Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
19/21.8T8AGN-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO MOREIRA DO CARMO
Descritores: HIPOTECA
CANCELAMENTO
EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO GARANTIDA
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ARGANIL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 349.º E 350.º E 730.º, ALÍNEA A), TODOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O consentimento escrito do credor para o cancelamento da hipoteca não prova só por si nem faz presumir a extinção da obrigação garantida.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. AA, interessado no Inventário, deduziu reclamação (em 2018) contra a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, BB, acusando a falta de relacionamento de bens móveis e requerendo a exclusão da verba única do activo, correspondente a um direito de crédito de 60.000 € sobre o interessado reclamante.

Alegou, em suma, e além do mais, que o direito de crédito invocado se encontra integralmente saldado, juntando para o efeito um documento intitulado por “Declaração”, datado de 13.6.2008, e subscrito pelo inventariado, mediante o qual o mesmo declara autorizar o cancelamento da inscrição hipotecária voluntária nos termos aí aduzidos, não tendo sido, ainda, efectuado formalmente o respectivo cancelamento junto do registo predial, pelo que essa verba única da dita relação de bens deverá ser excluída.

O cabeça-de-casal respondeu, impugnando a genuinidade do documento referido, mais referindo que o mesmo não comprova o pagamento ou perdão da dívida em questão, mas apenas permite concluir que o reclamante teve autorização do inventariado para cancelar a hipoteca registada sobre o imóvel ali identificado. Que o reclamante não comprova qualquer pagamento ou quitação. Mais juntou, cópia de escritura pública de confissão de dívida com hipoteca, subjacente à verba única relacionada em sede de relação de bens.

*  

Foi, depois, proferida decisão que julgou improcedente o incidente e, em consequência, determinou a manutenção da relação de bens nos termos em que foi apresentada.

*

2. O reclamante AA recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:

1- Na decisão sobre o incidente da reclamação à relação de bens, patente no Ponto V do despacho de 6 / 4 / 2021, com a Refª: ..., não poderia a Meritíssima Juiz de 1ª Instância ter decidido como decidiu na parte que declarou a improcedência do dito incidente, mantendo a verba única da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, não excluindo assim a mesma, porquanto,

2- é entendimento do recorrente que, perante a junção da declaração de cancelamento de hipoteca (distrate de hipoteca), reconhecido presencialmente por Cartório Notarial, a mesma equivale à declaração de que se extinguiu a obrigação garantida por essa mesma hipoteca, dado que, caso contrário, o credor não teria qualquer interesse em abrir mão de tal garantia, sem que estivesse cumprida a obrigação em causa.

3- De facto, atento à finalidade e características que revestem as hipotecas voluntárias, sendo que, as mesmas, estinguem-se, em regra, pelo cumprimento da obrigação a que servem de garantia e, tendo a hipoteca em causa sido constituída, precisamente, para garantir o bom cumprimento da obrigação patente na verba única da enunciada relação bens,

4- não se afigura haver qualquer dúvida ou outra explicação sobre o facto do credor inventariado, ao emitir a dita declaração de cancelamento de hipoteca, o mesmo significa que o respectivo credito se encontrava saldado e assim, cumprida a obrigação.

5- Na verdade, é do conhecimento geral que a emissão de declaração de cancelamento de hipoteca, constituída para garantir o cabal cumprimento de uma obrigação, significa claramente que o cumprimento dessa obrigação se encontra satisfeito, dado que, caso contrário, nada justifica que o credor liberte essa garantia sem assegurar o seu crédito.

6- Perante a junção do recorrente do documento de cancelamento de hipoteca e, perante a total ausência de contra-prova que possa colocar em causa a genuinidade e veracidade desse mesmo documento, afigura-se que a ilação lógica a ser retirada e que decorre desse documento terá sempre de ser o facto da obrigação garantida pela dita hipoteca, encontrar-se extinta.

7- Afigura-se assim que a decisão proferida pela Meritíssima Juiz a quo, no que concerne à manutenção da verba única da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, enferma de erro na análise e avaliação da fundamentação que suporta tal decisão, não tomando em consideração os ditames previstos nos art.s 349º e 350º nº1 do Código Civil, bem como, no art. 412º nº1 do Código de Processo Civil.

8- Deverá igualmente realçar-se que, efectivamente, existe um comprovativo / declaração do cumprimento da respectiva obrigação, o qual, lamentavelmente, não pôde ser junto aquando do requerimento de reclamação à relação de bens, dado que, tal documento subscrito pelo inventariado, 20 / 6 / 2008, encontrava-se extraviado, não logrando o recorrente localizar então o mesmo,

9- tendo esse mesmo documento localizado recentemente, no âmbito de remodelações que o recorrente levou a cabo na sua habitação, requerendo-se a junção, neste momento, de tal documento (doc.1), pelo motivo de, aquando do dito requerimento de reclamação à relação de bens, encontrar-se o recorrente impossibilitado de efectuar essa junção, assim como,

10- a junção do enunciado documento demonstrou-se agora necessária, em virtude da decisão ora recorrida proferida pela Meritíssima Juiz de 1ª Instância, não tendo essa decisão tomado em consideração a ilação / presunção que decorrer do citado documento de cancelamento de hipoteca, junção essa que se requer nos termos dos art.s 651º nº1 e 425º do Código de Processo Civil, sendo que e,

11- salvo melhor opinião, no entendimento do recorrente, trata-se de um documento desnecessário, atenta a declaração de cancelamento de hipoteca devidamente apresentada mas que, elimina qualquer tipo de dúvida sobre o cumprimento da obrigação em causa, garantida pela referenciada hipoteca.

12-Finalmente, entende o recorrente que também não foi dado cumprimento ao estabelecido no art. 411º do Código de Processo Civil, nomeadamente e, perante o documento de declaração de cancelamento de hipoteca, reconhecido presencialmente por Cartório Notarial, afigura-se que incumbiria à Meritíssima Juiz a quo ordenar a notificação desse mesmo Cartório Notarial, para que este prestasse as informações sobre as condições e circunstâncias que tal reconhecimento foi efectuado e quais as declarações então prestadas pelo inventariado.

PELO EXPOSTO, deve dar-se total provimento ao presente recurso e, em consequência do mesmo:

a) Deverá revogar-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, na parte em que improcedeu totalmente o incidente deduzido pelo ora recorrrente de reclamação à relação de bens, determinando a manutenção da verba única da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, devendo tal verba ser excluída dessa mesma relação de bens.

E assim se fará INTEIRA JUSTIÇA.

3. O cabeça de casal contra-alegou, concluindo que:

1. Com o presente Recurso, pretende o Recorrente que seja revogada a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, na parte em que determinou a manutenção da verba única da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, correspondente a um direito de crédito no valor de 60.000,00€ sobre o aqui Recorrente e seu cônjuge.

2. Nesse sentido, argumenta que, pela prova documental junta, mais concretamente, pelo documento junto aos autos a fls.33, intitulado por “Declaração” e mediante o qual o de cujus declara autorizar o cancelamento da inscrição hipotecária nos termos aí aduzidos, a Meritíssima Juiz de 1ª Instância deveria ter decidido em sentido diferente.

3. Esse documento apenas permite concluir o que resulta do mesmo, ou seja, que o Reclamante teve autorização do inventariado para cancelar a hipoteca registada sobre o imóvel identificado.

4. Ademais, se a alínea a) do artigo 730º do Código Civil determina que a hipoteca se extingue pela extinção da obrigação a que serve de garantia, o contrário já não é verdade, não existindo na lei qualquer ditame ou presunção nesse sentido.

5. Ou seja, a declaração de cancelamento de hipoteca assinada pelo inventariado não equivale, nem pode pura e simplesmente equivaler, à declaração de que se extinguiu a obrigação garantida por essa mesma hipoteca.

6. Ao contrário do que pretende fazer valer o Recorrente, não existe qualquer presunção legal no sentido em que a extinção da hipoteca equivale à extinção da dívida, até porque o artigo 730.º da lei substantiva apenas consagra as causas de extinção da hipoteca.

7. Por outro lado, sempre se dirá que está aqui apenas em causa um documento cuja assinatura foi reconhecida perante um Notário ou funcionário notarial e não um verdadeiro termo de autenticação, não tendo, por isso, sido assegurada ao declarante a leitura, explicação e compreensão do seu conteúdo.

8. Face ao exposto, andou bem o tribunal a quo ao considerar que o documento se cinge a “(…) uma declaração subscrita pelo Inventariado, no âmbito da qual este apenas declara que autoriza o cancelamento da inscrição hipotecária que identifica e que incide sobre o prédio urbano ali melhor descrito; não se vislumbrando da mesma qualquer declaração no sentido de que a dívida em causa tenha sido paga.”

9. O Recorrente veio agora apresentar um novo documento, que considera constituir um comprovativo/declaração do cumprimento da respetiva obrigação, requerendo a junção do mesmo ao abrigo

dos artigos 651º nº1 e 425º do Código de Processo Civil.

10. Tal documento não ser determinante para descoberta da verdade por não ser apto a demonstrar o cumprimento da obrigação em causa, a sua junção nesta fase é extemporânea e carecida de fundamento legal.

11. A jurisprudência recente dispõe acerca desta matéria, que a junção de documentos na fase de recurso, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; ou (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.

12. O Recorrente no caso concreto não apresentou prova da verificação de qualquer das condições enunciadas.

13. Pelo contrário, em virtude de o tribunal ter considerado que a declaração anteriormente junta (na qual foi inclusive aposto um reconhecimento notarial de assinatura) não poderia equivaler à declaração de que a dívida estivesse extinta, este optou por “tentar outra vez”, e juntar um novo documento.

14. Não se concebe que a apresentação de tal documento se tenha tornado necessária em virtude da decisão proferida pela Meritíssima Juiz a quo, pois que a decisão não veio introduzir qualquer elemento de novidade ou surpresa suscetível de afetar o thema decidendum e apta a modificar o julgamento, sendo que apenas não veio dar guarida às razões do Recorrente.

15. Os motivos alegados, os quais a parte não logrou minimamente provar, não são suscetíveis de levar à verificação de qualquer uma das condições alternativas previstas na norma emanada dos artigos 651º nº1 e 425º do Código de Processo Civil, pelo que a junção do referido documento, tida como excecional, deve ser liminarmente indeferida.

16. Para além disso, pelo seu teor e pelas circunstâncias em que foi apresentado, não deverá merecer qualquer credibilidade.

17. Efetivamente, na declaração, agora junta aos autos intempestivamente e de forma deveras conveniente, não foi sequer reconhecida a presumível assinatura do declarante, nem o seu conteúdo confirmado perante um notário ou outra entidade com competência para o efeito, carecendo, por isso das formalidades e requisitos legais suscetíveis de lhe conferir uma maior segurança e idoneidade.

18. Sendo manifestamente duvidosa a sua autenticidade, já que comparando com outras assinaturas do Inventariado, a assinatura constante neste documento nem sequer é semelhante.

19. A verdade é que o Recorrente não logrou provar o pagamento da dívida em causa, no valor de 60.000,00€, e que constitui um direito de crédito da herança, devendo tal verba continuar a integrar a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal.

20. Assim sendo, não há qualquer reparo a fazer à douta sentença recorrida, que se encontra elaborada de forma perfeitamente inteligível, fundamentada e justa, devendo, por isso, ser confirmada.

PELO EXPOSTO:

Deve ser negado provimento ao presente Recurso, mantendo-se a Sentença Recorrida.

E assim V/Ex.ªs farão INTEIRA JUSTIÇA.

II – Factos Provados

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Admissibilidade de documento junto com alegações de recurso.

- Exclusão da verba da relação de bens.

2. Dispõe o art. 651º, nº 1, do NCPC, que as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.

Por sua vez, dispõe o art. 425º que depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.

O recorrente pretende juntar o documento que individualiza, e que comprovará o cumprimento da obrigação da dívida hipotecária junto do inventariado, seu pai, com fundamento nas duas situações enunciadas legalmente (cfr. conclusões de recurso 8- a 11-).
- Quanto à 2ª situação, a impossibilidade de apresentação anterior pode ser objectiva ou subjectiva.
A objectiva é aquela que ocorreu historicamente depois de um determinado momento considerado.
E a subjectiva o que justificadamente só foi conhecido por alguém depois desse momento, ou que apesar de conhecido não era possível materialmente fazer a apresentação nesse dado momento. Ex: a parte só posteriormente tem conhecimento da existência do documento, para a 1ª hipótese; o documento encontrava-se em poder de terceiro que só posteriormente o disponibiliza, para a 2ª hipótese (vide Lebre de Freitas, em A Ação Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013, pág. 250, nota (66). Nesta situação de impossibilidade subjectiva de apresentação anterior, a lei, como resulta do indicado texto “não ter sido possível” exige que o apresentante do documento justifique por razões aptas ou o posterior conhecimento ou a posterior disponibilidade, no sentido de serem razões atendíveis para aquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses. Ademais, estas razões, pressupõem além da respectiva invocação a prova da aludida impossibilidade, abrindo-se, assim, caminho, à respectiva indagação (vide Ac. desta Rel. Coimbra, de 18.11.2014, Proc.628/13.9TBGRD, em www.dgsi.pt).

No nosso caso, o aludido documento, datado de 20.6.2008, uma semana depois do outro documento que o recorrente apresentou com a relação de bens, formou-se, pois, em data anterior à reclamação à relação de bens. Não é, por isso, documento superveniente objectivo.

É sim documento superveniente subjectivo, da mencionada 2ª hipótese, porque o recorrente, como alega, embora conhecesse a sua existência, não logrou localizá-lo, por estar extraviado, até à apresentação da sua reclamação à relação de bens. E só recentemente, no âmbito de remodelações que o recorrente levou a cabo na sua habitação, o localizou.

Todavia, a razão invocada à partida é dificilmente atendível, num quadro de normal diligência, para só agora estar na disponibilidade do recorrente o aludido documento, pois o apelante não alega por ex. que o buscou afincadamente no interior da sua habitação, onde é que ele se encontrava (lugar acessível/inacessível), qual a temporalidade da sua busca (começou a procura atempadamente, a mesma durou xis dias), etc, sendo certo que se tratava de documento importante na óptica do apelante, pois comprovaria a inexistência de qualquer direito de crédito da herança sobre si. O que é igualmente certo é que o recorrente, também, nem sequer empreendeu alguma prova nesse sentido a fim de permitir a eventual resposta concreta do recorrido e a possível indagação por parte do tribunal, já que nenhuma prova foi apresentada relativamente à justificação apresentada. É caso para observar objectivamente, sem desmérito ou suspeitas sobre o apelante, que o aparecimento do documento à ultima da hora é de todo conveniente, “dá jeito” às suas pretensões (isto sem nos pronunciarmos sobre a validade/credibilidade de tal documento que o recorrido questiona), mas não pode ser aceite, por não poder concluir-se pela invocada indisponibilidade de apresentação do mencionado documento até à apresentação das alegações de recurso.

- Quanto à 1ª situação, a junção ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.  

Declaradamente não.
Embora a lei admita a junção de documentos com as alegações de recurso nos casos em que o julgamento proferido em primeira instância torne necessária a consideração desse documento, essa hipótese pressupõe, obviamente, que a decisão tomada, pelo seu objecto ou sua fundamentação, tornou de todo surpreendente à parte o que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo. Isto é, tornou necessário à parte provar matéria com cuja relevância não poderia razoavelmente contar antes da decisão proferida, assim suscitando a necessidade de pela primeira vez juntar determinado documento (vide Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2º Ed., 1985, págs. 533/534).  
Ora, no nosso caso o processo de inventário revelava uma questão decidenda, bem sabendo o ora recorrente que ao apresentar a sua reclamação de bens à relação de bens, com o fundamento que deduziu, teria de provar que o direito de crédito não existia para ver excluída a verba do activo de tal relação de bens. Inclusive apresentou prova documental para tanto. Assim, a decisão recorrida ao indeferir a dita reclamação, com análise do indicado documento de fls. 33 não tornou, patentemente, necessária a junção do aludido documento pretendido juntar agora aos autos. 

Com este fundamento também não pode admitir-se a junção aos autos do indicado documento apresentado com as alegações de recurso do apelante.

3. Na decisão recorrida escreveu-se que:

“De outra banda, quanto à pretensa exclusão da relação de bens da verba única correspondente a um direito de crédito, no valor de 60.000,00€ (sessenta mil euros), sobre o interessado / Reclamante AA e mulher CC, garantido por hipoteca sobre metade do imóvel melhor id. nos autos, não obstante o Reclamante alegar que o crédito em causa se encontra integralmente saldado, concluindo, assim, que a herança já não detém qualquer crédito sobre o requerente ou a sua cônjuge, o certo é que não juntou aos autos prova documental que atestasse esse pagamento, nomeadamente v.g. comprovativo desse pagamento, recibo / declaração de quitação; documento que comprovasse a extinção da obrigação cujo cumprimento pretendia assegurar com a hipoteca em causa; ou mesmo prova testemunhal, para aferir de um eventual perdão de dívida por parte do inventariado ou qualquer outra causa de extinção da obrigação.

O documento junto aos autos a fls. 33 cinge-se a uma declaração subscrita pelo Inventariado, no âmbito da qual este apenas declara que autoriza o cancelamento da inscrição hipotecária que identifica e que incide sobre o prédio urbano ali melhor descrito; não se vislumbrando da mesma qualquer declaração no sentido de que a dívida em causa tenha sido paga, ou, nas palavras do Reclamante “o crédito em causa se encontra integralmente saldado”. Se assim fosse, in casu, bastava para o efeito o Reclamante juntar aos autos comprovativo desse pagamento que alega ter efectuado, o que não fez.

Tendo em conta que o Reclamante, não requereu a produção de qualquer outro meio de prova no articulado correspondente, conforme resulta dos termos conjugados dos artigos 1091º e 293.º, n.º 1, ambos do CPC, que lhe cabia o ónus da prova do alegado (artigo 342º nº 1 do Código Civil) e que o cabeça-de-casal impugnou a factualidade vertida na reclamação, toda a matéria constante da reclamação resulta como não provada por total ausência de produção de prova nesse sentido.

Cumpre agora proceder ao seu enquadramento jurídico.

(…)

Temos, assim, que o quantum patrimonial do inventariado se cristalizou à data do óbito. Ora, no caso dos autos, esse património está vertido na relação de bens, não tendo o Reclamante logrado demonstrar, como lhe competia, a falta de bens (móveis) e a exclusão de outros (o crédito em questão) – artigos 1091, n.º 1, 1104.º, n.º 1, al. d) e 1105.º, todos do CPC.

Assim sendo, e sem necessidade de aduzir quaisquer outras considerações, impõe-se a improcedência do incidente.”.

O apelante discorda, como se vê das razões que apresenta nas suas conclusões de recurso (sob 2- a 7- e 12-). Mas sem razão, no nosso entendimento. Analisemos, então, de per si, cada uma das 3 justificações jurídicas avançadas.

a) Como se aponta, e bem, na decisão recorrida, o reclamante, não requereu a produção de qualquer outro meio de prova no articulado correspondente, para além do documento que juntou, certo que lhe cabia o ónus da prova do alegado (art. 342º, nº 1, do Código Civil). E certo, também, que o cabeça-de-casal impugnou o valor probatório que o recorrente pretende imprimir a tal documento.

Efectivamente, compulsado o mesmo vê-se que é uma declaração do inventariado, com reconhecimento presencial da assinatura, em que o mesmo expressa autorizar o cancelamento de inscrição hipotecária que identifica e que incide sobre o prédio urbano ali melhor descrito. Não se detectando em tal documento qualquer declaração no sentido de que a dívida em causa, do reclamante perante o inventariado, tenha sido integralmente paga ou saldada. Se assim fosse, bastava para o efeito o reclamante juntar aos autos comprovativo desse pagamento que alega ter efectuado, ou juntar declaração de quitação, ou eventualmente de perdão da dívida em questão, o que não fez. Tal declaração apenas permite concluir que o reclamante teve autorização do inventariado para cancelar a hipoteca registada sobre o imóvel ali identificado, nada mais. Ali não se diz que a dívida está extinta.  

A questão a decidir passa então por saber se uma declaração autorizativa para cancelamento de hipoteca – sabemos que o cancelamento não foi feito, porque o reclamante o reconhece -, assinada pelo inventariado, equivale ou não à declaração de que se extinguiu a obrigação garantida por essa mesma hipoteca – só com a extinção da obrigação se extingue a hipoteca (art. 730º, a), do CC).

Literalmente não. Mas o apelante defende que deve ser essa a conclusão, face às presunções previstas nos arts. 349º e 350º, nº 1, do CC.

Dir-se-á já de entrada e sumariamente que ao contrário do que defende não existe qualquer presunção legal no sentido em que uma declaração de autorização para cancelamento de hipoteca faz presumir quer a extinção da dívida quer da hipoteca.   

Relativamente a presunção judicial ou simples, que se inspira nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos dados da experiência humana (vide A. Varela, em CC Anotado, Vol. I, 3ª Ed., nota 2. ao apontado artigo 349º, pág. 310) diremos que a realidade da vida não transmite com sólida força persuasiva aquela conclusão. O apelante exemplifica com as declarações passadas pelos bancos, pois diz ser publicamente consabido que, no caso das hipotecas constituídas perante as entidades bancárias, para garantia dos respectivos mútuos, quando se encontre efectuado o reembolso desse mesmo mútuo, as entidades bancárias emitem unicamente o correspondente documento de cancelamento de hipoteca (distrate de hipoteca), sem que procedam à emissão de qualquer quitação, uma vez que tal documento é o suficiente para remover o ónus de garantia em causa, atestando o integral cumprimento da obrigação.

Mas o recorrido retorque e avisadamente que nem sempre assim é com as entidades bancárias. Na verdade, no caso das hipotecas bancárias, para garantia dos respetivos mútuos, assim que se encontre reembolsada a totalidade das quantias em dívida, as entidades bancárias estão legalmente obrigadas a emitir o correspondente distrate de hipoteca. Todavia, existem situações em que, não estando o empréstimo totalmente liquidado, as entidades bancárias optam por abdicar da garantia hipotecária por motivos comerciais ou de outra ordem. Por exemplo, por o montante em dívida já ser pequeno e/ou por concluírem que, face à avaliação de solvabilidade efetuada aos mutuários, o seu património geral é considerado suficiente para fazer face às suas actuais responsabilidades.

Pelo que não é publicamente consabido que duma autorização de cancelamento de hipoteca se possa inferir logicamente ou como uma máxima da experiência que a obrigação garantida pela hipoteca se encontra extinta.

Podendo, inclusive, estar em causa, fora do mundo das hipotecas bancárias, como é o nosso caso, razões de outro teor, desde logo o facto de o devedor e titular do imóvel hipotecado, o recorrente, ser filho do declarante inventariado. A presunção judicial que o apelante invoca aponta para quê, para um perdão de dívida ao filho, para um efectivo pagamento integral (como ele sustenta com a pretendida mas infrutífera junção de um documento nas alegações de recurso) ? Não sabemos, e consideramos injustificado dar esse salto probatório, com eventual prejuízo patrimonial para os restantes interessados.

Não há, na verdade, solidez suficiente para recorrendo a essa presunção judicial – ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido - concluir pela extinção da obrigação. Recorde-se, aliás, como alerta A. Varela, ob. e local cit., que as presunções são por natureza falíveis, são precárias.

Desta maneira, perante a dúvida séria que assim tenha acontecido, cabe aplicar o art. 414º do NCPC, que determina que a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, no nosso caso resolve-se contra o recorrente.  

b) Esgrime o apelante com a notoriedade do facto, pois segundo ele é do conhecimento geral que a emissão de declaração de cancelamento de hipoteca, constituída para garantir o cabal cumprimento de uma obrigação, significa claramente que o cumprimento dessa obrigação se encontra satisfeito, dado que, caso contrário, nada justifica que o credor liberte essa garantia sem assegurar o seu crédito. A argumentação do recorrente entronca, portanto, em parte com a que utilizou para a invocada presunção judicial quando a propósito desta falava em consabido conhecimento público.

Dispõe o art. 412º, nº 1, do NCPC, que não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.

Ora, são notórios os factos do conhecimento geral, isto é, conhecidos ou facilmente cognoscíveis pela generalidade das pessoas normalmente informadas de determinado espaço geográfico, de tal modo que não haja razão para duvidar da sua ocorrência. E, embora o âmbito da notoriedade apareça hoje consideravelmente alargado, mercê dos modernos meios de comunicação de massas, tal não significa que deva ser considerado notório todo o facto divulgado pela imprensa, rádio ou televisão, pois se pode mesmo assim duvidar da sua ocorrência. Por definição é, pois, indiscutível a sua verificação (vide nesta linha de pensamento Lebre de Freitas, em CPC Anotado, Vol. II, 2ª Ed., nota 2. ao anterior artigo 514º = ao actual art. 414º, pág. 428).

Perante esta doutrina, mais estreita, ainda, que o fundamento que subjaz à aplicação de uma presunção judicial, pois as máximas da experiência necessárias ao raciocínio dedutivo que caracteriza a presunção, revestem natureza geral ao passo que o facto notório é um facto concreto de conhecimento geral (Lebre de Freitas, ob. e local cit., pág. 429), é de considerar que não estamos perante um facto notório, não é do conhecimento geral que duma autorização de cancelamento de hipoteca se possa indiscutivelmente inferir que a obrigação garantida pela hipoteca se encontra extinta.

c) Por fim, suscita o recorrente a problemática do não cumprimento do estabelecido no art. 411º do NCPC, nomeadamente e, perante o documento de declaração de cancelamento de hipoteca, reconhecido presencialmente por Cartório Notarial, incumbiria ao tribunal a quo ordenar a notificação desse mesmo Cartório Notarial, para que este prestasse as informações sobre as condições e circunstâncias que tal reconhecimento foi efectuado e quais as declarações então prestadas pelo inventariado.

Nos termos do indicado artigo, que se refere ao princípio do inquisitório, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.

Ora, como justamente observa o recorrido, o ora recorrente ao juntar a referida prova documental ao seu requerimento de reclamação de bens, poderia perfeitamente ter diligenciado pela inquirição da entidade que procedeu ao reconhecimento da assinatura. O que não fez, apesar de lhe caber o ónus de provar o alegado, como acima referimos.

É que o princípio do inquisitório tem necessariamente de ser conjugado com outros ditames, designadamente com o da autorresponsabilidade das partes. Se a parte podia ter requerido certa diligência probatória e não o fez, sibi imputet.

A intervenção do juiz, em última instância, substituindo-se a ela, vai, em tese geral, acabar por violar o princípio da igualdade das partes no processo, pois estaria a permitir a prática de um acto já precludido e a esvaziar a aludida autorresponsabilidade de uma das partes, eventualmente favorecendo-a.

Ademais, em concreto, nem se vislumbra essa necessidade. Na realidade estamos a falar de uma declaração com simples reconhecimento presencial, e não de um documento autenticado (arts. 377º do CC e 35º, nº 3, 150º, nº 1, e 151º, nº 1, a), do C. Notariado) onde aí, sim, a parte tem de confirmar perante o Notário o teor de determinado documento, e, por conseguinte, prestar as declarações devidas por lei, que o recorrente menciona. Não sendo um documento autenticado não se descortina, pois, que declarações poderia o inventariado ter prestado para prova do invocado pagamento pelo recorrente e que o funcionário que efectuou o simples reconhecimento presencial da assinatura poderia ter captado e agora transmitir. Portanto, prefigura-se tal diligência como inócua, não pertinente, e consequentemente dispensável.  

(…)

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

*

Custas pelo recorrente.

*

                                                                        Coimbra, 8.3.2022

                                                                        Moreira do Carmo

                                                                        Fonte Ramos

                                                                        Alberto Ruço