Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
293/06.0TAPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: OFENSA À MEMÓRIA DE PESSOA FALECIDA
RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 05/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 10º, 14º E 185ºDO CP; 127º, 411º 412º E,428º DO CPP
Sumário: 1 Nos termos do art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2.A lei (artigo 412º,nº3 do CCP), no recurso sobre a matéria de facto, exige ao recorrente além da identificação dos pontos de facto tidos por incorrectamente julgados, a indicação do conteúdo da provas (no caso dos depoimentos gravados as passagens concretas contendo afirmações diversas das supostas na motivação da sentença recorrida) capazes de, apreciadas à luz dos critérios legais em vigor, impor decisão diversa da recorrida
3.O recurso sobre a impugnação ampla da matéria de facto (que se não confunde com a invocação dos vícios identificados no artigo 410º do CPP) assenta numa nova valoração pelo tribunal de recurso dos meios de prova (conteúdo) produzidos em audiência ou incorporados nos autos e discutidos em audiência, nos quais assentou a decisão recorrida e que o recorrente tem por indevidamente valorados.
4.A memória de pessoa falecida (tutelada pela lei penal, artigo 185º do CP) é aquele património moral ligado à existência da pessoa que permanece depois da sua morte.
5.Ofensa grave para efeitos do artigo 185º doCP é aquela que atinge o património espiritual da pessoa falecida na sua parte nuclear ou essencial da sua memória.
6.Não se pode falar na prática do crime p. e p. pelo artigo 185º do CP quando a actuação do agente não constitui qualquer afirmação, tomada de posição, apreciação, juízo sobre o merecimento, relevo social, obra, reconhecimento, bom-nome, reputação da pessoa falecida
Decisão Texto Integral: I.
Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença na qual foi decidido:
- julgar improcedentes a acusação particular deduzida pelo assistente D e, em consequência, absolver os arguidos, J e A da prática, em autoria material, de um crime de ofensa à memória de pessoa falecida, previsto e punido pelo artigo 185º do C. Penal;
- julgar improcedente pedido de indemnização civil formulado pelo assistente, absolvendo do mesmo os arguidos/demandados.
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Recorre o assistente da referida sentença, formulando, na motivação, as seguintes CONCLUSÕES:
1. A douta sentença recorrida contém pontos de facto incorrectamente julgados, existem pontos de facto que deveriam ter sido dados como provados, tudo isto em obediência à prova produzida em audiência de julgamento, bem como foi feita uma errónea interpretação e aplicação do direito ao caso em apreciação;
2. Os pontos 14,15, 16, 17 e 18 da matéria de facto dada como provada, não têm qualquer sustentação na prova produzida em audiência de julgamento;
3. Para dar como provado o facto plasmado no ponto 14., da douta sentença, a Ma. Juiz a quo fundou-se no depoimento do arguido que considerou sincero, credível e honesto, o que, segundo as regras da experiência, e atento o contexto, não pode atribuir-se-lhe tal característica de credibilidade;
4. Em primeiro lugar porque o arguido já comprovou em sede da acção cível (que o Assistente interpôs como resposta a uma acção contra si interposta pelo arguido para aumento de capital de uma sociedade fantasma que havia deixado de laborar já nos finais da década de 60) onde proferiu expressões injuriosas, acima transcritas, para com o pai do assistente, o falecido JP, e que tinha por objecto a dissolução da Sociedade …, Lda., que tem por hábito alegar factos falsos;
5. A titulo de por exemplo, a alegação de que a empresa tinha actividade e até arrendamentos de pedreiras com processos de licenciamento, ao que o Autor, aqui assistente, comprovou ser falso através de documentos autênticos que juntou aos autos e que ele reconhece no termo da acção;
6. Por outro lado, o depoimento do arguido é claramente contraditório - a titulo de exemplo e muitos outros há, veja-se que começa por referir que foi a esposa do falecido J P que lhe disse que este havia furtado toda a contabilidade e adiante refere que foi uma tia (ambas falecidas); veja-se que começa por referir, antes de lhe ser mostrada a fotografia dos autos, que a viatura que referiu na contestação ter sido vendida em proveito próprio pelo falecido, que a mesma estava em bom estado e após a exibição da fotografia que reconhece ser a do veículo em questão, claramente se vê que o veículo está completamente enferrujada, e com buracos no capôt e portas e a contabilidade como referiram as próprias testemunhas que o arguido arrolou, seus contabilistas, referem que ficou no escritório até ao final da actividade da sociedade; sendo o arguido quem acompanhou a laboração da sociedade até ao fim;
Se são duas as versões do arguido como pode a M.ma Juiz optar por uma das versões sem a corroboração, em nenhuma delas de qualquer testemunha? Se o Falecido furtou todos os documentos, como pode a sua mandatária referir que teve acesso, por ele, a uma panóplia de documentos da sociedade?
7. A M.ma Juiz, fazendo tábua rasa de todos estes factos, e contradições assentou praticamente toda a sua convicção no depoimento do arguido o que não podia fazer legitimamente, já que o mesmo não é revelador de isenção e imparcialidade e credibilidade;
8. São dados factos como provados que nenhuma das testemunhas referiram nomeadamente a intenção de encerramento da empresa, a venda da maquinaria, o desvio da escrita por parte do falecido J P;
9. Tanto mais que o falecido manteve-se à margem da sociedade sendo que por vários funcionários que faziam turnos, nunca foi visto;
10. E também não pode dar-se como provado que o falecido tentou vender um serrote e tudo o que houvesse nas instalações, a preço de ferro, quando a própria testemunha do arguido que estranhamente aparece no processo, após o inicio da audiência, refere que o que lhe foi tentado vender já era ferro velho em perfeito estado de sucata;
11. Ao dar os pontos 14. a 18. da matéria de facto dada como provada, é subverter completamente a prova produzida, porquanto não se funda nem na prova documental, nem na prova testemunhal, que foi ouvida;
12. Ademais há factos que deveriam ter sido dados como provados como sendo que durante o período de actividade da Sociedade… Lda., sempre foi o arguido J, quem exerceu a gerência; que o falecido J P, pai do assistente, nunca exerceu qualquer função na Sociedade Lda., não frequentando tão pouco as instalações da mesma; que o falecido J P, nunca foi visto a circular com o veiculo, nem possuía os documentos do mesmo; que toda a maquinaria da sociedade ainda hoje permanece no local, em situação de completo abandono, incluindo os motores, encontra-se em estado de perfeita sucata, há já mais de 15 anos;
13. Bem como deveria ter sido dado como provado que as imputações identificadas de 6.a 8.dos factos dados como provados afectam muito negativamente o crédito, estima, bom nome e reputação do pai do assistente; trata-se de expressões usadas pelo arguido contêm em si um indesmentível desvalor, objectivamente ofensivo e grave. Tanto mais que são reiteradas e várias e são feitas no âmbito de um processo, de forma escrita que chegou ao conhecimento de várias pessoas.
14. Apesar de o Tribunal ter considerado que as expressões são objectivamente injuriosas da honra e consideração de alguém — pág. 15 da douta sentença — entendeu, erradamente que as circunstâncias em que foram proferidas não assumiram objectividade suficiente para integrar o ilícito criminal.
15. Andou mal o Tribunal neste entendimento, pois o arguido, não só sabia perfeitamente que tais imputações não eram verdadeiras, como ao poferi-las elas têm a susceptíveis de produzir ofensa à memória de pessoa falecida, não podendo deixar de entender-se que estas expressões assumem dignidade penal, pois atingem as aptidões e capacidade do falecido, de modo gravemente depreciativo e injurioso.
16. Deveria, ainda, dar-se como provado que as imputações identificadas de 6. a 8. dos factos dados como provados são feitas no concelho onde sempre viveu o falecido e onde todos se conhecem; que ao proferir as expressões identificadas de 6. a 8. dos factos dados como provados, os arguidos tiveram a intenção de ofender a memória do pai do queixoso; que ao proferir as expressões identificadas de 6. a 8. dos factos dados como provados, os arguidos representaram que da sua conduta iria necessariamente resultar a ofensa a memória do pai do queixoso; que os arguidos representaram como possível que das expressões indicadas de 6. a 8. dos factos dados como provados resultaria a ofensa da memória do pai do queixoso e, não obstante, conformaram-se com tal realização.
17. As expressões usadas e dadas como provadas nos pontos 6. a 8. da matéria de facto, procurando o arguido, no contexto em que são feitas, imputar toda a paralisação da sociedade e descapitalização da mesma, contém um alto grau de desvalor e que em si, são grave e objectivamente ofensivas da honra e consideração da pessoa visada, o falecido J P
18. Aquelas expressões, encerram em si mesmo um desvalor a memória do falecido, já que ele era uma pessoa bem conceituada e bem vista no seu meio, e a imputação feita pelo arguido de este “sonegar” bens, significa “ocultar ou subtrair fraudulentamente”, expressões que afectam a honra e consideração de qualquer pessoa.
19. Nos termos do artigo 185º do Código Penal, “Quem, por qualquer forma, ofender gravemente a memória de pessoa falecida é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.”
E nos termos do artigo 1800º n.º 2, alínea a) e b) do Código Penal, aplicável ex vi do artigo 185º, n.º 2, a conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
20. Não restam dúvidas que a expressão que imputam ao falecido JP “passou obstruir e sabotar toda a actividade da Ré” e sonegando até a própria escrita comercial da ré”, tem o significado de “sonegar fraudulentamente” ou “subtrair fraudulentamente.”
21 .As expressões usadas pretenderam ofender o falecido J P já que tais imputações são feitas com expressões em si mesmas, injuriosas e difamatórias, que a M.ma Juiz a quo pretende escudar a pretexto do exercício de um direito legitimo que nem sequer foi invocado ou alegado em sede de acção cível, pelo arguido, aquando da utilização daquelas expressões.
22. O arguido utilizou expressões que são clara e objectivamente ofensivas da honra e consideração do falecido J P.
23. Não é necessário que tais expressões atinjam efectivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas expressões para ofender. É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano — cf. Faria e Costa e Beleza dos Santos in, ob. Cits.
24. Ora, o nº 2 do artigo 180º do C. Penal, ao prever a não punibilidade da conduta exige por um lado expressamente que o agente prove a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento para, em boa fé, a reputar verdadeira.
25.A boa-fé não pode significar uma pura convicção subjectiva por parte do agente na veracidade dos factos, antes tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva. A boa-fé está dependente das regras de cuidado e do cumprimento do dever de se acautelar antes de divulgar ou imputar factos injuriosos ou difamatórios.
26.E o arguido não só sabia que estas imputações não eram verdadeiras, ele próprio admite que o carro apodreceu a beira da estrada, junto às instalações onde funcionou a empresa e a uma estrada onde por todos os residentes foi vista, como é o caso do arguido. O arguido mora na pequena localidade de A e foi ele quem circulou com o veículo em interesse próprio, mesmo depois de a empresa ter cessado a laboração e ali o abandonou.
27. A maquinaria apodreceu e mantém-se intacta nas instalações, o que o arguido bem sabe, sendo que as instalações nem sequer têm portas e até á data são livremente acedidas por quem nelas pretenda fazê-lo.
28. O arguido não referiu ao Tribunal qualquer facto que permitisse concluir que se encontrava de boa-fé ao proferir aquelas expressões, apresentando até versões contraditórias no seu depoimento, não apresentou qualquer testemunha que corroborasse a sua versão, bem pelo contrário como já vimos. E as imputações que profere contra o falecido, não resultaram não provadas, nem nenhum facto permite concluir que foram proferidas de boa-fé.
29. Pelo que, deve a presente sentença ser revogada e em consequência condenar-se o arguido J pela prática do crime por que foi acusado;
30. Violadas foram pois entre outras as disposições do art. 180º e 185º do Código Penal.
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Respondeu a digna magistrada do MºPº junto do tribunal recorrido sustentando a total improcedência do recurso. Alega, em síntese, que: - a decisão da matéria de facto, devidamente motivada, assenta numa apreciação objectiva e racional dos meios de prova convocados; - as expressões em causa, embora possam ser objectivamente injuriosas, foram necessárias à justa defesa da causa, tendo em consideração as circunstâncias em que foram proferidas.
Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
Corridos vistos, após conferência, mantendo-se os pressupostos da validade da instância afirmados no despacho liminar, cumpre decidir.
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II.

1. O recurso incide sobre matéria de facto e de direito.
Em matéria de facto sustenta o recorrente que o tribunal recorrido devia ter dado como não provados os pontos 14 a 18 da matéria que deu como provada, que devia ter dado como provada a matéria que deu como não provada, além de outra matéria referida na conclusão 12 e na conclusão 16.
E matéria de direito alega que se mostram preenchidos os pressupostos do crime imputado, porquanto actuação dos arguidos é objectivamente ofensiva da memória do pai do recorrente e os arguidos actuaram com intenção de ofender essa memória.
Para proceder à apreciação das questões suscitadas, vejamos a matéria de facto dada como provada em 1ª instância.

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2. A decisão do tribunal recorrido em matéria de facto, com a motivação que a suporta, é a seguinte:

A) Factos provados:
1. Em 24/05/2005, o ora assistente e outros, na qualidade de herdeiros de J P, intentaram acção comum com processo sumário contra a Sociedade , Lda., que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós sob o nº../05.0TBPMS, na qual requerem que seja ordenada a dissolução da aludida sociedade, com todas as demais consequências legais, nos termos e com os fundamentos constantes da respectiva petição inicial e documentos anexos, cuja certidão se encontra junta a fls. 244-264 e se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais;
2. No artigo 20º da referida petição inicial é alegado que “Nem tão pouco os sócios têm praticado qualquer acto de gestão ou gerência da dita sociedade”;
3. Acrescentando no artigo 21º da citada peça processual que “Nem se conhece qualquer mercadoria, equipamento ou bem, propriedade da sociedade ou que a mesma detenha ou explore seja a que título for”;
4. Nos artigos 22º e 23º da dita petição inicial é ainda alegado que “Não existe qualquer registo ou movimento contabilístico, também, há já mais de 20 anos, não elaborando e aprovando, a sociedade, qualquer balanço ou contas” e “Não tem apresentado quaisquer declarações ou movimentos fiscais, nomeadamente a título de IRC, IVA, ou outros, ou pagando qualquer imposto”;
5. O arguido J, na qualidade de sócio gerente da sociedade R. nos identificados autos, deduziu contestação, a qual foi subscrita pela arguida A na qualidade de mandatária da R., que deu entrada em tribunal no dia 06 de Outubro de 2005, nos termos constantes da certidão junta a fls. 21 e ss. e que se dá por integralmente reproduzida;
6. Nos termos constantes do artigo 6º da contestação identificada em 5., “Dada a ténue actividade exercida pela sociedade, esta tinha uma contabilidade incipiente”;
7. Acrescentando nos artigos 7º e 8º que “E tudo porque o sócio JP, pai dos réus, a partir de certa altura passou a obstruir e sabotar toda a actividade da ré” e “Sonegando até a própria escrita comercial da ré”;
8. Sendo que no artigo 9º da aludida peça processual é referido “E desviando diversa maquinaria, nomeadamente uma viatura da empresa que vendeu em proveito próprio”;
9. No processo identificado em 1. foi elaborado despacho saneador, com selecção da matéria de facto dada como assente e base instrutória, junto a fls. 59 e que se dá por integralmente reproduzido, sendo que o ponto 11º da base instrutória é constituído pela seguinte matéria de facto: “O sócio JP, pai dos réus a partir de certa altura passou a obstruir a actividade da ré?”;
10. JP faleceu em 21 de Novembro de 1997;
11. O pai do assistente foi um empresário com bom nome e conceituado em A..;
12. As afirmações indicadas de 6. a 8. foram redigidas pela arguida A com base nas informações que o arguido J lhe transmitiu, corroboradas pela prova testemunhal que este lhe indicou e documentos que apresentou, designadamente as publicações no Diário da República referentes à sociedade; escritura de cessão de quotas, comprovativos de pagamento de impostos e facturas;
13. A Sociedade .., Lda. foi constituída em 23/11/1963, nos termos constantes da certidão junta a fls. 83 e ss. e que se dá por integralmente reproduzida, sendo seus sócios, à data da dedução da acção identificada em 1., N, JP e J;
14. A partir de determinada data, não concretamente apurada mas sensivelmente desde finais da década de 1960,JP pretendia encerrar a actividade da Sociedade .., Lda., não obstante o arguido J não concordar com tal decisão;
15. Em data não concretamente apurada, ocorrida antes de 1970, a esposa de JP afirmou ao arguido J que aquele havia retirado das instalações da sociedade todos os documentos da escrita daquela;
16. JP, num período de ausência do arguido J, ocorrido antes de 1970, disse aos trabalhadores para se irem embora, porque não havia nada para eles fazerem e que havia de comprar tudo pelo preço de uma navalha velha;
17. Em data não concretamente apurada, JP acordou com M vender-lhe, a preço de ferro velho, um serrote de cortar pedra da Sociedade …Lda. e tudo o que houvesse nas instalações daquela, o que não se concretizou em virtude do arguido J, no momento do transporte das mercadorias, ter impedido tal venda;
18. A Sociedade.., Lda. possuía um veículo automóvel, de características não concretamente apuradas e identificado a fls. 206, o qual se manteve por vários anos colocado no terreno adjacente às instalações da Sociedade , Lda. e pertencente a JP, veículo esse que, em data não apurada, desapareceu;
19. Encontrava-se inscrito a favor da Sociedad.., Lda. na matriz predial urbana sob o artigo 645 da freguesia de A desde 1965, um prédio descrito como casa de r/c ampla destinada à indústria de serração de mármores e cantarias com dois engenhos de serras, com a área coberta de 176 m2, logradouro com a área de 400 m2, um anexo com duas divisões que se destinam a escritório com a área coberta de 29 m2;
20. Devido a escritura pública de compra e venda datada de 05/12/2007, junta a fls. 231 e ss. e que se dá por integralmente reproduzida, outorgada entre o assistente e outros e AR, o prédio identificado em 18. passou a constar, na matriz predial, como pertencendo a este último;
21. Os arguidos não têm antecedentes criminais;
22. O arguido J vive com a esposa em casa própria, sendo que ambos se encontram aposentados e auferem, a título de pensão mensal, a quantia de € 400 e € 300, respectivamente;
23. A arguida A reside com o companheiro em casa própria deste, e aufere um rendimento médio mensal de € 1.800;
24. A arguida A contribui para o pagamento da prestação bancária para aquisição de habitação do companheiro, de € 500, e paga, a título de prestação para aquisição de veículo automóvel, a quantia mensal de € 613.

B) Factos não provados:
1.As imputações identificadas de 6. a 8. dos factos dados como provados afectam ainda hoje muito negativamente o crédito, estima, bom nome e reputação do pai do assistente;
2. As imputações identificadas de 6. a 8. dos factos dados como provados são feitas no concelho onde sempre viveu o falecido e onde todos se conhecem;
3. Ao proferir as expressões indicadas de 6. a 8. dos factos dados como provados, os arguidos tiveram a intenção de ofender a memória do pai do queixoso;
4. Ao proferir as expressões indicadas de 6. a 8. dos factos dados como provados, os arguidos representaram que da sua conduta iria necessariamente resultar a ofensa à memória do pai do queixoso;
5. Os arguidos representaram como possível que das expressões indicadas de 6. a 8. dos factos dados como provados resultaria a ofensa da memória do pai do queixoso e, não obstante, conformaram-se com tal realização.

Ao demais que foi alegado na acusação particular, no pedido de indemnização civil e na contestação não se responde, por conter matéria conclusiva, de direito e/ou irrelevante para a decisão da causa.

C) Motivação
A fixação dos factos provados e não provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e da livre convicção que o Tribunal formou sobre a mesma, partindo das regras de experiência, aferindo-se o conhecimento da causa e isenção dos depoimentos prestados, como se passa a explicitar:
Os factos relacionados com a acção comum com processo sumário que correu termos sob o nº ../05.0TBPMS foram dados como provados com base nas certidões juntas a fls. 21 e ss., 53 e ss., 59 e ss., 98 e ss. e 244 e ss. dos autos;
Os factos referentes à constituição da Sociedade ., Lda. e seus termos foram dados como provados com base na certidão junta a fls. 82, sendo que a inscrição de um prédio na matriz predial a favor da sociedade em causa, foi dado como provado com base nas informações prestadas pelo Serviço de Finanças de Porto de Mós e constantes de fls. 283 e 288-290, bem como na certidão de escritura de compra e venda junta a fls. 231;
Os antecedentes criminais dos arguidos foram dados como provados com base nos certificados de registo criminal juntos a fls. 115 e 116;
O óbito de JP foi dado como provado com base no assento de óbito junto a fls. 120 dos autos;
Para dar como provado que a arguida A redigiu e subscreveu a contestação em causa nos autos com base nas informações que lhe foram prestadas pelo arguido J, atendeu-se às declarações de ambos os arguidos, que o confirmaram, sendo que a arguida A declarou ainda que o fez em virtude de ter ficado convencida de que os factos descritos referentes a JP eram verídicos, uma vez que o arguido J, conforme lhe ia relatando os mesmos, corroborava os mesmos com indicação de prova testemunhal e apresentação de prova documental, mais precisamente certidões referentes à sociedade, documentos que comprovam pagamento de impostos e facturas;
A intenção de JP encerrar a sociedade em causa, bem como as ordens dadas por este aos trabalhadores e sua interferência na escrita daquela foram dados como provados com base no depoimento do arguido J, que se afigurou sincero, credível e honesto, o qual afirmou que foi a esposa de JP quem lhe disse que tinha sido este a retirar a escrita da sociedade daquelas instalações, tendo ainda declarado que, à sua revelia, JP vendeu a serração e tudo o que lá estava dentro, o que só não se concretizou porque o arguido chegou ao local quando estavam a carregar os materiais e impediu-os de o continuarem a fazer. Mais declarou que num período em que se ausentou, JP mandou todos os trabalhadores embora, tendo ainda declarado que a sociedade possuía uma viatura, que identificou a fls. 206, a qual se manteve por mais de 10 anos em cima do “Cais”, tendo-se apercebido da sua falta ainda em vida do JP, jamais lhe tendo sido comunicado pelo mesmo o que foi feito da viatura, tendo tido conhecimento por outras pessoas que a mesma terá sido vendida ou doada a um indivíduo de nome D. Sendo certo que o facto das restantes testemunhas inquiridas terem declarado que era o arguido quem tinha as chaves do veículo, quando a empresa laborava, em nada prejudica o depoimento deste, pois tal facto não impede que os restantes sócios não tivessem, também eles, acesso à viatura. As declarações do arguido não foram desmentidas pelo depoimento das restantes testemunhas inquiridas nem pelos documentos juntos aos autos. Pelo contrário: O assistente demonstrou total desconhecimento dos factos referentes à sociedade. MM confirmou ter visto a viatura no local mas desconhecer o que lhe sucedeu. AP declarou ter trabalhado para a sociedade, a qual possuía uma carrinha, desconhecendo, no entanto, o que lhe sucedeu. AM declarou ter sido trabalhador da sociedade, desconhecendo o que sucedeu com a carrinha. Mais declarou que o JP mandou-os embora por não haver nada para eles fazerem, tendo dito à testemunha e aos restantes trabalhadores que ia comprar tudo pelo preço de uma navalha velha, sendo intenção do JP parar a empresa. M, comerciante de sucatas, declarou que há cerca de 10/15 anos o JP pediu-lhe para ir à sociedade tirar tudo o que lá houvesse, tendo sido acordado a venda de um serrote de cortar pedra e o restante ser pago ao Kg., a preço de ferro velho. No entanto, o arguido J chegou ao local quando estavam a carregar e disse-lhes para não mexerem em nada, razão pela qual não chegaram a trazer o que lá existia. Mais afirmou que JP encontrava-se no interior do seu veículo e, quando viu o arguido chegar, arrancou, o que demonstra que aquele estava a actuar à revelia do arguido, que enquanto sócio, na mesma exacta proporção, tinha também de se pronunciar sobre tais actos. AF declarou ter feito a escrita da sociedade nos finais dos anos 60, tendo afirmado que entre o arguido e o outro sócio, N, as coisas funcionavam, mas o JP estava sempre à margem;
A situação pessoal e económica dos arguidos foi dada como provada com base nos respectivos depoimentos, que se revelaram sinceros e credíveis;
Os factos dados como não provados foram-no face à ausência de prova nesse sentido, sendo que não foi dado como provado o dolo dos arguidos em virtude do já supra referido relativamente à arguida A e de, no que se refere ao arguido J, ter ficado demonstrado que o mesmo está realmente convencido de que JP se apoderou da escrita da sociedade e alienou a viatura, face ao já descrito, ao que acresce o facto de ter ficado demonstrado que JP efectivamente despediu todos os trabalhadores e tentou vender tudo o que existia nas instalações da sociedade, para ferro velho. Por outro lado, também ficou demonstrado que estava inscrito um prédio urbano em nome da sociedade na respectiva matriz predial desde 1965, o qual foi alienado posteriormente pelos herdeiros de JP, desconhecendo-se como aqueles procederam a tal venda, na medida em que nem sequer consta da escritura de partilha o imóvel em causa como pertencendo a J P (cfr. fls. 239 e ss.). É inequívoco que, ao contrário do que sucede com o registo predial, a inscrição matricial não consubstancia presunção da existência do correspondente direito de propriedade. No entanto, tal matriz é mais do que suficiente para criar no arguido a firme convicção de que o prédio em causa pertencia de facto à sociedade de que era sócio, até porque não deixa de ser estranho que um prédio inscrito na matriz em nome de uma sociedade durante mais de trinta anos deixe de o estar devido à venda do mesmo por parte do assistente e outros, que são também herdeiros do sócio que terá há vários anos manifestado intenção de cessar a sociedade, tendo ainda em consideração que, até à data da escritura de compra e venda, o prédio em causa se encontrava omisso na respectiva Conservatória do Registo Predial, como resulta do teor da certidão de fls. 224 e ss..
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3. Apreciação

3.1. Em matéria de facto, o recorrente impugna os pontos 14 a 18 da matéria dada como provada pelo tribunal recorrido; Alega que deveria ter sido dado como provado que as imputações identificadas de 6.a 8.dos factos dados como provados afectam muito negativamente o crédito, estima, bom-nome e reputação do pai do assistente; e que devia ter dado como provada a matéria dada como não provada pelo tribunal recorrido, além de outra matéria referida na conclusão 12 e na conclusão 16.
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Como é sabido, no processo penal existem duas formas, distintas, assentes em pressupostos diferentes, de impugnar a decisão da matéria de facto: - com fundamento nos vícios previstos no art. 410º, n.º2 do CPP; e - com base na reapreciação da prova produzida em audiência, nos termos previstos nos artigos 431º e 412º do CPP.
Os vícios do art. 410º, como resulta claro do corpo do n.º2, hão-se emergir do texto da própria decisão por si ou confrontada com o critério da livre apreciação da prova enunciado no art. 127º do CPP. Sendo – porque detectáveis ao simples exame da decisão em confronto com as regaras da experiência comum – de conhecimento oficioso, como decidido pelo acórdão do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.
Já o recurso com base na reapreciação da prova assenta numa nova valoração, pelo tribunal de recurso, dos meios de prova (conteúdo) produzidos em audiência ou incorporados nos autos e discutidos em audiência, nos quais assentou a decisão recorrida e que o recorrente tem por indevidamente valorados. Daí que se exija ao recorrente, além da identificação dos pontos de facto tidos por incorrectamente julgados, que substancie os fundamentos materiais do invocado erro de julgamento. O mesmo é dizer, que identifique os factos concretos tidos por incorrectamente julgados bem como o conteúdo da provas (no caso dos depoimentos gravados as passagens concretas contendo afirmações diversas das supostas na motivação da sentença recorrida) capazes de, apreciadas à luz dos critérios legais em vigor, impor decisão diversa da recorrida – cfr. art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP.
Nos termos do art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Impondo o legislador ao recorrente, determinados ónus de especificação / fundamentação previstos no art. 412º, n.º3 e 4 do CPP:
3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) as provas que devem ser renovadas
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em acta, nos termos do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Competindo assim ao recorrente substanciar e demonstrar os fundamentos do recurso, o mesmo é dizer, identificar o erro in operando ou o erro in judicando que aponta à decisão recorrida, bem como, quando questiona a valoração dos meios de prova, identificar o conteúdo probatório concreto dos meios de prova capaz de, numa valoração em conformidade com os critérios legais, impor decisão diferente da recorrida.
O que obriga, no caso dos depoimentos prestados oralmente em audiência, à identificação do conteúdo probatório concreto de tais depoimentos (concretas afirmações produzidas) as passagens da gravação que contém as invocadas afirmações, capazes de imporem decisão diversa da recorrida, por erro de “audição” (só este, verdadeiramente, pode a gravação comprovar) ou de apreciação em conformidade com os critérios legais em vigor.
Com efeito, como remédios jurídicos os recursos não podem ser utilizados com o único objectivo de melhor justiça. O recorrente tem que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida. A motivação dos recursos consiste exactamente na indicação daqueles vícios que se traduzem em erros in operando ou in judicando. A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação de direito material. Esta natureza dos recursos justifica, por outro lado, que se lhes aplique o princípio dispositivo e que se reconheça às partes um importante papel conformador – cfr. Cunha Rodrigues, Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, p. 387.
Exigindo que os erros apontados à decisão sejam devidamente identificados – a fim de que o tribunal de recurso posa deles conhecer – e ainda a demonstração, com base numa argumentação minimamente persuasiva, do erro apontado, a fim de que o tribunal de recurso possa sindicar a bondade da argumentação, á luz dos critérios legais em vigor.
Aliás a decisão de facto deve ser fundamentada, sob pena de nulidade – cfr. art. 379º, n.º1, al. a) e art. 374º n.º2 do CPP.
Pelo que, perante uma decisão devidamente fundamentada, para que seja revogada, impõe-se que sejam rebatidos, com base em razões materiais minimamente persuasivas, os seus fundamentos materiais em que repousa.
Ou porque valorou meios de prova ilegais, ou porque violou critérios legais de apreciação vinculada (vg. documental ou pericial).
Ou porque atribuiu aos meios de prova valorados conteúdo material diverso daquele que é valorado na decisão – o que no caso das provas produzidas oralmente em audiência equivale a dizer que o juiz “ouviu mal” as afirmações produzida em audiência, sendo a divergência demonstrada pela gravação – só neste caso tem relevo a reprodução da gravação.
Ou, finalmente, pela inconsistência, á luz dos princípios legais atinentes, da análise crítica e da apreciação em que repousa a decisão.
A gravação releva como meio/instrumento para demonstrar que a sentença não valorou determinadas afirmações que a gravação reproduz ou que valorou afirmações não produzidas, demonstradas pela gravação. Ou porque o tribunal recorrido ignorou determinado conteúdo dos depoimentos prestados em audiência ou porque lhe atribuiu conteúdo diferente daquele que efectivamente foi produzido e é comprovado pela gravação.
Assegurando a gravação a possibilidade de verificação da correspondência ou contrariedade dos depoimentos produzidos em audiência (que reproduz) com o conteúdo pressuposto na sentença.
O que não sucede quando se põe em causa, apenas, a valoração dos depoimentos e não propriamente o teor dos depoimentos analisado na decisão recorrida e em que esta se fundamenta. Muito menos quando não está em causa o conteúdo dos depoimentos vistos na sua globalidade e não apenas determinados excertos, truncados e retirados do contexto.
No que toca à matéria referida na conclusão n.º12 e na conclusão 16, o recorrente não refere, desde logo, de onde resultava tal matéria, designadamente que constasse da acusação para que o tribunal recorrido tivesse o dever de dela conhecer.
Não justificando, tão-pouco qual o relevo da mesma para o objecto do processo, a definição dos pressupostos do crime imputado ao arguido.
Acresce, que o recorrente não identifica, minimamente, nem nas conclusões nem na motivação do recurso, qual o concreto conteúdo probatório concreto, ou as passagens dos depoimentos que pudessem impor a decisão pretendida.
Surgindo assim a pretensão do recorrente, neste âmbito, como manifestamente destituída de fundamento, quer por não se tratar de matéria constitutiva do tipo de crime, quer por extravasar o objecto do processo definido na acusação, quer por não identificado o conteúdo probatório dos depoimentos de onde pudesse resultar tal matéria.
Relativamente à matéria impugnada dada como provada pelo tribunal recorrido e à matéria dada como não provada que o recorrente sustenta que deve ser dada como provada, cumpre salientar, liminarmente, que se a prova documental e a prova pericial estão sujeitas a critérios legais de apreciação vinculada (cfr., respectivamente, os artigos 169º e 163º do CPP), já os depoimentos prestados oralmente em audiência (únicos meios de prova cuja valoração é questionada, no caso) estão sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos previstos pelo artigo 127º do CPP.
Com efeito, postula o referido art. 127º: Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A livre convicção não pode nem deve significar o impressionista-emocional arbítrio ou a decisão irracional “puramente assente num incondicional subjectivismo alheio à fundamentação e a comunicação” – cfr. Prof. Castanheira Neves, citado por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1, 43.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias (Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss), que no processo de formação da convicção há que ter em conta os seguintes aspectos:
- a recolha dos dados objectivos sobre a existência ou não dos factos com interesse para a decisão, ocorre com a produção de prova em audiência,
- é sobre estes dados objectivos que recai a livre apreciação do tribunal, como se referiu, motivada e controlável, balizada pelo princípio da busca da verdade material,
- a liberdade da convicção anda próxima da intimidade pois que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos conhecimentos não é absoluto, tendo como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, portanto, as regras da experiência humana.
Assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque para a sua formação concorrem a actividade cognitiva e ainda elementos racionalmente não explicáveis como a própria intuição.
Esta operação intelectual, não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente — aqui relevando, de forma especialíssima, os princípios da oralidade e da imediação — e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” - cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss..
Como refere o Prof. FIGUEIREDO DIAS (Direito Processual Penal, p. 202-203) “a apreciação da prova é na verdade discricionária, tem evidentemente como toda a discricionalidade jurídica os seus limites que não podem ser ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova, é, no fundo uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios de objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo”...”não a pura convicção subjectiva ... se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão ... a convicção do juiz há-de ser .. em todo o caso uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de se impor aos outros ... em que o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável”.
A gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência permite o controlo, pelo tribunal superior, da conformidade da decisão com as afirmações produzidas em audiência. Mas não substitui a plenitude da audiência, a oralidade e imediação no confronto dialéctico de cada depoente por parte dos vários sujeitos processuais, no exercício do contraditório, na discussão cruzada levada a cabo na plenitude da audiência, pública, de discussão e julgamento.
Pois que “só os princípios da oralidade e da imediação permitem avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Só eles permitem, por último, uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso” – Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 233-234.
Daí que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1ª instância, naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se o problema, na maior parte dos casos, à consistência da fundamentação da decisão recorrida de que trata o art. 347º, n.º2 do CPP – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 126 e 127, que por sua vez cita o Prof. Figueiredo Dias e jurisprudência uniforme desta Relação, designadamente acórdãos 19.06.2002 e de 04.02.2004, nos recursos penais 1770/02 e 3960/03; 18.09.2002, recurso penal 1580/02; Ac. R. C. de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44.
No caso dos autos, como resulta da respectiva reprodução supra efectuada, a decisão do tribunal recorrido em matéria de facto encontra-se exaustivamente fundamentada.
Enunciando não só os meios de prova em que se fundamenta mas procedendo ainda à análise crítica desses meios de prova, de forma a deixar claro o percurso analítico e decisório em que repousa, permitindo, por isso, a sua sindicância.
De outro modo, caso a sentença não se encontrasse devidamente fundamentada em termos probatórios seria nula – cfr. art. 374º, n.º2 e 379º, n.º1, al. a) do CPP.
De onde que, encontrando-se a sentença recorrida devidamente fundamentada em temos probatórios, se exija ao recorrente que dela recorre, o ónus de identificar não só os pontos que tem por incorrectamente decididos, mas ainda de especificar o conteúdo probatório dos meios de prova produzidos capaz de “impor” decisão diversa da recorrida.
O assistente pretende afastar a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido, com base na análise crítica da prova produzida, espelhada na decisão recorrida, fazendo prevalecer a sua perspectiva sobre o tema da acusação com vista a, com base na sua reconfiguração da matéria de facto, conseguir a condenação penal dos arguidos.
Condenação que tem como suporte afirmações produzidas, por escrito, no âmbito de um processo judicial, de natureza civil - que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós sob o nº --/05.0TBPMS - na qual figurou como réu o ora arguido e autores os herdeiros de J P entre eles o ara assistente. Processo no qual a arguida interveio na qualidade de mandatária judicial do arguido, subscrevendo a contestação ali apresentada.
O aludido processo cível – em cuja contestação foram escritas as expressões que na perspectiva do recorrente integram o crime de ofensa à memória de pessoa falecida - teve por objecto a discussão a extinção (dissolução) de uma sociedade comercial de que eram sócios, entre outros, o ora arguido e o aludido JP.
Ora, ao contrário do que a tal respeito é alegado na motivação de recurso, encontra-se junta a fls. 57 e ss. dos autos, certidão da peça processual onde as expressões em causa foram escritas.
Aliás não se suscitam dúvidas sobre o seu teor por constarem de processo em que intervieram como partes quer o arguido quer o recorrente, como tal perfeitamente conhecedores das peças processuais em questão sobre cujo teor ninguém suscitou a menor dúvida.
Por outro lado, do ponto de vista material, contextualizando a posição de cada uma das partes, e escopo prosseguido, na aludida acção cível, verifica-se que:
- de um lado, os herdeiros do sócio falecido (encabeçando e dando continuidade à posição jurídica deste), entre eles o ora assistente, requereram e pretendiam ver dissolvida, e como tal encerrada, a sociedade;
- do outro lado, o réu na acção cível e arguido nos presentes autos, opunha-se à dissolução, pretendendo que a mesma continuasse a exercer actividade.

Assim, em termos de valoração da prova, da posição e objectivos prosseguidos na acção cível, resulta que o ora recorrente não pode, em coerência, censurar a atitude “destrutiva” da sociedade, por parte do sócio J P, corporizada no impugnado ponto 14 da matéria dada como provada e densificada nos pontos seguintes, também impugnados. Porque é essa, objectivamente, a perspectiva que resulta, manifesta, da posição assumida na aludida acção cível, que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós sob o nº ../05.0TBPMS.
Com feito, o pedido ou pretensão ali formulada era – foi -precisamente, a dissolução da aludida sociedade. Reportando-se os fundamentos da acção ao tempo em que era sócio o titular da herança em nome de quem foi proposta a acção.
Deste primeiro enquadramento probatório – que emerge da prova documental – resulta que a posição do falecido em relação à sociedade contraria a valoração probatória pretendida pelo assistente.
Por outro lado o recorrente passa em claro a motivação probatória da sentença, vista no seu todo e na significação das posições assumidas por cada uma das partes na acção e na motivação que subjaz às pretensões ali formuladas.
Passando uma “esponja”, como salienta a digna magistrada do MºPº na resposta apresentada, sobre todo acervo probatório valorado pelo tribunal recorrido dentro do princípio da livre apreciação – motivada, com base em critérios de objectividade e racionalidade - dos meios de prova legais, validamente produzidos e amplamente discutidos ao longo da sessão de julgamento.
Aliás à apreciação crítica subjacente à decisão recorrida o recorrente apenas contrapõe, verdadeiramente, a falta de credibilidade do depoimento do arguido.
Apontando - ainda que de forma indirecta, porque não atacada a legalidade da valoração - a indevida valoração do depoimento do arguido, pela perspectiva de que é contraditório e não merece crédito.
Até porque, como o recorrente reconhece, nada na lei proíbe a valoração do depoimento do arguido – objectivada e motivada nos termos decorrentes do princípio da livre apreciação da prova.
Ora da motivação da sentença recorrida resulta que o Tribunal a quo teve a versão dos factos apresentada pelo arguido como credível além do mais “porque” o depoimento do arguido é respaldado na prova testemunhal, bem como naquilo que resulta, objectivamente, da posição contrária à manutenção do projecto societário que emerge da prova documental – cujo conteúdo probatório, invocado na sentença recorrida, o assistente não põe em causa nem rebate.
Sendo certo, em contrapartida, que o assistente demonstrou desconhecer, em absoluto (porque manifestamente estranho e sem qualquer participação nos factos ocorridos com o seu antecessor bons anos antes do julgamento nos presentes autos) qualquer facto da vida da sociedade.
Não tem fundamento a pretensão do recorrente relativa ao funcionamento da sociedade porquanto o que está em causa nos presentes autos nada tem a ver com a actividade ou inactividade da empresa mas antes com a actuação do pai do assistente relativamente aos bens da sociedade que não eram sua propriedade (do sócio) – e como resulta claro das posições assumidas na acção cível, enquanto o arguido queria manter de pé o projecto da sociedade, o antecessor do recorrente queria acabar com ela, acabando por obter a sua dissolução em juízo.
Ao contrário do que sugere o recorrente, o que o arguido afirmou, nas suas declarações, foi que “foi a esposa” de JP “quem lhe disse que” este tinha levado a contabilidade da empresa para casa. Referindo-se à “tia” apenas quanto ao facto de JP ter levado da sede da sociedade o livro de cheques - como aliás resulta claro do teor das transcrições das suas declarações referidas nas páginas 25 e 27 das alegações de recurso.
Não se verificando assim, contradição de fundo, nas declarações do arguido, muito menos que possa afectar, por incompatibilidade, a sua veracidade.
No que toca ao estado da viatura, a construção do assistente carece de fundamento. Desde logo porque, independentemente do bom ou mau estado da viatura, não há duvida que a viatura pertencia à sociedade e não ao sócio JP. Não cabendo portanto a este, individualmente, a sua alienação ou dissipação por qualquer meio, ainda que a actividade da sociedade, se mostrasse parada.
Confundindo ainda as alegações de recurso dois momentos distintos no que diz respeito ao estado da viatura: - Um primeiro quando a viatura estava afecta e apta ao exercício do escopo social e os dois sócios rivais (o falecido, em vida, e o ora arguido) pretendiam resolver, cada um à sua maneira, a questão da sociedade, um deles pretendendo acabar com ela e o outro pretendendo manter e levar o projecto por diante; - E um segundo, bem posterior, quando, num momento bem posterior, foi “conferido” o estado de ruína da viatura, como não podia deixar de ser, após anos sucessivos de abandono por efeito da disputa, sem tréguas, entre os dois sócios. Como consequência do decurso do tempo e das intempéries durante a “guerra” entre sócios.
No que toca à questionada intenção de JP encerrar a sociedade em causa, além da motivação da sentença recorrida – e a intenção não é uma abstracção, há-de resultar da materialização em actos concretos, no pressuposto de que quem os pratica esteja em seu juízo e livre de coacção, o que no caso não é posto em causa – resulta óbvia, desde logo, da acção de dissolução que veio a ser desencadeada em seu nome, dando corpo à sua posição em vida.
A venda da serração e seu equipamento, além de ajustada à acção de dissolução que veio a ser instaurada, resultou desde logo das declarações do arguido, que não foram desmentidas por qualquer outro meio de prova, uma vez que o assistente demonstrou total desconhecimento dos factos referentes à sociedade.
Acresce que a testemunha A confirmou que JP os mandou embora da empresa por não haver nada para eles fazerem, tendo dito à testemunha e aos restantes trabalhadores que “ia comprar tudo pelo preço de uma navalha velha”.
O que demonstra a sua intenção de encerrar a empresa – intenção a que, repete-se, os seus herdeiros, honrando e dando continuidade à sua posição, deram efectiva execução na já repetida referência à acção de dissolução.
Para além disso a testemunha M , comerciante de sucatas, inquirido ao abrigo do disposto no artigo 340º do CPP, declarou que há cerca de 10/15 anos JP lhe pediu para ir à sociedade tirar tudo o que lá houvesse, tendo sido acordada a venda de um serrote de cortar pedra e o equipamento restante ser pago “ao quilo”, a preço de ferro velho. O que só não aconteceu porque o arguido chegou ao local quando estavam a carregar e impediu o carregamento. Mais afirmou, aliás que Joaquim Pedroso se encontrava no interior do seu veículo e, quando viu o arguido chegar, arrancou - o que demonstra que estava a actuar à revelia do arguido.
Por outro lado, o facto de JP se ter mantido à margem da actividade da sociedade não implica que o mesmo não pudesse intervir na sociedade, na qualidade de sócio que era. Ou, sentindo-se posto à margem da exploração (como o recorrente vai assumindo na motivação do recurso, pondo assim a nu o móbil, óbvio, para tentar impedir o outro sócio dela usufruir) quisesse, individualmente, “acabar” com o seu problema.
Surgindo a posição do recorrente, ao negar a intenção (do autor da herança que o próprio recorrente representou no processo) de encerrar a empresa, além carente de qualquer suporte em termos probatórios, como contrária ao objectivo por si próprio prosseguido na acção de dissolução. Constituindo mesmo, nessa medida, litigância contra facto próprio que, como tal, não pode desconhecer.
A gerência de facto da sociedade por parte do arguido é irrelevante para a decisão da causa nos presentes autos, uma vez que não era tal gerência que estava em causa mas apenas o destino dado aos bens e aos livros da sociedade individualmente pelo sócio JP – que sentindo-se posto à margem da sociedade queria, por isso, acabar com ela.
Assim, assentando a decisão recorrida em meios de prova legais, valorados correctamente à luz dos critérios legais em vigor, ao contrário da valoração pretendida pelo recorrente, impõe-se a improcedência do recurso nesta âmbito.
No que toca à matéria dada como não provada que o recorrente pretende ver provada (As imputações identificadas de 6. a 8. dos factos dados como provados afectam ainda hoje muito negativamente o crédito, estima, bom nome e reputação do pai do assistente; são feitas no concelho onde sempre viveu o falecido e onde todos se conhecem; Ao proferir as ditas expressões os arguidos tiveram a intenção de ofender a memória do pai do queixoso; representaram que da sua conduta iria necessariamente resultar a ofensa à memória do pai do queixoso), é contrariada pela apreciação da matéria dada como provada, de sentido contrário.
Também aqui o recorrente não especifica nem os meios de prova nem o conteúdo probatório dos mesmos capaz de impor a decisão pretendida, para além dos fundamentos já apreciados.
Sendo cero que as expressões utilizadas na contestação não se dirigiram “à memória” deixada, após a sua morte, entre os vivos, pelo pai do autor. Reportam-se, antes a actos concretos, praticados em vida ou posições assumidas no âmbito da sociedade e com incidência na discussão do objecto do processo onde foram produzidas.
Actos esses perfeitamente conexionadas com o objecto do processo. Além de relevantes para a decisão da causa, por relativos à identificação do responsável pelo não funcionamento da sociedade que os herdeiros do sócio falecido, encabeçando e dando continuidade á posição jurídica deste, queriam dissolver, opondo-se o contestante a essa dissolução.
Quanto ao alegado conhecimento das expressões fora do âmbito do processo nem o assistente alega que tenha ou pudesse ter sido causado pelos arguidos.
Por outro lado, tendo sido escritas na contestação da acção cível (e por princípio quem pretende desonrar não o faz, por escrito, numa acção judicial sujeita a esmiuçado escrutínio), pela natureza das coisas, ficava, por princípio, restrito ao âmbito do processo.
Não tendo resultado qualquer eventual conhecimento exterior, por parte de terceiros, de qualquer comportamento do(s) arguido(s). Pelo contrário, o próprio assistente que reconheceu que foi ele próprio quem divulgou os factos. Pelo que, se o fez, como reconheceu, não pode pretender responsabilizar outrem, apenas de si pode queixar-se.
Pelo que também nesta parte se impõe a improcedência do recurso
*
3.3. Em matéria de direito, cumpre salientar, liminarmente, que a improcedência do recurso quanto à matéria de facto arrasta, como efeito lógico necessário, a improcedência do recurso em matéria de direito que tenha como pressuposto a alteração, desatendida, da decisão fáctica.
No entanto no caso em apreciação, como a impugnação da recorrente, como já se viu, resulta de documento escrito e tem repercussões em matéria de direito, importa completar a apreciação do recurso nessa perspectiva.
Os arguidos vêm acusados da prática de um crime de ofensa à memória de pessoa falecida, p. e p. pelo artigo 185º do Código Penal.
Preceito legal que postula: “quem, por qualquer forma, ofender gravemente a memória de pessoa falecida é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
Por outro lado toda a responsabilidade criminal exige ainda, como já se antecipou – art. 10º, n.º1 do C.P. – o nexo de causalidade adequada ou nexo de imputação objectivo entre a acção (acto praticado pelo arguido) e o resultado típico do crime. Além do nexo de imputação subjectivo da acção à vontade do agente, numa das modalidades do dolo previstas no art. 14º do CP – directo, necessário e eventual.
O crime em apreço encontra-se previsto no capítulo dos crimes contra a honra.
No entanto a tutela estabelecida por este tipo de crime não coincide totalmente com a protecção da honra estabelecida pelo art. 180º. Aliás se assim fosse carecia de sentido a criação de um novo tipo. Nem faria sentido proteger a honra da pessoa falecida da mesma forma que se estivesse viva.
O que está em causa no tipo de crime de ofensa à memória de pessoa falecida é o respeito comunitário devido aos mortos – cfr. Figueiredo Dias, Acta n.º 26 da Comissão Revisora do C.P., citado por Oliveira Mendes, O Direito à Honra e Sua Tutela Penal, p. 100
O crime de ofensa à memória de pessoa falecida constitui um novo substrato valorativo independente da honra do defunto ou daqueles que lhe sobrevivem, apesar de ligada àquela e nela ainda radicada. Está para além da honra e consideração devidas a toda e qualquer pessoa, criando “uma nova realidade axiologicamente relevante que se liga ao defunto mas que vale por si, muito embora necessariamente conexionda com a personalidade daquele que, ora, já só pode ser memória” – cfr. Faria Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, em anotação ao art. 185º.
O bem jurídico honra é um direito que encarna na pessoa e só esta – enquanto pessoa viva – pode ser detentora desse particular valor de raiz imaterial.
Já a memória da pessoa falecida é aquele património moral ligado à existência da pessoa que permanece depois da sua morte. Nas palavras daquele Insigne Professor (cfr. ob. cit. p. 658) memória “é aquele pedaço de nós espiritualmente vinculante ligado á nossa existência e que é capaz de ser, depois da morte, ainda pertinente na definição do presente”. Ou “A memória que alguém construiu através de obras ou feitos, um património espiritual que os presentes consideram susceptível de os influenciar”.
Daqui resulta que a memória de pessoa falecida, tutelada pelo tipo de crime, radica na sua memória que permanece entre os vivos. Como pessoa credora do respeito indissociavelmente ligado a toda a pessoa humana, ou da memória que perdura através da sua obra ou dos seus feitos. Memória que, embora formada no passado, tem que se repercutir com relevo no presente.
Por outro lado a tutela penal surge limitada logo ao nível do tipo objectivo de ilícito às ofensas “graves”. O que obriga a uma redução teleológica do objecto do crime, não abrangendo toas as possíveis ofensas, mas apenas aquelas que possam ser qualificadas de graves.
Perante idêntica expressão, o legislador espanhol acabou por excluí-la do texto legal, face ao reconhecimento, pela jurisprudência, da impossibilidade de encontrar na lei princípios de distinção úteis, vendo-se obrigada a recorrer ao “bom critério do legislador” – cfr. Oliveira Mendes, cit., p. 104.
Ofensa Grave será aquela que atinge o património espiritual da pessoa falecida na sua parte nuclear ou essencial da sua memória. Naquele pedaço que, em caso de ser atingido, estilhaçaria a própria ideia de memória que tem a potencialidade de se repercutir no presente – cfr. Faria Costa, ob. cit., p. 660.
Isto posto, revertendo ao caso em apreço, não se trata de afronta a algo que encarne no património moral construído pela pessoa falecida. Os factos imputados nada têm a ver com a personalidade do falecido ou o seu legado moral à sociedade
Não retiram mérito ao legado ou à memória da pessoa desde logo porque se trata de factos corriqueiros relativos ao seu envolvimento numa sociedade comercial de que era sócio.
Por outro lado, a actuação do arguido não constitui qualquer afirmação, tomada de posição, apreciação, juízo sobre o merecimento, relevo social, obra, reconhecimento, bom-nome, reputação da pessoa falecida. Não formulou sequer qualquer tipo de apreciação negativa sobre a pessoa falecida, sobre a sua personalidade o património moral legado aos vindouros, enfim sobre algo que tenha criado pela pessoa falecida e perpetue a sua memória.
Esta interpretação é ainda aquela que se ajusta à natureza e finalidade do direito penal de protecção, subsidiária, daquele núcleo restrito de bens jurídicos que constituem o mínimo ético essencial á vida comunitária. Onde vigora, como pressuposto da aplicação de uma pena, o «princípio» da dignidade penal ou da carência de tutela penal - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Coimbra Editora, 2004, p. 621 e Costa Andrade RPCC, 1992, p. 173 a 205.
Nunca existira, pois, nexo de causalidade adequada da conduta do arguido objecto da acusação para destruir o núcleo essencial do património do passado individual da pessoa falecida, pai do assistente, ou indissociavelmente a ele ligado, carente da tutela penal.
Acresce que sempre constituiria matéria atípica, do ponto de vista ofensivo da memória ou da honra e consideração da pessoa falecida
Pois que o uso de tais afirmações não pode ser descontextualizado. Inserindo-se na economia do processo e amplitude do diferendo existente entre os dois sócios desavindos.
Com efeito, objectivamente insere-se no contexto impugnatório e como resposta/contestação a factos afirmados pelos autores na petição.
Na verdade da petição constava, além do mais:
“Nem tão pouco os sócios têm praticado qualquer acto de gestão ou gerência da dita sociedade” - artigo 20º;
“Nem se conhece qualquer mercadoria, equipamento ou bem, propriedade da sociedade ou que a mesma detenha ou explore seja a que título for” - artigo 21º;
“Não existe qualquer registo ou movimento contabilístico, também, há já mais de 20 anos, não elaborando e aprovando, a sociedade, qualquer balanço ou contas” e “Não tem apresentado quaisquer declarações ou movimentos fiscais, nomeadamente a título de IRC, IVA, ou outros, ou pagando qualquer imposto”- artigos 22º e 23º.
Ora o arguido J contestou na qualidade de sócio gerente da sociedade R. Contestação que foi subscrita pela arguida A no exercício da sua profissão, na qualidade de mandatária judicial do réu contestante.
Limitando-se a “reverter” causa da falta de actividade e património, alegada na petição, à actuação do próprio autor que a invocava – “tudo porque o sócio (…)”
Especificando, depois essa causa ou porque “a partir de certa altura passou a obstruir e sabotar toda a actividade da ré (…) “Sonegando até a própria escrita comercial da r锓E desviando diversa maquinaria, nomeadamente uma viatura da empresa que vendeu em proveito próprio”;
Portanto no exercício do direito de oposição e defesa, da crítica objectiva á posição assumida na acção cível, pelo visado, contra o contestante – e as expressões encontram-se objectivamente conexionadas com o objecto do processo e com acções concretas atribuídas à pessoa em nome de quem a acção a contestar foi intentada.
Destacando-se, pela refracção nas “constelações típicas” dos crimes contra a honra, de entre as causas gerais de exclusão da ilicitude previstas no art. 31º do Código Penal, o “exercício de um direito” – alínea b) do preceito. Bem como a “imputação feita para realizar interesse legítimo” que surge como dirimente autónoma deste tipo de crime prevista no art. 180º, n.º2 do CP.
Aceitando-se que determinada crítica negativa a uma pessoa abre a porta à resposta pelo visado e, mais do que isso, permite o contra-ataque num tom mais elevado. Desde que esse contra-ataque se mantenha numa relação de conexão objectiva e não desproporcionada com o objecto da crítica. – cfr. Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, p. 307 - 312.
Aliás, nesta perspectiva, ainda que num plano inferior, o C. Penal revê a isenção de pena (quando não tiver funcionado, a montante, a causa de exclusão da ilicitude) no caso da chamada “retorsão”, ou seja quando o ofendido “ripostar com uma ofensa a outra ofensa” – art- 186º, n.º 3 do C. Penal.
Como destaca ainda Costa Andrade (ob. cit. p. 293) “Uma expressão degradante só assume o carácter de «difamação» quando nela não avulta em primeiro plano a discussão objectiva das questões mas antes o enxovalho das pessoas. Para além da crítica polémica e extremada tem de se visar o rebaixamento das pessoas (…). Só poderá falar-se em «difamação» quando o juízo de valor ou a crítica perdem todo o contacto com a obra, a prestação ou o problema que os motiva ou com a discussão das questões de interesse comunitário. E, em vez disso, passam a obedecer apenas ao propósito de rebaixamento de uma pessoa. Atingindo-a no seu sentimento de auto-estima ou ferindo-a na sua dignidade pessoal e consideração social”.
Devendo “considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas ou profissionais, quando não se ultrapasse o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, não atingindo a carência de tutela penal que definem e balizam a área de tutela típica” – cfr. Costa Andrade, ob. cit, p. 332.
Pelo que também nesta perspectiva a pretensão do recorrente não merece provimento.
Do mesmo modo, no que concerne ao tipo subjectivo de ilícito, verifica-se que existe um vazio total de matéria de facto (o recurso em matéria de facto tinha como objectivo a alteração dessa matéria, não conseguida) passível de integrar o crime a este nível.
Não revestindo assim a matéria de facto provada as características necessárias ao preenchimento do crime de ofensa à memória de pessoa falecida, p. e p. pelo artigo 185º do Código Penal, nem do ponto de vista do tipo objectivo nem do tipo subjectivo do crime.
Impõe-se, pois, a total improcedência do recurso.
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III.
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida. ---
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 (sete) U