Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
443/11.4TBSRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: ESTABELECIMENTO COMERCIAL
TRANSMISSÃO
CESSÃO DE EXPLORAÇÃO
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.110 RAU
Sumário: 1 – O âmbito mínimo ou necessário na transmissão de um estabelecimento comercial, seja por via de trespasse seja por via de locação de estabelecimento, tem de possuir uma concordância temática com o estabelecimento que é transmitido, isto é, no estabelecimento transmitido têm de estar presentes os traços definidores e distintivos da actividade que aí era exercida, donde, o enquadramento da situação ajuizada (“estabelecimento de café e mercearias”) tem de ser feito à luz da realidade comercial vivida na década dos anos 90 do séc.XX, numa aldeia do interior da zona centro do País, onde a insipiência e a rudimentaridade do exercício dessa actividade comercial, era evidente.

2 – Assim, importa dar-se resposta positiva – em termos de qualificação sobre ter ou não havido “locação de estabelecimento comercial” – mesmo quando nos termos e para os efeitos dessa transmissão do estabelecimento, a sociedade locatária unicamente passou a ter “à sua disposição para sua utilização um balcão frigorífico, mesas e cadeiras, máquina de café, copos e chávenas”.

3 – A cessão de exploração pode recair sobre um estabelecimento de que nada ainda existe, como sobre um estabelecimento incompleto, que não está concluído, mas em via de formação bem como sobre um estabelecimento cuja exploração ainda se não tenha iniciado ou esteja interrompida.

Decisão Texto Integral:         








    Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

ML (…), MC (…), MF (…) e AM (…) intentaram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra C (…) peticionando que seja declarado que o contrato de cessão de exploração referido nos artigos 10.º a 14.º da petição inicial se encontra resolvido desde 23 de Novembro de 2010, por força da declaração que as autoras lhe comunicaram por carta registada com aviso de receção, de 20 de Junho de 2010 e por ele recebida em 29 de Junho de 2010; que seja condenado o réu a reconhecer que o contrato de cessão de exploração está resolvido desde 23 de Novembro de 2010, pela denúncia que as autoras lhe comunicaram por carta de 20 de Junho de 2010, e, em consequência, ser o réu condenado a fazer entrega do estabelecimento às autoras e a pagar-lhes a quantia de 1.350,00€, para ressarcimento dos danos já sofridos, de 24 de Novembro de 2010 a 24 de Agosto de 2011, e os danos vincendos, à razão de 150,00€ por mês.

Depois de descreverem os termos da sucessão decorrente do decesso de J (…), as autoras alegaram que a autora ML (…) e seu falecido marido, J (…) na qualidade de donos e legítimos possuidores do estabelecimento comercial de café e mercearias, instalado no rés-do-chão do prédio urbano descrito no artigo 6.º da petição inicial, por escritura de 20/01/1993, representados por JJ (…), cederam a sua exploração à sociedade “Snack-Bar, C (...), Lda.”, de que eram sócios o Réu e L (…) com início nessa data, e pelo preço de 720.000$00, a pagar em prestações mensais de 10.000$00.

Mais alegam que esta sociedade tomou conta do estabelecimento que aí se mostrava instalado, com o recheio, equipamentos e produtos alimentares existentes, que haveriam de ser restituídos e repostos, respetivamente, no termo do contrato.

Depois dos sócios do “Snack-Bar, C (...), Lda.” terem posto termo à respetiva sociedade, por escritura pública, de 23/11/1998, as autoras, representadas por JJ (…) celebraram com o réu C (…), a pedido deste, um contrato de locação comercial do referido estabelecimento, através do qual lho cederam, pelo prazo de três anos, com início a 3/11/1998.

E acrescentam que, por isso, o réu C (…) se mantém desde então a explorar o aludido estabelecimento com os mesmos móveis e equipamentos anteriormente referidos e que são da propriedade das autoras.

Mais salientam que o predito contrato foi celebrado pelo prazo de três anos, com início no dia 3/11/1998, renovável por iguais períodos de tempo, se não fosse denunciado com a antecedência mínima de quatro meses, por carta registada com aviso de receção, sendo que tal cedência da exploração foi feita pelo preço de 540.000$00, pagável em prestações mensais de 15.000$00, do dia 1 ao dia 8 do mês a que respeitava.

Todavia, em 20 de Junho de 2010, as Autoras comunicaram ao Réu, por carta registada com aviso de receção, que denunciavam o contrato de cessão do estabelecimento comercial, por não lhes interessar a sua continuação, devendo proceder à respetiva entrega no dia 24 de Novembro de 2010, recusando-se, contudo, o réu a fazê-lo.

Por último, referem que, desde essa data, computam em 150,00€ mensais os danos por si sofridos pela falta de entrega do estabelecimento locado às autoras.

*

Regularmente citado, o réu C (…) veio apresentar a sua contestação pugnando pela improcedência de todos os pedidos formulados pelas autoras nesta ação, concluindo pela sua absolvição dos mesmos.

Não obstante aceitar o teor dos documentos donde se extrai o vínculo contratual em crise, a verdade é que o autor qualifica-o como um verdadeiro contrato de arredamento e não de locação, ademais e na generalidade impugna os demais factos trazidos a este pleito pelas autoras.

Nessa medida, alega que aquando da celebração da escritura pública, datada de 20/01/1993, o estabelecimento comercial em crise já estava encerrado e fechado há cerca de 12 anos, não existindo no local onde funcionou qualquer vasilhame, bebidas, copos, mesas, cadeiras, chávenas, máquina de café, mercearia.

Aí só existia um balcão, que foi a sociedade “Snack – Bar C (...), Lda.” comprou a J (…) e esposa, sendo que posteriormente à outorga do aludido contrato foi aquela mesma sociedade que procedeu à compra de equipamentos diversos para a exploração do estabelecimento de café e de mercearia no espaço locado, e, bem assim, que procedeu à realização de obras ao nível das portas, janelas e paredes.

Mais refere que na sequência da dissolução da referida sociedade, em 1995, o réu outorgou o contrato aludido que, em seu entender, se trata de um verdadeiro contrato de arrendamento comercial, sendo que, nessa ocasião, o réu comprou o equipamento e recheio existente em tal espaço à anterior inquilina “Snack-Bar, C (...), Lda.” pagando a renda mensal de 10.000$00.

Refere ainda que a 23/11/1998, após a morte de J (…), as ora autoras outorgaram com o réu novo contrato, desta feita não denominado “cessão de exploração” ou de “locação de estabelecimento”, mas só de “locação”. Conquanto, o objeto de tal contrato, foi tão só um espaço para exploração de um estabelecimento comercial do Réu já todo o equipamento nele existente, bebidas, mercearias era à data propriedade do Réu, que os comprou.

Acrescenta que as autoras em conivência com o então seu procurador J (...), pretenderam induzir o Réu em erro, ao denominar tal contrato como sendo de locação, com o fito de fazer cessar o contrato em contradição com a lei, já que sempre lhe foi transmitido que se tratava de um verdadeiro contrato de arrendamento comercial.

Opondo-se à pretendida cessação deste contrato pelas autoras, o ré vem depositando as respetivas rendas numa conta bancária com o n.º 0 (...) aberta na Caixa Geral de Depósitos da Sertã, em nome da 1ª autora.

Mais refere que a origem da vontade de fazer cessar o contrato em discussão pelas autoras prende-se com a circunstância do ré lhes ter solicitado a realização de obras, com o fito do espaço locado ser dotado de licença de utilização, aliás, o que, em seu entender, sempre teria impedido a celebração do contrato em discussão.

Por último, o réu elencou todas as deficiências que o locado apresenta, que fazem com que não tenha condições de salubridade e higiene, repercutindo-se na impossibilidade do réu continuar a explorar o estabelecimento existente no espaço locado, e, bem assim, escalpelizou as repercussões que esta situação vem tendo no seu ânimo.

Em reconvenção, o réu veio peticionar a condenação das autoras a serem condenadas a reconhecer que o contrato em crise é um contrato de arrendamento comercial, que tem por objeto o rés-do-chão do prédio em discussão; serem condenadas a realizar e custear todas as obras necessárias para que tal espaço seja dotado de licença de utilização; serem condenadas a realizar e custear todas as obras tendentes a impedir que se infiltre no locado água pluvial através do telhado; serem condenadas a indemnizar o réu de todos os prejuízos futuros, resultantes da circunstância de tal espaço não ser dotado de licença de utilização e de carecer de condições de salubridade; e, bem assim, serem condenadas a indemnizar a ré na quantia de 10.000,00€, a título de danos morais.

Por último, depois de requerer a intervenção principal provocada de J (...), o réu peticionou a sua condenação solidária com as autoras nos pedidos formulados, em reconvenção, sob as alíneas b), c), d) e e) ou caso se prove que o demandado induziu em erro o Réu, contra a vontade das autoras, ser condenado em todos os prejuízos que o réu venha a sofrer com a dedução da presente ação.

*

Respondendo, as autoras impugnaram todos os factos trazidos à demanda reconvencional pelo réu, pugnando, nessa medida, pela sua improcedência, com a sua concomitante absolvição dos pedidos contra si formulados.

*

Foi admitida a intervenção principal provocada de JJ (…), do lado ativo, tendo o mesmo sido citado para os termos desta ação.

*

Foi dispensada a realização da audiência prévia, procedeu-se à elaboração do despacho saneador e admitidos os meios de prova requeridos pelas partes.

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Procedeu-se à realização de audiência final, seguindo-se as formalidades legais decorrentes das regras adjetivas introduzidas pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.

                                                           *

Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada, importava concluir no sentido de que entre as partes havia sido celebrado um contrato de cessão de exploração comercial (ou de locação comercial), sendo válida a cessação do mesmo que as AA. operaram por denúncia, com efeitos no dia 23.11.2010, tendo o R. que pagar às AA., a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado, o valor da renda mensal de € 88,40 desde essa data até efectiva e integral entrega, improcedendo totalmente a reconvenção deduzida pelo R., e bem assim improcedendo o pedido de condenação por litigância de má fé por parte deste, o que tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:

«Decisão

Pelo exposto, decido:

1. julgar a presente ação declarativa parcialmente improcedente e, em consequência, decido:

- declarar a cessação, no dia 23/11/2010, por oposição a renovação, do contrato celebrado por escritura pública, datada de 23/11/1998, denominada de Locação, exarada no cartório notarial da Sertã, e lavrada de fls. 117 a 118, do livro n.º 779-A, outorgada entre as autoras ML (…), MC (…), MF (…) e AM (…)  e o réu C (…), que tem como objeto o estabelecimento comercial de café e mercearias, instalado no rés-do-chão de um prédio urbano, situado no lugar de C (...), composto de casa de rés-do-chão e sótão, aí melhor identificado;

- condenar o réu C (…) a proceder à entrega do aludido estabelecimento comercial e do prédio onde ele se mostra instalado às autoras ML (…), MC (…), MF (…) e AM (…)   livre de pessoas e bens que lhes não pertençam;

- condenar o réu C (…)  a pagar às autoras ML (…), MC (…), MF (…) e AM (…)   a título de indemnização por atraso da entrega do aludido estabelecimento comercial e do prédio onde ele se mostra instalado, a quantia de 88,40€ (oitenta e oito euros e quarenta cêntimos), por cada mês volvido, desde o dia 24/11/2010, até integral e efetiva entrega, devendo, para tanto, ser disponibilizado às autoras, os montantes pecuniários depositados à ordem dos presentes autos, absolvendo-se o réu do demais peticionado.

2. julgar a demanda reconvencional deduzida pelo réu C (…) contra as autoras ML (…), MC (…), MF (…) e AM (…)   totalmente improcedente e, em consequência, absolvê-las de todos os pedidos contra si formulados.

Custas pelas autoras e pelo réu, na proporção dos respetivos decaimentos.

Notifique e registe.»

                                                           *

            Inconformada com essa sentença, apresentou o Réu recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

                                                                       *

            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                      *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Ré nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- impugnação da matéria de facto, quanto à resposta de “provado” constante dos factos “3.”, “12.” e “15.”, relativamente aos quais a resposta devia ter sido de “não provado”; e quanto aos factos das alíneas “b.”, “c.”, “e.”, “f.”, “h.”, “i.” e “j.” dos factos “não provados”, cujos factos deviam figurar entre os “provados”;

- incorreto julgamento de direito, por ao invés do que foi pressuposto da sentença – a celebração de um contrato de “cessão de estabelecimento comercial” – ter sido celebrado um “contrato de arrendamento comercial”, face ao que, à luz da factualidade provada, devia o pedido reconvencional ser julgado procedente por provado e bem assim ser julgada improcedente a acção.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância:

«1.1. Dos factos provados:

1. Por escritura pública, datada de 20/01/1993, denominada de Cessão de Exploração, exarada no cartório notarial da Sertã, e lavrada de fls. 18 a 19, do livro n.º 751-C, como primeiro outorgante interveio JJ (…), na qualidade de procurador de J (…) e ML (…) e, como segundos outorgantes intervieram C (…) e L (…), na qualidade de únicos sócios e gerentes da sociedade Snack-Bar, C (...), Lda..

2. E dela consta o seguinte teor: O primeiro outorgante, tão só na qualidade em que outorga, declara que os seus representados são donos e legítimos possuidores de um estabelecimento comercial de café e mercearias, instalado no rés-do-chão de um prédio urbano, situado no referido lugar de C (...), composto de casa de rés-do-chão e sótão, que parte do norte e nascente com a estrada, sul e poente com J (…) (…).

Declarou ainda que o primeiro outorgante que os seus representados, pelo preço de setecentos e vinte mil escudos, cedem à representada dos segundos outorgantes, Snack-Bar, C (...), Lda., o aludido estabelecimento comercial.

Que o presente contrato tem a duração de seis anos a iniciar no dia de hoje e que o preço da presente cessão é pago em prestações mensais de dez mil escudos.

No final de cada contrato o mesmo poderá ser renovado desde que, com antecedência mínimo de quatro meses, o mesmo seja denunciado por escrito.

Quaisquer alterações ou benfeitorias que a cessionária pretender levar a cabo no estabelecimento, ficam sempre dependentes de autorização escrita dos cedentes, não lhe conferindo direito a qualquer indemnização.

3. Pelo referido em 1) e 2) e desde essa data, a sociedade Snack-Bar, C (...), Lda. passou a explorar o café que aí se encontrava instalado, encontrando-se à sua disposição para sua utilização um balcão frigorífico, mesas e cadeiras, máquina de café, copos e chávenas, entregando, em contrapartida, a quantia pecuniária mensal acordada.

4. Todavia, em virtude da extinção da sociedade Snack-Bar, C (...), Lda.. J (…)  e mulher ML (…)  e o réu C (…) outorgaram a escritura pública que se segue.

5. Por escritura pública, datada de 01/09/1995, denominada de Locação de Estabelecimento, exarada no cartório notarial da Sertã, e lavrada a fls. 65, do livro n.º 739-D, como primeiros outorgantes intervieram J (…) e de M (…), e, como segundo outorgante interveio C (…).

6. E dela consta o seguinte teor: Os primeiros outorgantes declaram que são donos e legítimos possuidores de um estabelecimento comercial de café e mercearias, instalado no rés-do-chão de um prédio urbano, situado no referido lugar de C (...), composto de casa de rés-do-chão e sótão, que parte do norte e nascente com a estrada, sul e poente com o primeiro outorgante (…) e que, pela presente escritura, celebram com o segundo outorgante, um contrato de locação de estabelecimento comercial, nos termos constantes dos artigos seguintes:

1º A locação é feita pelo prazo de três anos, contado a partir de hoje, com renovação por iguais e sucessivos períodos de tempo, se o mesmo não vier a ser denunciado, com a antecedência mínima de quatro meses, por carta registada com aviso de receção.

2º Por este contrato o segundo outorgante pagará a importância de trezentos e sessenta mil escudos, em prestações mensais de dez mil escudos, na residência dos primeiros outorgantes.

3º Quaisquer obras ou benfeitorias que o segundo outorgante pretenda levar a cabo no referido estabelecimento, ficam sempre dependentes da autorização escrita dos primeiros outorgantes, não lhe conferindo direito a qualquer indemnização.

7. No dia 15/12/1997, faleceu J (…), no estado de casado com M (…) que não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.

8. Do seu casamento com M (…) nasceram três filhas: (…).

9. Por escritura pública, datada de 23/11/1998, denominada de Locação, exarada no cartório notarial da Sertã, e lavrada de fls. 117 a 118, do livro n.º 779-A, como primeiro outorgante interveio JJ (…), na qualidade de procurador de ML (…), MC (…), MF (…) , AM (…)  , e, como segundo outorgante interveio C (…)..

10. E dela consta o seguinte teor: Que os representados do primeiro outorgante são donos e legítimos possuidores de um estabelecimento comercial de café e mercearias, instalado no rés-do-chão de um prédio urbano, situado no referido lugar de C (...), composto de casa de rés-do-chão e sótão, que parte do norte e nascente com a estrada, sul e poente com o primeiro outorgante (…)

Que pela presente escritura e nas referidas qualidades em que outorgam, celebram entre si um contrato de locação de estabelecimento comercial, nos termos seguintes:

1º Os representados do primeiro outorgante cedem ao segundo, C (...), o acima referido estabelecimento comercial.

2º Este contrato é feito pelo prazo de três anos e vai ter o seu início no dia de hoje, com renovação por iguais e sucessivos períodos de tempo, se o mesmo não vier a ser denunciado, com a antecedência mínima de quatro meses, por carta registada com aviso de receção.

3º O preço é de quinhentos e quarenta mil escudos, pagável no próprio estabelecimento, em prestações mensais, de quinze mil escudos, devendo o pagamento de cada prestação, contra recibo, ser efetuado do dia um ao dia oito do mês a que respeitar.

4º O segundo outorgante, depois de prévia autorização, dada por escrito, pelos cedentes, poderá efetuar no estabelecimento referido obras ou benfeitorias necessárias para a exploração da atividade acordada neste contrato, não lhe conferindo direito a qualquer indemnização.

11. Em virtude do decesso de J (…), as autoras e o réu decidiram outorgar a escritura pública descrita em 9) e 10).

12. Pelo referido em 5), 6), 9) e 10) e desde essas datas, o réu passou, por si só, a explorar o café que aí se encontrava instalado, mantendo-se à sua disposição o equipamento descrito em 3), entregando, em contrapartida, a quantia pecuniária mensal sucessivamente acordada.

13. Por carta, datada de 20/06/2010, com aviso de receção, enviada ao réu C (…)e recebida a 29/06/2010, as autoras comunicaram-lhe o seguinte:

Porque não nos convém a continuação do contrato de locação, vimos pela presente carta denunciar o contrato para o termo do prazo de renovação em curso, ou seja em 23 de Novembro de 2010, pelo que deve fazer-nos entrega do estabelecimento de café e mercearias, no dia imediato ao termo do prazo de renovação, isto é, em 24 de Novembro de 2010.

14. Até à presente data o réu não procedeu à entrega às autoras do aludido café, impedindo-as de o utilizar, encontrando-se o autor a depositar mensalmente 88,40€ mensais a título de renda.

15. Sem prejuízo do descrito em 3), à data descrita 1), o aludido café não se encontrava aberto ao público.

16. Em data não concretamente apurada mas posterior a 04/11/1993, a sociedade Snack – Bar C (...), Lda. procedeu à realização de obras no locado ao nível das portas, janelas e paredes.

17. Em 06/07/1993, a sociedade Snack – Bar C (...), Lda. comprou uma máquina registadora regna 2012, e, em 31/07/1993, uma vitrine 1000.

18. Em 23/09/1998, o réu C (…) procedeu à reparação de uma máquina de café de um grupo e comprou uma máquina registadora regna alfanumérica.

19. Em 27/12/2007, o réu C (…) comprou uma registadora Samsung.

20. Em 23/01/2010, o réu C (…) comprou uma arca congeladora.

21. Em 25/1/2010, o réu C (…) comprou um televisor Toshiba.

22. Em 18/05/2010, o réu C (…) comprou um arrefecedor de garrafas MRK e um electrocolador de insetos.

23. Em 27/12/2007, o réu C (…) comprou uma registadora Samsung.

24. O espaço onde se encontra instalado o referido estabelecimento apresenta humidades e infiltrações nos tetos e paredes provenientes de águas pluviais; não tem esgoto; não tem instalações sanitárias regulamentares.

25. Na sequência de uma visita inspetiva da ASAE ao referido estabelecimento, pelo referido em 24), em maio de 2014, o réu decidiu encerrar o predito estabelecimento.

26. A vistoria elaborada pelo Município da Sertã conclui que o edifício onde se encontra instalado o aludido café não reúne condições de salubridade, só podendo aí ser instalado um estabelecimento de bebidas ou um estabelecimento comercial após a realização das seguintes obras: reconstrução e isolamento da cobertura; colocação de vãos e respetivas caixilharias; colocação de dispositivos contra queda, pintura de paredes exteriores, revestimento e pintura de paredes interiores, demolição e construção de instalações sanitárias; reparação da instalação elétrica e de iluminação; instalação de segurança contra incêndios; reparação de tetos; demolição e reconstrução de zona destinada à confeção de alimentos.

                                                                       ¨¨

2.2. Dos factos não provados:

a. Nas circunstâncias descritas em 3), encontrava-se à disposição da sociedade Snack-Bar, C (...), Lda. produtos alimentares, tais como, açúcar, massas, farinha, arroz, feijão, café, cervejas, vinhos e sumos.

b. Nas circunstâncias descritas em 3), foi a sociedade Snack-Bar, C (...), Lda. que comprou ao J (…) o balcão frigorífico aí aludido.

c. Acordaram expressamente que o equipamento existente no referido café seria devolvido aquando do termo do contrato.

d. O descrito em 14) causa às autoras um prejuízo de 150,00€ mensais.

e. À data descrita em 1), o aludido café encontrava-se encerrado há mais de 12 anos.

f. Após a data descrita em 1) e para dar início à exploração do aludido café a sociedade Snack – Bar C (...), Lda. comprou mesas, cadeiras, máquina de café, copos, chávenas, bebidas e mercearias.

g. Na sequência do descrito em 4), o réu C (…) comprou à sociedade Snack – Bar C (...), Lda. todo o equipamento e recheio aí existente.

h. O réu C (…) outorgou as escrituras públicas supra enunciadas na convicção de que, através delas, estava apenas a aceitar o gozo do prédio aí aludido, para que aí pudesse explorar a sua atividade comercial, mediante o pagamento de um montante pecuniário mensal.

i. As autoras e o chamado J (...), respetivamente, estavam cientes do aludido em H).

j. Atenta a posição assumida pelas autoras, o réu vive triste, em constante sobressalto, revoltado, vendo-se em risco de perder todo o avultado investimento que fez no seu estabelecimento comercial.»

                                                                       *

            3.2 – O Réu/recorrente deduz impugnação da matéria de facto, iniciando-a quanto à resposta de “provado” constante dos factos “3.”, “12.” e “15.”, relativamente aos quais a resposta devia ter sido de “não provado”:

(…)

Nestes precisos termos improcedendo “in totum” a impugnação da matéria de facto.

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre agora entrar na apreciação da questão neste particular supra enunciada, esta já directamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, que ocorreu incorreto julgamento de direito por, ao invés do que foi pressuposto da sentença – a celebração de um contrato de “cessão de estabelecimento comercial” –, ter sido celebrado um “contrato de arrendamento comercial”, face ao que, à luz da factualidade provada, devia o pedido reconvencional ser julgado procedente por provado e bem assim ser julgada improcedente a acção.

Será assim?

Se bem captamos o sentido do alegado pelo Réu/recorrente, este seu fundamento tinha como pressuposto lógico e jurídico necessário o erro na decisão da matéria de facto, particularmente visando o Réu/recorrente que deixasse de figurar na matéria provada que na sequência da 1ª escritura pública de locação (e desde a data da sua celebração – 20.01.1993), a sociedade locatária tivesse passado a explorar o estabelecimento de Café que aí se encontrava instalado, encontrando-se à sua disposição os “bens” e “equipamentos” que o constituíam e que pelo contrato e para os efeitos do mesmo, através dele foram transferidos para a locatária.

Sucede que não se deferiu a essa pretensão do Réu/recorrente, como melhor flui do que antecede.

Pelo que entendemos estar só por aí fatalmente votado ao insucesso o sustentado neste enquadramento.

E nem se argumente que igualmente foi questionado o enquadramento jurídico propriamente dito, com base no argumento de que o que na realidade foi outorgado foi um contrato de “arrendamento comercial”, à luz do art. 110º do R.A.U. (normativo ao caso aplicável), mais propriamente porque «Fixando, o nº 2 de tal normativo que se ocorrer alguma das circunstâncias previstas no nº 2 do art. 115º – isto é, quando a cedência do estabelecimento, não se faça como um todo, uma universalidade – o contrato é havido como arrendamento do prédio».

Isto porque resultava apurado que «o espaço em causa estava fechado há mais de 10 anos, não tendo clientela, não tendo aviamento, não tendo mercadorias/produtos e maquinaria»...

Ora, desde logo, esta factualidade não resultou minimamente apurada.

Acresce que essa asserção sempre seria no essencial de repudiar, na medida em que se, em regra, o estabelecimento se configura como uma estrutura material e jurídica em regra integrante de pluralidade de coisas corpóreas e incorpóreas – móveis e ou imóveis, incluindo as próprias instalações, direitos de crédito, direitos reais e a própria clientela ou aviamento – organizados com vista à realização do respectivo fim, não obstante, importa não olvidar que o seu âmbito material e jurídico é susceptível de variar consoante a natureza do ramo de actividade desenvolvida, com reflexo na maior ou menor amplitude dos respectivos elementos.[2]

Ora, o “estabelecimento de café e mercearias” ajuizado, pela sua localização geográfica e período temporal em causa, é paradigmático desta linha de entendimento, como bem se sublinhou na sentença recorrida quando aí se alertou que a boa interpretação e decisão sobre a questão controvertida «tem que ter como pano de fundo a revisitação da realidade comercial vivida na década dos anos 90, numa aldeia como C (...), onde a insipiência e a rudimentaridade do exercício de uma actividade comercial, quer de café, quer de mercearia era evidente».  

Por outro lado, «A cessão de exploração pode recair sobre um estabelecimento de que nada ainda existe, como sobre um estabelecimento incompleto, que não está concluído, mas em via de formação bem como sobre um estabelecimento cuja exploração ainda se não tenha iniciado ou esteja interrompida»[3].

Com o que diretamente está dada a resposta à eventual objecção de no caso vertente ter resultado apurado que, “à data” da celebração da 1ª escritura pública (20/1/1993), “o aludido café não se encontrava aberto ao público” – cf. facto provado sob “15.”... 

Assim sendo, subsistem todos os fundamentos de facto e de direito para a decisão constante da sentença recorrida, nomeadamente quanto a considerar válida e relevante a denúncia do contrato de locação comercial operada pelas AA., com a consequente condenação do Réu no correspondente reconhecimento e na entrega do estabelecimento comercial e do prédio onde ele se encontra instalado às AA..

Com efeito, não vislumbramos como questionar a decisão no sentido da procedência da acção que teve lugar, o que igualmente sucede no que à correspondente improcedência da reconvenção diz respeito.

Donde, “brevitatis causa”, improcede fatalmente o presente recurso.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – O âmbito mínimo ou necessário na transmissão de um estabelecimento comercial, seja por via de trespasse seja por via de locação de estabelecimento, tem de possuir uma concordância temática com o estabelecimento que é transmitido, isto é, no estabelecimento transmitido têm de estar presentes os traços definidores e distintivos da actividade que aí era exercida, donde, o enquadramento da situação ajuizada (“estabelecimento de café e mercearias”) tem de ser feito à luz da realidade comercial vivida na década dos anos 90 do séc.XX, numa aldeia do interior da zona centro do País, onde a insipiência e a rudimentaridade do exercício dessa actividade comercial, era evidente.

II – Assim, importa dar-se resposta positiva – em termos de qualificação sobre ter ou não havido “locação de estabelecimento comercial” – mesmo quando nos termos e para os efeitos dessa transmissão do estabelecimento, a sociedade locatária unicamente passou a ter “à sua disposição para sua utilização um balcão frigorífico, mesas e cadeiras, máquina de café, copos e chávenas”.

III – A cessão de exploração pode recair sobre um estabelecimento de que nada ainda existe, como sobre um estabelecimento incompleto, que não está concluído, mas em via de formação bem como sobre um estabelecimento cuja exploração ainda se não tenha iniciado ou esteja interrompida.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, pela total improcedência da apelação, mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.  

            Custas do recurso pelo Réu/recorrente.                                                                                                                               *

Coimbra, 27 de Abril de 2017

                                              

Luís Filipe Cravo ( Relator )

 Fernando Monteiro

António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

[2] Neste sentido, vide o acórdão do S.T.J. de 28/06/2007, proferido no proc. nº 07B1532, cujo texto integral pode ser acedido em www.dgsi.pt/jstj.
[3] Assim no acórdão do mesmo S.T.J. de 19/04/2012, proferido no proc. nº 5527/04.2TBLRA.C1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.