Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
59/14.3TBSCD-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO
ENTREGA DE CASA HABITADA
Data do Acordão: 01/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – JUÍZO COMÉRCIO – 1ª SEC.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 864º E 865º DO NCPC; 150º, Nº 5 DO CIRE.
Sumário: I. O diferimento de desocupação previsto nos art.ºs 864.º e 865.º do CPC constitui um meio de tutela excepcional, estando assim reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada e, por força da remissão operada pelo art.º 150.º, n.º 5 do CIRE, também aos casos de entrega da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente à massa insolvente ou ao adquirente.

II. A restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos confinados casos previstos na lei e se verificados os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação analógica a outras situações que não as especificamente previstas.

III. Não detendo a qualidade de insolventes ou arrendatários, a quem o legislador entendeu conferir, de forma exclusiva e nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do nº 1 do art.º 864º, a tutela legal, não é de reconhecer aos meros detentores do imóvel vendido, ainda que relativamente a eles se verifiquem “razões sociais imperiosas” e cumpram algum dos critérios previstos nas referidas alíneas, o direito ao diferimento da desocupação.

IV. As circunstâncias pessoais daqueles que residam com o arrendatário ou insolvente, só relevarão na apreciação do eventual direito deste ao diferimento da desocupação do imóvel a entregar, não lhes sendo concedida pela lei uma tutela autónoma.

Decisão Texto Integral:



I. Relatório

A..., residente em ..., veio apresentar-se à insolvência, tendo alegado, para tanto, ter sido sócio e gerente da sociedade J..., Lda, a qual foi declarada insolvente. Por força das dívidas da sociedade, as quais havia garantido pessoalmente mediante a prestação de avales, encontra-se em situação que lhe não permite cumprir as suas obrigações vencidas, sendo devedor a diversas instituições bancárias, designadamente ..., sendo executado em diversas acções interpostas pelos seus credores.

Mais alegou trabalhar desde Novembro de 2013 como engenheiro mecânico, a tempo parcial, por conta da ..., auferindo a remuneração mensal ilíquida de €375,00, beneficiando ainda do rendimento proporcionado pelo prédio urbano sito no lugar de ..., que se encontra arrendado, tendo a renda sido fixada em €100,00, valores que se encontram penhorados pela AT.

O requerente não dispõe de quaisquer outros rendimentos ou bens para além do identificado prédio urbano, encontrando-se assim numa situação de insolvência, o que pediu fosse declarado.

Juntou, para além do mais, cópia de contrato de arrendamento celebrado em 1 de Janeiro de 2013 com “...”, tendo por objecto o artigo U-..., “correspondente a uma habitação sem recheio, constituída por rés-do-chão, primeiro andar, armazém e pátio, artigo ...”.

Por sentença proferida pelas 17:30 horas do dia 10/3/2014 foi declarada a insolvência do requerente.

O Sr. Administrador juntou ao processo o auto de apreensão de bem imóvel que consta de fls. 37 do presente apenso, dele constando:

“Aos 12 dias do mês de Março do ano de dois mil e catorze procedi à apreensão para a Massa Insolvente do seguinte bem imóvel:

Freguesia de ...

Prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, armazém e pátio, sito no lugar de ..., com o valor patrimonial de €51 729,75”.

Mediante escritura de compra e venda outorgada no dia 29 de Outubro de 2015 no Cartório Notarial sito à Rua ..., o Sr. Administrador da Insolvência declarou vender ao Banco ..., SA, no acto representado pelos procuradores ... que, por seu turno, declarou comprar, por €127.500,00, “a casa de habitação de dois pavimentos, rés-do-chão e primeiro andar, armazém e pátio, inscrita na matriz sob o artigo ...” e por €9.647,00 “o rústico de vinha, oliveiras e fruteiras, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributário de €472,17”, que constituem “o prédio misto sito no lugar da ..., inscrito em favor do insolvente pela inscrição Ap.1/19980730”.

O adquirente Banco B... apresentou no processo o requerimento ora certificado a fls. 45-46, dando conta de que o insolvente não procedera à entrega do imóvel adquirido, pedindo a notificação do Sr. AI para proceder à referida entrega, com recurso a arrombamento, se necessário fosse.

O assim requerido mereceu o despacho favorável agora certificado a fls. 54, datado de 29/5/2016, no qual se determinou que se procedesse “à entrega do imóvel ao adjudicante, com recurso à força pública e ao arrombamento das portas fechadas, se necessário”.

Foi elaborado em 15 de Abril de 2016 o auto de diligência agora certificado a fls. 56, no qual o Sr. AI dá conta de se ter deslocado ao imóvel apreendido acompanhado das autoridades policiais competentes, tendo verificado, aquando da chegada ao local, que “a parte habitacional do imóvel se encontrava ocupada pelos pais do insolvente, Ex.mº Sr. ... e Ex.mª Sr.ª ..., ambos de idade avançada e que, aparentemente, desconheciam a obrigação da entrega do imóvel; o armazém e o pátio contíguo continham inúmeros veículos que não podiam ser removidos, na totalidade, de imediato”.

Mais consta do referido auto que tendo o Sr. AI entrado em contacto com a Ilustre Mandatária do Banco B..., SA, “concordou esta com a suspensão da diligência pelo prazo de 30 (trinta) dias, com vista à remoção de todos os bens existentes no armazém e à mudança de habitação por parte dos pais do insolvente”.

Por requerimento com a Ref.ª ..., vieram os identificados ... e mulher alegar que residem na casa cuja entrega foi ordenada, a requerente mulher há 72 anos e o requerente marido há 51 anos. Mais alegaram que são idosos e doentes, não dispondo de qualquer outro local para residir, vivendo o casal das suas reformas, que ascendem ao montante global de €738,00, pelo que se encontra “reunido um conjunto de condições que se reconduzem a situações sociais imperiosas que impõem que os requerentes não possam ser despejados da sua residência, sob pena de se pôr em causa um mínimo de dignidade humana”.

Alegaram finalmente que encetaram diligências tendo em vista negociar a sua permanência no imóvel, requerendo a suspensão das diligências tendentes a efectivar a entrega do imóvel à adquirente.

Notificado para se pronunciar veio o Banco reconhecer ter sido contactado pelos requerentes com vista à celebração de um contrato de arrendamento, logo tendo advertido da parca possibilidade de aceitação da proposta e de que a apreciação da mesma não implicava a suspensão da diligência da tomada de posse, requerendo o seu prosseguimento.

Consta dos autos informação do Sr. AI dando conta de que na data designada para a entrega -15/4/2016 -, confrontado com a presença no imóvel apreendido para a massa e posteriormente vendido dos pais do insolvente, contactou nesse mesmo dia a Câmara Municipal no sentido de providenciar por um alojamento para os mesmos. Colheu então informação de que os requerentes têm duas outras filhas, uma a residir no concelho de Tábua, outra no concelho de Leiria, pelo que não se enquadravam numa situação legal de desalojamento.

Foi então proferida decisão que, ponderando embora que “Os motivos invocados pelos requerentes para continuarem a residir na casa são sérios”, considerou no entanto que “não constituem factos impeditivos do efectivo exercício do direito do adquirente à tomada de posse do imóvel, o qual lhe deverá ser entregue pelo Sr. AI”, concluindo pelo indeferimento do requerido, não sem antes fazer notar que “a resolução da situação difícil em que os requerentes se encontram deverá ser procurada em primeiro lugar junto da sua família e depois junto da Segurança Social”.

Inconformados, apelaram os requerentes do despacho proferido e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas os fundamentos da sua discordância com a decisão, formularam a final as seguintes conclusões:

“1.ª- O presente recurso vem interposto do despacho que julgou improcedente o requerimento que os recorrentes apresentaram;

2.ª- Sucede que o douto despacho proferido não se encontra, salvo o devido respeito, fundamentado nos termos legais, inexistindo qualquer fundamento de direito;

3.ª O Tribunal “a quo” esqueceu, salvo o devido respeito, que a este processo tem aplicação o disposto nos art.ºs 864.º e 865.º, ambos do CPC, relativamente ao diferimento da desocupação da casa;

4.ª Para lograr cumprir os requisitos insertos em tais disposições normativas, os requerentes apresentaram no imediato diversas provas, sendo que no que respeita à prova testemunhal, esta não foi ouvida.

5.ª- Pese embora tal facto, o Tribunal “a quo” não se coibiu de indeferir o requerimento apresentado, sem antes indagar da verificação dos pressupostos daquele artigo.

6.ª- Até porque, note-se, a desocupação imediata do prédio em causa representa para os recorrentes um prejuízo muito superior à vantagem conferida ao credor;

7.ª- Assim sendo, o douto despacho violou ou deu errada interpretação ao disposto nos art.ºs 158.º, 864.º e 865.º do CPC e 150.º, n.º 5 do CIRE, sendo consequentemente nula, nulidade que expressamente invocam para os devidos efeitos legais;

8.ª- Finalmente, a decisão proferida é ainda, ressalvado que esteja o devido respeito, inconstitucional por ter violado ou dado errada interpretação ao disposto no art.º 205.º da CRP, pondo em causa uma garantia fundamental dos recorrentes”.

Com tais fundamentos requerem a final a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que defira a pretensão dos recorrentes.

Tanto quanto consta dos presentes autos apensos, não foram oferecidas contra-alegações.

i. da nulidade da decisão proferida por ausência de fundamentação;

ii. da verificação dos pressupostos do diferimento da desocupação

*

i. da nulidade por ausência de fundamentação

Importando à decisão os factos relatados em I. cumpre apreciar a invocada nulidade da decisão por falta de fundamentação.

O art.º 154.º do CPC impõe ao juiz que fundamente as decisões proferidas sobre qualquer dúvida suscitada no processo ou qualquer pedido controvertido (vide n.º 1). Em consonância com tal dever de fundamentação, as sentenças (e também os despachos por força da extensão operada pelo n.º 3 do art.º 613.º) são nulas quando não especifiquem os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (vide al. b) do art.º 615.º do mesmo diploma legal).

O dever de fundamentação das decisões corresponde a uma exigência constitucional (cf. art.º 205.º, n.º 1 da CRP) e, sendo um instrumento legitimador da própria decisão -quanto mais persuasivo for o seu discurso, mais facilmente será convencido o seu destinatário a acatar o respectivo conteúdo-, constitui ainda garantia da efectividade do direito ao recurso. Todavia, conforme sem dissêndio vem sendo entendido - entendimento que mantém plena actualidade face à redacção da al. b) do art.º 615.º agora em vigor, uma vez que reproduziu, sem alterações, a disposição cessante, antes contida na al. b) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC - só a absoluta, que não a deficiente ou pouco persuasiva fundamentação, recai na previsão legal. Assim, para que se verifique o vício da falta de fundamentação, exige a lei que tenham sido de todo omitidas as razões (de facto e/ou de direito) que conduziram à prolação daquela concreta decisão (v., por todos, aresto do STJ de 15/12/2011, processo n.º 2/09.9 TTLMG.P1S1 e desta mesma Relação de 17/4/2012, processo n.º 1483/09.9 TBTMR, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

No caso em apreço, há que reconhecê-lo, foi omitida a menção a qualquer facto, afigurando-se de outro lado insuficiente para que se mostre cumprido o apontado dever legal de fundamentação a mera afirmação de que “os motivos invocados pelos requerentes (…) são sérios mas não constituem factos impeditivos do efectivo exercício do direito do adquirente à tomada de posse do imóvel”.

Não obstante, atenta a regra da substituição consagrada no art.º 665.º do CPC, e salvo casos de insuficiência da matéria de facto que determinem a anulação da decisão, o vício determinante da nulidade não prejudica o conhecimento do objecto da apelação, importando apenas a substituição da 1.ª instância pelo Tribunal da Relação, assim ocorrendo a sua sanação.

II. Fundamentação

Da verificação dos pressupostos do incidente de diferimento da desocupação

Pelos recorrentes, conforme decorre do relatado em I., foi desencadeado incidente de diferimento da desocupação do imóvel vendido previsto nos art.ºs 864.º e 865.º do CPC, aplicável ao processo de insolvência com as necessárias adaptações por força do disposto no n.º 5 do art.º 150.º do CIRE (cuja remissão para o pretérito art.º 930.º-A do CPC deverá ser entendida como sendo hoje feita para o art.º 862.º que lhe sucedeu), tendo em vista suspender a diligência de entrega.

Para tanto alegaram, como vimos, que ocupam o locado há décadas, são doentes, têm como únicos rendimentos as suas reformas de, respectivamente, €410,00 o requerente marido e €328,00 a requerente mulher, não dispondo de residência alternativa, tendo juntado atestados de residência e declarações médicas e indicado testemunhas para prova do alegado.

A Mm.ª juiz entendeu que os motivos invocados não são impeditivos do efectivo exercício do adquirente do direito à tomada de posse do imóvel (com o que o incidente seria manifestamente improcedente), pelo que dispensou a inquirição das testemunhas e indeferiu o requerido, decisão que os recorrentes pretendem agora ver sindicada.

Antes de mais, caberá a nosso ver determinar se é possível atribuir a tutela conferida pelos mencionados preceitos, de forma autónoma, a quem não é insolvente (nem arrendatário). Com efeito, no caso que nos ocupa são os progenitores do insolvente quem se apresenta a requerer o diferimento da desocupação sendo certo que, face à ausência de invocação de título que legitime a ocupação que vêm fazendo do imóvel vendido, terão de ser havidos como meros detentores, beneficiários da tolerância daquele seu filho, anterior titular do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel, que, tanto quanto resulta dos autos, nem sequer nele residirá.

Prevê a lei, no n.º 1 do art.º 864.º, para o caso de execução para entrega de coisa imóvel arrendada que, por razões sociais imperiosas, o juiz difira para momento posterior - sendo que o diferimento, nos termos do n.º 4 do art.º 865.º não pode exceder o prazo de 5 meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder - a desocupação do imóvel. Tal regime é aplicável “à desocupação da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente”, pro força do disposto no n.º 5 do art.º 150.º do CIRE.

Conforme se explanou no Ac. do TRP de 24/11/2011 (proc. nº 1924/10.2TJPRT-C.P1, acessível em www.dgsi.pt) “(…) ao remeter para ali [para o art. 930º-A do CPC em vigor ao tempo], através do respectivo art.º 150º, nº 5, o CIRE não está a pressupor a existência de um contrato de arrendamento, mas simplesmente a determinar que, com as devidas adaptações, se deve seguir aquele regime, numa perspectiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitindo ao insolvente, tal como se permite, no processo executivo para entrega de coisa certa, ao arrendatário habitacional, usar de um prazo de diferimento da desocupação da casa de habitação, tendo designadamente em vista manter as condições de habitação enquanto o necessitado, num prazo definido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, mediante a verificação de requisitos legalmente estabelecidos (como sejam os nºs 2 e 3 ainda do art.º 930º-C), procura novo espaço habitacional.”

A lei confia a decisão ao prudente arbítrio do tribunal, apelando assim à sensatez e racionalidade do juiz, mas não deixa de apontar critérios decisórios, prescrevendo que devem ser tomadas em consideração “as exigência da boa-fé, a circunstância de o insolvente não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que com ele habitam, a sua idade, estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas”.

Acresce que a invocação das referidas “razões sociais imperiosas” não vale, só por si, para obter a tutela legal, que pressupõe a verificação de pelo menos um dos fundamentos condicionantes taxativamente previstos nas als. a) e b) do preceito. Com efeito, o juiz só será chamado a apreciar as primeiras, no uso do poder discricionário que a lei lhe concede (cf. n.º 4, in fine do art.º 152.º do CPC), se verificada uma de duas situações atinentes à pessoa do arrendatário ou, para o que aqui releva, insolvente, a saber: a) carência de meios, a qual se presume relativamente a beneficiário do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (cf. n.º 2 do art.º 864.º). E tais pressupostos condicionantes terão de se verificar, nos termos da lei, na pessoa do arrendatário/insolvente, irrelevando para este efeito a situação económica e social ou condições de saúde daqueles que com ele residam, razões que só poderão/deverão ser ponderadas se forem alegados e demonstrados factos que permitam subsumir a situação a alguma das referidas alíneas.

Sendo este o recorte do regime legal, a questão que imediatamente se coloca é, portanto, a de saber se o direito ao deferimento da desocupação poderá ser reconhecido de forma autónoma a detentores do imóvel relativamente aos quais se verifiquem razões sociais imperiosas, cumprindo eles algum dos critérios previstos nas als. a) e b) do n.º 1 do art.º 864.º, considerando desde logo o teor daquele n.º 5 do art.º 150.º que se reporta “à casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente”.

Conforme se observa no aresto do TRP de 13/5/2014, proferido no processo 6371/07.0TBMTS-J.P1, acessível em www.dgsi.pt, a lei equipara o insolvente ao arrendatário habitacional, “dado que ambos perdem o direito que fundava a ocupação da casa onde habitavam: no primeiro caso, o direito de propriedade; no segundo caso, o direito contratual ao gozo do arrendado”. Trata-se, contudo, em ambas as situações, de um regime jurídico de excepção, porquanto “a regra é a de que, mediante circunstâncias que constituem o pressuposto da obrigação de entrega do imóvel, este seja efectiva e imediatamente entregue, ora ao senhorio exequente, no caso do fim do arrendamento; ora ao administrador da insolvência, no caso da perda de propriedade, por apreensão para a massa insolvente, ora ao adquirente, no caso da sua venda ou adjudicação”. E porque se trata de normas excepcionais, elas não permitem aplicação analógica (cf. art.º 11.º), estando assim vedada a sua aplicação a situações nelas não previstas (cf. art.º 11.º do CC).

Poderá questionar-se se a situação em causa não poderá considerar-se coberta pela previsão normativa pelo recurso à interpretação extensiva, sabendo-se que nesta, ao invés da analogia, que pressupõe uma lacuna, o legislador disse menos do que aquilo que pretendia, de modo que por via interpretativa e pela extensão da letra da lei é possível colocar sob a alçada do regime uma situação não expressamente prevista mas cuja inclusão estava na mente do legislador e foi por este querida. Pergunta-se assim se pela via da interpretação extensiva será possível estender o regime excepcional do diferimento da ocupação do imóvel apreendido para a massa insolvente e vendido a terceiro, aos familiares do insolvente, conforme é aqui o caso, que o ocupam sem título.

A resposta é, afigura-se, claramente negativa.

Conforme se considerou no citado aresto da Relação do Porto que, por versar sobre situação com grandes semelhanças ao caso sub judice, aqui seguimos de perto, uma resposta positiva à questão enunciada seria autorizar qualquer detentor precário a recusar, na sequência de acção de reivindicação procedente, a entrega do imóvel que ocupa, o que não se indicia ter sido querido pelo legislador, não encontrando apoio em qualquer elemento interpretativo.

“Na verdade, não se vislumbra que o texto destas duas normas tenha atraiçoado o pensamento do legislador e que este, ao redigi-las, disse menos do que efectivamente pretendia dizer. Bem pelo contrário, entendemos que o legislador disse, de forma precisa, o que queria dizer, daí resultando que só o arrendatário habitacional poderá lançar mão do incidente de diferimento da desocupação do imóvel. Não há assim norma que, perante os poderes do proprietário, acautele a posição do possuidor ou detentor sem título, mesmo que se trate de pessoa a atravessar fase de grandes dificuldades económicas.”

Note-se que o fundamento da tutela legal conferida e consequente limitação do direito de propriedade do senhorio ou adquirente no processo de insolvência será ainda, conforme cremos que correctamente se ponderou no citado aresto do TRP, uma sorte de “ultra-vigência de um direito anteriormente reconhecido, admitindo-se o prolongamento (a curto prazo) dos seus efeitos em face da boa-fé do respectivo titular e das suas necessidades e das pessoas que vivem consigo. É esse o significado da referência à boa-fé constante do n.º 2 do art.º 864º do CPC. Ou seja, dada a boa-fé, a legítima confiança na produção dos efeitos desse direito anterior por parte do arrendatário ou dos insolventes (alicerçada no seu direito contratual de gozo ou de propriedade, respectivamente), designadamente quanto à expectativa de ocupação e habitação no imóvel a entregar, o legislador protege esses anteriores titulares relativamente a uma perda súbita do seu direito, em determinadas circunstâncias. Faculta-lhes mais algum tempo para que possam suprir a perda do direito à habitação no prédio que legitimamente e de boa-fé ocupavam. Mas já não protege esses mesmos interesses, autonomamente, relativamente a quem não tiver sido titular desses direitos, pois em relação a tais terceiros já não se identifica qualquer direito no qual se possa sediar, de per si, a ultra-vigência desses efeitos, a continuidade da tutela desses interesses”. Por assim ser, e tal como se referiu já, as circunstâncias pessoais daqueles que residam com o arrendatário ou insolvente só relevarão na apreciação do eventual direito deste ao diferimento da desocupação do imóvel a entregar, não lhes sendo conferida pela lei uma tutela autónoma (ao invés do que ocorre com a previsão do n.º 3 do art.º 863.º).

Não se olvida que o direito à habitação goza de justificada tutela constitucional -cf. art.º 65.º da CRP, que proclama, no seu art.º 1.º “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Todavia, assegurar tal direito fundamental de natureza social é incumbência do Estado, não de particulares (cf. n.ºs 2, 3 e 4 do preceito), pelo que se afigura conforme à lei fundamental a opção legislativa no sentido de limitar a tutela legal ao arrendatário e insolvente e desde que verificados determinados pressupostos condicionantes (cf. neste sentido, ainda que a propósito da extensão do regime ao arrendatário rural que habita no prédio arrendado, o Acórdão do TC n.º 581/2014, de 17 de Setembro, processo n.º 650/12, no qual se refere que “O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios - como único sujeito passivo e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios”).

Nestes termos, reconhecendo embora com o maior respeito que a condição dos requerentes preenche o conceito de razões sociais imperiosas, não lhes assiste o direito que pretendem ver-lhes reconhecido ao diferimento da desocupação, já que não detêm a qualidade de insolventes ou arrendatários, a quem o legislador entendeu conferir, de forma exclusiva e nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do n.º 1 do art.º 864.º, a tutela legal.

Atento o que vem de se expor, e porque a pretensão formulada pelos requerentes, ainda a provar-se a totalidade da factualidade por eles alegada, não conduziria ao seu deferimento, por não ter cobertura legal, não havia que proceder à inquirição das testemunhas indicadas, que se revelaria um acto inútil e, nessa medida, proibido pela lei (cf. art.º 130.º do CPC). Com o que improcedem na íntegra os argumentos recursivos.

III. Decisão

Acordam os juízes da 3.ª secção cível em, sem embargo da nulidade que afecta a decisão recorrida, julgar improcedente o recurso, indeferindo o requerido diferimento da desocupação do imóvel identificado nos autos e consequente suspensão da diligência de entrega.

Custas pelos recorrentes.

Sumário:

I. O diferimento de desocupação previsto nos art.ºs 864.º e 865.º do CPC constitui um meio de tutela excepcional, estando assim reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada e, por força da remissão operada pelo art.º 150.º, n.º 5 do CIRE, também aos casos de entrega da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente à massa insolvente ou ao adquirente.

II. A restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos confinados casos previstos na lei e se verificados os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação analógica a outras situações que não as especificamente previstas.

III. Não detendo a qualidade de insolventes ou arrendatários, a quem o legislador entendeu conferir, de forma exclusiva e nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do n.º 1 do art.º 864.º, a tutela legal, não é de reconhecer aos meros detentores do imóvel vendido, ainda que relativamente a eles se verifiquem “razões sociais imperiosas” e cumpram algum dos critérios previstos nas referidas alíneas, o direito ao diferimento da desocupação.

IV. As circunstâncias pessoais daqueles que residam com o arrendatário ou insolvente, só relevarão na apreciação do eventual direito deste ao diferimento da desocupação do imóvel a entregar, não lhes sendo concedida pela lei uma tutela autónoma.