Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2079/15.1T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO
ESTADO ESTRANGEIRO
DIREITO INTERNACIONAL
DIREITO CONSUETUDINÁRIO INTERNACIONAL
IMUNIDADE RELATIVA
RENÚNCIA À IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO
Data do Acordão: 05/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 8, 20 CRP, 62 CPC, CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE AS IMUNIDADES JURISDICIONAIS DOS ESTADOS E DOS SEUS BENS (CIJEB)
Sumário: 1.- A imunidade Jurisdicional dos Estados Estrangeiros constitui uma regra de direito internacional segundo a qual um Estado soberano não pode ser demandado num tribunal de um outro Estado, traduzindo, assim, uma garantia que o Estado disfruta em relação a si próprio e aos seus bens e que impede que outros Estados exerçam jurisdição sobre os atos que realiza no exercício do seu poder soberano.

2.- Na consolidação da teoria relativa da imunidade de jurisdição do Estado, dela se consideram atualmente excluídos os atos de gestão (respeitantes a atos e contratos privados), apenas sendo considerados atos de imunidade de jurisdição dos estados os praticados sob a denominação de atos de império

3.- Aderindo à teoria da imunidade de jurisdição relativa, a Parte III da Convenção das Nações Unidas Sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens (CIJEB) prevê que em certos processos judiciais o Estado não possa invocar a imunidade, recusando-a quando estejam em causa transações comerciais, contratos de trabalho, danos causados a pessoas e bens, propriedade, posse e utilização de bens, propriedade intelectual ou industrial, participação em sociedade ou outras pessoas coletivas e navios de que um Estado é proprietário ou explora.

4.- A imunidade relativa, restringindo a imunidade da jurisdição dos estados estrangeiros aos atos praticados sob o ius imperii, pode já ser considerada como direito consuetudinário internacional.

5. -As exceções previstas na parte III da CIJEB, sendo uma expressão da consagração da imunidade relativa, não prescindem de uma conexão material relevante com o território nacional, do ponto de vista da localização dos atos iure gestionis em causa ou da verificação dos respetivos efeitos diretos, que torne razoável e previsível a pretensão de jurisdição por parte do Estado do foro.

6.- Verifica-se ainda uma tendência no sentido do levantamento da imunidade dos ata ius imperii, quando praticados em violação grave de direitos humanos e de ius cogens.

7. - A defesa por impugnação não acarretará renúncia à imunidade de jurisdição, quando o Estado intervém nos autos invocando de imediato tal imunidade, defendendo-se por impugnação a título meramente subsidiário.

Decisão Texto Integral:

 

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I - RELATÓRIO

J (…) intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra a República de Angola,

pedindo a condenação do Réu a pagar a quantia global de 6.854.560,13 €, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos pelo facto de ter estado detido durante 233 dias, por ato praticado pelas autoridades judiciárias da Ré, alegando, em síntese:

residindo então em Angola, onde exercia a sua atividade profissional, o Tribunal Provincial de Benguela decidiu, em 27 de novembro de 2012, pronunciar o autor por um crime particular de que vinha acusado, no processo criminal nº 2407/DPIC/2009, ordenando a prisão preventiva imediata do autor;  

o autor esteve detido desde o dia 16 de janeiro de 2013 até ao dia 5 de setembro de 2013, data em que foi libertado na sequência do acórdão do tribunal constitucional de 29 de agosto de 2013 que revogou a prisão preventiva, deferindo o pedido de habeas corpus a tal respeito formulado pelo autor.

Devidamente citado, o Réu apresentou contestação, defendendo-se, por exceção invocando a imunidade de jurisdição, alegando que a prisão preventiva por um Estado soberano de um cidadão no âmbito de um processo-crime em curso na sua jurisdição interna, configura manifestamente um ato de ius imperri; defende-se ainda por impugnação, concluindo:

1. pelo reconhecimento da imunidade de jurisdição à Ré,  julgando-se procedente a exceção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, e pela sua absolvição da instância, pedindo ainda a condenação do autor como litigante de má-fé em multa e indemnização à ré.

2. quando assim não se entender, deverá a presente ação ser totalmente julgada improcedente por não provada.

Pelo juiz a quo foi proferido Saneador/sentença a reconhecer a imunidade de jurisdição da República de Angola, absolvendo o réu da instância.


*

Não se conformando com a mesma, o autor dela interpõe recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

1. A presente lide assenta na grave violação de direitos humanos básicos do Apelante, nomeadamente do direito à liberdade e ao património, violação essa que foi expressa e judicialmente reconhecida pela Apelada.

2. A única questão que se discute nestes autos é a determinação e quantificação dos danos sofridos pelo Apelante.

3. O Apelante entende que a douta sentença recorrida deve ser revogada, declarando-se improcedente da exceção de imunidade de jurisdição alegada pela Apelada.

4. No entender do Apelante, a imunidade de jurisdição não poderia proceder, porque violou o preceituado no art. 8.º, n.º1 da CRP e as normas de direito consuetudinário internacional aplicáveis diretamente ao Estado Português.

5. Concretamente, a douta decisão recorrida violou a norma de direito internacional consuetudinário que prescreve que, nos casos de ações relacionadas com danos contra pessoas e bens, os Estados estrangeiros estão impedidos de invocar a imunidade de jurisdição, norma que se encontra positivada no art. 12.º da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens.

6. A douta decisão recorrida violou, ainda, a norma de direito internacional consuetudinário que postula que a intervenção de um Estado estrangeiro numa ação judicial contra ele movida, em que este não limite a sua intervenção à invocação da exceção de imunidade jurisdicional, implica a renúncia a esse direito, regra que se encontra positiva no art. 8.º, 1 b) (1.ª parte) da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens.

7. Neste caso concreto, estamos perante uma situação de grave violação de direitos humanos.

8. A CIJEB foi ratificada pelo Estado Português.

9. A CIJEB é, desde 2004, a positivação inequívoca do direito costumeiro internacional vigente.

10. É irrelevante para a interpretação e aplicação do direito consuetudinário internacional que a Apelada não tenha ratificado esta CIJEB.

11. É irrelevante para a interpretação e aplicação do direito consuetudinário internacional que a Convenção não esteja em vigor no plano internacional.

12. A aprovação da CIJEB tem apenas a virtualidade de positivar e delimitar, sem margem para incertezas, aquele que é o conjunto de regras comummente aceites pelas Nações Civilizadas e que constituem o direito consuetudinário internacional.

13. Da concreta ponderação dos interesses legítimos das partes, é inequívoco que o interesse do Apelante assume uma maior intensidade e gravidade, que torna irrazoável e intolerável a aceitação, neste caso, da invocação da imunidade de jurisdição.

14. A procedência desta exceção constituiria uma autêntica denegação da Justiça pelos Tribunais Portugueses, em direta violação do art. 20.º-1 da CRP.

15. Considera-se que a douta decisão ora recorrida violou os arts. 8.º- 1 da CRP, 13.º da CRP, 20.º da CRP e as normas de direito consuetudinário internacional identificadas em 6. e 7. destas conclusões.

Conclui pela revogação da decisão recorrida, na parte em que reconheceu a imunidade de jurisdição da apelada.


*

O Réu apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido.

Dispensados que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.                                                                                              
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se o Réu se encontrava impedido de invocar a imunidade da jurisdição.
2. Se houve renúncia à invocação da imunidade.
3. Se a procedência da exceção constitui denegação de justiça pelos tribunais portugueses.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Se o réu se encontrava impedido de invocar a imunidade de jurisdição.

O juiz a quo, reconhecendo embora que a Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens não se encontrará ainda em vigor, acabou por se socorrer da mesma, como elemento auxiliar, bem como do costume internacional, uma das fontes formais enunciadas pelo artigo 38º do Tribunal Internacional de Justiça. E, partindo da teoria restritiva da imunidade, considerou ser entendimento dominante que a referida Convenção não inclui nenhuma base abrangente de imunidade quanto a direitos humanos no geral ou mesmo normas de jus cogens. Mais considerou que, tendo os factos que servem de causa de pedir à presente ação definido o seu lugar de alegada consumação na Republica de Angola, eles emergem exclusivamente da prisão preventiva do autor decretada no âmbito de processo judicial naquele país, configurando manifestamente um ato de soberania ou de poder público.

Insurge-se o autor contra tal decisão, alegando que o réu não pode beneficiar da exceção de imunidade de jurisdição, porquanto o artigo 12º da Convenção proíbe a invocação dessa imunidade.

Não podemos, contudo, aderir à argumentação do apelante.

Não iremos discutir aqui se a referida Convenção das Nações Unidas Sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens (CIJEB), entrou, ou não, em vigor, porquanto, como afirma Jónatas E. Machado[1], mesmo antes da sua entrada em vigor na ordem internacional, e relativamente aos Estados não aderentes, pode dizer-se que a mesma exprime, nos seus traços essenciais, o direito consuetudinário vigente neste domínio.

A imunidade Jurisdicional dos Estados Estrangeiros constitui uma regra de direito internacional segundo a qual um Estado soberano não pode ser demandado num tribunal de um outro Estado.

A doutrina da imunidade de jurisdição do Estado e da sua propriedade tem na sua base: 1) a deferência para com as prerrogativas de soberania do Estado demandado; 2) a impossibilidade prática de, em muitos casos, se executar uma sentença contra ele proferida pelo Estado do foro; 3) a noção de que, num conflito entre Estados soberanos, os tribunais de um deles, na sua qualidade de órgãos soberania, não oferecem garantias de uma justiça independente e parcial[2].

Abandonado o princípio da Imunidade de Jurisdição em termos absolutos – em que a imunidade abrangia todos os atos do Estado sempre que fosse demandado ou processado por um tribunal de um outro Estado –, tal princípio assenta atualmente na distinção entre atos de império (acta ius imperii) e os actos de gestão (acta jure gestationem). Os primeiros são aqueles que o Estado pratica no exercício do seu poder soberano, e os segundos, aqueles que são realizados pelo Estado em condições de igualdade com os particulares, ou seja, atos de direito e de interesses privados[3].

Assim, na consolidação da teoria relativa da imunidade de jurisdição do estado, dela se consideram atualmente excluídos os atos de gestão (respeitantes a atos e contratos privados), apenas sendo considerados atos de imunidade de jurisdição dos estados os praticados sob a denominação de atos de império[4].

O artigo 5º da CIJEB, ao consagrar o princípio geral da imunidade dos Estados[5], mais não faz que refletir o sentido atual atribuído a tal imunidade. A imunidade de jurisdição do Estado constituiu uma garantia que o Estado disfruta em relação a si próprio e aos seus bens e que impede que outros Estados exerçam jurisdição sobre os atos que realiza no exercício do seu poder soberano.

Aderindo à teoria da imunidade de jurisdição relativa, a Parte III da CIJEB prevê que em certos processos judiciais o Estado não possa invocar a imunidade, recusando-a quando estejam em causa transações comerciais, contratos de trabalho, danos causados a pessoas e bens, propriedade, posse e utilização de bens, propriedade intelectual ou industrial, participação em sociedade ou outras pessoas coletivas e navios de que um Estado é proprietário ou explora.

Uma das exceções consagradas encontra-se prevista no seu artigo 12º, invocado pelo Apelante:

 “Artigo 12.º

Danos causados a pessoas e bens

Salvo acordo em contrário entre os Estados em questão, um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para julgar o caso num processo relacionado com uma indemnização pecuniária, em caso de morte ou de ofensa à integridade física de uma pessoa, ou em caso de dano ou perda de bens materiais causados por um ato ou omissão alegadamente atribuído ao Estado, se esse ato ou omissão ocorreu, no todo ou em parte, no território desse outro Estado e se o autor do ato ou omissão se encontrava nesse território no momento da prática do ato ou omissão.”

Para que um estado se encontre impedido de invocar a imunidade de jurisdição ao abrigo de tal norma, exige-se a verificação simultânea de quatro requisitos:

i) tratar-se de um processo relacionado com uma indemnização pecuniária, em caso de morte ou de ofensa à integridade física de uma pessoa, ou em caso de dano ou perda de bens materiais causados por um ato ou omissão alegadamente atribuído ao Estado;

ii) que o tribunal do Estado onde corre o processo seja o competente para o julgar;

iii) que o ato ou omissão em que se baseia a responsabilidade imputada ao Estado tenha ocorrido, no todo ou em parte, no território do Estado onde corre o processo;

iii) o autor do acto ou omissão se encontrasse nesse território no momento da prática desse acto.

Ou seja, encontrando-nos no âmbito da responsabilidade civil, para que o Estado se encontre impedido de invocar a imunidade de jurisdição será necessário, para além do mais, que o ato gerador da responsabilidade tenha ocorrido, no todo ou em parte, em território do Estado onde se pretende exercer jurisdição.

Como refere Jónatas Machado, sendo a imunidade relativa considerada indispensável para a garantia do bom funcionamento económico do mercado, “ponto é que exista uma conexão material relevante com o território nacional, do ponto de vista da localização dos atos iure gestionis em causa ou da verificação dos respetivos efeitos direitos, que se torne razoável e previsível a pretensão de jurisdição[6]”.

Ora, como é referido na sentença recorrida, todos os factos que servem de causa de pedir à presente ação têm definido o seu lugar de alegada consumação na República de Angola, emergindo todos eles exclusivamente da prisão preventiva decretada no âmbito de um processo judicial que correu os seus termos naquele país soberano.

Não se tendo por verificada a exceção à invocação da imunidade de jurisdição, apreciemos o caso em apreço face os princípios gerais que vigoram sobre a soberania dos Estados em sede de direito internacional.

A prisão preventiva decretada no âmbito de um processo-crime em curso na ordem de jurisdição interna da República de Angola configura, sem qualquer sombra de dúvida e tal como é afirmado na sentença recorrida, manifestamente um ato de soberania ou poder público, como tal, abrangido, em regra, pela imunidade de jurisdição.

Segundo o apelante, o recurso aos tribunais portugueses constitui a única via de que o apelante dispõe para fazer valer os seus direitos perante a apelada: a situação em que se encontra impede-o de litigar fora do local onde se encontra; o medo que adquiriu impede-o de voltar a Angola e de aí, litigar contra o Estado Angolano. Do outro lado, haverá o interesse da apelada em se eximir à jurisdição dos tribunais portugueses, pretendendo furtar-se ao pagamento de valores que são devidos ao apelante pelos danos que lhe infligiu.

Antes de mais, dir-se-á que a questão da imunidade da jurisdição do estado réu só se coloca depois, e no caso de, se concluir que o tribunal onde foi instaurado o processo detém competência para o julgamento da causa, nos termos dos artigos 62º e ss., CPC.

No caso em apreço, só por força da alínea c) do artigo 62º, se poderia vir a atribuir tal competência aos tribunais portugueses – “quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real[7].

E, se o argumento de que o recurso aos tribunais portugueses constituiu a única via de que o apelante dispõe para fazer os seus direitos perante a apelada (argumento que havia ainda que demonstrar), pode constituir um fundamento de atribuição de jurisdição aos tribunais portugueses, já não é reconhecido, por si, só como motivo justificativo do afastamento da imunidade de jurisdição do estado.

Como salienta Jonatas Machado[8], relativamente à imunidade dos acta iure imperii, a CIJEB deve ser interpretada e aplicada em conformidade com as normas de direitos humanos e de direito humanitário atualmente vigentes, e com o imperativo da realização da justiça e da justa reparação, no domínio do jus cogens, sem ignorar na ponderação, o risco sério de utilização abusiva das ações judiciais para hostilizar e assediar seletivamente os Estados e desestabilizar as relações internacionais.

Embora, face ao crescente reconhecimento da necessidade de proteção do individuo, a jurisprudência e a doutrina internacionais venham debatendo a hipótese de não outorga da imunidade de jurisdição aos Estados estrangeiros que ajam com violação dos direitos humanos, com vista à concessão de indemnizações pelos prejuízos causados, a solução que vem sendo adotada a tal respeito pelos tribunais nacionais não tem sido uniforme[9].

De qualquer modo, como salienta Jónatas Machado[10], verifica-se hoje uma tendência no sentido do levantamento da imunidade dos Estados que pratiquem ou auxiliem a prática de atos extraterritoriais de terrorismo, do ponto de vista do Estado do foro, e que sejam especificamente designados de terroristas. A frequência e a gravidade dos atos terrorismo (c.g., tortura, execução extrajudicial, sabotagem de aeronaves, tomada de reféns) direta ou indiretamente resultantes da ação de Estados (lato sensu) tem gradualmente conduzido à primazia da proteção dos direitos humanos relativamente ao interesse na estabilidade das relações entre Estados soberanos. Estes não podem utilizar a sua imunidade para dar cobertura à prática de atos terroristas violadores de jus cogens.

No caso em apreço, a situação relatada pelo autor nunca se moveria dentro daquelas situações de grave violação dos direitos humanos ou do direito internacional humanitário[11] justificadora da derrogação do princípio da imunidade de jurisdição do estado relativamente a atos por si exercidos ao abrigo de um ius imperii.

Improcedem, assim, as alegações de recurso na parte em que defendem a inexistência ou o levantamento da imunidade de jurisdição da República Angolana.

2. Se a Apelada renunciou ao direito de beneficiar da imunidade de jurisdição, pela sua intervenção no processo.

O Apelante defende, por fim, o afastamento da invocada imunidade de jurisdição, alegando que, com a sua intervenção no processo e não se limitando na sua contestação a invocar a exceção da imunidade, a República de Angola teria renunciado a tal imunidade, ao abrigo do disposto no artigo 8º, nº1, al. b), da CIJEB.

Sendo a imunidade de jurisdição um privilégio da soberania do Estado, este pode voluntariamente renunciar a essa imunidade.

Em relação à renúncia de tal imunidade, dispõe o artigo 8º da Convenção, relativamente aos efeitos da intervenção do Estado no processo:

Artigo 8º

Efeito da participação num processo em tribunal

1 – Um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num processo num tribunal de outro Estado se:

a) Foi o próprio Estado a instaurar o dito processo; ou

b) Interveio no processo ou fez alguma diligência em relação ao mérito da causa. Todavia, se o Estado demonstrar ao tribunal que não poderia ter tomado conhecimento dos fatos sobre os quais um pedido de imunidade se poderia fundamentar, senão após ter feito tal diligência, pode invocar a imunidade com base nesses fatos desde que o faça com a maior brevidade possível.

2 – Não se considera que um Estado tenha consentido no exercício da jurisdição de um tribunal de um outro Estado se intervier num processo judicial ou tomar quaisquer outras medidas com o único objetivo de:

a) Invocar a imunidade; ou

b) Fazer valer um direito relativo a um bem em causa no processo.

3 – O comparecimento de um representante de um Estado num tribunal de outro Estado como testemunha não será interpretado como consentimento para o exercício da jurisdição pelo tribunal.

4 – O não comparecimento de um Estado num processo num tribunal de outro Estado não será interpretada como consentimento para o exercício da jurisdição pelo tribunal.

O Réu, República de Angola, uma vez citado, interveio no processo apresentando contestação, na qual invoca a exceção de imunidade de jurisdição, defendendo-se igualmente por impugnação, alegando a litigância de má-fé por parte do autor. E termina tal contestação concluindo pelo reconhecimento da imunidade de jurisdição à Ré, julgando-se procedente a exceção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, e pela sua absolvição da instância, ou quando assim não se entender, pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

É certo que a intervenção no processo pode ter por efeito ou pode ser interpretada por lei como uma renúncia à invocação da imunidade de jurisdição – mas apenas quando o Estado intervenha nos autos sem, de imediato, proceder à invocação de tal imunidade, omissão que o legislador equipara a um consentimento no exercício da jurisdição por parte do outro estado.

Não será este o caso dos autos, no qual o Réu Republica de Angola canaliza a sua defesa em torno, e essencialmente, da imunidade de jurisdição que lhe assiste, pretensão que formula a título principal, sendo a defesa por impugnação deduzida a título meramente subsidiário.

A apelação será de improceder.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 10 de maio de 2016

Maria João Areias ( Relatora )

Fernanda Ventura

Fernando Monteiro

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

1. A imunidade relativa, restringindo a imunidade da jurisdição dos estados estrangeiros aos atos praticados sob o ius imperii, pode já ser considerada como direito consuetudinário internacional.

2. As exceções previstas na parte III da CIJEB, sendo uma expressão da consagração da imunidade relativa, não prescindem de uma conexão material relevante com o território nacional, do ponto de vista da localização dos atos iure gestionis em causa ou da verificação dos respetivos efeitos diretos, que torne razoável e previsível a pretensão de jurisdição por parte do Estado do foro.

3. Verifica-se ainda uma tendência no sentido do levantamento da imunidade dos ata ius imperii, quando praticados em violação grave de direitos humanos e de ius cogens.

4. A defesa por impugnação não acarretará renúncia à imunidade de jurisdição, quando o Estado intervém nos autos invocando de imediato tal imunidade, defendendo-se por impugnação a título meramente subsidiário.


[1] “Direito Internacional”, Coimbra Editora, 4ª ed., pág. 242.
[2] Jónatas E. M. Machado, “Direito Internacional”, Coimbra Editora, 4ª ed., pág. 239.
[3] Juliana de Souza Guimarães, “A Imunidade de Jurisdição do Estado seu Cenário Contemporâneo e na Jurisprudência Brasileira Trabalhista”, in RIDB, Ano 2 (2013), nº 14, pág. 16991, artigo disponível na net, http://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2013/14/2013_14_16985_17006.pdf.
[4] Segundo José Lebre de Freitas, a orientação atual, tida em conta a evolução registada em diplomas internacionais mais recentes, ainda que não vinculativos para o Estado Português, é no sentido de restringir a imunidade aos acta iure imperii – “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, Artigos 1º a 361º, 3ª ed., Coimbra Editora 2014, pág. 125.
[5] Dispõe o artigo 5º da citada Convenção, sob a epígrafe, “Imunidade dos Estados”:
“Sob reserva das disposições da presente Convenção, um Estado goza, em relação a si próprio e aos seus bens, de imunidade de jurisdição junto dos tribunais de um outro Estado”.
[6] “Direito Internacional”, pág. 242.
[7] Tal competência encontrar-se-ia fora do âmbito de aplicação das alíneas a) e b) do artigo 62º CPC: tratando-se de uma ação de responsabilidade civil por factos ocorridos em Angola, o tribunal competente segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa seria o do lugar da ocorrência do facto (nº2 do art. 71º do CPC); não tendo sido praticado em território português qualquer dos factos que integram a causa de pedir, também se não enquadraria na alínea b), da citada norma.
[8] Obra citada, pág. 242.
[9] Cfr., entre outros, e para além dos já citados na sentença recorrida, o caso Germany v. Italy, ICJ, General List, nº 143, 03-02-2012, que adotou uma posição conservadora quanto a esta questão, defendendo continuar a haver imunidade jurisdicional, mesmo em caso de violação do direito humanitário.
[10] Obra citada, pág. 244.
[11] O autor foi detido no âmbito de um processo judicial e, tendo-se o autor socorrido dos meios de impugnação previstos pelo sistema judicial Angolano, logrou obter a sua libertação, que veio a ser decretada pelo Tribunal Constitucional na sequência de um pedido de habeas corpus por si deduzido.