Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
125/13.2GDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
LESÕES RECÍPROCAS
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (TRIBUNAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 143.º, Nº 3, DO CP; ART.º 308.º DO CPP
Sumário: I- Considerando que estão suficientemente indiciadas as agressões físicas entre os três intervenientes e que a única questão que impediu a pronúncia foi o facto de não haver indícios suficientes de ter sido o arguido AA a iniciar as agressões, é evidente que os factos que são considerados como suficientemente indiciados terão que ser analisados à luz disposição legal prevista no art. 143 nº 3 do CP.

II- Não podendo concluir o tribunal “que os indícios recolhidos são insuficientes para se concluir por uma probabilidade de futura condenação do arguido AA” e que “não estão verificados os elementos típicos dos crimes que lhes foram imputados” e decidir “proferir despacho de não pronúncia do arguido AA pelos crimes de ofensa á integridade física, previstos e punidos pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, que lhes tinham sido imputados pelos assistentes.”

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Nos presentes autos o Ministério Público proferiu a seguinte despacho:

“(…)

Nos presentes autos e apensos são denunciados factos susceptíveis de integrar, em abstracto, a prática recíproca de crimes à ofensa à integridade física p. e p. pelo art. 143º do Código Penal.

Porém, devem os autos ser arquivados por não existirem indícios suficientes que permitam imputar tais factos a qualquer um dos arguidos.

É que nos termos da lei há indícios suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (cfr. art.º 283º n.º 2 do CPPenal), o que, a nosso ver, não se verifica nos caso dos autos.

Na verdade, os arguidos negaram os factos que lhes são imputados e apresentaram versões diferente dos mesmos, afirmando, em suma, terem sido vitimas e não agressores.

Suficientemente indiciado está apenas que os três ofendidos/arguidos se envolveram fisicamente, tendo sofrido lesões.

Porém, as lesões examinadas nos relatórios de exame médico só por si nada esclarecem quanto à dinâmica da contenda.

Com efeito, ficamos efectivamente com dúvidas sobre quem agiu com animus ofendendi e quem agiu com animus defendendi.

E nos autos não existe qualquer prova susceptível de superar tal dúvida, sendo que a única testemunha arrolada Ana Raquel Pinto Simões parece que apenas terá assistido a urna pequena parte da contenda, tendo-lhe escapado o início e o fim da mesma, cfr, fls, 91.

É esta a prova carreada para os autos e não vislumbramos útil a realização de qualquer outra diligência de prova.

Assim, face à contradição das versões e não sendo possível dar mais credibilidade a urna versão em detrimento da outra, não poderemos imputar tal crime a qualquer um dos arguido e consequentemente sustentar em julgamento a sua condenação.

Sendo, pois , muito mais provável a sua absolvição, se submetidos a julgamento.

Pelo exposto, e nos termos do art. 277°, n° 2 do CPPenal, outra solução não nos resta que não seja a de arquivar, por ora, o presente inquérito, o que se determina, por não se ter obtido indícios suficientes da verificação do alegado crime.”

Inconformados, os assistentes B...e C... vieram requerer a abertura de instrução.

A primeira apresentou requerimento com o seguinte teor (transcrição da parte relevante):

“(…)

A ora requerente apresentou queixa contra o arguido A..., pela prática de um crime de ofensas à integridade física p. e p. pelo art. 143º do Código Penal.

2. Porquanto, no dia 27/03/2013, junto à sua residência, foi agredida com murros na face, ~ pelo arguido A..., o que fez com que a ofendida caísse no chão, tendo de seguida aparecido o seu marido que também foi agredido.

3. O inquérito foi encerrado com despacho de arquivamento relativamente a tal crime.

4. Resultou para o MP., que os autos deveriam ser arquivados "por não existirem indícios suficientes que permitam imputar tais factos a qualquer um dos arguidos." "É que nos termos da Lei há indícios suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (cfr. art.s 283° n02 do CPenal)", o que no entender do M.P. não se verifica.

5. Fundamentando a sua decisão argumentando que, "os arguidos negaram os factos que são imputados e apresentaram versões diferentes dos mesmos, afirmando, em suma, terem sido vítimas e não agressores".

6. Entendeu pois o M.P. que, "suficientemente indiciado está apenas que os três ofendidos/arguidos se envolveram fisicamente, tendo sofrido lesões. Porém as lesões examinadas nos relatórios de exames médico só por si nada esclarecem quanto à dinâmica da contenda."

7. Decidiu por isso, arquivar o inquérito por ficar com dúvidas "sobre quem agiu com animus ofendendi e quem agiu com animus defendendi". Afirmando que, "nos autos não existe qualquer prova susceptível de superar tal dúvida".

8. Salvo o devido respeito discordamos de tal decisão.

9. Desde logo, as versões dos ofendidos/arguidos não são contraditórias, isto porque, os ofendidos/arguidos B...e C...têm versões que em nada são contraditórias bem pelo contrário e até se complementam.

10.Os dois são bem claros ao afirmar que foram agredidos pelo arguido/ofendido A....

11.Ambos explicaram de forma precisa como tudo se passou, tendo esclarecido a dinâmica da contenda.

12. A única contradição que se verifica é entre o teor das declarações dos ofendidos/arguidos B... e C... e as do arquido/ofendido A..., o que já era expectável.

13. No entanto, a versão do arguido A..., se confrontado com o relatório médico-legal não procede,

14. De facto, este apenas refere que a ofendida o terá agarrado pelas mãos, não tendo este reagido,

15. Ora, considerando tais declarações, como se explicam as lesões sofridas pela ofendida, concretamente, a existência um hematoma peri orbitário esquerdo e a lesão da córnea por traumatismo, lesões estas contantes do relatório médico-legal e do relatório do episódio de urgência do dia dos factos, que se junta como doc.2.

16. Para além disso, consta do relatório que as lesões apresentadas são compatíveis com a versão dos factos apresentada pela ofendida,

17. Assim, para além das declarações dos arguidos/ofendidos, que em nada são contraditórias,

18. Temos também os relatórios médico-legais que se analisados mais pormenorizadamente e confrontados com as declarações de todos os intervenientes na contenda, permitem retirar conclusões acerca da dinâmica da mesma,

19. Sobretudo se apreciadas as capacidades físicas e a robustez de cada um dos arguidos e ofendidos,

20. Desde logo, a ofendida, na altura dos factos, era uma mulher de 64 anos de idade, com dificuldades de locomoção, que tinha sido sujeita a uma cirurgia há relativamente pouco tempo, ainda necessitando, na altura, de repouso, estando débil fisicamente,

21.Já o arguido A..., era um jovem de 23 anos de idade, militar, de grande robustez e destreza física,

22. Portanto, com muita mais força e maior desteridade física, do que a ofendida,

23. Tal diferença de capacidades físicas não nos parece terem sido tomadas em conta pelo MP.

24. Para além disso, existe também o relatório médico da ofendida referente ao episódio de urgência do dia em que ocorreram os factos denunciados elaborado pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra EPE Hospitais da Universidade de Coimbra (que se junta como doc.2), o qual, juntamente com o relatório médico-legal existente nos autos permite aferir sobre quem agiu com o animus ofendendi e quem agiu com animus defendendi,

25. Sendo certo que o teor das declarações do arguido e da ofendida são incompatíveis, decorre da lógica e das regras da experiência comum, a forte probabilidade de as lesões apresentadas por aquela terem sido consequência da agressão perpetrada pelo arguido.

26. Assim, em sede de análise crítica da prova colhida em sede de inquérito, conjugada com as regras da experiência comum e relatório médico-legal, deveria ter sido considerado suficientemente indiciado que o arguido agrediu a assistente e consequentemente provocou-lhe as lesões descritas no relatório médico.

27.Quanto às regras de experiência comum importa dizer que, se bem que elas não constituem uma premissa genérica e abstrata que permita todas as conclusões antes obrigam a que se parta de factos conhecidos, objetivados em meios de prova controláveis e delimitados por regras de lógica cartesiana para se alcançarem essas conclusões, a prova colhida, através do relatório clínico conjugado com a versão inverosímil do arguido quanto à dinâmica dos factos conjugada ainda com a versão dos outros dois ofendidos/arguidos obriga a concluir segundo aquelas regras, que o arguido A... efetivamente agrediu a ofendida.

28.Assim, conjugada a prova pericial recolhida, o depoimento da ofendida e também o depoimento do ofendido/arguido C..., fica que as declarações do arguido não podem sustentar a versão que apresentou.

29. Para além disso, o MP sustenta a sua decisão de arquivar o inquérito por ficar com dúvidas "sobre quem agiu com animus ofendendi e quem agiu com animus defendendi", sendo que em julgamento não seria previsível a aplicação de uma pena.

30. Também quanto a este ponto temos de discordar do entendimento do MP.

31. Com efeito, a legítima defesa tem por requisitos, como claramente decorre do texto legal (art.32°, do Código Penal), a ocorrência de uma agressão, "devendo esta ser actual, isto é, estar a realizar-se, em desenvolvimento ou iminente (a iminência da agressão afere-se, habitualmente, pela ocorrência de situação perigosa, a qual se caracteriza pela prática de actos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes siga o acto agressivo, isto é, a agressão), ilícita, ou seja, não ter o agressor direito a infligir ou a praticar a agressão, independentemente do facto de aquele se comportar dolosa mente, com mera culpa ou se tratar de um inimputável (- Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado (8a edição - 1995), 277, Eduardo Correia, Direito Criminal (1971) II, 46 e H. Jescheck, ibidem, 306.), só evitável ou neutralizável através de uma acção ou acto de defesa, acto que, atenta a sua função, qual seja a de impedir ou repelir a agressão, deve limitar-se à utilização do meio ou meios, suficientes para evitá-Ia ou neutralizá-Ia, consabido que em consequência desse acto ir-se-ão atingir bens ou interesses do agressor, para além de que a legítima defesa não é nem pode redundar numa acção punitiva, a ela se encontrando subjacente o princípio do maior respeito pelo agressor (- Cf. Jescheck, ibidem, 308.)".

32.A situação de legítima defesa implica que a acção de defesa se apresente como necessária para repelir a agressão, exigindo-se que o defendente só utilize o meio considerado necessário, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente, adequado e eficaz para suster a agressão.

33. Esta apreciação deverá ser feita pelo julgador de acordo com critérios rigorosos, atendendo nomeadamente à capacidade físico-atlética do agressor, do agredido (capacidade de defesa), ao momento da agressão, à globalidade das circunstâncias concretas em que o agredido se encontra, bem como as capacidades e os meios de defesa de que o agredido se pode socorrer no preciso momento da agressão.

34. Do despacho de arquivamento resulta, pois, que estes critérios foram obliterados pelo MP, ao não dar relevância: a) Às diferenças de idade e de compleição física do assistente e do arguido; b) Aos problemas de saúde que a ofendida padecia e que a limitavam fisicamente.

35.Já quanto ao elemento subjectivo, conquanto parte significativa da nossa jurisprudência e certo sector da doutrina continuem a exigir a ocorrência de animus defendendi, isto é, a vontade de defesa, muito embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, tais como indignação, vingança e ódio a verdade é que, na esteira da doutrina mais recente (- Taipa de Carvalho, ibidem, 375/387, Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal (1992), 189/191, Fernanda Palma, A Justificação por Legítima Defesa como Problema de Delimitação de Direitos (1990), 611-58 e 693 e Santiago Mir Puig, ibidem, 436.), "0 elemento subjectivo da acção de legítima defesa se restringe à consciência da «situação de legítima defesa», isto é, ao conhecimento e querer dos pressupostos objectivos daquela concreta situação, o que se justifica e fundamenta no facto de a legítima defesa ser a afirmação de um direito e na circunstância do sentido e a função das causas de justificação residirem na afirmação do interesse jurídico (em conflito) considerado objectivamente como o mais valioso, a significar que em face de uma agressão actual e ilícita se deve ter por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os actos que, objectivamente, se mostrem necessários para a sua defesa".

36. Pelo que, a exigência do animus defendendi revela-se, desprovida de sentido, uma vez que se ocorrem os requisitos da «situação de legítima defesa» - agressão actual e ilícita, verificando-se que o defendente não teve outro remédio que defender-se (necessidade de defesa) - pouco importa, obviamente, que tenha sido motivado por indignação, vingança ou ódio.

37. Por outro lado, deve-se recusar a legítima defesa contra as «agressões insignificantes» (- Cf. Taipa de Carvalho, ibidem, 488 e H. Jescheck, ibidem, 312.).

38. Ora, no caso em concreto, analisadas as declarações de todos os arguidos/ofendidos, mas principalmente as declarações do próprio arguido A..., temos de concluir, que não houve por parte deste vontade em se defender da ofendida, nem tão pouco necessidade para tal,

39. No entanto, a ainda que a ofendida lhe tivesse agarrado as mãos, o que jamais se aceita, não se pode ter por adequado o meio de defesa utilizado, atendendo aos factores já elencados no ponto 34.

40. Face ao exposto, não pode ser entendida que o agarrar nas mãos impusesse, de forma imediata, a reacção do arguido, reacção que, em qualquer caso, sempre seria ilícita, por serem excessivos os meios empregues.

41. Por isso, o defendente deve limitar-se ao uso do meio ou meios adequados menos gravosos para o agressor e abster-se de qualquer acto defensivo perante agressões insignificantes ou irrelevantes.

42. Por tudo o que se expôs, não colhe a decisão de arquivamento do MP, pois, ainda que se considere ter agido o mesmo em legítima defesa, o que não se concede, sempre seria de considerar os meios empregues pelo arguido como desproporcionais e como tal ilícitos.

43. Portanto, deverá considerar-se indiciariamente provado e como tal ser o arguido pronunciado por, no dia 27/03/2013, junto à residência da ofendida, ter desferido um murro na face da mesma,

44. Ao agir da forma como agiu, o arguido A... teve intenção de molestar o corpo da ofendida e causar-lhe dor e sofrimento o que efectivamente conseguiu.

45.0 arguido A... agiu livre voluntária e conscientemente, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida e punível por lei.

46. O arguido cometeu assim, em autoria imediata e na forma consumada um crime de ofensas à integridade física p. e p. pelo art.> 143.° do Código Penal.

Termos em que e nos demais de direito requer a V. Ex.a:

I) (…)

II) Seja declarada a abertura da instrução e, consequentemente, produzida a prova indiciada, devendo, a final, ser proferido despacho de pronúncia quanto ao crime de ofensas à integridade física, p. e p. nos termos do 143° do CP.

O assistente C... apresentou requerimento com teor idêntico.

Realizada a instrução, foi proferida a seguinte decisão instrutória:

“Vêm os assistentes B...e C... requerer a abertura de instrução, em virtude de não concordarem com o despacho de arquivamento proferido nos autos, pugnando pela pronúncia do arguido A..., cada um deles, por um crime de ofensa á integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º do Código Penal.

Em síntese alegam que os autos contêm indícios dos factos que imputam ao arguido, a fls. 149 a B... e a fls. 162 o C....

(…)

Cumpre apreciar e decidir.

(…)

Cada um dos assistentes imputa ao arguido um crime de ofensa á integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal.

(…)

Cumpre agora apreciar os indícios recolhidos tanto em sede de inquérito como em sede de instrução.

Como resulta de fls. 2, o ofendido A... disse que quando foi á rua estacionar melhor o seu veículo a arguida começou a injuriá-lo e a difamá-lo. De seguida ela aproxima-se mais do automóvel e a dizer que “havia de se chamar a polícia”. Com medo que ela fizesse algum risco no carro, o ofendido aproximou-se e a arguida agarrou-lhe as mãos para bater com elas na cara, tendo-lhe causado um corte nas mãos. De seguida o arguido, marido da arguida, também o agrediu com um murro no pescoço, apertou-lhe o pescoço e tentou estrangulá-lo. Foi nessa altura que se defendeu e empurrou o arguido.

O relatório do INML referente ao A... encontra-se a fls. 8 e seguintes. Disse ele no INML que foi agredido com murros, unhadas e apertões, infligidos por vizinhos. Na parte das lesões constam escoriações na face, no membro superior direito (na mão) e no membro superior esquerdo (na mão). Na parte das conclusões consta que as lesões são compatíveis com a informação.

O depoimento da única testemunha ouvida no inquérito consta a fls. 90. Disse ela que primeiro ouviu a B... a discutir e injuriava o A..., durante cerca de 20 minutos. Entretanto o A... saiu á rua e viu que a B... se abeirou do A... e lhe segurou as mãos, desconhecendo o contexto de tal acto. Depois a testemunha disse que foi para casa e não assistiu a mais nada.

Ora, mesmo não sendo crível que não tenha assistido a mais nada, o certo é que o depoimento desta testemunha está de acordo com a versão apresentada nos autos pelo A..., sendo que esta foi a única testemunha ouvida no inquérito.

Também o relatório do INML supra referido está de acordo com a versão apresentada pelo A....

É certo que a versão dos factos apresentada pelo A... não é a única no inquérito.

A Maria B... queixou-se que o arguido lhe deu um murro na face, sem que nada o fizesse prever, caiu ao chão, de seguida aparece o marido que também foi agredido – cfr. fls. 67.

O relatório do INML referente á B... encontra-se a fls. 20. Ela terá prestado informação condizente com a queixa referida. Apresentava edema na face, compatível com a informação que prestou.

O assistente C... disse que ouviu os gritos da esposa e saiu de casa. Ao chegar á rua viu a esposa no chão, tentou levantá-la, o A... disse “vens aí também comes”. O A... deu-lhe logo um murro, cai ao chão onde continuou a ser agredido. Foi agredido com vários murros e pontapés.

O relatório do INML do C... consta a fls. 27 e nele constam lesões na face.

Por sua vez, em sede de instrução, as testemunhas ouvidas nada souberam esclarecer, afirmando que não assistiram aos factos.

Assim, da conjugação de todos os indícios, constata-se que para além da palavra dos intervenientes apenas foi ouvida uma testemunha no inquérito, tendo apresentado uma versão próxima da do A.... Depois temos as versões dos 3 intervenientes. O A... imputa o início da contenda á B..., tendo afirmado que depois também o marido dela o agrediu e os ora assistentes imputam o início da contenda ao A..., tendo disto que foram agredidos por ele. Como arguidos, todos negam os factos que lhe foram imputados.

Ora, a ser assim, concorda-se com o M.P. que proferiu o despacho de arquivamento e com as razões apresentadas no mesmo.

Existem indícios dos 3 intervenientes se terem envolvido em agressões físicas mas não se pode afirmar que existam indícios de ter sido o A... a iniciar tais agressões. Não existem indícios suficientes do arguido A... ter agido com intenção de ofender o corpo e a saúde dos assistentes, isto é, com animus ofendendi. Poderia o A... ter agido, como afirma, com animus defendendi.

Uma vez que não está devidamente indiciada a dinâmica dos factos, não se podem considerar indiciados os factos imputados ao arguidos nos RAIs.

Assim, diga-se que os indícios recolhidos são insuficientes para se concluir por uma probabilidade de futura condenação do arguido A.... Não estão verificados os elementos típicos dos crimes que lhes foram imputados. A ser assim, terá de ser proferido despacho de não pronúncia. Se o arguido fosse submetido a julgamento muito provavelmente seriam absolvido.

                                        *

Nestes termos e sem necessidade de tecer mais considerações, decide-se proferir despacho de não pronúncia do arguido A... pelos crimes de ofensa á integridade física, previstos e punidos pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, que lhes tinham sido imputados pelos assistentes.”

Inconformados com o decidido, os assistentes interpuseram recurso no qual apresentam as seguintes conclusões (transcrição):

Assistente B...:

1. Nos termos do art° 286°, n? 1 do CPP "A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento".

2. Prof. Germano Marques da Silva, a este respeito, escreve o seguinte: "Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido".

3. Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação.

4. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação" - v. "Curso de Processo Penal, 2- ed. III vol., pág. 179.

5. Vejamos, então a prova produzida em sede de inquérito e instrução: desde logo, temos as declarações dos assistentes, que são verosímeis e se complementam, sendo que ambos explicam de forma clara a dinâmica da contenda. A única contradição que se verifica é entre o teor das declarações dos ofendidos/arguidos B... e C... e as do arquido/ofendido A..., o que era expectável. No entanto, a versão do arguido A..., se confrontado com o relatório médico-legal não pode proceder, de facto, este apenas refere que terá empurrado a ofendida. Ora, considerando tais declarações, como se explicam as lesões sofridas pelo ofendida, concretamente, a existência um hematoma peri orbitário esquerdo e a lesão da córnea por traumatismo, lesões estas contantes do relatório médico-legal e do relatório do episódio de urgência do dia dos factos.

6. Para além disso, consta do relatório que as lesões apresentadas são compatíveis com a versão dos factos apresentada pela ofendida.

7. De onde se retira que esta efectivamente terá sido agredida com um murro na face pelo arguido A... e não simplesmente empurrada como o mesmo afirmou.

8. Assim, para além das declarações dos arguidos/ofendidas, que em nada são contraditórias, temos também os relatórios médico-legais que se analisados mais pormenorizadamente e confrontados com as declarações de todos os intervenientes na contenda, permitem retirar conclusões acerca da dinâmica da mesma, sobretudo se apreciadas as capacidades físicas e a robustez de cada um dos arguidos e ofendidos, ou pelo menos, indiciam de que efectivamente ocorreu a prática do referido crime pelo arguido A....

9. Desde logo, a ofendida, na altura dos factos, era uma mulher de 64 anos de idade, de estatura média, com dificuldades de locomoção,

10. Já o arguido A..., era um jovem de 23 anos de idade, militar, de grande robustez e destreza física, portanto, com treinamento específico, muito mais força e maior desteridade física do que o ofendida,

11. Capacidades estas que não nos parece terem sido tomadas em linha de conta aquando da decisão.

12. Acresce que o juiz de instrução criminal fez tábua rasa de um outro elemento de prova recolhido em sede de instrução, a saber, o relatório médico da ofendida referente ao episódio de urgência do dia em que ocorreram os factos denunciados elaborado pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra EPE Hospitais da Universidade de Coimbra, o qual, juntamente com o relatório médico-legal ambos existentes nos autos, permitem aferir sobre a existência da agressão e sobre quem agiu com o animus ofendendi e quem agiu com animus defendendi,

13. Sendo certo que o teor das declarações do arguido e da ofendida são incompatíveis, decorre da lógica e das regras da experiência comum, a forte probabilidade de as lesões apresentadas por aquela terem sido consequência da agressão perpetrada pelo arguido.

14.Assim, em sede de análise crítica da prova colhida em sede de inquérito e instrução, conjugada com as regras da experiência comum, o relatório médico legal e o relatório do episódio de urgência, deveria ter sido considerado suficientemente indiciado que o arguido agrediu o assistente e consequentemente provocou-lhe as lesões descritas no relatório médico.

15. Quanto às regras de experiência comum importa dizer que, se bem que elas não constituem uma premissa genérica e abstrata que permita todas as conclusões antes obrigam a que se parta de factos conhecidos, objetivados em meios de prova controláveis e delimitados por regras de lógica cartesiana para se alcançarem essas conclusões, a prova colhida, através do relatório clínico conjugado com a versão inverosímil do arguido quanto à dinâmica dos factos conjugada ainda com a versão dos outros dois ofendidas/arguidos obriga a concluir segundo aquelas regras, que o arguido A... efectivamente agrediu a ofendida.

16. Para além disso, consta da própria decisão Instrutória que: "Assim, da conjugação de todos os indícios, constata-se que para além da palavra dos intervenientes apenas foi ouvida uma testemunha no inquérito, tendo apresentado uma versão próxima da do A.... Depois temos as versões dos 3 intervenientes. O A... imputa o início da contenda à B..., tendo afirmado que depois também o marido dela o agrediu e os ora assistentes imputam o início da contenda ao A..., tendo dito que foram agredidos por ele. Como arguidos, todos negam os factos que lhe foram imputados. Ora, a ser assim, concorda-se com o M.P. que proferiu o despacho de arquivamento e com as razões apresentadas no mesmo. Existem indícios dos 3 intervenientes se terem envolvido em agressões físicas mas não se pode afirmar que existam indícios que tenha sido o A... a iniciar tais agressões. Não existem indícios suficientes do arguido A... ter agido com a intenção de ofender o corpo e a saúde dos assistentes, isto é, com animus ofendendi. Poderia o A... ter agido, como afirma, com animus defendendi. Uma vez que não está devidamente indiciada a dinâmica dos factos, não se podem considerar indiciados os factos imputados aos arguidos nos RAls. Assim, diga-se que os indícios recolhidos são insuficientes para se concluir por uma probabilidade de futura condenação do arguido A.... Não estão verificados os elementos típicos dos crimes que lhes foram imputados. A ser assim, terá de ser proferido despacho de não pronúncia. Se o arguido fosse submetido a julgamento muito provavelmente seria absolvido."

17. Salvo o devido respeito, não se compreende tal decisão, pois se na própria se afirma que existem indícios dos 3 intervenientes se terem envolvido em agressões físicas, apenas se desconhecendo quem as iniciou, deveria ter-se pronunciado o arguido para submeter a causa a julgamento e aí apurar a dinâmica de toda a contenda.

18. Face ao breve trecho da decisão instrutória que supra se transcreveu dúvidas não restam de que foram recolhidos indícios suficientes da prática do crime pelo arguido A.... Aliás, é na própria decisão instrutória que se refere que "Existem indícios dos 3 intervenientes se terem envolvido em agressões físicas mas não se pode afirmar que existam indícios que tenha sido o A... a iniciar tais agressões. Não existem indícios suficientes do arguido A... ter agido com a intenção de ofender o corpo e a saúde dos assistentes, isto é, com animus ofendendi."

19. Ora, se existem indícios das agressões terem ocorrido, a decisão não podia ser outra que não de pronunciar o arguido A... pela prática do crime de ofensas à integridade física simples, na medida em que, existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido, sendo que, se foi este ou não quem iniciou a contenda pouco releva nesta fase, devendo essa questão ser analisado em sede de julgamento.

20. Em suma, analisada criticamente a prova recolhida quer no decurso do inquérito, quer da instrução, impõe-se a conclusão de que foram recolhidos indícios suficientes que permitem «formar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável» de que o arguido seja responsável pelos factos narrados no requerimento de abertura de instrução.

21. Desta forma, ao decidir como decidiu, foram violados os arts. 2760 e 3080 do Código de Processo Penal e o 1430 do Código Penal.

22. O Juiz de instrução Criminal sustenta ainda a sua decisão de não pronúncia por ficar com dúvidas "sobre quem agiu com animus ofendendi e quem agiu com animus defendendi", sendo que em julgamento não seria previsível a aplicação de uma pena afirmando que, "não existem indícios suficientes do arguido A... ter agido com a intenção de ofender o corpo e a saúde dos assistentes, isto é, com animus ofendendi. Poderia o A... ter agido, como afirma, com animus defendendi.".

23. Também quanto a este ponto, não podemos concordar com a decisão recorrida, isto porque, a legítima defesa tem por requisitos, como claramente decorre do texto legal (art.32°, do Código Penal), a ocorrência de uma agressão, "devendo esta ser actual, isto é, estar a realizar-se, em desenvolvimento ou iminente (a iminência da agressão afere-se, habitualmente, pela ocorrência de situação perigosa, a qual se caracteriza pela prática de actos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes siga o acto agressivo, isto é, a agressão), ilícita, ou seja, não ter o agressor direito a infligir ou a praticar a agressão, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou se tratar de um inimputável ( - Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado (8a edição - 1995), 277, Eduardo Correia, Direito Criminal (1971) II, 46 e H. Jescheck, ibidem, 306.), só evitável ou neutralizável através de uma acção ou acto de defesa, acto que, atenta a sua função, qual seja a de impedir ou repelir a agressão, deve limitar-se à utilização do meio ou meios, suficientes para evitá-Ia ou neutralizá-Ia, consabido que em consequência desse acto ir-se-ão atingir bens ou interesses do agressor, para além de que a legítima defesa não é nem pode redundar numa acção punitiva, a ela se encontrando subjacente o princípio do maior respeito pelo agressor (- Cf. Jescheck, ibidem, 308.) ".

24. A situação de legítima defesa implica que a acção de defesa se apresente como necessária para repelir a agressão, exigindo-se que o defendente só utilize o meio considerado necessário, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente, adequado e eficaz para suster a agressão.

25. Esta apreciação deverá ser feita pelo julgador de acordo com critérios rigorosos, atendendo nomeadamente à capacidade físico-atlética do agressor, do agredido (capacidade de defesa), ao momento da agressão, à globalidade das circunstâncias concretas em que o agredido se encontra, bem como as capacidades e os meios de defesa de que o agredido se pode socorrer no preciso momento da agressão.

26. Ora, quer do despacho de arquivamento quer do despacho de não pronúncia resulta, pois, que estes critérios foram obliterados pelo MP e pelo Juiz de instrução Criminal, ao não dar relevância: a) Às diferenças de idade e de compleição física do assistente e do arguido;

27. Por outro lado, deve-se recusar a legítima defesa contra as «agressões insignificantes» (- Cf. Taipa de Carvalho, ibidem, 488 e H. Jescheck, ibidem, 312.).

28. Ora, no caso em concreto, analisadas as declarações de todos os arguidos/ofendidas, mas principalmente as declarações do próprio arguido A..., temos de concluir, que não houve por parte deste vontade em se defender da ofendida, nem tão pouco necessidade para tal,

29. No entanto, e ainda que o ofendida lhe tivesse agarrado nas mãos, o que jamais se aceita, não se pode ter por adequado o meio de defesa utilizado, concretamente desferido um murro na face da mesma.

30. Face ao exposto, não pode ser entendida que o agarrar nas mãos impusesse, de forma imediata, a reacção do arguido, reacção que, em qualquer caso, sempre seria ilícita, por serem excessivos os meios empregues.

31. Por isso, o defendente deve limitar-se ao uso do meio ou meios adequados menos gravosos para o agressor e abster-se de qualquer acto defensivo perante agressões insignificantes ou irrelevantes.

32. Por tudo o que se expôs, não colhe a decisão de não pronuncia, pois, ainda que se considere ter agido o mesmo em legítima defesa, o que não se concede, sempre seria de considerar os meios empregues pelo arguido como desproporcionais e como tal ilícitos.

33. Ao não ter atendido a tudo quanto se deixou supra alegado, foram violados os seguintes normativos legais, artigos 32° e 33° do Código Penal.

NESTES TERMOS,

Deve revogar-se o despacho de não pronúncia, devendo o mesmo ser substituído por outro que pronuncie o arguido A... pela prática do crime de ofensa à integridade física simples p. p. pelo art° 143°, n.º 1 do Cód. Penal.

Assistente C...

1. Nos termos do art° 286°, n.º 1 do CPP "A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento".

2. Prof. Germano Marques da Silva, a este respeito, escreve o seguinte: "Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido".

3. Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação.

4. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação" - v. "Curso de Processo Penal, 2a ed. III vol., pág. 179.

5. Vejamos, então a prova produzida em sede de inquérito e instrução: desde logo, temos as declarações dos assistentes, que são verosímeis e se complementam, sendo que ambos explicam de forma clara a dinâmica da contenda. A única contradição que se verifica é entre o teor das declarações dos ofendidos/arguidos B... e C... e as do arquido/ofendido A..., o que era expectável. No entanto, a versão do arguido A..., se confrontado com o relatório médico-legal não pode proceder, de facto, este apenas refere que terá empurrado o ofendido. Ora, considerando tais declarações, como se explicam as lesões sofridas pelo ofendido, concretamente, a existência um hematoma periorbitário com feridas incisivas na pálpebra superior e no sobrolho à direita com restrição da abertura do olho, fractura do pavimento da órbita direita, com ligeiro descoaptação dos topos ósseos e fratura da lâmina papirácia da mesma órbita, lesões estas cantantes do relatório médico-legal e do relatório do episódio de urgência do dia dos factos.

6. Para além disso, consta do relatório que as lesões apresentadas são compatíveis com a versão dos factos apresentada pelo ofendido, de onde se retira que este efectivamente terá sido agredido com murros e pontapés pelo arguido A... e não simplesmente empurrado como o mesmo afirmou.

7. Assim, para além das declarações dos arguidos/ofendidos, que em nada são contraditórias, temos também os relatórios médico-legais que se analisados mais pormenorizadamente e confrontados com as declarações de todos os intervenientes na contenda, permitem retirar conclusões acerca da dinâmica da mesma, sobretudo se apreciadas as capacidades físicas e a robustez de cada um dos arguidos e ofendidos, ou pelo menos, indiciam de que efectivamente ocorreu a prática do referido crime pelo arguido A....

8. Desde logo, o ofendido, na altura dos factos, era um homem de 72 anos de idade, de estatura média,

9. Já o arguido A..., era um jovem de 23 anos de idade, militar, de grande robustez e destreza física, portanto, com treinamento específico, muito mais força e maior desteridade física do que o ofendido,

10. Capacidades estas que, não nos parece terem sido tomadas em linha de conta aquando da decisão.

11. Acresce que o juiz de instrução criminal fez tábua rasa de um outro elemento de prova recolhido em sede de instrução, a saber, o relatório médico do ofendido referente ao episódio de urgência do dia em que ocorreram os factos denunciados elaborado pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra EPE Hospitais da Universidade de Coimbra, o qual, juntamente com o relatório médico-legal ambos existentes nos autos, permitem aferir sobre quem agiu com o animus ofendendi e quem agiu com animus defendendi,

12. Sendo certo que o teor das declarações do arguido e do ofendido são incompatíveis, decorre da lógica e das regras da experiência comum, a forte probabilidade de as lesões apresentadas por aquele terem sido consequência da agressão perpetrada pelo arguido.

13.Assim, em sede de análise crítica da prova colhida em sede de inquérito e instrução, conjugada com as regras da experiência comum, o relatório médico legal e o relatório do episódio de urgência, deveria ter sido considerado suficientemente indiciado que o arguido agrediu o assistente e consequentemente provocou-lhe as lesões descritas no relatório médico.

14. Quanto às regras de experiência comum importa dizer que, se bem que elas não constituem uma premissa genérica e abstrata que permita todas as conclusões antes obrigam a que se parta de factos conhecidos, objetivados em meios de prova controláveis e delimitados por regras de lógica cartesiana para se alcançarem essas conclusões, a prova colhida, através do relatório clínico conjugado com a versão inverosímil do arguido quanto à dinâmica dos factos conjugada ainda com a versão dos outros dois ofendidos/arguidos obriga a concluir segundo aquelas regras, que o arguido A... efectivamente agrediu o ofendido.

15. Para além disso, consta própria decisão Instrutória que: "Assim, da conjugação de todos os indícios, constata-se que para além da palavra dos intervenientes apenas foi ouvida uma testemunha no inquérito, tendo apresentado uma versão próxima da do A.... Depois temos as versões dos 3 intervenientes. O A... imputa o início da contenda à B..., tendo afirmado que depois também o marido dela o agrediu e os ora assistentes imputam o início da contenda ao A..., tendo dito que foram agredidos por ele. Como arguidos, todos negam os factos que lhe foram imputados. Ora, a ser assim, concorda-se com o M.P. que proferiu o despacho de arquivamento e com as razões apresentadas no mesmo. Existem indícios dos 3 intervenientes se terem envolvido em agressões físicas mas não se pode afirmar que existam indícios que tenha sido o A... a iniciar tais agressões. Não existem indícios suficientes do arguido A... ter agido com a intenção de ofender o corpo e a saúde dos assistentes, isto é, com animus ofendendi. Poderia o A... ter agido, como afirma, com animus defendendi. Uma vez que não está devidamente indiciada a dinâmica dos factos, não se podem considerar indiciados os factos imputados aos arguidos nos RAls. Assim, diga-se que os indícios recolhidos são insuficientes para se concluir por uma probabilidade de futura condenação do arguido A.... Não estão verificados os elementos típicos dos crimes que lhes foram imputados. A ser assim, terá de ser proferido despacho de não pronúncia. Se o arguido fosse submetido a julgamento muito provavelmente seria absolvido."

16. Salvo o devido respeito, não se compreende tal decisão, pois se na própria se afirma que existem indícios dos 3 intervenientes se terem envolvido em agressões físicas, apenas se desconhecendo quem as iniciou, deveria ter-se pronunciado o arguido para submeter a causa a julgamento e aí apurar a dinâmica de toda a contenda.

17. Face ao breve trecho da decisão instrutória que supra se transcreveu dúvidas não restam de que foram recolhidos indícios suficientes da prática do crime pelo arguido A.... Aliás, é na própria decisão instrutória que se refere que "Existem indícios dos 3 intervenientes se terem envolvido em agressões físicas mas não se pode afirmar que existam indícios que tenha sido o A... a iniciar tais agressões. Não existem indícios suficientes do arguido A... ter agido com a intenção de ofender o corpo e a saúde dos assistentes, isto é, com animus ofendendi."

18. Ora, se existem indícios das agressões terem ocorrido, a decisão não podia ser outra que não de pronunciar o arguido A... pela prática do crime de ofensas à integridade física simples, na medida em que, existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido, sendo que, se foi este ou não quem iniciou a contenda pouco releva nesta fase, devendo essa questão ser analisado em sede de julgamento.

19. Em suma, analisada criticamente a prova recolhida quer no decurso do inquérito, quer da instrução, impõe-se a conclusão de que foram recolhidos indícios suficientes que permitem «formar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável» de que o arguido seja responsável pelos factos narrados no requerimento de abertura de instrução.

20. Desta forma, ao decidir como decidiu, foram violados os arts. 2760 e 3080 do Código de Processo Penal e o 1430 do Código Penal.

21. O Juiz de instrução Criminal sustenta ainda a sua decisão de não pronúncia por ficar com dúvidas "sobre quem agiu com animus ofendendi e quem agiu com animus defendendi", sendo que em julgamento não seria previsível a aplicação de uma pena afirmando que, "não existem indícios suficientes do arguido A... ter agido com a intenção de ofender o corpo e a saúde dos assistentes, isto é, com animus ofendendi. Poderia o A... ter agido, como afirma, com animus defendendi.".

22. Também quanto a este ponto, não podemos concordar com a decisão recorrida, isto porque, a legítima defesa tem por requisitos, como claramente decorre do texto legal (art.32°, do Código Penal), a ocorrência de uma agressão, "devendo esta ser actual, isto é, estar a realizar-se, em desenvolvimento ou iminente (a iminência da agressão afere-se, habitualmente, pela ocorrência de situação perigosa, a qual se caracteriza pela prática de actos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes siga o acto agressivo, isto é, a agressão), ilícita, ou seja, não ter o agressor direito a infligir ou a praticar a agressão, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou se tratar de um inimputável ( - Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado (8a edição - 1995), 277, Eduardo Correia, Direito Criminal (1971) II, 46 e H. Jescheck, ibidem, 306.), só evitável ou neutralizável através de uma acção ou acto de defesa, acto que, atenta a sua função, qual seja a de impedir ou repelir a agressão, deve limitar-se à utilização do meio ou meios, suficientes para evitá-Ia ou neutralizá-Ia, consabido que em consequência desse acto ir-seão atingir bens ou interesses do agressor, para além de que a legítima defesa não é nem pode redundar numa acção punitiva, a ela se encontrando subjacente o princípio do maior respeito pelo agressor ( - Cf. Jescheck, ibidem, 308.) ".

23. A situação de legítima defesa implica que a acção de defesa se apresente como necessária para repelir a agressão, exigindo-se que o defendente só utilize o meio considerado necessário, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente, adequado e eficaz para suster a agressão.

24. Esta apreciação deverá ser feita pelo julgador de acordo com critérios rigorosos, atendendo nomeadamente à capacidade físico-atlética do agressor, do agredido (capacidade de defesa), ao momento da agressão, à globalidade das circunstâncias concretas em que o agredido se encontra, bem como as capacidades e os meios de defesa de que o agredido se pode socorrer no preciso momento da agressão.

25. Ora, quer do despacho de arquivamento quer do despacho de não pronúncia resulta, pois, que estes critérios foram obliterados pelo MP e pelo Juiz de instrução Criminal, ao não dar relevância: a) Às diferenças de idade e de compleição física do assistente e do arguido;

26. Por outro lado, deve-se recusar a legítima defesa contra as «agressões insignificantes» (- Cf. Taipa de Carvalho, ibidem, 488 e H. Jescheck, ibidem, 312.).

27. Ora, no caso em concreto, analisadas as declarações de todos os arguidos/ofendidas, mas principalmente as declarações do próprio arguido A..., temos de concluir, que não houve por parte deste vontade em se defender do ofendido, nem tão pouco necessidade para tal,

28. No entanto, e ainda que o ofendido lhe tivesse desferido um murro no pescoço e o tentasse estrangular, o que jamais se aceita, não se pode ter por adequado o meio de defesa utilizado com a violência notória e constante dos relatórios médicos.

29. Face ao exposto, não pode ser entendido que o desferir um murro impusesse, de forma imediata, a reacção do arguido, reacção que, em qualquer caso, sempre seria ilícita, por serem excessivos os meios empregues.

30. Por isso, o defendente deve limitar-se ao uso do meio ou meios adequados menos gravosos para o agressor e abster-se de qualquer acto defensivo perante agressões insignificantes ou irrelevantes.

31. Por tudo o que se expôs, não colhe a decisão de não pronuncia, pois, ainda que se considere ter agido o mesmo em legítima defesa, o que não se concede, sempre seria de considerar os meios empregues pelo arguido como desproporcionais e como tal ilícitos.

32. Ao não ter atendido a tudo quanto se deixou supra alegado, foram violados os seguintes normativos legais, artigos 32° e 33° do Código Penal.

NESTES TERMOS,

Deve revogar-se o despacho de não pronúncia, devendo o mesmo ser substituído por outro que pronuncie o arguido A... pela prática do crime de ofensa à integridade física simples p. p. pelo art° 143°, n.º 1 do Cód. Penal.

Respondeu o Ministério Público defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência dos recursos, com a seguinte argumentação:

“(…)

5. Sobre o objecto do recurso, dir-se-á, salvo o devido respeito por diferentes opiniões, que nos parece que o douto despacho recorrido quando não pronuncia o arguido merece diferente ponderação dos indícios existentes nos autos.

(…)

Estamos, assim, perante situações em que um arguido deverá ser pronunciado se houver uma ''forte probabilidade", "uma probabilidade razoável", ou uma "probabilidade elevada" para usar as diferentes, mas aproximadas, referências qualificativas da doutrina e da jurisprudência, para significar a existência de indícios suficientes.

Ou, ainda como refere o Prof. Figueiredo Dias, no Direito Processual Penal, pág. 133, "os indícios só são suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente possível a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a sua absolvição. "

No caso dos autos, verifica-se das diligências feitas em instrução nada de novo resultou em relação aos indícios da prática de crime.

Temos então que proceder à avaliação dos indícios que resultam das provas já constantes do inquérito.

E, neste âmbito, apesar de se constatar que na ocorrência dos factos existiu alguma confusão entre os seus intervenientes e, fruto disso mesmo, existirem também depoimentos contraditórios que reflectem essa situação, o certo é que ressaltam dos autos, pelos menos em termos suficientemente indiciários que houve agressões físicas mútuas entre os contendores - os assistentes/requerentes da instrução e o arguido/requerido da instrução - e que documentalmente e pericialmente estão referenciadas lesões físicas desse envolvimento físico resultantes.

O próprio despacho de não pronúncia reconhece a existência de tais indícios, embora considere que não se apura quem agrediu primeiro.

Decide, contudo, não pronunciar o arguido por, de acordo com a versão dos factos apresentada por este, "poderia ter agido com animus defendendi".

Ora, nos termos e para efeitos do que se dispõe no art.º 143°, n.º 3, al. s a) e b) do C.P., pode haver dispensa de pena quando tiver havido lesões recíprocas e se não se tiver provado quem agrediu primeiro ou, quando o agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.

Ora, os factos indiciados podem permitir, a nosso ver, colocar como hipótese a integração de alguma das situações previstas nas citadas normas. Porém, mesmo nesta hipótese a apreciação final das mesmas, só poderá ser feita em sede de julgamento, para eventual dispensa de pena.

Mas para além deste aspecto, somos de parecer que a motivação apresentada pelos recorrentes merece ser ponderada quanto aos indícios suficientes da prática do crime de ofensas à integridade física simples pelo arguido no sentido da sua procedência.

x

Nestes termos, ressalvando o devido respeito por diferente entendimento, somos de parecer que o recurso dos Assistentes poderá ser julgado procedente, alterando-se o despacho recorrido.”

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal não houve resposta.”

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras)[[1]].

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” a quer se refere o artº 379º, nº 1, alínea c., do Código de Processo Penal, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entende-se por “questões” a resolver, as concretas controvérsias centrais a dirimir[[2]].

*+*+*+*

Questão a decidir: decisão instrutória em caso de agressões recíprocas com desconhecimento do agressor inicial.

*+*+*+*

Vejamos:

Diz-nos o art.º 308º, n.ºs 1 e 2 (Despacho de pronúncia ou de não pronúncia) que se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia, sendo correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º.

Por seu turno, diz-nos o artº 283º, nº 2 que se consideram “suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”, ou seja, como diz Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1.º vol., 1974, pág. 133, «(...) os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.»

No caso “sub judice” o Meritíssimo Juiz de Instrução considera que “existem indícios dos 3 intervenientes se terem envolvido em agressões físicas mas não se pode afirmar que existam indícios de ter sido o A... a iniciar tais agressões”, embora acrescente que “não existem indícios suficientes do arguido A... ter agido com intenção de ofender o corpo e a saúde dos assistentes, isto é, com animus ofendendi. Poderia o A... ter agido, como afirma, com animus defendendiporque, não estandodevidamente indiciada a dinâmica dos factos, não se podem considerar indiciados os factos imputados ao arguidos nos RAIs”.

Com base neste entendimento, conclui o tribunal “que os indícios recolhidos são insuficientes para se concluir por uma probabilidade de futura condenação do arguido A...” pois “não estão verificados os elementos típicos dos crimes que lhes foram imputados” e consequentemente, decidiu “proferir despacho de não pronúncia do arguido A... pelos crimes de ofensa á integridade física, previstos e punidos pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, que lhes tinham sido imputados pelos assistentes.”

Ora, como muito bem nota o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, é evidente que o tribunal “a quo” não atentou no disposto no art.º 143º, n.º 3, alínea a. do Código Penal (e, eventualmente, na alínea b.), situação em que o facto só não será punível se o tribunal de julgamento entender que há lugar à dispensa de pena.

Com efeito, considerando que segundo o tribunal estão suficientemente indiciadas as agressões físicas entre os três intervenientes e que a única questão que impediu a pronúncia foi o facto de não haver indícios suficientes de ter sido o arguido A... a iniciar as agressões, parece-nos evidente que os factos que são considerados como suficientemente indiciados terão que ser analisados à luz daquela disposição legal.

*+*+*+*

Face ao exposto, e sem necessidade de outros considerandos, revoga-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que tenha em consideração o disposto no art.º 143º, n.º 3, do Código Penal.

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Sem tributação

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Coimbra, 17 de Dezembro de 2014

(Luís Ramos - relator)

(Olga Maurício - adjunta)


[1] Neste sentido, v.g., Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23 de Maio de 2012 (acessível in www.dgsi.pt, tal como todos os demais arestos citados neste acórdão cuja acessibilidade não esteja localmente indicada).
[2] “(…) quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2011.