ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
1.
F (…) instaurou contra P (…), ação para separação de meações nos termos do artº 825º do CPC pretérito.
Alegou que é casado com a requerida, que contra esta foi instaurada execução por dívida própria da executada e que não é a si próprio comunicável, mas que estão ou podem ser penhorados bens comuns do casal.
Seguiu o processo os seus termos, vg. com apresentação da relação de bens pela requeria, cabeça de casal.
Os interessados lavraram acordo de partilha que foi contestado por alguns credores.
Entretanto a requerida foi declarada insolvente.
Foi ordenada e efetivada a avaliação de bem imóvel – moradia - constante da relação de bens, à qual foi atribuído o valor presumível de venda de 140 mil euros.
Nesta, os interessados reconheceram o passivo nos termos relacionados.
E nela, constatando o juiz a superioridade do passivo sobre o ativo, ordenou este a notificação dos interessados para se pronunciarem sobre a utilidade e necessidade da prossecução dos autos.
O requerente e o credor BCP, SA pronunciaram-se no sentido da necessidade de continuação do processo, referindo aquele que, existindo a possibilidade de ele assumir todo o ativo e passivo, no processo lhe deve ser adjudicado.
2.
Seguidamente foi proferido despacho nos seguintes, essenciais, e sinóticos, termos:
«Como resulta do artigo 1326.º do Código de Processo Civil, na versão anterior à entrada em vigor da Lei n.º 23/2013, de 05.03, o processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária…
Ora, para se poder proceder à partilha dos bens do casal, torna-se necessário desde logo que existam bens, pelo que o artigo 1361.º do Código de Processo Civil, na versão Anterior…, possibilita a declaração de insolvência da herança (e do património comum, por identidade de razão), a requerimentos dos credores ou dos interessados.
Caso o passivo seja superior ao ativo e não haja requerimento tendente à declaração de insolvência, o processo de inventário extingue-se, em princípio por inutilidade pois não há ativo para partilhar…
Analisada a relação de bens apresentada, constata-se que o passivo é bem superior ao activo.
Efectivamente, do ativo consta um imóvel avaliado no montante de € 140.000,00, sendo prevista a sua comercialização no mercado local como demorada, não se afigurando assim a sua venda como fácil, tanto mais nos tempos que correm de forte desvalorização imobiliária.
Fazem parte integrante ainda do ativo o recheio do imóvel, estimado a 21.09.2012 no montante de € 10.840,00, sofrendo a inerente desvalorização do mobiliário usado.
O ativo contabiliza assim a quantia máxima de € 150.840,00, sujeita a rápida e constante desvalorização.
Por seu turno, tomando em linha de conta a relação de bens apresentada a 21.09.2012, o passivo contabilizava já o montante de € 187.462,28.
A este montante de € 187.462,28 há ainda que contabilizar os juros devidos ao credor Banco (…), S.A., no montante actualizado a 20.03.2014 a € 28.578,21, bem como a quantia ainda devida pelo credor B (…) Plc que reclama ainda o montante de € 5.789,96 a 17.09.2013 para além do que consta da relação de bens.
Por outras palavras, o passivo ascenderá actualmente a montante superior a € 221.830,45, permanecendo a sua trajectória de subida, ao passo que o ativo apenas atinge a quantia de € 150.840,00, mantendo a sua desvalorização constante…
Notificados os interessados para se pronunciar sobre a utilidade da manutenção do inventário, veio o interessado F (…) afirmar que se encontra em fase de negociações para assumir todo o passivo e ativo.
Ora, considerando que o inventário corre já desde 27.02.2012, ou seja, há quase cinco anos, teve já o interessado oportunidade de efectuar todo o tipo de negociações com os credores, o que em nada resultou para além do passar do tempo e aumento da dívida.
De todo o modo, a extinção dos presentes autos em nada impossibilita o interessado de continuar eventuais negociações com os credores, de forma extra judicial ou então no âmbito dos autos de insolvência acima referidos.
O credor Banco (…), S.A. veio por sua vez dizer que no âmbito dos autos de insolvência foi apenas apreendido o direito à meação da insolvente no imóvel dado de garantia ao banco, e face às dificuldades à venda de meações em fase de liquidação, torna-se imprescindível a manutenção dos autos de inventário.
…a liquidação do património de um dos membros do casal não implica necessariamente a existência de processo de inventário para separação de meações, sendo o processo de insolvência, pela sua natureza de chamamento universal de credores, o indicado para proceder à sua liquidação.
Tanto mais no caso dos presentes autos em que o passivo supera largamente o ativo.
Nos termos do que acima se disse, segundo o prescrito no artigo 277.º al. e) do Código de Processo Civil, declaro extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.»
3.
Inconformado recorreu o requerente.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª) O requerente-cônjuge da executada e insolvente P (…) requereu, no prazo da oposição, em 28/03/2012, a separação de bens, nos termos do disposto no artº. 825º, nº. 5 e 7 do CPC, pelo que, a execução nº. 570/08.5TAPBL-A foi declarada suspensa até a partilha.
2ª) Foi instaurado o presente inventário, com vista à separação de meações.
3ª) O património comum é composto por bens de natureza mobiliária e imobiliária com ativo e passivo. Porém,
4ª) O passivo relacionado não é, todo ele, da responsabilidade do requerente. Com efeito,
5ª) A importância de €188.640,89 e custas do processo executivo nº. 570/08.5TAPBL-P são da inteira e exclusiva responsabilidade do cônjuge P (…), declarada insolvente.
6ª) O requerente e os credores do, então, casal pretendem a partilha para concretização das meações, daí, o fundamento, a necessidade e, o sentido do presente inventário. Efetivamente,
7ª) De harmonia com o estatuído no artº. 1406º do CPC, na redação aplicável é direito do cônjuge do executado requerer a separação de meações, tendo o mesmo o direito de escolher os bens com que há de ser formada a sua meação e, o que o mesmo requereu.
8ª) Nessa sequência foi requerida a avaliação dos bens, a qual, veio a ser realizada em conformidade.
9ª) O credor maioritário, B (…), SA. tem mantido conversações e negociações com o requerente e pretende o prosseguimento do inventário. Por outro lado,
10ª) Não está certo, nem seguro que o valor do passivo da responsabilidade do casal seja inferior ao valor do activo, nem mesmo que, o imóvel, não seja valorizado com a reanimação do mercado, já, sentida.
11ª) Ademais, ao mesmo valor acrescerão o dos bens móveis e a quota social que compõem o demais acervo comum, ainda, não suficientemente quantificado.
12ª) Como decidido, foi, no âmbito do processo de insolvência, por via de recurso da Relação de Coimbra de 16/06/2015, determinada a apreensão da meação que a cabeça de casal tem nos bens comuns do casal.
13ª) Ao contrário da conclusão extraída pelo Tribunal, a quo, não se poderá, ainda, considerar o passivo superar largamente o activo ou que a manutenção do presente inventário seja inútil.
14ª) Em suma, não se mostra extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
15ª) Por erro de interpretação e/oi aplicação, a decisão não se revela a mais consentânea com os princípios gerais do direito cível e processual cível, nem a mais assertiva com a mens legis.
16ª) Assim, salvo melhor opinião, no entender do recorrente foram violados o disposto no artº. 1695, nº. 1 do CC e, artºs. 1, 2; 3; 825; 864-A e 1406 do CPC, na redação aplicável.
17ª) Com o douto suprimento que se invoca, deve o recurso merecer provimento, revogando-se a douta decisão proferida, determinando-se o prosseguimento dos ulteriores termos dos autos.
4.
Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:
Continuação da tramitação do processo.
5.
Apreciando.
Nos termos do artº 825º nº1 do CPC pretérito – hoje artº 740º -:
« Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, sejam penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, cita-se o cônjuge do executado para, no prazo de que dispõe para a oposição, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida.»
Temos assim que:
«Este tipo de inventário para a separação de bens visa essencialmente proteger o interesse do cônjuge do executado, permitindo-lhe proceder à separação dos bens do casal e salvaguardar a sua meação nos bens do casal.»
Pelo que:
«Com a extinção do direito do credor pode dizer-se extinta a causa que justificou a instauração desse tipo de inventário, por força do artº 825º CPC.
Não havendo motivo para se salvaguardar a meação do cônjuge do executado, é inequívoco que o processo de inventário termina por inutilidade superveniente dessa lide – artº 287º, al. e), do CPC.» - Ac. da RC de 23.11.2010, p. 825/05.0TBOHP-A.C1, in dgsi.pt.
Acresce que se o valor global das dívidas do casal exceder o valor global dos bens que integram o património comum, há insolvência do património comum.
Pode, então, qualquer credor requerer a insolvência do património comum, tal como podem os interessados deliberar naquele sentido – artº 1361º do CPC pretérito e artº46º do RJPI aprovado pela Lei 23/2013 de 05.03.
Ora se os bens que integram o património comum do casal são insuficientes para ressarcir as dívidas do mesmo património, já não há que salvaguardar a meação do cônjuge do executado, tornando-se inútil a separação de meações: em consequência, o inventário perde a sua razão de ser.
Pelo que se nada for requerido nem deliberado nos termos e para os efeitos dos citados normativos, os autos de inventário têm de ser declarados extintos por inutilidade superveniente da lide – cfr., para além dos arestos citados na decisão, entre outros, o Acs. da RC de de 27.05.2015, p. 5507/11.1TBLRA.C1 e de 07.02.2017, p. 180/12.2TBFLG.P1 e o Ac. da RP de 26.01.2017, p. 724/06.9TBFLG-C.P1, todos in dgsi.pt, e Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais vol. II, pág. 162.
Finalmente urge ter presente que, in casu, foi declarada a insolvência da requerida.
O processo de insolvência constitui uma execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores – artº 1º do CIRE.
A satisfação dos credores tem de ser feita de forma paritária - princípio da igualdade de credores ou da par conditio creditorum - art. 194º.
A declaração da insolvência implica, vg., e no que para o caso interessa:
- a imediata apreensão de todos os bens do devedor insolvente ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos - art. 36º al. g) e 149º do CIRE.
- que o exercício de qualquer direito de crédito só possa ocorrer no processo de insolvência - art. 90º.
- que todas as diligências de caráter executivo relativas a bens da massa insolvente tenham de ser declaradas suspensas: art. 88º nº 1.
Tanto assim que, nos termos do artº 141º nº1 al. b) e 3 do CIRE:
« 1 .As disposições relativas à reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis:
b) À reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa insolvente os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns;»
3. A separação dos bens de que faz menção o n.º 1 pode igualmente ser ordenada pelo juiz, a requerimento do administrador da insolvência, instruído com parecer favorável da comissão de credores, se existir. »
Por conseguinte temos que :
«A lei preveniu a hipótese de a insolvência ser decretada apenas quanto a um dos cônjuges, acautelando a possibilidade de o outro cônjuge ir ao processo de insolvência reclamar que a sua meação nos bens comuns seja separada da massa insolvente: art. 141º nº 1 al. b) do CIRE.» - Ac. da RC de27.05.2015 sup. cit.
Por outro lado, prescreve o art. 159º do CIRE:
«verificado o direito de restituição ou separação de bens indivisos ou apurada a existência de bens de que o insolvente seja contitular, só se liquida no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre esses bens.»
Nesta conformidade, a ilegalidade/inoportunidade/improficuidade da continuação deste processo, dimana de vários fundamentos/motivos.
Em primeiro lugar, porque o valor do ativo, decorrente da avaliação efetuada e do até alegado pelo requerente, é inferior ao valor do passivo.
Em segundo lugar, porque suspensa a execução, ex vi do processo de insolvência, a meação do requerente, no âmbito de tal execução, não se encontra já em perigo de ser penhorada e vendida/adjudicada, pelo que falece a ratio da estatuição do normativo atinente – artº 825º do CPC pretérito e 40º do NCPC.
Em terceiro lugar, e determinantemente, porque o direito à separação da meação tem de ser, ex vi lege, exercido na insolvência.
Sendo de notar que, nos termos do artº 144º do CIRE:
«No caso de serem apreendidos bens para a massa, depois de findo o prazo fixado para as reclamações, é ainda permitido exercer o direito de restituição ou separação desses bens nos cinco dias posteriores à apreensão, por meio de requerimento, apensado ao processo principal.»
Neste entendimento, ou, ao menos, nesta linha de orientação, se podendo interpretar o AUJ n.º 1/2014, de 08.05.2013, DR 39, Série I, proferido no processo nº 170/08.0TTALM.L1.S1:
«Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.»
Improcede, brevitatis causa, o recurso.
6.
Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.
Em processado para separação de meações - artº 825º do CPC e 740º do NCPC – decretada a insolvência do requerido/executado, a execução fica suspensa – artº 88º nº1 do CIRE - pelo que, assim, falecendo a ratio que preside à estatuição de tais normativos: - o perigo de a meação do requerente ser vendida/adjudicada, e, ademais, sendo o passivo superior ao ativo, deve tal processado cessar por inutilidade superveniente da lide - ; e podendo a separação ser efetivada no processo de insolvência - artº 141º nº1 al. b) e nº3.
7.
Deliberação.
Termos em que se julga o recurso improcedente e, consequentemente, se confirma a sentença.
Custas pelo recorrente.
Coimbra, 2017.06.06.
Carlos Moreira ( Relator)
Moreira do Carmo
Fonte Ramos