Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
986/09.0TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
UNIÃO DE FACTO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 02/08/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 23/2010, DE 30/08.
Sumário: I – Fazendo resumidamente o histórico do regime de segurança social referente à protecção por morte, verificamos que o Decreto-Lei nº 322/90, de 18 de Outubro, definiu e regulamentou esse regime de protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social e, no seu artigo 8º, estendeu essa protecção às pessoas que vivessem em situação análoga às dos cônjuges com o beneficiário.

II - No domínio das condições de atribuição dessa protecção ao convivente com o beneficiário, o Decreto Regulamentar nº 1/94, de 18 de Janeiro, veio prescrever a exigência de sentença judicial que reconhecesse a existência de união de facto há mais de dois anos e a existência de direito a alimentos da herança nos termos do art. 2020º do C. Civil, sem embargo de se salvaguardar que, quando não existisse esse reconhecimento do direito a alimentos, por inexistência ou insuficiência de bens, o direito às prestações ficava dependente da propositura de acção contra a instituição de segurança social competente.

III - Em 30 de Agosto de 2010, a Lei 23/2010, no seu art. 6º, nº1, veio resolver decisivamente o âmbito das condições de atribuição da pensão de sobrevivência a quem viva em união de facto com o beneficiário, dispensando o requisito da exigência da necessidade de alimentos, mas também excluindo a propositura de qualquer acção para reconhecimento desse direito à pensão de sobrevivência, facultando-se à instituição de segurança social responsável pelo pagamento a possibilidade de propor acção judicial para reconhecimento da união de facto quando tenha fundadas dúvidas da sua existência, mas isto, nos termos do nº 2 do preceito, só se a invocada união de facto não tiver já duração de 4 anos, caso em que tal acção não poderá ser proposta.

IV - O art. 9º da Lei nº 23/2010 não determina a aplicação dos seus normativos às situações decorrentes de morte de beneficiários ocorridas depois da sua entrada em vigor mas sim “às situações decorrentes de óbito de beneficiários que se tenham verificado após a entrada em vigor do Decreto Lei nº 322/90, de 18 de Outubro”, isto é, e como se referia no art. 60º deste último diploma, “no primeiro dia do terceiro mês seguinte ao da data da sua publicação”.

V - A Lei nº 23/2010 não institui esse direito às prestações por parte do convivente em união de facto com o beneficiário, mas antes, partindo da sua prévia existência, reformula o modo processual e os requisitos exigíveis à sua obtenção suscitando assim a questão da sua aplicação.

VI – Numa acção desta natureza, o Tribunal deverá fazer a sua tramitação até final, sem fundamento de inutilidade superveniente, e no reconhecimento dos pressupostos da concessão do direito peticionado deverá aplicar a Lei nº 23/2010, isto é, dispensar a necessidade de alimentos por parte do demandante.

VII - No caso de o requerente da prestação de sobrevivência pretender exercer o seu direito quando a morte do beneficiário ocorra antes da entrada em vigor da Lei nº 23/2010, sem que tenha proposto a acção referida no Decreto Regulamentar nº 1/94, como o art. 48º do Dec. Lei nº 322/90 estabelece o prazo de 5 anos a partir do óbito daquele para requerer as prestações, a resposta que se impõe é a de que, se vai exercer esse direito quando a entrada em vigor da Lei nº 23/2010 já retirou a necessidade de propor a acção então, obviamente, é por requerimento que o deverá fazer, uma vez que é a data do requerimento e não a da morte do beneficiário que estabelece o meio adequado e competente.

VIII - A data da morte importa para a verificação da existência do direito mas não para a determinação do meio instrumental/processual adequado à sua obtenção o qual será sempre o estabelecido pela lei aplicável à data em que tal direito se pretende fazer valer.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

Na Comarca do Baixo Vouga - Aveiro - Juízo de Grande Instância cível - Juiz 2 - e na acção com forma de processo comum ordinário que em 20 de Março de 2009  E… moveu contra Instituto de Solidariedade e Segurança Social (Centro Nacional de Pensões), a autora pediu que fosse declarado que, no momento da morte de L…, vivia com este há mais de 12 anos em condições semelhantes às dos cônjuges; que carece de alimentos para o seu sustento; que seja declarado que não pode obter da herança do falecido alimentos por inexistência de bens suficientes e que lhe seja reconhecido o direito à pensão de sobrevivência condenando-se a ré nesse reconhecimento.

A ré contestou impugnado dos factos articulados pela demandante e concluindo pelo protesto da absolvição do pedido.

Em 16 de Setembro 2010 o tribunal recorrido proferiu decisão julgando extinta a instância por inutilidade superveniente da lide e determinou o arquivamento dos autos com custas a cargo de ambas as partes em igual proporção.

Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a Ré concluindo que:

Não houve contra alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

Os factos que servem a decisão são os que constam do relatório, razão pela qual se torna desnecessário repetir e enunciação dos mesmos, sem embargo de, na medida em que a exposição decisória o tornar necessário, se fazer referência expressa ao mesmos.

Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil), nem criar decisões sobre matéria nova, a questão suscitada pela recorrente é a de saber se a Lei 23/2010, de 30 de Agosto, se aplica à situação descrita nos autos com a consequência de determinar o a extinção da instância e o arquivamento dos autos, por inutilidade superveniente da lide.

O tribunal recorrido entendeu que a Lei 23/2010, alterando substancialmente o regime jurídico das uniões de facto, revogou tacitamente vários dispositivos do Decreto regulamentar 1/94, de 18 Janeiro, com a consequência de ter acabado com a necessidade de quem vive em união de facto propor uma acção judicial, para ser reconhecido que vivia com o beneficiário falecido nessa situação, e com a abolição da necessidade de ter de demonstrar que carece de alimentos e os não pode obter das pessoas indicadas.

Assim, e porque tal regime se aplicaria imediatamente à situação dos autos por força do art. 12º, nº 2, do CC (uma vez que a Lei 23/2010 não consagra situação diversa) foi julgada extinta a instância.

  

Fazendo resumidamente o histórico do regime de segurança social referente à protecção por morte, verificamos que o Decreto-Lei 322/90, de 18 de Outubro, definiu e regulamentou esse regime de protecção, na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social e, no seu artigo 8º, estendeu essa protecção às pessoas que vivessem em situação análoga às dos cônjuges com o beneficiário.

No domínio das condições de atribuição dessa protecção ao convivente com o beneficiário, o Decreto Regulamentar 1/94, de 18 de Janeiro, veio prescrever a exigência de sentença judicial que reconhecesse a existência de união de facto há mais de dois anos e a existência de direito a alimentos da herança nos termos do art. 2020º do C.Civil, sem embargo de se salvaguardar que quando, não existisse esse reconhecimento do direito a alimentos, por inexistência ou insuficiência de bens, o direito às prestações ficava dependente da propositura de acção contra a instituição de segurança social competente[1].

Ainda no âmbito das condições de atribuição da pensão, uma outra questão suscitada incidia sobre a necessidade, ou não, de alegar e provar a necessidade de alimentos, e isto porque o Tribunal Constitucional através do acórdão 88/2004 julgara inconstitucional a norma extraída do art. 40 nº1 e 41 nº2 do estatuto de pensões de sobrevivência do funcionalismo público[2], gerando que parte das jurisprudência passasse a defender que não era exigível essa alegação e prova da necessidade de alimentos, bastando-se a prova da união de facto por mais de dois anos[3], enquanto que outra parte continuou a sustentar a exigência de verificação de todos os pressupostos do art. 2020 do C. Civil[4].

Argumentavam estes últimos que o nº1 do art.6º da Lei 7/2001 exigia que estivessem reunidas “as condições constantes no artigo 2020 do Código Civil”, pelo que o autor teria de alegar os requisitos para a acção de alimentos, entre os quais a necessidade deles, por integrarem a previsão da norma.

Discordávamos já então dessa orientação jurisprudencial, pois se a acção era instaurada apenas contra a instituição de segurança social, não era de exigir tal requisito porque o direito às prestações da segurança social assume uma natureza diversa do direito a alimentos, sendo autónomo e independente deste.

Como se referia no acórdão desta Relação e secção cível, citado anteriormente, “Ao companheiro sobrevivo assiste simultaneamente o direito a alimentos, nos termos do art. 2020º do CC, e o direito às prestações da segurança social. Depois, porque a letra da lei do art.6º, nº 1, da Lei nº7/2001, ao remeter para o art. 2020º do CC não impõe expressamente tal requisito, sendo certo que também este preceito não se refere à necessidade do alimentando, nem às possibilidades do alimentante, pois estas condições decorrem do princípio geral contido no art. 2004º do CC”.

Neste sentido, e propósito da norma similar do art. 6º, nº1, da Lei nº 135/99 e da sua conjugação com a do art. 2020º do CC, escreve França Pitão: “Bastará, por isso, que se faça prova do preenchimento dos requisitos legalmente impostos para a eficácia da união de facto, sendo irrelevante nesta matéria, saber se o companheiro sobrevivo necessita ou não dessas prestações para assegurar a sua sobrevivência ou como mero complemento desta. Efectivamente, ao estabelecer-se o acesso a prestações sociais pretende-se tão só permitir ao beneficiário um complemento para a sua subsistência, decorrente do “ aforro “ que foi efectuado pelo seu falecido companheiro, ao longo da sua vida de trabalho, mediante os descontos mensais depositados à ordem da instituição de segurança social“ (União de Facto no Direito Português, 2000, pág.189 e 190).

“Por isso, a previsão da norma constante do art. 2020º, nº 1, do CC, na referência que lhe é feita pelo art.6º nº1 da Lei nº7/2001, deve ser interpretada restritivamente, reportando-se apenas e tão só aos requisitos da união de facto.” (cf. Ac da RL de 4/11/2003, processo nº7594/2003, www dgsi.pt/jtrl ).

E assim, sendo a acção instaurada apenas contra a instituição da segurança social, o autor não tem de alegar e provar a necessidade de alimentos, mas apenas a situação da união de facto, ou seja, que no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges.

A não se entender deste modo, então a norma, interpretada no sentido da exigência da comprovação da necessidade de alimentos, seria, também, materialmente inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, tal como resulta das disposições conjugadas dos arts.2º, 18 nº2, 36 nº1 e 63 nº1 e 3 da Constituição, como se decidiu no Acórdão nº 88/04 do Tribunal Constitucional de 10/2/2004, (publicado no DR II Série, de 16/4/2004), incidindo sobre as normas dos arts.40 e 41 nº2 do Estatuto das Pensões de Sobrevivência no Funcionalismo Público, aprovado pelo DL nº 142/73, de 31/3, na redacção do DL nº 191-B/79, de 25/6.) e a cuja fundamentação aderíamos.

Aliás, em comentário a esta decisão do Tribunal Constitucional, o Conselheiro Guilherme da Fonseca, referia precisamente que ela trazia uma “ perspectiva nova do direito à pensão de sobrevivência a favor do companheiro que sobreviver, inflectindo a jurisprudência anterior do próprio tribunal e distanciando-se de um mero Direito positivo aplicado pelos nossos tribunais em tal matéria”, concluindo que “ É tempo, pois de contrapor o quadro civilista, no âmbito de aplicação dos artigos 2020 e 2009, alíneas a) a d) do Código Civil, à verdadeira razão de ser da atribuição do direito à pensão de sobrevivência a haver pela pessoa sobrevivente da união de facto – uma vida em comum em condições análogas às dos cônjuges – da instituição de segurança social competente para essa atribuição, pois a razão deriva do aforro que foi realizado pela pessoa falecida, no decurso de toda uma vida de trabalho, por via de descontos nas remunerações que foram sendo legal e pontualmente depositadas à ordem dessa instituição “ (Revista do Ministério Público, ano 25, nº99, pág.157 e segs.).

Era nesta aplicação restritiva do art. 6º nº1 da Lei nº7/2001, que sustentávamos já a não exigência de alegação e prova da necessidade de alimentos por parte do convivente em união de facto com o beneficiário falecido.

Ora, em 30 de Agosto de 2010, a Lei 23/2010, no seu art. 6º, nº 1, veio resolver decisivamente o âmbito das condições de atribuição da pensão de sobrevivência a quem viva em união de facto com o beneficiário, dispensando o requisito da exigência da necessidade de alimentos, como já anteriormente defendíamos mas, também, excluindo a propositura de qualquer acção para reconhecimento desse direito à pensão de sobrevivência, facultando-se à instituição de segurança social responsável pelo pagamento a possibilidade de propor acção judicial para reconhecimento da união de facto quando tenha fundadas dúvidas da sua existência, mas isto, nos termos do nº 2 do preceito, só se a invocada união de facto não tiver já duração de 4 anos, caso em que tal acção não poderá ser proposta[5].  

Esta brevíssima exposição revela as significativas alterações de regime produzidas com a Lei 23/2010, desde logo, a desnecessidade de propositura de qualquer acção por parte do convivente em união de facto com o beneficiário e a expressa dispensa da alegação e prova da necessidade de alimentos, para obtenção da prestação, embora como dissemos, parte da jurisprudência já dispensasse essa exigência.

Não só se alterou a procedimento de obtenção das prestações por morte do beneficiário, que é agora feito por requerimento entregue à entidade responsável pelo pagamento, como se tornou expresso que o único requisito de tais prestações é o da simples certificação da existência de união de facto por mais de dois anos.

Na apreciação dos argumentos do recurso não cremos que se possa defender, como a recorrente sustenta, que a Lei 23/2010 se aplica apenas aos casos de óbito posterior à data da sua entrada em vigor porque este era já o regime do Decreto Regulamentar 1/94 que estabelecia essa previsão no seu artigo final (o 9º) e, à sua semelhança, deve ser esse o entendimento perante a nova lei.

Desde logo, o citado art. 9º, ao contrário do que defende a recorrente não determinava a aplicação dos seus normativos às situações decorrentes de morte de beneficiários ocorridas depois da sua entrada em vigor mas sim “às situações decorrentes de óbito de beneficiários que se tenham verificado após a entrada do Decreto Lei 322/90 de 18 de Outubro”, isto é, e como se referia no art. 60 deste último diploma, “no primeiro dia do terceiro mês seguinte ao da data da sua publicação”.

Por outro lado, o Decreto Regulamentar não continha matéria que colidisse com o regime processual e substantivo aplicável anteriormente pois era ele (conjugado com o decreto Lei 322/90) quem criava, de forma nova e originária, esses requisitos processuais e substantivos, já que até esse momento a situação de união de facto não gerava o direito a tais prestações, percebendo-se pois que a finalidade da norma estipuladora da vigência fosse a de estabelecer um momento temporal a partir do qual passasse a ser aplicável e percebendo-se ainda melhor que se determinasse que esse regime era de aplicação aos casos em que morte do beneficiário tivesse ocorrido, não depois da entrada em vigor do Decreto Regulamentar, mas sim desde momento muito anterior, desde a entrada em vigor do Decreto Lei 322/90 que .

Acresce que, a Lei 23/2010 não institui esse direito às prestações por parte do convivente em união de facto com o beneficiário, mas antes, partindo da sua prévia existência, reformula o modo processual e os requisitos exigíveis à sua obtenção suscitando assim a questão da sua aplicação.

Mais concretamente, confrontados com a circunstância de a modificação de regime jurídico ter encontrado pendentes várias acções propostas por conviventes em união de facto com os beneficiários contra a instituição de segurança social, a questão que importa resolver é a de saber se é admissível considerar que tais acções se devem extinguir por inutilidade superveniente da lide, conforme decidido na sentença recorrida, ou se, ao invés, devem prosseguir os seus termos para que se verifiquem os pressupostos de atribuição da pensão de sobrevivência em conformidade com o regime anterior.

Numa brevíssima locução a sentença recorrida remete o seu entendimento para a parte final do art. 12 nº2 do C. Civil, defendendo que estamos perante um caso de “relações já constituídas que subsistem à data da sua entrada em vigor” e, como tal, a Lei 23/2010 aplicar-se-lhe-ia.

Diferentemente, a recorrente protesta que a Lei 23/2010 apenas se aplica aos casos em que o beneficiário tenha falecido após a entrada em vigor dessa lei porquanto ela dispõe sobre efeitos sem abstrair do facto que lhe dá origem e, tal facto, é precisamente a morte do beneficiário, o que significa que se o óbito fez terminar a união de facto em momento anterior á data da entrada em vigor da Lei 23/2010, essa relação já não existe e não subsiste de forma a permitir a sua aplicação por força do art. 12 nº2 do C. Civil.

A abordagem a esta matéria impõe-se em dois planos distintos: o processual e o substantivo e isto porque a lei nova produz alterações nesses dois âmbitos.

Em matéria de aplicação de lei processual no tempo rege o princípio de que, salvo disposição especial, a lei adjectiva é de aplicação imediata mas não retroactiva, princípio que embora não estabelecido no CPC, se extrai do critério geral de que a lei só dispõe para o futuro, contido no art. 12º nº 2 C. Civil, sendo uma decorrência deste princípio aquele outro, dito da perpetuatio fori, que em matéria de competência dos tribunais estabelece que ela se fixa, definitivamente, no momento da propositura da acção (art. 22 da LOFTJ), tornando irrelevantes as modificações de facto ou de direito que ocorram depois desse momento, sem embargo da excepção resultante, por ex., da supressão do órgão a que a causa estava afecta)[6].  

Assim, estando pendente uma acção num tribunal para reconhecimento e declaração do direito às prestações de sobrevivência do convivente em união de facto com o beneficiário falecido, quando entretanto a lei foi alterada no sentido de dispensar a propositura da acção, considerar-se que havia fundamento para a extinção da instância com base na inutilidade superveniente da lide seria, quanto a nós, concluir por uma interpretação da norma antes de a interpretar.

Isto é, estamos no âmbito de um direito que antes era reconhecido e que se continua a reconhecer, embora de uma forma processual diferente. Porém, se o objectivo fundamental é o da obtenção/reconhecimento desse direito, tendo sido proposta uma acção judicial para seu reconhecimento, num momento em que era esse o meio adequado à obtenção do direito, recusar o prosseguimento dela porque entretanto a lei foi alterada no sentido de dispensar a acção, não se traduz numa inutilidade superveniente uma vez que não ocorreu, nem o desaparecimento dos sujeitos, nem o objecto do processo.

A inutilidade/impossibilidade superveniente pode resultar também de se encontrar “satisfação fora do esquema da providência pretendida”[7], porém, esta satisfação é aquela que se encontra consumada por uma outra via diversa da que a acção persegue e não a que para ser concretizada exija ao demandante uma actividade persecutória nesse sentido.

Se se afirma que à recorrida durante a pendência da acção foi conferido legalmente um meio diverso de obter o reconhecimento do direito que pretende fazer valer, tal circunstância não gera automaticamente uma impossibilidade da acção proposta poder prosseguir mas antes coloca a questão de saber se com a entrada em vigor da lei que regula de modo diferente o exercício do direito fica impedido o prosseguimento da acção proposta.

Para que tal se pudesse afirmar seria necessário, ou que a lei nova fosse interpretativa (mesmo no domínio das alterações processuais) contendo uma determinação a fazer cessar todas as acções propostas para esse fim ou que, segundo as regras da aplicação das leis no tempo, se pudesse retirar esse sentido.

Abordando a problemática das leis interpretativas, para Vaz Serra[8] “…Uma lei só é interpretativa, com eficácia retroactiva, quando ela própria ou outra lhe atribua essa natureza: a eficácia retroactiva de uma lei depende de uma vontade legislativa nesse sentido, cabendo, por conseguinte, ao intérprete apreciar se a nova lei quer, ou não, atribuir-se tal eficácia, ou se esta lhe é porventura atribuída por outra lei. Ora, o simples facto de uma lei consagrar uma solução que já na lei anterior certa jurisprudência ou certa doutrina julgava consagrada não é suficiente para se atribuir natureza interpretativa àquela lei, pois não é indício seguro de que esta queira ter eficácia retroactiva, o que, dada a sua gravidade, não pode, sem mais, presumir-se”.

Lei interpretativa - “É aquela que intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado”[9].

“Para que a lei nova possa ser interpretativa são necessários dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.

Se o julgador ou o intérprete em face de textos antigos não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a lei nova veio a consagrar, então a lei é inovadora”[10].

Na conjugação de todos estes elementos podemos concluir que há, pois, leis interpretativas que o são por vontade do legislador e as que o são pela sua própria natureza. Se a lei nova vem acolher uma das soluções objecto de querela jurisprudencial é de natureza intrinsecamente interpretativa.

No domínio estritamente processual podemos concluir inquestionavelmente que a Lei 23/2010 não é interpretativa uma vez que nem o legislador nela faz referência a essa natureza nem questão alguma se colocava na doutrina ou na jurisprudência relativa ao modo processual de obter o reconhecimento do direito mencionado, tendo-se tão simplesmente terminado com a necessidade do convivente em união de facto com o beneficiário falecido ter de propor uma acção e substituindo essa acção por requerimento dirigido à entidade responsável pelo pagamento.

Por outro lado, quanto à aplicação no tempo, a Lei 23/2010 não contém normativo algum que imponha a paragem das acções propostas, nem as regras da aplicação da lei no tempo admitem, em nosso entender, que tais acções se tornem inúteis. As acções propostas e pendentes, com a finalidade de verem reconhecido ao convivente em união de facto com o beneficiário falecido o direito às prestações de sobrevivência, têm pois de ser levadas até ao fim por não se terem tornado inúteis/impossíveis já que o direito que se protestou continua a existir e, no momento em que ele foi protestado, era esse o meio competente e adequado de o obter, nada tendo ocorrido no sentido de impedir esse prosseguimento e o consequente reconhecimento do direito peticionado.

Embora a sentença recorrida o não faça, podem colocar-se perante uma solução como a que acabámos de sufragar, as seguintes questões:

- pode o julgador numa dessas acções indeferir a pretensão por entender que é de exigir a alegação e prova da necessidade dos alimentos (e a impossibilidade de lhe serem prestados)?

- que regime deverá utilizar quem pretenda ver reconhecido esse direito quando a morte do beneficiário ocorreu antes da entrada em vigor da Lei 23/2010  sem que tivesse sido ainda proposta a acção a que aludia o Decreto Regulamentar?

Julgamos que a resposta a dar-lhes remete para as regras da aplicação da lei no tempo referentes às normas de direito substantivo contidas na Lei 23/2010, ou seja, para aquelas que estabeleceram que não é de exigir a alegação e prova da necessidade de alimentos.

Retomando aqui as considerações sobre as leis interpretativas e também o histórico que realizámos quanto aos entendimentos jurisprudenciais que se debatiam antes da entrada em vigor da lei 23/2010, julgamos que no estrito âmbito dos normativos que regem os requisitos necessários a atribuição da pensão de sobrevivência ao convivente em união de facto com o beneficiário falecido esta Lei deve considerar-se, de facto, interpretativa e de aplicação retroactiva e isto porque, embora o legislador não tenha expressamente referido essa natureza, o que não sofre contestação é que o direito anterior era controvertido, no que respeita ao requisito da necessidade de alimentos por parte do demandante, e a solução definida pela nova lei situa-se precisamente no âmbito da controvérsia, sendo uma solução a que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar (e chegavam) sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.

Que assim é, cremos que decorre do confronto da redacção do art. 6º (nº1) da lei 7/2001, antes e depois da alteração que lhe foi produzida Lei 23/2010, com a expressa exclusão da remissão para o art. 2020 do Cod.Civil e com a inclusão da expressão “independentemente da necessidade de alimentos”, afinal, os elementos normativos que antes eram interpretados para se defender uma ou outra posição jurídica.

Assim, defendendo, no que respeita aos requisitos substantivos de reconhecimento do direito, que a Lei 23/2010 é interpretativa, integrando-se esta na lei interpretada (a 7/2001) ficando salvos os efeitos já produzidos por sentença transitada em julgado, deve entender--se que nas acções ainda pendentes o reconhecimento do direito será feito de acordo com as novas exigências legais.

Contra a objecção de que à natureza de lei interpretativa se pode opor o argumento de que a interpretação feita pela jurisprudência e pela doutrina para defender a não exigência da necessidade de alimentos se sustentava na inconstitucionalidade material e que esta foi desmerecida por três decisões contra uma (a primeira, de 2004) do Tribunal Constitucional que considerarem constitucional a interpretação inversa, sempre diremos que o cerne da divergência de entendimentos residia numa interpretação restritiva (ou não) do art. 6º da Lei 7/2001 e na ideia de que o direito às prestações da segurança social assumia uma natureza diversa do direito a alimentos, sendo autónomo e independente deste.

Mesmo que se afastasse a natureza de lei interpretativa julgamos que a solução a que teria de chegar-se seria a mesma, ou seja, considerar que se aplicam às acções pendentes e quanto à verificação dos requisitos materiais de atribuição das prestações de sobrevivência as normas contidas na Lei 23/2010.

Determina o art. 12º, nº 2, primeira parte, que “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de qualquer facto ou sobre os seus efeitos, entende-se em caso de dúvida que só visa os factos novos;”, significando este segmento da norma que se renova o principio da não retroactividade das leis enunciado no nº 1.

A segunda parte do nº 2 refere no entanto que “ quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.

Tornando presente tudo o que dissemos anteriormente, todas as modificações legais referentes à atribuição ao direito das prestações de sobrevivência por parte de quem vivia em união de facto com o beneficiário falecido tiveram como pressuposto temporal de aplicação o momento em que tal direito foi reconhecido, ou seja a data da entrada em vigor do Decreto 322/90 o que se certifica com a evidência de o Decreto Regulamentar 1/94 ter feito essa menção, confirmando que, desde que a data da morte do beneficiário tenha sido posterior à data da entrada em vigor do Decreto Lei 322/90, são aplicáveis a essas situações pendentes os regimes jurídicos que entretanto tenham entrado em vigor e referentes às condições substantivas da sua concessão.

Caso não se entendesse a Lei 23/2010 como interpretativa, como defendemos anteriormente, mesmo assim teríamos de concluir estar perante um daqueles casos em que a lei dispunha directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas (no caso, a existência de uma união de facto com o beneficiário) abstraindo do facto que lhe deu origem (a morte do beneficiário desde que posterior à data da entrada em vigor do Dec. Lei 322/90), pelo que a Lei 23/2010, no que se refere à dispensa de alegação da necessidade de alimentos se aplicaria ao caso vertente, ou seja, aos casos de uniões de facto há mais de dois anos em que o beneficiário tenha falecido depois da entrada em vigor da Lei 23/2010. E isto sem embargo, repetimos, de a posição que defendemos ser a de que estamos perante uma lei interpretativa, no que se refere à verificação dos pressupostos da concessão da prestação, sendo de aplicar o regime do art. 13º do CC e não o contido no 12º.

Em conclusão, respondendo às questões que enunciámos, o tribunal a quo, numa acção como aquela em que ora se recorre, deverá fazer a sua tramitação até final, sem fundamento de inutilidade superveniente, e no reconhecimento dos pressupostos da concessão do direito peticionado deverá aplicar a Lei 23/2010, isto é, dispensar a necessidade de alimentos por parte do demandante[11].

Por outro lado, no caso de o requerente da prestação de sobrevivência pretender exercer o seu direito quando a morte do beneficiário ocorra antes da entrada em vigor da Lei 23/2010 sem que tenha proposto a acção a referida no Decreto Regulamentar 1/94, como o art. 48º do Dec. Lei 322/90 estabelece o prazo de 5 anos a partir do óbito daquele para requerer as prestações, a resposta que se impõe é a de que, se vai exercer esse direito quando a entrada em vigor da Lei 23/2010 já retirou a necessidade de propor a acção então, obviamente, é por requerimento o deverá fazer uma vez que é a data do requerimento e não a da morte do beneficiário que estabelece o meio adequado e competente. A data da morte importa para a verificação da existência do direito mas não para a determinação do meio instrumental/processual adequado à sua obtenção o qual será sempre o estabelecido pela lei aplicável à data em que tal direito se pretende fazer valer.

Diga-se, por fim, que a esta solução se não opõe a circunstância de o art. 2º-A, nº4, da Lei 7/2001 (com a redacção da Lei 23/2010) estabelecer para prova da união de facto em caso de morte do beneficiário, documento emitido pela Junta de Freguesia elaborado a partir de declaração do interessado sob compromisso de honra.

Caso propendêssemos a considerar que a exigência de um tal documento, com semelhante natureza, constituía um obstáculo à livre actividade do tribunal uma vez que se lhe impunha uma exigência documental meramente administrativa (uma declaração da Junta de Freguesia emitida, exclusivamente, com base na declaração do próprio interessado) e, deste modo, tal limitação impediria a continuidade da acção proposta, sempre teríamos de concluir que o estabelecimento de uma exigência de prova documental através de documento particular é expressamente admitida na previsão do art. 364º, nº1, do C. Civil.

Por outro lado, o eventual desconforto de tal exigência estar prevista no art. 2º-A, nº4, citado apenas na hipótese de requerimento dirigido à Segurança Social é resolvido pela verificação de que, caso esta entidade, perante o requerimento, tenha fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto pode/deve propor acção judicial com vista à sua comprovação (art.6º, nº3, da Lei 7/2001) e, nessa acção, obviamente, a prova da união pode ser feita por qualquer meio legalmente admissível, o que significa, em nossa opinião, que também nesta acção, já proposta, o tribunal não está sujeito a qualquer limitação de prova para reconhecimento da existência da união de facto[12].    

Em resumo, atento tudo o afirmado e com base nas razões expostas, merece provimento a Apelação devendo ser revogada a decisão que declarou a inutilidade superveniente da lide ordenando-se a continuação da acção para reconhecimento do direito invocado pela autora/recorrida.

… …

Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida ordenando-se o prosseguimento da acção.

  Custas pelo vencido a final.


Manuel Capelo (Relator)
Jacinto Meca
Falcão de Magalhães


[1] Esta referência a duas acções com finalidades distintas levou a que a jurisprudência, antes da entrada em vigor deste diploma, se tivesse divido entre os que sufragavam o entendimento de que deveriam essas duas acções ser autónomas, uma contra a herança e outra contra a instituição de segurança social, e os que defendiam a exigência de uma única acção contra a instituição, desde que se alegasse a insuficiência ou inexistência de bens na herança do falecido, questão que o art. 9 do diploma referido veio resolver a favor desta última tese. 
[2] Mais tarde o Tribunal Constitucional veio a inflectir este entendimento nos acórdãos 159/2005; 134/2007 e 651/2009 na sequência do voto de vencido da Juiz Maria Prazeres Beleza consignado no acórdão 88/04, mas na jurisprudência ficaram em aberto esses dois diferentes entendimentos
[3] Ver por todos ac. RC de 16/11/2004 no proc. 1167/04, in dgsi.pt
[4] Ver por todos. Ac do STJ de 17/11/91, BMJ 411, pág.565, de 29/6/95, C.J. ano III, tomo II, pág.147, de 19/3/2002, www dgsi.pt/jstj
[5] Reconhecemos a dificuldade de interpretação desta norma, parecendo difícil de aceitar, mas não se vislumbrando nenhuma outra, que com ela se pretenda proibir à entidade responsável pelo pagamento a possibilidade de propor acção em casos de fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto por mais de dois anos quando a declaração emitida pela Junta de Freguesia com base na afirmação exclusiva do interessado prestada sob compromisso de honra contiver a menção a que a união de facto dura há mais de 4 anos. 
[6] Vd. Lebre de Freitas, in CPC Anotado vol. I p. 135
[7] Lebre de Freitas, op. cit. p. 555
[8] in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 107º, páginas 174 e 175,
[9] Pires de Lima, Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, nota l ao art. 13°.
[10]  J. Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 1983-247.

[11] Julgamos que quanto à prova da união de facto se imporá também ao tribunal a quo observar a Lei 23/2010 que depois de estabelecer que ela se faz por qualquer meio legalmente admissível (art. 2-A nº1) determina que em caso de morte de um dos membros da união a prova se faça documentalmente através de declaração da Junta de freguesia elaborada com base na declaração do interessado sob compromisso de honra.
[12] A ideia que se retira da conjugação do art. 2-A nº4 e 6 nº3 da Lei 7/2001 é a de que a exigência do documento passado pela Junta de Freguesia se coloca apenas para prova da união de facto protestada no requerimento dirigido á Segurança Social mas já não quando ela é discutida em acção judicial.