Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1542/13.3TBMGR-K.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO PAULIANA
INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.610, 616 CC, 127 CIRE, 157, 159 CPEREF
Sumário: 1 – Não contem o actual CIRE (ao contrário da anterior legislação falimentar) um qualquer preceito quer a prever/admitir a impugnação pauliana intentada pelo administrador de insolvência quer a considerar que uma impugnação pauliana, julgada procedente, beneficiará todos os credores.

2 – Assim, seguindo uma impugnação pauliana o seu curso até final, a sua procedência apenas aproveita ao credor que a intentou (desde logo por a lei geral não admitir uma impugnação com efeitos de “ineficácia colectiva”) e os bens objecto de tal acção pauliana não integram a massa insolvente (desde logo por continuarem a ser propriedade dos adquirentes e não do insolvente).
Decisão Texto Integral:




Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Após nos autos haver sido declarado insolvente J (…), foi proferida decisão final em processo pendente (já antes do início do presente processo de insolvência), decisão em que, entre outras coisas, se julgou procedente a impugnação pauliana (dos actos/vendas ali identificados) intentada pela C (…) CRL contra o aqui devedor/insolvente e outros; após o que os bens alvo de tal decisão/impugnação pauliana foram apreendidos pelo Sr. Administrador de Insolvência.

Veio então a C(…)sustentar que “o interesse no efeito da impugnação pauliana é singular e exclusivo do credor que intenta a acção, pelo que a procedência da acção pauliana aproveita somente ao credor impugnante, aqui C (…)”, e requerer que fosse notificado por parte do AI “nos termos do disposto no artigo 164º do CIRE”.

Requerimento esse que mereceu da Exma. Juíza o seguinte despacho datado de 24/10/2018:

“ (…)

Como se refere no Ac. do STJ de 11.07.2013, proc. nº 283/09.0TBVFR-C.P1.S1, o qual acompanhamos “Se os executados são declarados insolventes na pendência de acção de impugnação pauliana movida pelo exequente, por razões de justiça material e respeito pela execução universal que a insolvência despoleta, os bens alienados objecto da acção de impugnação pauliana julgada procedente, devem, excepcionalmente, regressar ao património do devedor, para, integrando a massa insolvente responderem perante os credores da insolvência.

Sendo, deste modo, o crédito do exequente, autor triunfante na acção de impugnação pauliana, tratado em pé de igualdade com os dos demais credores dos ora insolventes, assim se acolhendo a lição de Pires de Lima e Antunes Varela quando afirmam que “o credor pode ter interesse na restituição dos bens ao património do devedor, se a execução ainda não é possível ou se há falência ou insolvência, caso em que os bens revertem para a massa falida.”

Esta é também a posição vertida no Ac. da RG de 30.05.2018, proc. nº 3134/14.0TBBRG e da RE de 14.09.2017, proc. nº 539/14.0TBVNO todos in www.dgsi.pt.

Assim, acolhendo a fundamentação constante dos acórdãos citados, importa considerar que se está perante uma circunstância excepcional que impõe que os efeitos normais da procedência da acção de impugnação pauliana não sejam aqui aplicáveis e que os bens alienados, objecto da acção de impugnação pauliana, devam, excepcionalmente, regressar ao património do devedor/insolvente, para, integrando a massa insolvente, satisfazerem o direito de crédito de todos os credores da insolvente.

Aliás, refira-se que no âmbito do processo nunca os bens podiam ser vendidos para satisfação apenas do crédito da credora, como parece pretender do seu requerimento, na medida em que estamos perante uma execução universal e não uma execução singular.

(…)”

Inconformada, interpõe a C (…) o presente recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que “declare que a impugnação pauliana em causa nos autos, apenas aproveita ao Credor Reclamante C (…) CRL.”

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

(…)

Respondeu o devedor insolvente, sustentando, em síntese, que a decisão recorrida não violou qualquer norma substantiva, designadamente, as referidas pela recorrente, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*


II – Fundamentação

A – Os elementos factuais pertinentes são os que já constam do relatório precedente.

B – Quanto à discussão de direito:

Diz a recorrente que “objecto do recurso reconduz-se essencialmente a uma única questão: saber (…) se os bens alienados objecto da acção de impugnação pauliana julgada procedente intentada pela Recorrente C (…), devem, excepcionalmente, regressar ao património do devedor, para, integrar a massa insolvente”; e termina a sua conclusão recursiva a dizer que se deve “declarar que a impugnação pauliana em causa nos autos apenas aproveita ao credor reclamante C (…), CRL.”

É esta efectivamente a questão, ou porventura mais exactamente são estas as duas faces da mesma questão: saber a quem aproveitam os efeitos do ganho de causa duma acção pauliana e, por outro lado, como é que tal “aproveitamento” se realiza.

Questão em que, antecipando a conclusão, entendemos, como sustenta/pretende a recorrente, que os efeitos da acção paulina só aproveitam ao autor de tal acção (mesmo num caso, como o presente, em que há insolvência do devedor) e que tal “aproveitamento” não tem lugar no processo de insolvência do devedor (desde logo por não integrarem os bens, cujos actos foram impugnados, a massa insolvente).

Expliquemo-nos:

A impugnação pauliana – é hoje totalmente pacífico – é um meio de conservação patrimonial que não coloca em crise a validade do acto impugnado; em que o credor não aspira a que o tribunal declare inválido (nulo ou anulável) um qualquer acto patrimonial praticado por um seu devedor em seu prejuízo; mas em que apenas pretende que o acto seja ineficaz[1] em relação a si (art. 616º do CC - ineficácia relativa), podendo executar o bem no património do obrigado à restituição.

Por outras palavras, “(...) a impugnação pauliana é um meio de reacção contra actos positivos do devedor - designadamente contra actos de alienação - que não enfermam de qualquer vício interno (são actos válidos), mas que causam prejuízo aos credores.

A acção tem por finalidade a indemnização do credor impugnante à custa dos bens ou valores adquiridos pelos terceiros, não podendo tais bens ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo credor.

Trata-se, portanto, de uma acção pessoal com escopo indemnizatório - e não de uma acção de declaração de nulidade ou de anulação ou de uma acção resolutória ou rescisória dos negócios realizados pelo devedor”[2],[3].

Enfim, o ponto de partida da acção pauliana – o ponto de partida da aqui recorrente na acção que havia intentado contra o seu credor e aqui insolvente – é justamente o de não colocar em crise a validade do acto impugnado (e a constituição ou transferência de direitos reais por mero efeito do acto que impugnou – cfr. art.408.º/1 do C. Civil); para a aqui recorrente – e para a lógica jurídica duma acção pauliana – os adquirentes (também réus em tal acção pauliana) passaram a ser os proprietários dos bens adquiridos através do acto impugnado e continuam a ser – pese embora a procedência da acção pauliana – os proprietários de tais bens.

Sucede apenas – face à ineficácia de tais actos/vendas em relação à aqui recorrente, “ineficácia relativa” trazida pela procedência da acção pauliana – que a aqui recorrente passa a ter “direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição” (cfr. art. 616.º/1 do C. Civil), porém, repete-se mais uma vez, os bens em causa continuam a ser propriedade dos adquirentes (também réus em tal acção pauliana).

E, claro está, se tais bens continuam a ser propriedade dos adquirentes, não são propriedade do aqui devedor/insolvente e, por conseguinte, não são bens integrantes da sua massa insolvente.
A propósito da impugnação pauliana de acto dum devedor entretanto declarado insolvente (isto é, das consequências, ou não, da insolvência sobre os efeitos da impugnação pauliana), importa ter presente as alterações introduzidas pela actual legislação das insolvências (CIRE); tema sobre o qual já sustentámos em acórdão de 12/01/2016[4] (proferido na apelação n.º 632/15.2t8cbr-A.C1 e disponível in CJ, Tomo I, pág. 5, 2016) o que se passa a transcrever:

“Dantes, quer o art. 1201.º do CPC, quer o art. 157.º do CPEREF, previam explicitamente serem impugnáveis em benefício da massa falida os actos susceptíveis de impugnação pauliana; acções/impugnações que “eram dependência do processo de falência”; e para as quais era conferida legitimidade activa (cfr. art. 1204.º/1 do CPC e art. 160.º/1 do CPEREF) ao administrador/liquidatário (acção pauliana que, julgada procedente, beneficiava todos os credores, ou seja, os actos eram “impugnáveis em benefício da massa falida”, como se dizia no art. 157.º do CPEREF).

Hoje, diversamente, o actual CIRE não contém qualquer preceito a prever, no âmbito da insolvência, a impugnação dos actos susceptíveis de impugnação pauliana; não admite sequer (cfr. 127.º/2 do CIRE) que quaisquer acções/impugnações paulianas pendentes sejam apensas ao processo de insolvência; e também não confere ao administrador de insolvência legitimidade activa para intentar tais acções/impugnações.

Mais ainda, o actual CIRE só admite que prossigam ou sejam instauradas acções paulianas (que nunca serão apensas) de actos cuja resolução não haja sido declarada (ou em que esta seja declarada ineficaz por decisão definitiva) pelo administrador de insolvência (como resulta do art. 127.º/1 e 2 do CIRE) e, nesse caso, “julgada procedente a acção de impugnação, o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do art. 616.º do C. Civil, com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou pagamentos” (cfr. 127.º/3 do CIRE).

Ou seja, o actual CIRE, além do que deixou de prever quanto à impugnação pauliana (por comparação com a legislação anterior), afastou-se (como resulta do transcrito 127.º/3) da tradição anterior, que determinava (como se referiu) que a procedência da impugnação pauliana aproveitava à comunidade dos credores.

Além da alusão ao interesse do credor nos remeter para a acção pauliana singular, só é concebível que o interesse do credor seja aferível “com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou pagamentos” se, logicamente, a impugnação só aproveitar/beneficiar o credor/impugnante.

Em síntese, a actual legislação da insolvência (CIRE) rejeita as especialidades que a acção pauliana tinha nas codificações falimentares anteriores; dá prevalência à resolução declarada pelo administrador de insolvência; e restitui (comprimida por tal prevalência) a impugnação pauliana à configuração e recorte que a mesma tem na lei geral (610.º e ss. do C. Civil): meio de conservação patrimonial (que não coloca em crise a validade do acto impugnado), em que o credor não aspira a que o tribunal declare inválido (nulo ou anulável) um qualquer acto patrimonial praticado por um seu devedor em seu prejuízo, mas em que apenas pretende que o acto seja ineficaz em relação a si (art. 616º do CC - ineficácia relativa), podendo executar o bem no património do obrigado à restituição.

E, sendo assim, em face de tal ineficácia relativa da lei geral (aproveitando os efeitos da impugnação apenas ao credor impugnante), é inadmissível (sem lei expressa) uma acção paulina, intentada pelo administrador de insolvência, em que o pedido (efeitos) acabaria por ser a ineficácia em relação a todos os credores da insolvência.

Sem lei expressa – como dantes acontecia quer com os art. 1201.º e 1204.º do CPC quer com os art. 157.º, 159.º e 160.º do CPEREF – uma tal acção (com efeitos de “ineficácia colectiva/universal”) não existe verdadeiramente; e, embora os poderes/deveres do administrador de insolvência sejam exercidos no interesse de terceiros, mormente dos credores, não se pode sequer dizer que, por tal razão, ele pode/deve ser considerado credor para efeitos do art. 610.º/a) do C. Civil, o que, encurtando razões, conduz à ilegitimidade declarada na decisão recorrida.

(…)

O cerne da questão não está em saber se a actual legislação de insolvência apenas suprimiu a impugnação pauliana “com desenho jurídico diferente (que, desde logo, invertia o ónus da prova a favor da massa insolvente)” constante da anterior legislação falimentar; ou se, fora das balizas temporais da resolução (dos art. 120.º e 121.º do CIRE), “nada pode impedir o A. I. de lançar mão dos meios de garantia gerais previstos na lei geral civil, no Código Civil, designadamente, o instituto dos Art.º 610º e s. dessa codificação”.

O cerne da questão está em saber se a lei geral – única que actualmente estabelece os requisitos e pressupostos da acção pauliana – admite uma impugnação pauliana com ineficácia “universal” e se, segundo a mesma, o administrador de insolvência pode/deve ser considerado credor para efeitos do art. 610.º/1 do C. Civil.

Ora – é o ponto – não admite/considera.

Era justamente por isto – por se verificarem tais obstáculos jurídicos e para os contornar – que existiam (e eram úteis e indispensáveis) os antigos art. 1201.º e 1204.º do CPC e 157.º, 159.º e 160.º do CPEREF; e é por isto que, hoje, sem preceitos semelhantes, tais obstáculos se tornam juridicamente invencíveis.

Enfim, repetindo e sintetizando, a actual legislação da insolvência:

 - dá prevalência à resolução declarada pelo AI;

 - não inclui as especialidades que as codificações falimentares anteriores consagravam à acção pauliana; e

- sem lei expressa a estabelecer tais especialidades resta a lei geral (610.º e ss. do C. Civil) e a configuração e o recorte que a lei geral confere à acção pauliana.

E, é o ponto, a lei geral – única que actualmente estabelece os requisitos e pressupostos da acção pauliana – não admite uma impugnação pauliana com ineficácia “universal”, mas sim e apenas com a ineficácia relativa supra traçada.

Sendo assim, não havendo nenhuma disposição legal a prever que a procedência da impugnação pauliana possa aproveitar à comunidade dos credores, não faz qualquer sentido, com todo o respeito por opinião diversa, que o “aproveitamento” dos seus efeitos tenha lugar no processo de insolvência do devedor.

Como supra se referiu, os adquirentes – pese embora a procedência da impugnação pauliana – continuam a ser os proprietários dos bens adquiridos através do acto impugnado e, sendo assim, não são os bens propriedade do aqui devedor/insolvente, nem são bens integrantes e apreensíveis para a sua massa insolvente (cfr. art. 149.º/1 do CIRE), não se verificando portanto o obstáculo do art. 88.º do CIRE ao prosseguimento/instauração de execução que atinja os bens transmitidos pelo acto impugnado (tal obstáculo só atinge os bens integrantes da massa insolvente, o que não é o caso de tais bens).

A lei mudou (do CPEREF para o CIRE) e por conseguinte o que no passado – noutro ambiente legal – se sustentou, doutrinal e jurisprudencialmente, não tem hoje a mesma validade.

Não raras vezes somos colocados perante situações em que a solução que resulta da imediata interpretação da lei não parece ser, de jure condendo, a melhor e mais lógica solução; porém, não é sequer o caso.

Não se contesta, em face de toda a teleologia do direito da insolvência – das alterações que a declaração de insolvência traz nas relações entre o devedor e os credores e nas relações entre estes, quer em termos processuais, quer em termos substantivos – que haja suficientes razões para, como se fazia nos antigos art. 1201.º e 1203.º do CPC e nos art. 157.º e 159.º do CPEREF, instituir uma impugnação pauliana “especial”, com ineficácia “universal”, porém, também há razões suficientes para não instituir/manter tal “especialidade” e respeitar o recorte conceitual e os requisitos (art. 610.º, 611.º e 612.º do C. Civil) do instituto da impugnação pauliana[5].

Não podemos pois ignorar a mudança legislativa (e efectuar, sem mais, a interpretação que conduz exactamente à repristinação da “especialidade” que deixou de constar da lei) que até vem ao encontro do recorte conceitual e dos requisitos do instituto da impugnação pauliana.

Se porventura só em relação ao credor impugnante se preencherem os requisitos da impugnação pauliana[6] – um dos requisitos da impugnação pauliana é o crédito do impugnante ser anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente visando impedir a satisfação do direito do credor impugnante, o que pode muito simplesmente significar ser apenas o credor impugnante a preencher tal requisito – faz sentido jurídico que só ele possa beneficiar de tal meio de conservação da garantia patrimonial, ou seja, não se vislumbra que seja contrário “à lógica do sistema jurídico[7] que, declarada a insolvência do devedor, o credor impugnante não tenha, em tal hipótese, que passar a partilhar tal “benefício” com os restantes credores; tanto mais que, repete-se sempre, o bem cujo acto de transmissão foi impugnado (com êxito) continua a ser propriedade do transmissário.

Se a impugnação pauliana tivesse natureza anulatória, como acontecia na vigência do Código de Seabra, ainda se poderia questionar a “lógica e harmonia” de tal solução, na medida em que, por um lado, se fazia regressar o bem ao património do insolvente e, depois, só se deixava o credor impugnante satisfazer-se à custa dele.

Mas não é o caso – a impugnação pauliana, repete-se mais uma vez, não coloca em crise a validade do acto impugnado, o credor não aspira a que o tribunal declare inválido (nulo ou anulável) um qualquer acto patrimonial praticado por um seu devedor em seu prejuízo, mas apenas pretende que o acto seja ineficaz em relação a si – pelo que a solução que hoje decorre do art. 127.º do CIRE (mais exactamente, a solução que hoje decorre do art. 127.º do CIRE não repetir a especialidade que constava dos antigos art. 1201.º e 1203.º do CPC e dos art. 157.º e 159.º do CPEREF) não constitui uma excepção ao princípio da universalidade insolvencial, uma vez que e desde logo não retira da garantia patrimonial universal dos credores qualquer bem que seja propriedade do devedor/insolvente.

Para além de não repetir a especialidade que constava dos antigos art. 1201.º e 1203.º do CPC e dos art. 157.º e 159.º do CPEREF [8], o art 127.º do CIRE, nos seus n.º 1 e 2, limita-se a estabelecer as relações/repercussões entre a resolução (dos art. 120.º e 121.º do CIRE) e a impugnação pauliana, conferindo toda a prevalência àquela, dizendo que a resolução obsta à instauração e prosseguimento da impugnação pauliana e dizendo que, sendo a resolução eficaz, tal conduz à extinção da acção pauliana que esteja pendente.

E estabelece (sente a necessidade de estabelecer) tais relações/repercussões justamente – é o que parece – por os efeitos de uma e outra não serem os mesmos, ou seja, por os bens ou valores correspondentes não reverterem em ambos os casos para a massa insolvente[9].

Está pois de certo modo implícito nos comandos do n.º 1 e 2 do art 127.º do CIRE que o legislador de 2003 perspectivou a impugnação pauliana no recorte conceitual que a lei geral lhe dá e sem as “especialidades” que constavam dos antigos art. 1201.ºe 1203.º do CPC e dos art. 157.º e 159.º do CPEREF, ou seja, é onde se quer chegar, a não inclusão de tais “especialidades” não pode/deve ser vista como um lapso do legislador que o intérprete deva ou sequer possa corrigir.

E é nesta linha de raciocínio que deve ser interpretado o 127.º/3 do CIRE, em que se diz que o “interesse do credor” que tenha obtido ganho de causa na acção pauliana se mantém, em relação à sua satisfação através dos bens alvo da impugnação, sem as “compressões/reduções” introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou pagamentos.

Em face duma norma como a do art. 217.º/1 do CIRE – segundo a qual “com a sentença de homologação produzem-se as alterações dos créditos sobre a insolvência introduzidas no plano de insolvência” – colocar-se-ia, natural e imediatamente, na hipótese do crédito do impugnante ser “comprimido/reduzido” pelo plano de insolvência, a questão de saber qual a “medida” do interesse/crédito do impugnante (que iria ser satisfeito através dos bens alvo da impugnação), questão a que o art. 127.º/3 do CIRE responde no sentido do crédito do impugnante se manter incólume na sua medida (ou seja, no sentido de não lhe ser aplicável o referido art. 217.º/3 do CIRE, em relação, claro está, à satisfação do seu crédito através dos bens alvo da impugnação).

Regra esta – da “intangibilidade” (pelo plano de insolvência ou de pagamentos) da “medida” do interesse/crédito do impugnante – pouco conciliável com a colocação da procedência da impugnação pauliana a aproveitar à comunidade dos credores, até por, em caso de plano de insolvência ou de pagamentos, não haver, via de regra, uma liquidação da massa insolvente em que tal aproveitamento pela comunidade dos credores possa ocorrer.

Efectivamente, uma tal “intangibilidade” só é verdadeiramente compatível com uma impugnação pauliana que apenas aproveita/beneficia o credor impugnante (em caso de plano de insolvência ou de pagamentos, o normal é ocorrer o encerramento do processo de insolvência, pelo que o único aproveitamento que, em tal hipótese, pode ser retirado da impugnação pauliana procedente é o que o credor impugnante possa obter na execução individual que venha a intentar), o que naturalmente também significa que tal aproveitamento/benefício não pode ser feito numa execução universal como é o caso do processo insolvencial.

Em conclusão, o que é dito no art. 127.º/3 do CIRE não encerra e pressupõe as especialidades sobre a impugnação pauliana (dos antigos art. 1201.ºe 1203.º do CPC e dos art. 157.º e 159.º do CPEREF) que deixaram de constar da actual legislação insolvencial e, por conseguinte, a partir de todo o texto do art. 127.º do CIRE – e a interpretação tem que ter na letra da lei um mínimo de correspondência – não é possível reconstituir um pensamento legislativo no sentido da manutenção das referidas especialidades[10].


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É quanto basta para dizer, como se antecipou, que procedem as conclusões da alegação da recorrente, impondo-se assim revogar a decisão proferida.

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III - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida e declara-se que a procedência da acção pauliana 215/05.5TBRMR (melhor identificada nos autos) apenas aproveita à credora impugnante C (…) e que os bens objecto da procedência (ineficácia relativa) de tal acção pauliana não integram a massa insolvente de J (…)

Custas, nesta instância, pela Massa.


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Coimbra, 11/04/2019


 Barateiro Martins ( Relator )

Arlindo Oliveira

Carlos Barreira – vencido, pois manteria a decisão recorrida, onde sempre se salvaguardaria o específico interesse do impugnante, já que “o interesse do credor sempre seria aferível “com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou pagamentos”, isto é, o interesse do credor impugnante seria aferido, segundo a estatuição do n.º 3 do artigo 127.º, “sem atender às modificações introduzidas no seu crédito por um plano de insolvência ou de pagamentos que tenha sido aprovado e homologado, isto é, o seu crédito é considerado, quanto à medida do direito à restituição, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do referido art.º 616.º, tal como tenha sido reclamado e verificado no processo de insolvência.” - Neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado (Reimpressão, com notas de actualização.), Quid Juris-Sociedade Editora, Lisboa 2009, pág. 445 (em anotação ao art.º 127.º do CIRE).


[1] Antunes Varela, in RLJ, ano 122º, pág. 252 e ss.
[2] M. Henrique Mesquita, in RLJ, ano 128º, pág. 256.
[3] O impugnante “é apenas titular de um direito de crédito - o direito à restituição de determinado valor - perante o terceiro a quem o devedor alienou os bens- cfr. M. Henrique Mesquita, in RLJ, ano 128º, pág. 255.
[4] Em que se seguiu o decidido em Ac. desta Relação de 11/03/2014; e o defendido por Cura Mariano, in Impugnação Pauliana, 2004, pág. 274.

[5] Com a viragem de concepção que lhe foi introduzida no C. Civil de 1966, abandonando-se a sua anterior natureza anulatória e passando a uma simples ineficácia relativa.
[6] Mais, se só ele intentou a acção pauliana no prazo de 5 anos do art. 618.º do C. Civil.
[7] Como se refere no Ac. da Relação de Guimarães citado na contra alegação.

[8] Nada estabelecendo – deixando isso à lei geral – sobre os efeitos da procedência duma impugnação pauliana, designadamente, se o bem é apreendido para a massa e, em caso afirmativo, se o seu produto beneficia todos os credores ou apenas o credor impugnante.

[9] Se os bens objecto da acção pauliana regressassem ao património do devedor para satisfazer todos os credores, se resolução e acção pauliana cumprissem o mesmo desiderato, não sentiria por certo o legislador do CIRE a necessidade de estabelecer tal prevalência.

[10] Em face de toda a teleologia do direito da insolvência, não se contesta, como supra admitimos, que haja suficientes razões para instituir uma impugnação pauliana “especial”, com ineficácia “universal”, porém, se porventura era/foi este o pensamento do legislador de 2003, exprimiu-se mal, com todo o respeito, no art. 127.º do CIRE.