Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
590-E/2001.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
PARTILHA
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
Data do Acordão: 10/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 46, 52, 1354, 1382 CPC/61
Sumário: 1. A sentença homologatória da partilha (art.º 1382º, n.º 1, do CPC de 1961), uma vez transitada em julgado, constitui título executivo.

2. Se determinada verba for aprovada por todos os interessados e partilhada no inventário como dívida do casal, verifica-se o caso julgado relativamente ao credor que seja interessado no inventário, considerando-se a dívida judicialmente reconhecida e exigível, ainda que falte a expressa condenação no seu pagamento a que alude a parte final do n.º 1 do art.º 1354º, do CPC de 1961.

3. Com o trânsito em julgado da sentença que homologou a partilha ficou definitivamente fixado o direito dos intervenientes no processo de inventário, sendo que o direito da exequente (credor) ficou definido com rigor em sede de conferência de interessados (competente para deliberar sobre a aprovação e forma de pagamento do passivo relacionado/art.º 1353º, n.º 3, do CPC de 1961) e no mapa da partilha - o que aí se concretiza, em obediência ao acordado ou decidido no processo de inventário, deverá pois ser cumprido/executado.

4. Daí que assista legitimidade à exequente para requerer a execução da sentença no que respeita ao pagamento de tal crédito, reconhecido no inventário, ou, dito doutra forma, cuja obrigação ficou declarada ou constituída pela sentença homologatória da partilha.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

I. Em 01.9.2013, por apenso à execução para pagamento de quantia certa instaurada por C (…), Lda., contra I (…), esta opôs-se à execução e à penhora, invocando, em síntese, por um lado, a inexistência de título executivo - a sentença homologatória da partilha celebrada entre a executada e o seu ex-marido, dada à execução, não condenou os ex-cônjuges no pagamento de qualquer dívida à exequente, sendo que a “verba 6” da relação de bens apresentada no inventário e correspondente à alegada dívida está descrita como uma “dívida condicional” -, por outro lado, que a dívida sempre se encontraria prescrita, pois não celebrou qualquer mútuo com a exequente, pelo que a pretensão creditícia só pode basear-se em enriquecimento sem causa, prescrevendo no prazo de 3 anos (tendo a dívida sido aprovada em conferência de interessados realizada em 16.4.2010, o prazo de prescrição ocorreu em 16.4.2013, sendo que a executada foi citada em 18.6.2013) e, finalmente, que se deverá reduzir o valor a penhorar como se indica no ponto II da oposição.

A exequente contestou, concluindo pela improcedência da oposição.

No saneador-sentença, proferido a 30.01.2014, a Mm.ª Juíza a quo concluiu pela verificação da excepção do caso julgado - e consequente impossibilidade de apreciação da questão da suficiência ou insuficiência do título executivo - e pela improcedência das excepções invocadas, julgando a oposição totalmente improcedente e ordenando o prosseguimento da execução.

            Inconformada, pugnando pela procedência da oposição à execução, a executada/oponente interpôs recurso de apelação formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

1ª - Para que a sentença homologatória da partilha fosse título executivo da alegada dívida, teria que ser uma sentença condenatória (art.º 46º/1/a) do CPC rev. e art.º 703º/1/a) do CPC 2013).

2ª - A sentença homologatória da partilha não condenou a Executada a efectuar qualquer pagamento, e determinava art.º 1354º, n.º 1, do CPC rev., então vigente, que “As dívidas que sejam aprovadas pelos interessados maiores e por aqueles a quem compete a aprovação por parte dos menores ou equiparados consideram-se judicialmente reconhecidas, devendo a sentença que julgue a partilha condenar no seu pagamento.”

3ª - A alegada dívida consta da “Verba n.º 6” da Relação de Bens, com o seguinte teor: “Verba nº 6

Dívida do casal à sociedade C (…) Lda, com sede na Rua (...), na cidade, freguesia e concelho de Castelo Branco, no montante de € 32 500 e legais acréscimos, salvo se se provar que esta dívida sofreu posterior redução.

Em 1995, um cheque de Esc. 5 000 000$00 (equivalente a € 24 939,89) emitido e entregue pelo falecido pai da cabeça de casal a esta em 11/04/1995, foi, por indicação dada pelo Dr. (..)à então sua mulher, a cabeça de casal, endossado pela mesma ao Dr. (…), sócio da C (…) porventura para amortização desta dívida uma vez que a cabeça de casal não tem conhecimento de qualquer dívida àquele Senhor. Não foi dada posteriormente qualquer informação à cabeça-de-casal quanto ao destino desta quantia.

4ª - Perante o teor desta “Verba n.º 6”, forçoso é concluir que a alegada dívida não foi aprovada incondicionalmente pelos interessados, pelo que andou bem a sentença homologatória da partilha, transitada em julgado, quando não condenou a Executada ao pagamento de qualquer valor.

5ª - Uma sentença só é título executivo se for “condenatória” (art.º 46º/1/a) do CPC rev.), tal como só são títulos executivos “os despachos e quaisquer outras decisões ou actos da autoridade judicial que condenem no cumprimento de uma obrigação” (art.º 48º/1 do CPC rev.).

Por isto é que o art.º 1354º/1 do CPC rev. determina que deve “a Sentença que julgue a partilha condenar no seu pagamento”.

6ª - O Tribunal tem que verificar quais as dívidas que foram de facto reconhecidas incondicionalmente por todos os interessados no processo de inventário, de modo a condenar no seu pagamento, e só com base numa condenação expressa poderá o tribunal de execução aceitar como título executivo a sentença homologatória de uma partilha.

7ª - In casu, a sentença homologatória da partilha - com o seguinte teor: “Homologo por sentença a partilha constante do mapa de fls. 1378 e seguintes, adjudicando aos interessados os respectivos quinhões” - não condena a Executada a pagar coisa nenhuma e portanto não é título executivo.

8ª - Na Oposição à Execução, a Recorrente alegou a prescrição da pretensa dívida exequenda, a qual, a existir, só podia decorrer de enriquecimento sem causa.

9ª - A Conferência de Interessados, em que foi (alegadamente) aprovada a (alegada) dívida sub judice, ocorreu no dia 16.4.2010, o que teria por efeito inutilizar todo o tempo de prescrição decorrido anteriormente, tendo começado a correr novo prazo, pelo que a prescrição ocorreu no dia 16.4.2013 (art.ºs 325º/1, 326º/1 e 482º, do Código Civil/CC).

A Sentença homologatória da partilha é de 08.6.2011 (ou seja, o facto extintivo da obrigação – a prescrição, ocorreu posteriormente ao “encerramento da discussão no processo de declaração” (art. 814º/1/g) do CPC rev.).

A Executada foi citada para a presente Execução no dia 18.6.2013.

10ª - A sentença homologatória de uma partilha não é susceptível de integrar a previsão do art.º 311º, do Código Civil, pela razão simples de que não reconhece o direito para o qual a lei estabelece prazo de prescrição mais curto do que o ordinário - in casu, a sentença homologatória da partilha “não conheceu do mérito da causa, não se pronunciou sobre a relação substancial em litígio” e “nada mais representa do que a homologação do acordo a que as partes chegaram”.

11ª - Ao tomar conhecimento incidental da Execução (devido a actos de penhora), a Executada apresentou um requerimento “apenas para reclamar de actos praticados pela Sra. Agente de Execução (art.º 809º, n.º 1, alínea c), do CPC) e de que o Tribunal pode conhecer oficiosamente (art.º 820º do CPC)”; e tendo até o cuidado de dizer que essa reclamação “não constitui nem pode constituir Oposição à Execução ou à Penhora”.

12ª - A Executada apresentou essa reclamação alegando que “Devia a Sra. Agente de Execução ter recusado o recebimento do requerimento executivo, por manifesta insuficiência do título […] (art.º 811º, n.º 1, alínea b), do CPC)”.

Por Despacho de 20.5.2013, esta reclamação foi indeferida, “sem possibilidade de recurso” (art.º 809º, n.º 1, alínea c), do CPC), não podendo ter força de caso julgado um despacho insusceptível de recurso.

            13ª - O presente recurso tem como “fundamento específico” (art.º 637/2 do CPC) o facto de a Decisão Recorrida ter considerado legítimo o Título Executivo apresentado pela Executada, quando o não é, pois trata-se uma sentença homologatória de uma partilha que não condena a executada ao pagamento da quantia exequenda.

14ª - A Decisão Recorrida violou as seguintes normas jurídicas:

- O art.º 46º/1/a) do CPC rev. (art.º 703º/1/a) de 2013), norma que confere a natureza de título executivo às sentenças condenatórias, e a Sentença homologatória da partilha, que a Decisão recorrida admitiu como título executivo, não condenou a Executada ao cumprimento de qualquer obrigação;

- O art.º 311º do CC, na medida em que Decisão recorrida considerou que a sentença homologatória da partilha teve por efeito a modificação do prazo de prescrição da dívida exequenda, passando o mesmo a ser o prazo ordinário de 20 anos, quando esta norma só atribui esse efeito às sentenças ou outros títulos executivos que reconheçam o direito, sendo certo que a sentença homologatória de uma partilha não reconhece o direito para o qual a lei estabelece prazo de prescrição mais curto do que o ordinário;

- O art.º 619º do CPC (art.º 671º, n.º 1, do CPC rev.), disposição legal que confere efeito de caso julgado à “sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa”, e a Decisão recorrida atribuiu esse efeito a um mero despacho que indeferiu uma reclamação apresentada ao abrigo do art.º 809º, n.º 1, alínea c), do CPC rev., despacho esse que, nos termos desta disposição legal, não é sequer recorrível.

            A exequente respondeu sustentando a improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa verificar e decidir as seguintes “questões”: a) caso julgado; b) exequibilidade do título que serve de base à execução; c) prescrição.

*

II. 1. Releva o seguinte quadro fáctico[1]:

            a) Nos autos de inventário intentados na sequência da dissolução, por divórcio, do matrimónio de I (…) (recorrente/executada) e A (…)[processo 590-A/2001] e no qual a exequente interveio como credora (do dissolvido casal), por despacho de 15.7.2005, que se pronunciou sobre a reclamação contra a relação de bens, foi determinado, além do mais, que “a cabeça-de-casal, em 10 dias: apresente relação adicional de bens no que concerne à dívida à C (…), por ela reconhecida, eliminando da mesma os supra referenciados bens próprios dela e do interessado J (…)” e “relegar para a conferência de interessados a apreciação do passivo do património comum e do valor dos respectivos bens”.

            b) Em 02.11.2005, a referida I (…), na qualidade de cabeça-de-casal, apresentou uma (nova) Relação de Bens da qual constava a seguinte “Verba n.º 6” do passivo:

“Verba nº 6

Dívida do casal à sociedade C (…), Lda., com sede na Rua (...), na cidade, freguesia e concelho de Castelo Branco, no montante de €32.500,00 e legais acréscimos, salvo se se provar que esta dívida sofreu posterior redução.

Em 1995, um cheque de Esc. 5.000.000$00 (equivalente a €24.939,89) emitido e entregue pelo falecido pai da cabeça de casal a esta em 11/04/1995, foi, por indicação dada pelo Dr. (…) à então sua mulher, a cabeça de casal, endossa pela mesma ao Dr. (…), sócio da C (…) porventura para amortização desta dívida uma vez que a cabeça de casal não tem conhecimento de qualquer dívida àquele Senhor. Não foi dada posteriormente qualquer informação à cabeça-de-casal quanto ao destino desta quantia.

            c) Na conferência de interessados realizada em 16.4.2010 foi obtido acordo quanto à composição dos quinhões e aprovado o passivo, consignando-se quanto à dita “Verba n.º 6” do passivo: “Verba n° 6 foi aprovada a divida à COBI, no valor de 32.500,00€”.

d) Ouvida sobre a forma da partilha, a cabeça-de-casal reportou-se às “deliberações da [dita] conferência de interessados” e, quanto à mencionada verba do passivo, referiu: “Relativamente à verba nº 6 do Passivo (crédito reclamado pela C (…) Lda., no valor total de € 32.500,00), foi acordado que cada um dos ex-cônjuges assume a responsabilidade pelo pagamento de metade”.

e) No correspondente mapa da partilha e quanto ao “Passivo aprovado em sede de Conferência de interessados a fls. 1285 a 1287”, especificou-se, relativamente a cada um dos ex-cônjuges e à referida “ Verba nº 6 (seis) ”: “Dívida à CC (…), Lda. - 32.500,00 €”, ´É a sua parte no Passivo – um meio (1/2)   ………….    16.250,00 €`”.

f) A sentença homologatória da partilha, de 08.6.2011, tem a seguinte redacção: “Nos presentes autos de inventário a que se procede para separação de meações do dissolvido casal constituído por I (…) e A (…) em que é cabeça de casal a primeira, homologo por sentença a partilha constante do mapa de fls. 1378 e seguintes, adjudicando aos interessados os respectivos quinhões. Custas nos termos do disposto no artigo 1383º, nº 1 do Código de Processo Civil. Registe e notifique.”

g) A referida sentença transitou em julgado.

            h) A exequente/recorrida intentou a presente acção executiva em 06.10.2011 (processo 590-D/2001TBCTB), por apenso ao aludido processo de inventário com o fundamento de que por “sentença proferida no processo apenso n.º 590-A/2001, que homologou o Mapa de Partilha, já transitada em julgado, foi a ora executada reconhecida como devedora da exequente no montante de 16.250.00€ (Pagamentos, Verba nº 6)” e que “a sentença condenatória transitada em julgado constitui título executivo bastante”.

i) A executada/oponente, antes da sua citação para se opor à execução e ressalvando que não se tratava de uma “oposição à execução”, requereu o indeferimento liminar do requerimento executivo por manifesta falta ou insuficiência do título, relativamente à executada, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 812-E Código de Processo Civil de 1961 - aduziu que a sentença homologatória dada à execução não a condenou a pagar qualquer dívida à exequente, pelo que não pode constituir título executivo e a Sra. Agente de Execução devia ter recusado o recebimento do requerimento executivo (art.º 811º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil).

j) Por despacho de 21.5.2013, proferido nos autos de execução, a Mm.ª Juíza a quo indeferiu aquele pedido, tendo considerado que “embora não tendo sido expressa na sentença homologatória da partilha a condenação da executada no pagamento da divida em causa, esta condenação terá que, necessariamente, considerar-se contida na homologação do mapa de partilha, onde é expressamente reconhecida a responsabilidade da executada pelo pagamento de €16.250,00, por conta da divida à COBI, devidamente aprovada pelos interessados, tendo sido tal montante contabilizado, designadamente, para efeitos de partilha, maxime para o cálculo das tornas.

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Atenta a data da instauração da execução [cf. II. 1. h), supra], aplica-se ao presente caso o Código de Processo Civil de 1961 (na redacção conferida pelo DL n.º 226/2008, de 20.11).[2]

3. A Mm.ª Juíza a quo começou por considerar, como “questão prévia”, a excepção do caso julgado, em face do aludido despacho de 21.5.2013, que, no descrito enquadramento, se pronunciou pela suficiência do título executivo e mandou prosseguir a execução, tendo condenado a executada nas “custas pelo incidente” [cf. II. 1. alíneas i) e j), supra e documento de fls. 85 a 89].

Perante a alegação de recurso e a perspectiva que terá sido manifestada pela própria executada naquele seu requerimento, esta ter-se-á reportado à actuação do Agente de Execução (actos de penhora ou tendentes à sua realização) e à previsão do art.º 809º, n.º 1, alínea c) [cf., ainda, as “conclusões 11ª e 12ª”/ponto I, supra].

Por seu lado, a Mm.ª Juíza a quo concluiu pela existência de “caso julgado” quanto à problemática da insuficiência do título dado à execução mas não deixou de conhecer a matéria de excepção invocada na oposição à execução.

Porque, por um lado, se trata de uma questão insuficientemente esclarecida nos autos de recurso (ainda que considerado o teor dos documentos juntos após o despacho do relator de fls. 80) e, por outro lado, a executada terá actuado no pressuposto/convicção de que a decisão a proferir não era recorrível [art.º 809º, n.º 1, alínea c)], o que terá porventura “ditado” a actuação do próprio tribunal a quo ao decidir conhecer de toda a oposição à execução, tudo ponderado, pensamos que não será possível verificar da existência dos pressupostos da dita excepção (cf., designadamente, o preceituado nos art.ºs 497º e 498º).

Importa, assim, prosseguir e conhecer das demais questões suscitadas.

4. Toda a execução tem por base um título, que além de determinar o seu fim e, consequentemente, o seu tipo, estabelece os seus limites objectivos e subjectivos (art.º 45º, n.º 1).

Nos termos do n.º 1 do art.º 46º [sob a epígrafe “Espécies de títulos executivos”], à execução apenas podem servir de base: a) as sentenças condenatórias; b) os documentos elaborados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação; c) os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto; d) os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.

E estabelece o n.º 1 do art.º 47º que a sentença só constitui título executivo depois do trânsito em julgado, salvo se o recurso contra ela interposto tiver efeito meramente devolutivo.

5. O título executivo apresenta-se como requisito essencial da acção executiva e há-de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, i. é, documento susceptível de, por si só, revelar, com um mínimo aceitável de segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo; dito doutra forma, tal documento constituirá prova do acto constitutivo da dívida na medida em que nos dá a relativa certeza ou probabilidade julgada suficiente da existência da dívida (a existência da obrigação por ele constituída ou nele certificada), sem prejuízo de o processo executivo comportar certa possibilidade de o executado provar que apesar do título a dívida não existe (a obrigação nunca se constituiu ou foi extinta ou modificada posteriormente).

Meio probatório da relação obrigacional creditícia existente entre as partes, o título executivo avulta como condição necessária [sem título não pode ser instaurada acção executiva; se for instaurada, deve ser indeferida liminarmente; se o não for, pode ser objecto de oposição à execução], mas também suficiente da acção executiva, posto que apresente os requisitos externos de exequibilidade que a lei prevê - verificados esses requisitos, por reconhecida se tem a exequibilidade, presumindo-se a existência do direito que o título corporiza, só susceptível de ser afastada pela prova da inexigibilidade ou inexistência do direito, a alegar e provar pelo executado em oposição à execução.

Assim, a análise do título deve demonstrar, sem necessidade de outras indagações, tanto o fim como os limites da acção executiva.[3]

Porém, sendo o título executivo condição necessária da respectiva acção, ele não constitui a sua causa de pedir, que continua a ser a relação substantiva que está na base da sua emissão.[4]

6. A questão central colocada no recurso é a de saber se a sentença homologatória da partilha constitui título executivo e se no caso em análise ela reveste os necessários requisitos de exequibilidade.

Salvo o devido respeito por opinião em contrário, afigura-se que a resposta não poderá ser diferente da encontrada na decisão sob censura.

Desde há muito se entende que a sentença homologatória da partilha, enquanto sentença condenatória (i. é, que impõe a alguém determinada responsabilidade, expressa ou tacitamente)[5], constituirá título executivo, nomeadamente, quanto às dívidas reconhecidas para o efeito dos credores exigirem, pelo meios competentes, o pagamento do que lhes é devido.[6]

Ademais, o art.º 52º, cuja epígrafe é “Exequibilidade das certidões extraídas dos inventários”, diz, no seu n.º 1, que as mesmas valem como título executivo, desde que contenham:

a) A identificação do inventário pela designação do inventariado e do inventariante;

b) A indicação de que o respectivo interessado tem no processo a posição de herdeiro ou legatário;

c) O teor do mapa da partilha na parte que se refira ao mesmo interessado, com a declaração de que a partilha foi julgada por sentença;

d) A relacionação dos bens que forem apontados, de entre os que tiverem cabido ao requerente”.

E refere o n.º 3 do mesmo art.º que “se a certidão for destinada a provar a existência de um crédito, só conterá, além do requisito da alínea a) do n.º 1, o que do processo constar a respeito da aprovação ou reconhecimento do crédito e forma do seu pagamento”.

Embora devendo conter as referidas indicações, a certidão extraída do inventário constitui, fundamentalmente, prova da emissão da sentença homologatória da partilha (art.º 1382º, n.º 1), assim equiparada às sentenças condenatórias.[7]

Assim, quer o processo executivo corra por apenso ao inventário, como sucede in casu, quer se lhe junte certidão nos termos atrás referidos, os únicos requisitos a ter em conta para aferir da existência de título bastante, são os atrás mencionados.

7. No caso em apreço, dúvidas não restam de que a exequente e a executada foram interessadas e intervenientes na partilha realizada no “apenso A” [cf. II. 1. a), supra], e, assim, que exista caso julgado no tocante a todas as questões discutidas e resolvidas no inventário, com os efeitos atribuídos por lei, se porventura suscitados de novo entre tais intervenientes.

Com o trânsito em julgado da sentença que homologou a partilha ficou definitivamente fixado o direito dos intervenientes no processo de inventário, sendo que o direito da exequente (credor) ficou definido com rigor em sede de conferência de interessados (competente para deliberar sobre a aprovação e forma de pagamento do passivo relacionado/art.º 1353º, n.º 3) e no mapa da partilha - o que aí se concretiza, em obediência ao acordado ou decido no processo de inventário, deverá pois ser cumprido/executado [cf. II. 1. alíneas c), d) e e), supra].

Daí que assiste legitimidade à exequente para requerer a execução da sentença no que respeita ao pagamento do crédito em causa, reconhecido no inventário[8], ou, dito doutra forma, cuja obrigação ficou declarada ou constituída pela sentença homologatória da partilha.[9]

8. Nos termos do art.º 1354º, as dívidas que sejam aprovadas por todos os interessados consideram-se judicialmente reconhecidas, devendo a sentença que julgue a partilha condenar no seu pagamento.

Como bem se refere na decisão recorrida, tal reconhecimento decorre ou é consequente da aprovação unânime, devendo constar da sentença a condenação.

Contudo, “não é pelo facto de não constar da sentença que as dívidas aprovadas não se têm como judicialmente reconhecidas. E é óbvio que se se consideram judicialmente reconhecidas, os credores podem exigir o seu pagamento. O que não se compreende é que se possa defender que considerando o legislador que tais dívidas estão reconhecidas judicialmente, se viesse exigir nova acção declarativa para discutir outra vez a existência da dívida.

Diferente seria se a dívida não tivesse sido aprovada por todos na conferência de interessados já que, nesse caso, prevê o legislador que compete ao juiz reconhecer ou não a existência da dívida, e reconhecida judicialmente, os credores ficam também com o direito a receber pelos meios comuns, ou seja, mediante execução. Neste caso, também o artigo 1355º do Código de Processo Civil não dispõe que a sentença deve condenar no pagamento das dívidas reconhecidas pelo juiz e, no entanto, também neste caso a sentença constitui título executivo porque houve um reconhecimento judicial da dívida.

Resulta do exposto, que as dívidas aprovadas por todos, consideram-se reconhecidas judicialmente e as dívidas que não sejam aprovadas por todos, podem ser reconhecidas pelo juiz, e em ambos os casos a sentença homologatória constitui título executivo. E sendo certo que da sentença deve constar tal reconhecimento, caso não conste terá tal reconhecimento que resultar do teor do processado.

Assim, não assiste qualquer razão à executada tanto mais que a dívida (…) foi aprovada por ambos os interessados na conferência de interessados, o que significa que há um reconhecimento judicial da sua existência, não exigindo o legislador qualquer acto de apreciação por parte do juiz.

Além disso, a aprovação da dívida à exequente (…) não foi condicional como, aliás, resulta da acta de conferência de interessados e do requerimento apresentado pela executada com a forma à partilha em que esta declara ter acordado assumir a responsabilidade no pagamento de metade da dívida à aqui exequente”.

A referida argumentação antolha-se inteiramente correcta, podendo-se porventura dizer que o segmento da parte final do n.º 1 do art.º 1354º - “devendo a sentença que julgue a partilha condenar no seu pagamento” - nada de substancial acrescenta ao que já decorre da aprovação das dívidas por todos os interessados e à sua inclusão no mapa da partilha com a definição dos responsáveis e forma do seu pagamento, a que se reportará depois a sentença homologatória.

Dir-se-á, por último, que a recorrente/executada, ao pugnar pela existência de uma “dívida condicional” e carecendo de reconhecimento judicial “expresso”, contradiz, ostensivamente, a posição por ela mesma manifestada em requerimentos que juntou aos autos de inventário, v. g., ao responder ao requerimento do interessado (…) de 27.4.2010 (fls. 35).

9. Em causa está apenas a existência de um pressuposto processual específico da acção executiva, que viabiliza a sua instauração e o seu prosseguimento, e não propriamente a discussão dos contornos exactos do crédito, que se poderia reflectir numa consistente alegação da oponente de que, por exemplo, a quantia reclamada havia sido paga (total ou parcialmente).

Porém, a executada não o fez, devendo saber que na oposição à execução as regras do jogo fazem carregar primordialmente sobre os executados os ónus de alegação e de prova dos factos com a virtualidade de obstaculizar o direito exequendo, sendo a eles que desaproveita a dúvida.[10]

            A exequente invoca e demonstra os elementos necessários para que, fazendo uso das palavras de Manuel de Andrade, se pudesse ter a relativa certeza ou probabilidade julgada suficiente da existência da dívida[11].

10. No que concerne à invocada excepção da prescrição por, segundo a executada, a pretensão creditícia só poder basear-se no enriquecimento sem causa, dir-se-á, apenas, que a dívida em causa, judicialmente reconhecida, por sentença transitada em julgado, está sujeita ao prazo ordinário de prescrição (vinte anos) (art.ºs 309º e 311º, do CC) - baseando-se a execução em sentença homologatória de partilha em que foi reconhecido judicialmente o crédito da exequente[12], o prazo da prescrição é de 20 anos e só começa a correr com o trânsito em julgado da sentença (art.º 306º, n.º 1, do CC), pelo que a dívida ainda não prescreveu, prescrição que, de resto, também não se verificaria se estivéssemos0 em presença daquele instituto como fonte da obrigação (o que não vemos demonstrado).

11. Soçobram desta forma ou quedam insubsistentes as (demais) “conclusões” da alegação de recurso.

*

III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela oponente/apelante.

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07.10.2014

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Fernando Monteiro


[1] Atendendo, sobretudo, ao que consta do processo electrónico e demais processado documentado nos autos, nomeadamente, a fls. 31 verso (acta da conferência de interessados de 16.4.2010), 33, 36 verso/96 (mapa da partilha), 85 (despacho de 21.5.2013), 91 (requerimento executivo) e 100 (sentença homologatória da partilha), os últimos três documentos juntos na sequência do despacho do relator de fls. 80.
[2] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[3] Cf., entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 60 e seg.; Alberto dos Reis, Processo de Execução, Vol. 1º, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, pág. 174; Antunes Varela, e Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 87 e segs. e J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 4ª edição, Coimbra Editora, 2004, págs. 37, 57 e segs. e 71 e seguintes, e, designadamente, os acórdãos do STJ de 10.11.2011-processo 4719/10.0TBMTS-A.S1 e da RL de 27.6.2007-processo 5194/2007-7, publicados no “site” da dgsi.
[4] Cf. o acórdão da RC de 12.7.2011-processo 5282/09.0T2AGD-A.C1, publicado no “site” da dgsi, e o cit. acórdão do STJ de 10.11.2011.
[5] Reportando-se ao n.º 1 do art.º 46º do CPC de 1939, Alberto dos Reis ensinava que “ao atribuir eficácia executiva às ´sentenças de condenação`, o Código quis abranger nesta designação todas as sentenças em que o juiz expressa ou tacitamente impõe a alguém determinada responsabilidade” [Processo de Execução, Vol. 1º, cit., pág. 127].
[6] Vide, designadamente, J. A. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. II, 4ª edição, Almedina, 1990, págs. 154 e 535; E. Lopes Cardoso, Manual da acção executiva, edição da INCM, 1987, págs. 42 e seguinte e J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, cit., pág. 49; cf., ainda, de entre vários, os acórdãos da RP de 27.11.2003-processo 0335852, 09.3.2010-processo 545/03.0TMPRT-P.P2 e 19.11.2012-processo 221/06.2TJVNF-E.P1, publicados no “site” da dgsi.  
[7] Vide J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, págs. 106 e seguinte.
[8] Vide J. A. Lopes Cardoso, ob. cit., Vol. II, págs. 355, 359, 530 e 534 e seguintes e Vol. III, 1991, págs. 391 e 393 e, entre outros, o citado acórdão da RP de 19.11.2012-processo 221/06.2TJVNF-E.P1.
[9] Vide E. Lopes Cardoso, ob. cit., pág. 43.

[10] Cf. o acórdão da RP de 10.12.2012-processo 6586/11.7TBMTS-B.P1, publicado no “site” da dgsi.
[11] Ob. cit., pág. 60.

[12] Na situação em análise, não houve divergência entre os interessados sobre a sua aprovação, pelo que a dívida não devia ser conhecida pelo juiz, nos termos dos art.ºs 1356º e 1355º e em face da prova documental oferecida – cf., a propósito, o acórdão da RC de 20.10.2009-processo 62-A/1999.C1, publicado no “site” da dgsi.