquer situações jurídico-subjetivas fundamentais, sejam elas as que decorrem do artigo 20.º ou do artigo 62.º da CRP.”
Tais razões, invocadas a propósito da questão que aí então se colocava -indagava-se, como referido, da conformidade à CRP do normativo contido na al. b) do n.º 2 do art.º 148.º, que mandava contar o prazo aqui prescrito (então de 1 ano) do trânsito em julgado da sentença declaratória da insolvência, irrelevando o conhecimento que o credor dela pudesse ou não ter- valem aqui de pleno.
Em suma, a consagração deste novo prazo mais curto e sua aplicação imediata não representam um ónus excessivo e desproporcionado para o credor, impeditivo do exercício do direito, donde não se mostrar desconforme à Lei Fundamental, na dimensão que vimos de analisar.
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Dão ainda os apelantes como violado o princípio da não retroactividade das leis que restringem os direitos, liberdades e garantias, o que nos remete para o art.º 18.º da CRP, nos termos do qual:
“1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”.
Requisito das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias é, deste modo, não terem carácter retroactivo, não podendo aplicar-se a situações ou actos passa­dos, mas antes e apenas aos verificados ou praticados após a sua entrada em vigor (cf. art.º 18.º, n.º 3, 2.ª parte). A proibição incide sobre a chamada retroactividade autêntica, em que as leis restritivas de direitos afectam posições jusfundamentais já estabelecidas no passado ou mesmo esgotadas, e abrangerá tam­bém alguns casos de retrospectividade (ou retroactividade inautêntica), mas neste caso apenas quando as medidas legislativas se revela­rem arbitrárias, inesperadas, desproporcionadas ou afectarem, de forma excessivamente gravosa e imprópria, os direitos ou as posições jusfunda­mentais dos particulares. A razão de ser deste requisito está intimamente ligada à ideia de protecção da con­fiança e da segurança dos cidadãos, defendendo-os contra o perigo de verem atribuir aos seus actos passados ou às situações transactas efeitos jurídicos com que razoavelmente não podiam contar[4].
Pois bem, mau grado o assim estipulado, a verdade é que o normativo em causa, mais especificamente o transcrito n.º 3, não é aqui aplicável, por não se dever entender que a garantia constitucional concedida ao património privado -sendo certo que o direito constitucional à propriedade privada só beneficia do regime dos direitos, liberdades e garantias naquele que é o seu núcleo essencial[5]- seja extensível aos direitos de crédito. Tal como se afirmou no citado acórdão do TC 8/2012 “O conteúdo destes direitos é determinado pela lei e não pela Constituição, pelo que as concretas posições jurídico-subjetivas que na sua estrutura se inscrevam, não sendo fundamentais, não gozam da especial protecção contra a lei que só é dispensada às posições jus fundamentais”.
Por outro lado, e conforme se fez notar, nem mesmo a consideração de que “a garantia constitucional do património privado, que a CRP prevê no n.º 1 do artigo 62.º, obrigando o legislador ordinário a organizar procedimentos e a erigir instituições que, pertencendo embora ao universo do direito infraconstitucional, se mostrem capazes de propiciar aos credores meios eficientes de satisfação dos seus créditos” fundamenta um juízo de inconstitucionalidade da norma, uma vez que a opção por um prazo mais curto e a sua aplicação imediata, não inviabilizando o exercício, por um concreto credor, do seu direito de acção, se inscreve claramente no objectivo de tornar mais eficiente o procedimento destinado à satisfação dos créditos sobre a insolvência, tanto bastando para lhe ser negado o carácter arbitrário ou desproporcionado.
Daí que, também por esta via, não assista razão aos recorrentes.
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Sustentam ainda os apelantes que a interpretação normativa impugnada é violadora do princípio da igualdade (art.º 13.º da CRP). Não cremos, porém, que tal acusação deduzida contra a decisão possa proceder. Com efeito, a aplicação imediata da lei nova significa que a partir da sua entrada em vigor todos os credores passam a dispor do mesmo prazo para a propositura da acção de verificação ulterior do seu crédito (com excepção daqueles cujo prazo em curso termine antes, por não deverem razoavelmente contar com o seu prolongamento face à entrada em vigor de uma lei que consagra um prazo mais curto). Acresce que as razões do encurtamento do prazo e aplicação imediata da lei nova radicam nas apontadas e justificadas razões de celeridade e eficácia do procedimento falimentar, dada a relevância que assume para os credores em geral.
Por outro lado, conforme vem sendo entendido, «(...) a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da “discricionariedade legislativa” são violados, isto é, quando, a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma “infracção” do princípio do arbítrio.»[6]
Atento o exposto, porque não estamos perante uma imposição arbitrária, encontrando a opção pela aplicação imediata da lei suficiente substrato material, inexiste violação do princípio da igualdade.
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Por último, sustentam os apelantes que a aplicação retroactiva da nova lei que resultou da interpretação feita na decisão recorrida violou os princípios da confiança e segurança (genericamente consagrados no art.º 2 da CRP).
Segundo jurisprudência sedimentada do TC, “apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos, viola o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático”[7]
A “ideia geral de inadmissibilidade” deverá ser aferida pelo recurso a dois critérios: «a) A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição desde a 1.ª revisão).
Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.”[8]
De volta ao caso dos autos, podemos considerar que aos aqui apelantes era efectivamente facultado, segundo a lei vigente ao tempo em que transitou em julgado a sentença declaratória da insolvência, o prazo de 1 ano para intentarem a acção de verificação ulterior dos créditos. No entanto, não cremos que este prazo possa ser, em si mesmo, qualificado como um verdadeiro direito subjectivo, que pode definir-se como “o poder jurídico reconhecido pela ordem jurídica a uma pessoa de livremente exigir ou pretender de outra um comportamento positivo ou negativo ou de por um acto livre de vontade, só de per si ou integrado por um acto de uma autoridade pública, produzir determinados efeitos jurídicos que inevitavelmente se impõem a outra pessoa”[9]. Direito subjectivo, embora autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer actuar em juízo, será o direito de acção, único que aqui poderia estar em causa, mas que a lei nova manteve com a mesma configuração, tendo-se limitado a consagrar um novo e mais curto prazo para o seu exercício.
Por outro lado, e conforme se referiu, dentro dos seus poderes de conformação, nada obsta a que o legislador introduza alterações nos prazos que prevê e consagra para o exercício de determinados direitos, tal como se verificou, desde que preservado o direito de acesso ao direito e aos tribunais.
Ora, no caso vertente, nem o encurtamento do prazo é uma situação inusitada, com a qual os apelantes não pudessem de todo contar, nem a sua aplicação imediata resulta injustificada ou arbitrária. De resto, e conforme se assinalou, o novo prazo consagrado é perfeitamente idóneo a permitir aos apelantes o exercício do seu direito de crédito.
Nestes termos, e considerando quanto se deixou exposto, não procedem as imputadas inconstitucionalidades, quer ao normativo em causa, quer à interpretação que dele foi feita na decisão recorrida, soçobrando todas as conclusões do recurso.
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III. Decisão
Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo dos apelantes
Notifique.

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida

                                                                   
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[1] Sendo certo que a consideração do aludido prazo como processual -entendimento vertido nos arestos da Relação do Porto de 13/3/2014, 27/3/2014 e 10/4/2014, todos proferidos em diferentes apensos do processo 1218/12.9 TJVNF, acessíveis em www.dgsi.pt.- conduzindo à aplicação imediata da lei nova, assume ainda primordial importância na possibilidade, que por esta via se reconhece, do conhecimento oficioso da intempestividade da acção proposta, tal como, de resto, foi decidido nos identificados acórdãos, sendo embora questão que aqui não se coloca, uma vez que a excepção como tal foi invocada.

[2] Fala-se aqui de retrospectividade (que não retroactividade) da norma, querendo significar que a lei proclama a vigência para o futuro mas afecta direitos ou posições radicadas na lei anterior – cf. acórdãos do TC n.º 467/03 e 581/11, disponíveis na base de dados do ITIJ.
[3] Cumpre a este respeito referir que, muito embora os apelantes se digam credores da insolvente pelo montante reclamado de € 361 500,00, a que fazem acrescer juros de mora, afigura-se que a existência deste crédito dependia da prévia resolução do contrato celebrado com a devedora. Ora, os autos não revelam se foi ou não emitida a necessária declaração resolutiva, o que permite suscitar fundadamente a dúvida sobre se tal direito de crédito se acha ou não constituído. Todavia, porque a questão não foi, nestes precisos termos, colocada perante a 1.ª instância, não cabe aqui equacioná-la. 

[4] J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, págs. 393-394.
[5] V., por todos, acórdão do TC n.º 581/11m de 29/11/2011, acessível na base de dados do ITIJ.
[6] J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, pág. 399, da 4.ª Edição revista, da Coimbra Editora, citados no acórdão do TC 581/11.
[7]  cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 11/83, de 12 de Outubro de 1982, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1.º Vol., pp. 11 e segs; no mesmo sentido se havia já pronunciado a Comissão Constitucional, no Acórdão n.º 463, de 13 de Janeiro de 1983, publicado no Apêndice ao Diário da República de 23 de Agosto de 1983, p. 133 e no Boletim do Ministério da Justiça, n. 314, p. 141, e se continuou a pronunciar o Tribunal Constitucional, designadamente através dos Acórdãos nºs. 17/84 e 86/84, publicados nos 2.º e 4.º Vols. dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, a pp. 375 e segs. e 81 e segs., respectivamente”, segundo indicação do Ac. 581/11 que, sobre esta temática, vimos acompanhando de perto.
[8] Acórdão do TC n.º 287/90, transcrito depois no Acórdão n.º 285/92, publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Agosto de 1992, citados no mesmo acórdão 581/11.
[9] Mota Pinto, na “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª edição actualizada, pág. 169.