Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
90187/20.7YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: INTERPELAÇÃO
PROVA
CONTRATO DE EMPREITADA
DETERMINAÇÃO DO PREÇO
CONDENAÇÃO ILÍQUIDA
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA JUÍZO C CÍVEL – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1207.º, 1211.º E 883.º, TODOS DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 609.º, N.º 2, DO CPC
Sumário: I – A interpelação do devedor para pagamento da dívida não depende da observância de qualquer forma especial, sendo admissível a prova da interpelação através do depoimento de uma testemunha e do depoimento de parte do legal representante do credor.

II - Num contrato de empreitada, na ausência de orçamento e de prova de que que a factura emitida pelo empreitado foi aceite pelo dono da obra, vale como preço da empreitada o que o empreiteiro normalmente praticar à data da conclusão do contrato.

II – Não havendo elementos suficientes para o determinar na sentença, a sua determinação será feita através do incidente de liquidação.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

 

1. A., LDA., com sede nas ..., apresentou requerimento de injunção, contra B., LDA., com sede em ..., peticionando que a R. seja condenada a proceder ao pagamento de quantia global de 73.208,74 €, sendo 58.040,06 de capital, 15.015,68 de juros vencidos e 153 de taxa de justiça por si paga, e ainda juros vincendos.

Alegou, em suma, que no exercício da sua actividade de construção civil, no ano de 2016, executou obras de remodelação nas instalações da escola de mergulho da R. No decurso dos trabalhos, a R. entregou, a título de adiantamento, a quantia total de 30.000€, repartida por três entregas. Findos os trabalhos, a A. procedeu à emissão de factura, pelo valor de 88.040,06 €, e com data de vencimento a 4.2.2017. Porém, apesar de instada para o efeito, a R. nada mais pagou.

A R. opôs-se, por impugnação e alegando que as obras foram feitas por ordem do legal representante da A. quando o mesmo era, simultaneamente, sócio e representante da R., o que fez por sua vontade e a expensas suas, pois a R. nunca as solicitou, nunca tendo apresentado qualquer pedido de autorização, orçamento, preços e facturas, fazendo como quis, sempre afirmando que tais obras seriam da sua responsabilidade. Invoca a prescrição da dívida, por estar esta sujeita a um prazo de 2 anos. Termina afirmando que a A. e o seu legal representante agem em abuso do direito, ofendendo o princípio da confiança e actuando com má fé, pedindo a sua condenação em indemnização.

A A. respondeu relativamente ao abuso de direito, peticionada condenação como litigante de má fé, e prescrição, sustentando a sua improcedência.

Foi proferido despacho saneador onde se julgou improcedente a excepção de prescrição.

*

A final foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e:

a) condenou a R. a pagar à A. a quantia de 58.040,60 €, acrescida de juros, à taxa legal em vigor para as operações comerciais, contados desde a citação para se opor ao requerimento de injunção, até efectivo e integral pagamento;

b) absolver a R. do demais peticionado;

c) não condenar a A. como litigante de má fé.

*

2. A R. recorreu, concluindo que:

i. O Tribunal recorrido considerou como provado que, apesar de várias vezes instada para o efeito, a ré, aqui recorrente, não procedeu à liquidação do remanescente da quantia de 58 040,06 euros, Cf. ponto 6. dos factos provados.

ii. Com o devido respeito, a recorrente não pode concordar com a douta sentença proferida, na medida em que não houve uma correta interpretação dos factos e não se valorou devidamente a prova junta aos autos (ou neste caso, a falta dela!).

iii. Com efeito, a recorrida não logrou juntar prova documental que corrobore as alegadas tentativas de cobrança.

iv. Por esse motivo, impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada, nomeadamente o supramencionado ponto 6, nos termos e para os efeitos do artigo 640.º n.º 1 al. a) do CPC

v. Com efeito, é patente que a douta sentença faz uma incorreta análise da prova produzida nos presentes autos, na medida em que não foram juntos documentos aos autos que atestem o depoimento da testemunha C.e as declarações de parte do legal representante da R. D., o que determina decisão diversa sobre o referido facto provado da douta sentença, nos termos do artigo 640.º n.º 1 al. b) do CPC.

vi. Deste modo, ao abrigo do disposto no artigo 640.º n.º 1 al. c) do CPC, pugna-se pela substituição da decisão proferida nos autos de modo a que, com as legais consequências, se considere como não provado o ponto 6.

vii. Acresce que, o Tribunal a quo considerou ainda como provado que havia sido remetido um email à ré, em 30 de dezembro de 2016, com uma tabela onde constava que o valor a faturar referente às obras em questão seria de 88 000,00 euros, Cf. ponto 9. in fine dos factos provados.

viii. Mais uma vez o Tribunal recorrido fez uma errada interpretação e valoração da prova produzida.

ix. Porquanto, da análise atenta e cuidada do referido documento resulta que o email não foi remetido para a ré, aqui recorrente, mas sim ao representante da autora,E. .

x. Assim sendo, impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada, nomeadamente o supramencionado ponto 9 parte final, Cf. artigo 640.º n.º 1 al. a) do CPC,

xi. na medida em que, o Tribunal recorrido fez uma incorreta análise da prova produzida nos presentes autos, o que determina decisão diversa sobre o referido ponto do facto provado da douta sentença, nos termos do artigo 640.º n.º 1 al. b) do CPC.

xii. Consequente, pugna-se pela substituição da decisão proferida nos autos de modo a que, com as legais consequências, se considere como não provado o ponto 9 parte final, Cf. artigo 640.º n.º 1 al. c) do CPC.

xiii. Insurge-se também a recorrente quanto à motivação de direito empregue na douta sentença quanto ao alegado incumprimento da ré no pagamento do preço da obra.

xiv. Nessa medida, entende a recorrente que o Tribunal a quo não aplicou devidamente a lei aos factos, violando assim o disposto nos artigos 342.º, 1211.º n.º 1 e 883.º n.º 1, todos do Código Civil, e 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil.

xv. Senão vejamos, na oposição à injunção apresentada pela ré, foi referido o facto de não terem sido juntos documentos que estavam relacionados com a matéria controvertida, nomeadamente: 1. Um orçamento; 2. A aceitação da fatura; 3. A interpelação.

xvi. Aliás, a ausência de orçamento ficou assente no ponto 9. primeira parte dos factos provados.

xvii. Tendo inclusive sido reconhecido pelo legal representante da autora, E. , e corroborado pelo legal representa da ré, F. , e pela testemunha G. .

xviii. Mais, não foi dado como provado que a fatura FT FT/6, datada de 05/01/2017, havia sido recebida pela ré, aqui recorrente, antes da propositura da ação.

xix. Deste modo, dúvidas inexistem que a autora não demonstrou, como lhe competia, que o preço faturado correspondia ao acordado com a ré para pagamento da globalidade da empreitada.

xx. E, inerentemente, não provou também que o valor faturado correspondia a todos os trabalhos por si executados e que o respetivo valor seria o resultante do cálculo do preço unitário fixado por hora de trabalho, ou tampouco que tal valor seria o decorrente dos preços por si praticados no momento da conclusão do contrato.

xxi. Na realidade, a autora, aqui recorrida, limitou-se a juntar uma fatura que em boa verdade, também não demonstra tais circunstâncias, pois nem sequer contém a totalidade dos elementos previstos no CIVA,

xxii. desde logo a quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, a data em que os serviços foram realizados, e os valores adiantados por conta da obra, (30 000,00 euros).

xxiii. Assim sendo, não é possível pois, através dessa fatura, perceber como se chegou àquele valor global e, portanto, qual o valor de cada serviço para nomeadamente sindicar se tais valores parciais seriam ou não razoáveis em conformidade com os preços praticados na altura pelos profissionais da área.

xxiv. Pelo circunstancialismo acima descrito, é manifesto que não houve um incumprimento da obrigação do preço por parte da recorrente.

xxv. Razões suficientes e bastantes para que a recorrente, venha colocar em crise a matéria de direito, pugnando-se pela substituição da decisão proferida nos autos de modo a que seja considerado que a recorrente não incumpriu no pagamento do preço,

xxvi. na medida em que não foi acordado previamente um preço global para a execução da obra, nem que a recorrente se comprometeu a pagar o valor peticionado pelos trabalhos executados pela recorrida, não sendo por isso responsável pelo pagamento do valor a que foi condenada.

xxvii. E caso assim não se entenda, a verdade é que ficou demonstrado que a autora executou obras de remodelação no armazém da escola de mergulho da ré.

xxviii. Mas também é verdade que a autora não demonstrou, como lhe caberia, que a obra por si efetuada correspondia a uma contrapartida monetária em valor superior àquele que a ré já lhe havia adiantado, no valor de 30 000,00 euros.

xxix. Em consequência, e face à inequívoca a onerosidade do contrato, justificava-se que Tribunal recorrido aplicasse o disposto no artigo 883º do Código Civil, por força do previsto no nº 1 do artigo 1211º, do mesmo diploma legal.

xxx. De facto, na ausência de orçamento ou acordo quanto ao preço da empreitada vale como preço contratual aquele que a autora praticava à data da conclusão do contrato, que deveria ser apurado através de um incidente de liquidação de sentença.

xxxi. Assim, e face à ausência de elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal deveria condenar no que viesse a ser liquidado no respetivo incidente de liquidação de sentença.

xxxii. Consequentemente, a decisão de condenação da recorrente no pagamento da quantia de 58 040,60 euro deverá ser substituída por outra que condene a ré a pagar à autora a quantia que vier a ser liquidada, referente ao preço dos trabalhos executados, com a dedução dos 30 000,00 euros já entregues pela ré.

Assim se fazendo Justiça!

3. A A. contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

II – Factos Provados

 

 

1. A A. é uma sociedade comercial, constituída sob a forma de sociedade por quotas, que se dedica, entre outros, à construção de imóveis residenciais e comerciais.

2. A Ré é uma sociedade comercial que se caracteriza por explorar um centro de mergulho, dedicando-se a actividades subaquáticas.

3. No exercício da sua actividade de construção civil, no ano de 2016, a A. acordou com a R. e executou as seguintes obras de remodelação no armazém da escola de mergulho da Ré:

a. Construção de um tanque em betão.

b. Aplicação de piso.

c. Aplicação de OSB (aglomerado de madeira).

d. Aplicação de paredes em vidro.

e. Aplicação de paredes e estruturas em pladur.

f. Pintura interior e exterior: paredes, fachadas e tectos.

g. Aplicação de azulejos.

4. Para pagamento dos trabalhos que iam sendo executados, enquanto as obras estavam a decorrer, a título de adiantamento, a requerida procedeu a uma entrega de 20.000€ e a duas entregas no valor de 5.000€ cada, em datas não concretamente apuradas, mas por volta de Maio/Junho de 2016.

5. Findos os trabalhos para que tinha sido contratada, a A. emitiu a factura FT FT/6, datada de 5/1/2017, com o preço total da obra e com vencimento aos 4/2/2017, no valor de 88.040,06€.

6. Apesar de várias vezes instada para o efeito, a R. não procedeu à liquidação do remanescente desse valor – 58.040,06€.

7. E. foi sócio e gerente da R. entre 2/11/2015 e 26/2/2018.

8. É igualmente sócio e gerente da A. desde a sua constituição, em 26/2/2016, até à presente data.

9. A A. nunca apresentou qualquer orçamento antes do início da obra, tendo apenas remetido à R., findas as obras, e-mail de 30/12/2016, com uma tabela onde constava que o valor a facturar referente à obra em questão seria de 88.000€.

*

Factos não provados:

(…) 

b) A factura recebida em 5. foi recebida pela Ré antes da propositura da presente acção e não foi objecto de reclamação.

(…) 

*

 

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Pagamento do preço.

 

2. A R. impugna os factos provados 6. e 9., pretendendo que eles passem a não provados, com base, quanto ao primeiro, na falta de prova documental, que atestassem o depoimento da testemunha C. e as declarações de parte do legal representante da R. D., e, quanto ao segundo, em erro de compreensão do email de 30 de dezembro de 2016 mencionado pela julgadora. (conclusões de recurso i. a xii.).

Para a decisão da matéria de facto, relativa a tais factos, a julgadora exarou a seguinte motivação:

“A convicção do Tribunal alicerçou-se nas posições assumidas pelas partes nos articulados, e na análise crítica da prova documental junta aos autos, conjugada com a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento e depoimentos/declarações das partes, sempre à luz do ónus de prova que resulta dos artigos 342.º do Código Civil e 414.º do Código de Processo Civil, com consideração de que o Tribunal pode conhecer oficiosamente (artigo 5.º, n.º 2, do CPC).

Concretizando.

(…)

O facto 6 resulta do depoimento da testemunha C., administrativa da A., que asseverou terem existido diversas tentativas de cobrança – nomeadamente uma através de advogado, precedida de várias reuniões onde discutiu o assunto, bem como mensagens e e-mails, procurando obter, de forma amigável, o pagamento.

Tais tentativas de cobrança, prévias ao recurso à presente acção judicial, foram igualmente reconhecidas pelo legal representante da R. D..

No que concerne o facto 9, o legal representante da A. reconheceu nunca ter apresentado qualquer orçamento (salientando que nunca tal lhe foi pedido), facto que foi mencionado igualmente pelo legal representante da R. F. e pela testemunha G. .

Valorou-se ainda, neste ponto, o e-mail junto como doc. 15 com o articulado da A. de 6/1/2021.”.

2.1. Quanto ao facto 6.

Dispõe o art. 607º, nº 5, do NCPC, que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes.

A interpelação ao devedor para pagamento do que for devido não depende da observância de qualquer forma especial, pois a lei não a estabelece em lado algum. Assim, na circunstância do caso, não se tornava necessário demonstrar a referida interpelação mediante a apresentação de qualquer documento ou segundo a observação de qualquer formalidade especial. Reina, por isso, no caso concreto, o princípio da livre apreciação das provas.

Ora, neste aspecto, a julgadora de facto respondeu ao aludido facto 6. com base no depoimento da indicada testemunha C. e depoimento de parte (e não declaração de parte, como afirma a recorrente) do legal representante da R. D.. O que podia perfeitamente fazer com base naquele princípio da livre apreciação das provas, depoimentos esses que, aliás, a recorrente não impugnou.

De maneira, que a impugnação deduzida não tem fundamento legal, indo indeferida nesta parte.   

2.2. Quanto ao facto 9.

Verifica-se que a julgadora de facto, no referente à 2ª parte do mesmo, valorou o e-mail junto como doc. 15 com o articulado da A. de 6.1.2021.

Todavia, nota-se, compulsado tal email (a fls. 35 v./36 dos autos), que a julgadora percepcionou mal o mesmo. Efectivamente, como salienta a recorrente, o email não foi remetido pela A. à R., antes se percebe que foi enviado ao representante da A. E. , com conhecimento a terceira pessoa.

Não pode, pois, permanecer como provado a 2ª parte, que passa a não provada - ficando em letra minúscula. A 1ª parte permanece provada, porque a recorrente não a impugna e até se quer fazer valer dela, como decorre das suas alegações e conclusões de recurso (vide as conclusões xvi. e xvii.)

Procede, por isso, parcialmente a impugnação da decisão de facto no ponto indicado.    

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Decorre dos factos provados que a Autora é uma empresa que se dedica à construção civil e que, a pedido da Ré procedeu à realização de obras nas instalações desta última, que serviam como centro de mergulho.

Desta factualidade ínsita no ponto 3 dos factos provados, resulta claramente que a Autora se obrigou a realizar tais obras no imóvel da Ré, mediante o pagamento pela Ré do correspondente preço.

Ora, perante a matéria factual enunciada somos levados a concluir, sem margem para dúvidas, que foi celebrado entre Autora e Ré, um contrato de empreitada, tal como a lei o define no artigo 1207ºdo Código Civil, isto é, como o contrato pelo qual uma das partes de obriga em relação a outra a realizar certa obra, mediante um preço.

A sua regulamentação jurídica vem prevista nos artigos 1207º a 1229º do Código Civil

Constituem, pois, elementos essenciais do contrato de empreitada:

1. A realização de uma obra;

2. O preço.

(…)

O contrato de empreitada é, pois, um contrato sinalagmático na medida em que dele emergem obrigações recíprocas e interdependentes: a obrigação de realizar uma obra por parte do empreiteiro tem, como contrapartida, o dever de pagar o preço por parte do dono da obra.

(…)

Isto posto, a A. vem invocar o incumprimento contratual da R. relativamente à obrigação de pagar o preço.

De acordo com o art.º 762.º do CC, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, devendo esta prestação, de acordo com o princípio da pontualidade (plasmado no art.º 406.º, n.º 1), adequar-se inteiramente ao acordado entre as partes. Se tal assim não acontecer, o devedor incorrerá em mora (se a prestação, sendo ainda possível, não foi efectuada na altura devida) ou em incumprimento (se, por culpa do devedor, já não for possível o cumprimento).

(…)

Os pressupostos para a afirmação da responsabilidade civil contratual são o incumprimento, a ilicitude, a culpa, o prejuízo sofrido pelo credor e o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo4 Ac. da R.L. de 20-01-2004 in www.dgsi.pt.

São, pois, requisitos da responsabilidade civil contratual o facto ilícito, a culpa (que aqui se presume, por força do disposto no artigo 799.º, n.º 1 do C.C.), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano5 Ac. da R.C. de 19-12-2012 in www.dgsi.pt.

Na responsabilidade civil contratual há uma presunção legal “iuris tantum” da culpa do contraente faltoso, mas é sobre o contraente cumpridor que recai o ónus da prova dos restantes pressupostos: violação contratual, dano e nexo causal6 Ac. do S.T.J. de 02-11-2010 in www.dgsi.pt..

Ora, no caso dos autos, em face da factualidade dada como demonstrada, podemos afirmar que a R. não cumpriu efectivamente a sua obrigação de pagar o preço, nem ilidiu a presunção do artigo 799.º, n.º 1, do CC, a que fizemos menção supra.

(…)

Assim e pelo exposto, deve proceder a presente acção, …”.

A recorrente discorda, no essencial, porque se comprovou a ausência de orçamento e não se demonstrou o recebimento da factura FT FT/6 pela recorrente, antes da propositura da acção, e respectiva aceitação do preço. Não se provou também que o valor facturado correspondia a todos os trabalhos por si executados, e que o respetivo valor seria o resultante do cálculo do preço unitário fixado por hora de trabalho, ou tampouco que tal valor seria o decorrente dos preços por si praticados no momento da conclusão do contrato. Pelo que não houve um incumprimento da obrigação do preço por parte da recorrente, na medida em que não foi acordado previamente um preço global para a execução da obra, nem que a recorrente se comprometeu a pagar o valor peticionado pelos trabalhos executados pela recorrida, não sendo por isso responsável pelo pagamento do valor a que foi condenada. Em consequência, justificava-se que Tribunal recorrido aplicasse o disposto no art. 883º do Código Civil, por força do previsto no nº 1 do art. 1211º, do mesmo diploma legal, e portanto, a decisão de condenação da recorrente no pagamento da quantia de 58.040,60 € deverá ser substituída por outra que condene a R. a pagar à A. a quantia que vier a ser liquidada, referente ao preço dos trabalhos executados, com a dedução dos 30.000 € euros já entregues pela ré. (cfr. conclusões de recurso xiii. a xxxii.)

Apreciando.

É indesmentível que a A. realizou os trabalhos cujo valor reclama com base na factura que emitiu (factos provados 3. e 5.). A questão, então, nuclear é o preço da empreitada.  

Neste aspecto sabemos que: comprovou-se a ausência de orçamento (facto 9.); não se demonstrou o recebimento da factura FT FT/6 pela recorrente, antes da propositura da acção, e respectiva aceitação da factura ou preço (facto b) não provado), ónus de prova que cabia à A., nos termos do art. 342º, nº 1, do CC; não se demonstrou que a recorrente tivesse combinado/aceite preço da empreitada com a recorrida A., ónus de prova que igualmente a esta cabia.

Nesta concreta situação regulam os arts. 1211º, nº 1, e 883º, nº 1, do CC.

Aquele dispõe sobre a determinação do preço, no contrato de empreitada, estipulando que é aplicável à determinação do preço, com as necessárias adaptações, o disposto no art. 883º. E este, sobre a determinação do preço, estabelece, no seu nº 1, que se o preço não estiver fixado por entidade pública, e as partes o não determinarem nem convencionarem o modo de ele ser determinado, vale como preço contratual o que o vendedor normalmente praticar à data da conclusão do contrato ou, na falta dele, o do mercado ou bolsa no momento do contrato e no lugar em que o comprador deva cumprir, na insuficiência destas regras o preço é determinado pelo tribunal, segundo juízos de equidade.    

Ora, no nosso caso, não estando o preço determinado por entidade pública, seria de recorrer ao acordado pelas partes, que, contudo, também não se verifica. Assim como inexiste convenção sobre o modo do preço ser determinado.

Atender-se-á, então, ao preço que normalmente o empreiteiro praticar à data da conclusão do contrato.

Por fim, há sempre a possibilidade de o preço ser fixado pelo tribunal, segundo juízos de equidade, não se tendo muito em vista o preço de mercado ou da bolsa, por não se descortinar uma grande possibilidade prática de aplicar esse critério em matéria de empreitada. E também a remissão para o art. 883º não afasta a possibilidade, conferida em termos gerais pelo art. 400º, nº 1, do CC, de a fixação do preço ser confiada a uma das partes ou a terceiro, cláusula que, igualmente, não ocorre nos autos (vide Antunes Varela, em CC Anotado, Vol. II, 2ª Ed., nota 1. ao art. 1211º, págs. 711/712).  

Do assinalado, decorre, no caso concreto, que, na ausência de orçamento, acordo quanto ao preço da empreitada ou critério para o definir (saliente-se que a acima referida factura, a fls. 52 dos autos, apesar de descrever os trabalhos parciais – constantes do facto 3., a. a g. - só tem apontado o preço final, sem discriminação do valor parcial correspondente a tais diferenciados trabalhos) terá de valer como preço contratual, face ao inciso legal, aquele que a A. praticava à data da conclusão do contrato.

Que na falta de elementos suficientes, deve ser apurado através de incidente de liquidação de sentença, nos termos do art. 609º, nº 2, do NCPC. Como, aliás, propugna o Ac. do STJ, de 25.3.2010, Proc.1616/05-4TJVNF, em www.dgsi.pt, cujo sumário, no seu ponto 7) reza assim: “A correcta leitura do artigo 883.º do Código Civil é a seguinte: - Em primeira linha busca-se a certeza de obrigação podendo perfilar-se duas situações: o “quantum” ser apurado imediata e directamente (havendo tabelamento do preço ou acordo expresso das partes) procedendo-se logo à condenação liquida; não estar precisamente determinado o montante (não como consequência do fracasso da prova) mas verificando-se que o mesmo é possível em ulterior fase executiva, proferindo-se então condenação ilíquida nos termos do n.º 2 do artigo 661.º do Código de Processo Civil. Goradas estas possibilidades tentará encontrar-se o preço recorrendo sucessivamente a dois índices: prática anterior do empreiteiro; regras do mercado em idênticas circunstâncias de tempo e lugar. Só se ainda assim não for possível apurar o preço é que o Tribunal o vai fixar segundo juízos de equidade…”.

Concomitantemente, a R. apenas poderá ser condenada em juros a partir da liquidação, já que só nesse momento se considera em mora, pois a falta de liquidez não é devida à R./devedora (art. 805º, nº 4, 1ª parte, do CC). 

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

(…)

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e, em consequência, condena-se a R. a pagar à A. a quantia que se apurar em liquidação de sentença - referente ao preço dos trabalhos executados, com a dedução dos 30.000 € já pagos pela R. -, acrescida de juros contados desde a data da liquidação, no demais se mantendo a decisão recorrida     

*

Custas por A. e R. na proporção do respectivo decaimento.

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                                                                           Coimbra, 18.1.2022

                                                                                  

                                                                                   Moreira do Carmo

                                                                           

                                                                           Fonte Ramos

                                                                           

                                                                           Alberto Ruço